A SUBVERSÃO PÓSCOLONIALISTA DO ETHOS EUROPEU EM “ASSASSINATOS NA RUA DO NECROTÉRIO:” A QUESTÃO DE CRIMES CONTRA A MULHER Autor (1) Profa. Dra. Daise Lilian Fonseca Dias Universidade Federal de Campina Grande; [email protected]Resumo: Este artigo analisa o conto “Assassinatos na rua do necrotério” (1841), do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-49), na perspectiva do gótico (pós)colonial americano, com o aporte teórico de Khair (2009), Hogle (2002) e Savoy (2002), destacando a realidade de mulheres solitárias nas grandes cidades – esta obra (de autoria masculina) é precursora na abordagem do assunto. Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa que lança luzes sobre sombras poeanas em obras do autor ainda não analisadas pelo viés crítico-teórico aqui utilizado, a saber, aquele do gótico (pós)colonialista americano posto em prática na contística do autor. Diante disto, serão situadas ansiedades (pós)colonialista na obra em estudo para revelar até que ponto o autor subverte e/ou reproduz certas construções ideológicas cristalizadas na literatura inglesa/europeia de seu tempo. Neste cenário, Poe subverte vieses imperialistas acerca do ethos europeu. Ele faz isto através de um enredo que trata de um crime bárbaro perpetrado contra mulheres solitárias e anônimas que vivem sozinhas em uma Paris cosmopolita e xenofóbica, imersa em um preconceito bairrista contra seus pares europeus. Estas mulheres invisíveis, após suas mortes, tornam-se “escadas,” isto é, fontes de conhecimento (espécies de cobaias) em um contexto para a demonstração e afirmação do conhecimento científico (racional) e filosófico do intelectual europeu. As questões aqui abordadas ressaltam o pioneirismo desta leitura proposta para a obra, tanto nas questões de natureza feminista quanto póscolonialista. Palavras-chaves: Póscolonialismo, gótico americano, mulher, sociedade Introdução Este artigo é fruto de investigações resultantes de um projeto de pesquisa sobre obras selecionadas do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) na perspectiva póscolonial, sobretudo “Assassinatos na rua do necrotério”, permeado por uma discussão acerca do “gótico americano” e de aspectos do “gótico tradicional”, que o autor põe em prática em suas obras, através de uma mentalidade ora colonialista, ora póscolonialista. Neste contexto é importante considerar que Poe se volta para outros topos, o europeu, na maior parte de suas obras, “desprezado” o utópico ambiente nacional, o que por si só, já instiga uma investigação por parte de um leitor crítico. Metodologia Segundo Khair (2009, p. 3 e 5, respectivamente 1 ), “o gótico e o póscolonial estão obviamente ligados por uma preocupação com o Outro e aspectos da Outremização;” o autor acrescenta que o gótico é também “uma escrita da Outremização”. Para Bonnici (2005, p. 47), (83) 3322.3222 1 Todas as traduções das obras estrangeiras citadas nas referências são de nossa autoria. [email protected]www.generoesexualidade.com.br
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A SUBVERSÃO PÓSCOLONIALISTA DO ETHOS EUROPEU … · Introdução Este artigo é fruto ... É importante considerar que o olhar do europeu sobre o outro não está limitado ... colônia,
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questão do “olhar imperial” sobre si e sobre o outro, sendo esse olhar:
uma das mais eficazes estratégias do colonizador. Através do olhar, da vigilância e da observação, sinônimos de poder, o colonizador define a identidade do sujeito colonial, objetifica o sujeito no sistema identificador das relações do poder e salienta a subalternidade dele. Através do olhar, o sujeito
colonial é interpelado pela exclusão e desaprovação (BONNICI, 2005, p. 45).
É importante considerar que o olhar do europeu sobre o outro não está limitado apenas
a um indivíduo de alguma (ex)colônia, mas também para espaços de seu próprio continente
tratados pela hierarquia espacial de grupos hegemônicos. Nesse sentido, tem-se a ideia de
nação, o que envolve significados culturais e instabilidades do poder, atreladas à noções
subjetivas de fronteira e deslocamento também entre pares europeus.
O cenário acima apresentado serve de base para se entender o gótico póscolonial
americano posto em prática por Edgar Allan Poe (1809-49), notadamente em “Assassinatos na
rua do necrotério” (1841). Nesse sentido, deve-se ressaltar que o gótico americano produziu
uma literatura póscolonial que trouxe inovações para aquela estética. Savoy (2002, p. 168)
mostra que “o poder dela vem de sua originalidade e diversidade em uma série de partidas que
situam o perverso [...] dentro do mainstrem nacional...” Estas características revelam
inquietações culturais locais em relação ao “eu” americano em formação e a um “outro” quer
“estrangeiro” – indígenas, imigrantes de raças e/ou diferentes – quer “familiar” (os
antepassados ingleses), e seu legado no processo formador da nova nação. Assim, “imagens
góticas na América sugerem a atração e a repulsa de uma história monstruosa, o desejo de
‘conhecer’ o traumático Real do ser americano e ainda o voo daquele insuportável e
traumático conhecimento” (SAVOY, 2002, p. 171).
As características acima aludidas encontram-se nas narrativas fundadoras do cânone
estadunidense de Hawthorne, Melville, e Poe, por exemplo, bem como na poesia de Emily
Dickinson. Estes autores, em débito com os romances góticos de peso literário menor do
compatriota Charles B. Brown, ilustram um retorno no autor americano a uma origem cultural
que lhes deu base e existência enquanto americanos. Mesmo produzindo literatura via padrões
literários europeus, eles forjaram um modelo próprio que serviria de referencial para futuras
gerações, inclusive do outro lado do Atlântico. À exceção de Poe, Hawthorne e Melville, por
exemplo, se voltam para ações de seus pais fundadores em solo americano, Poe, para as
práticas deles ainda no Velho Continente, as quais perduram na psique do indivíduo que se
3) Um policial francês A voz arrepiante era de um estrangeiro, possivelmente, um espanhol; ouviu palavras em francês serem pronunciadas.
4) Um ferreiro francês Não sabia italiano, mas imaginava pela entonação que ouviu, ser o assassino faltante daquele idioma.
5) Um restauranteur Não falava francês, mas ouviu o assassino falar francês. holandês
6) Um corretor francês
7) Um francês
funcionário do banco das vítimas
8) Um alfaiate inglês Considerava o assassino um francês, porque ouviu palavras em francês. Julgava que o assassino não era inglês, talvez alemão; não sabia alemão.
9) Um agente funerário Defendia que o assassino era francês, por ter ouvido aquele idioma ser falado na cena espanhol do crime. Uma outra voz ali era de um inglês; não falava inglês.
10) Um italiano do ramo Identificou uma voz como falante de francês e a outra de russo; nunca falou com um de confecções russo.
11) Um médico francês
12) Um cirurgião francês
O quadro acima oferece um resumo panorâmico e didático sobre a natureza dos
depoimentos apresentados sobre os crimes ocorridos contra duas mulheres numa noite em
Paris. Em primeiro lugar, observa-se neste quadro uma amostra da população de Paris no
início do século XIX. Sendo a maioria francesa, esta mesma maioria não se mostra
majoritariamente preocupada em construir um perfil outremizado para o assassino ou
assassinos, de modo que alguns deles não tecem comentários preconceituosos em seu
discurso. Neste conto em particular, a tarefa de demonstrar rixas nacionais é posta mais
explicitamente no discurso de estrangeiros residentes naquela localidade.
A ironia no processo de desqualificação dos depoentes e o conteúdo dos seus discursos
é posta no fato de que, boa parte deles, não conhece com propriedade um dos idiomas falados
– mas não identificado - na cena do crime, e apesar de não levarem os investigadores a um
consenso sobre esta questão, são ridicularizados pelo texto ao atribuírem o que ouviram
características de idiomas estrangeiros de países historicamente rivais ao seu. Assim, as
impressões das testemunhas estavam baseadas em rivalidades nacionais e não em fatos
concretos. É Dupin quem imprimirá uma crítica mais clara aos depoentes, ridicularizando-os
em suas colocações imprecisas, preconceituosas e não confiáveis.
Em segundo lugar, os depoimentos também revelam a total falta de sensibilidade dos
envolvidos (policiais, Dupin, narrador e (83) 3322.3222
violência doméstica e injustificável contra à mulher que se opõe à maldade e ao poder
opressor masculino, e a ira do homem ao se vê refletido nesse espelho subversivo. Em
“Assassinatos na rua do necrotério” para revelar também a invisibilidade feminina no
universo cosmopolita e indiferente das grandes metrópoles e a desconfiança masculina em
relação à mulheres desacompanhadas. Estas características revelam a compreensão do autor
acerca da posição de subalternidade da mulher diante do patriarcado e a ambigüidade delas no
cenário ideológico imperialista, e como ela assemelha-se à condição do colonizado.
Esta leitura póscolonialista da contística do autor tem sido debatida mais
recentemente, notadamente com Savoy (2002) e sua análise do gótico póscolonial americano
em “O gato preto,” o que permite que sejam lançadas novas luzes sobre os demais contos do
autor neste viés crítico-teórico. Assim, conclui-se que o autor utiliza-se da estética gótica para
imprimir sua crítica póscolonialista à mentalidade européia que influencia o pensamento do
homem americano de seu tempo, embora ele assim proceda não de modo explícito, mas
sobretudo pelo viés alegórico, como defende Savoy (2002).
Referências
BONNICCI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: UEM, 2005a
(Coleção Fundamentum, no. 12). FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Maria Adriana da Silva Caldas. Rio
de Janeiro: Fator, 1983. KHAIR, Tabish. The gothic, postcolonialism and otherness: ghosts from elsewhere. London: Palgrave Macmillan, 2009. POE, Edgar Allan. The complete works. RUBIN-DORSKY, Jeffrey. The early American novel. In: ELLIOT, Emory (ed). The Columbia history of the American novel. New York: Columbia University Press, 1991. SHARPE, Jenny. The unspeakable limits of rape. In: WILLIAMS, Patrick; CHRISMAN,
Laura (eds). Colonial discourse and post-colonial theory. New York: Columbia University
Press, 1994. SAVOY, Eric. The rise of American gothic. In: HOGLE, Jerrold (ed). The Cambridge companion to gothic fiction.New York: Cambridge University Press, 2002.