Top Banner
A sombra dos grandes AlDA FERNANDA OLAs Universidad de Coimbra Vindo de Lovaina, Nicolau Clenardo estanciava, desde 1531, cm Sala- manca, de cuja liniversidade chegou a ser mestre, embora por escassos dias. Nesta cidade se tornóu famoso pelo saber e cultura e pelos dotes de pedagogo, continuando a afirmar, assim, o prestigio de que vinha aureolado. Da cidade salmantina, onde ministra, a nivel particular e oficial, cursos de grego e de latim, linguas que dominava a par do árabe, do hebraico e do caldeu, saiu para entrar em Portugal peía máo de um amigo e antigo discipulo cm Lovaina, André de Resende, nos finais do ano de 1533. O humanista portugués, que exaltara junto de D. Joáo III os méritos do brabantino, partiu para Salamanca com missáo bem definida. Levando consigo duas cartas dirigidas a Clenardo, urna do próprio monarca, outro do Infante U. Henrique, André de Resende fora incumbido de o convidar e de o persuadir a vir para Portugal, a fim de ser mestre do dito Infante, futuro Cardeal-Infante, e ao tempo Arcebispo de Braga. Neste propósito, seguja o Piedoso as pisadas de U. Joáo II, ao chamar a Portugal Cataldo Siculo para mestre de latinidade do Senhor D. Jorge, seu flího bastardo. Mantinha-se, assim, na corte portuguesa, o culto peía lingua de Virgilio, que o nosso primeiro rei humanista, .0. Afonso y (cuja educa~áo fora confiada a dois mestres estrangeiros de renome, Mateus Pisano e Estéváo de Nápoles) afirmava, ao trazer para o reino Frei Justo Baldino, feito depois Bispo de Ceuta, a quem confiara a versAo latina das crónicas de Fernáo Lopes. E continuava bem vivo o reconhecimento da importáncia do estudo do idioma do Lácio cm que alguns Principes de Avis (O. Duarte, O. Pedro, o Condestável seu fliho, as Infantas O. Catarina e O. Filipa) se exercitaram. Propostas de reforma no ensino do latim haviam sido formuladas pelo Infante O. Pedro, há mais de um século (1426), na importante carta que de Bruges escreveu ao Rei Eloquente. Nao Idi difícil a André de Resende convencer Clenardo. Convite aceite e Revino de Filología Románica, voL 11-1984. Editorial Universidad Complutense de Madrid.
34

A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

Apr 25, 2023

Download

Documents

Khang Minh
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes

AlDA FERNANDA OLAsUniversidadde Coimbra

Vindo de Lovaina,Nicolau Clenardoestanciava,desde1531, cm Sala-manca,de cujaliniversidadechegoua sermestre,emborapor escassosdias.Nesta cidade se tornóu famoso pelo saber e cultura e pelos dotes depedagogo,continuandoa afirmar, assim,o prestigiode quevinha aureolado.Da cidadesalmantina,onde ministra,a nivel particulare oficial, cursos degrego e de latim, linguasquedominavaa par do árabe,do hebraicoe docaldeu, saiu para entrar em Portugal peía máo de um amigo e antigodiscipulo cm Lovaina,André de Resende,nos finais do anode 1533.

O humanistaportugués,que exaltarajunto de D. JoáoIII osméritosdobrabantino, partiu para Salamancacom missáo bem definida. Levandoconsigoduascartasdirigidasa Clenardo,urnado próprio monarca,outro doInfanteU. Henrique,Andréde Resendefora incumbidode o convidare deopersuadira vir paraPortugal, a fim de ser mestredo dito Infante, futuroCardeal-Infante,e aotempojáArcebispodeBraga. Nestepropósito,segujaoPiedosoas pisadasdeU. JoáoII, ao chamaraPortugalCataldoSiculo paramestrede latinidadedo SenhorD. Jorge,seuflího bastardo.Mantinha-se,assim, na corte portuguesa,o culto peía lingua de Virgilio, que o nossoprimeiro rei humanista,.0. Afonso y (cuja educa~áofora confiadaa doismestres estrangeirosde renome, Mateus Pisano e Estéváo de Nápoles)afirmava,ao trazerparao reino Frei JustoBaldino, feito depois Bispo deCeuta, a quem confiara a versAo latina das crónicasde FernáoLopes. Econtinuavabemvivo o reconhecimentoda importánciado estudodo idiomado Lácio cm que alguns Principes de Avis (O. Duarte, O. Pedro, oCondestávelseu fliho, as InfantasO. Catarinae O. Filipa) se exercitaram.Propostasde reforma no ensino do latim haviam sido formuladaspeloInfante O. Pedro,há maisde um século(1426), na importantecartaquedeBrugesescreveuao Rei Eloquente.

Nao Idi difícil a André de ResendeconvencerClenardo.Conviteaceitee

Revino de Filología Románica, voL 11-1984. Editorial UniversidadComplutensede Madrid.

Page 2: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

38 Alda FernandaDías

ej-los de marchaaté Évora, onde se encontravaa corte, e ondechegamaolindar o ano de 1533. Aqui permaneeeuClenardo,no desempenhodassuasfung5es,durantepoucosanos.Abandonaa urbe eborensea 30 de Julbo de1537,cm direcgáoaBraga,parasejuntarao discípulo,o Arcebispo.Durantea viagem,quede Evorao levariaao nortedo País,e mesmodepoisde aquisehaver fixado, conheceuváriaslocalidades,entrecias Coimbra,onde o sabergrego de Vicente Fabricio e de seusdiscipulos o espantou.Foi tambémaCompostela.Em Novembro de 1538, abandonadefinitivamente Portugal,com intuito de regressará pátria,onde nuncachegoua entrar.

Cinco anosde permanénciano nossoPaíspermitiramao Mestre llamen-go conhecero Portugale os Portuguesesde Quinhentos.Algumasdassuascartasdáotestemunhoclaroda vida daNa9áo,fundamentalmenteno campocultural e social. Relacionadocom o escol intelectual do reino, vive emÉvora, comAndré de Resende,repartindoo tempoentreo ensino,os estudose os amigos, escrevendolongase pormenorizadascartase redigindo as suasobras.E fala comadmira~ode Resendeede Damiáode Góis,de JoáoPetite de VicenteFabricio, de NicolauChanterenee de JoanaVaz; refereaculturaquese respirana corteportuguesa,ondealgunsconhecemo gregoe o latim,e falarnestecom maisdesenvolturado queouvira cm Salamanca;apontaosprogressosdos alunose, entusiasmado,descreveos resultadospositivosdosmétodospor ele utilizados na inicia~o ao latim, métodosapolados,naprimeira fase da abordagemda língua, na oralidade,e experimentadoscmÉvorae em Braga.

De todasas suascartas,é urnadasdirigidas a TiagoLátomo,seu antigomestree amigo,ena qual se espelbaa sociedadeportuguesade entáo,a maisconhecidaentrenós. Sempreque se estudao século XVI do ponto de vistasocial, sempreque se pretendeprovar a pertinénciada sátiragilvicentina,visando alguns aspectosdo Portugal seu contemporáneo,a epístola deClenardoéchamadaá eola«io,paranosmostrarqueMestreGil n~oentrarapelo campo da fantasia,nAo pretendiaapenasdivertir a corte, ao pintarsituagoescaricatase ridículos tipos sociais.As palavrasdo professordeLovaina, ao seremevocadas,servem,pois, paradar autoridadea inúmerospassosvicentinos.Também se nAo esquecemos estudiosos,nestaáreadeanálise, de referir Sá de Miranda, atentoao mundoqueo rodeia e cujosmales denuncia,através de urna sátira moralizantediferente da de GilVicente: enquantoeste; na maior partedos casos«ridendocastigatmores»(ou pretendefazé-lo), aquele,cm estilo extremamenteconciso e num tomsevero,quesecoadunacom a rigidez da suaverticalidadede «bomemde umsó parecer,¡ deum sérosto e d’ña fé, ¡ d’antesquebrarquevolver», apontao descalabrosocial,vaticinaas funestasconsequénciasque,com osfumosdaIndia, advirAo parao reino.

A referida cartade Clenardofol redigida em Evora, a 26 de Margo de1535,e épraticamentecoevada última obraconhecidadaquelequefazia «osaitos a EI-Rel», a Floresta de Enganos (1536). Como defeitos graves da

Page 3: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 39

sociedadeportuguesaapontaa mafia nobiliárquica,a fuga ao trabalboe odesregramentode costumes.«Em Portugal, todossomos nobres...»escreveele, e estamaniada nobrezaleva osportugueses- ou pelomenosurnagrandemaioria - á ostenta~Aode urna domadapobreza,a viver urna vida deaparéncias:criadose escravosseguemestes«senhores»cm passeiopelasruasda cidade, tal como fazem os verdadeirosnobrest,enquantoa miséria seescondeem casa,ondese passamas maioresprivaq&s: a lome nAo se mata,engana-secom pAo, rabanetese água,como conta de maneirapitoresca.Porque se pretendeaparentarvida de grandessenhores,nAo se ama otrabalho,qualqueractividadeé consideradadesprezívele dal quea na~AonAo se desenvolva,apresentandournaagriculturaestagnada,nAo possuindoindústriase comprandoos produtos que nos chegam nas caravelas.Osescravos,de racanegrae moura,enchemo reinoe sAo cm tAo grandenúmeroqueClenardocré serem«mais queosportugueseslivres de condiQáo»;a elessánconfiadastodasas tarefas,dasmais levesás mais onerosas,o ponto quese nAo distinguem«de urna bestade cargasen&o na figura». A aversáoaotrabalhoé tAo contagianteque os própriosestrangeirosseguemA risca aspisadasdos portugueses,quandovivem entrenós. E os perigossucedem-seem cadeia,como se já nAo bastassema paralisa9áoe o desprezopor estamolavital de qualquersociedade:o trabaiho.Luxo, ligagóesilegítimas,buscado dom ou de um título, nemque sejao de escudeiro(emborafarninto...),Ansia deentrarna corte,considerar-seprivadodeel-rel, obtengáode mercésede cargos,conseguidosnAo por méritos própriosmaspor aderéncia.E estaAnsia de «crescere medran>tocatodos:homense muiheres,leigose homensda Igreja que,paraconseguiremos seusfins ou estonteadospor situa9éespara as quais nAo estavampreparados,enveredampor urna vida dedissoluvAo, A qual nem o clero, regular e secular,escapa. Ser «frade ésinónimode domicilio da hipócrisia»como sintetizouClenardo.

Estesaspectosnegativosda vida do reino, queencontramosdenunciadospeíasuapena,eram,na mesmaaltura,notadospor portuguesesque«nAo seacanharnde os criticar»como diz na mesmacarta.Mas muitosanosantes,no final do sécuto xv, JA alguns portuguesesse preocupavamcom odescalabroda sociedadecm queviviam edeixaramconsignados,cm verso,osvicios e o desregramentocm quemerguihávamose as preocupa~6esdosseusespiritos.Recordoapenas,e por agora,Alvaro de Brito Pestanae DuartedaGama,cujos textos,ondeestesaspectossAo focados,entramobrigatoriamen-

1 Este deambularfaustosojá erasatirizadocercade vinte e poucosanosantesdo lindardoséculoxv euin dosvisadoséFernáoGomesda Mina, Mina quehavia descobertocm 1469 edequetinha os tratospor contratodeNovembrodestemesmoano. A ostenta~áoda suagranderiquezanáoépoupadaporNunoPereiraquando,antesde 1481,escreve:«Andoporruasapee,meusbrozeguyscom recramos,¡ criados,compadres,amos,/ tudocastadeGuynee».CancioneiroGeral (cd. do Centro de EstudosRománicosda Faculdadede Letras da UniversidadedeCoimbra,acargodeAlvaro Y daCostaPimpáoeAidaFernandaDias), 2vols.,Coimbra-Porto,1973-74; II, nY 598.

Todasascitagéesdo Cancioneiro Geral remetemparaestaedi~áo.

Page 4: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

40 Alda FernandaDías

te cm todas as antologiasque do Cancioneiro Geral se publicam.Mas é sénelas,e nas introduQéesque as antecedem,que se faz ressaltara pertinénciadestasátira social como um dos aspectosmais relevantedo Cancioneiro.Depois,e quandochegaa altura dasgrandessinteses,as duascomposi9ñessáopura e simplesmenteignoradas;o retrato da sociedadeportuguesadosfins do século xv oij do dealbardo imediato, que cias nos ministram, émarginalizadocomo senAo fossemtestemunhosbemvivos, muito anterioresacriticasquevamosencontrar,maistarde,na penadosgrandes:Gil Vicente,Sá de Miranda, Clenardo.

A extensacomposigAode Alvaro de Brito, dirigida a Luís Foga9a«sendovereadorna Qydadede Lyxboa, cm que Ihe daamaneyraparaos ares maosserem Cora dela»(1, n.0 57), foi redigida depoisde Dezembrode 1496, masantesde23 de Majo dc 1500, data cm queAlvaro de Brito já tinha Calecido.Depois de 1496, porqueo autordiz no texto: «Pormarranosná defamo/ osqueforamjudeussendo/ crystíioslyndos ¡ (...) 5ammarranososquemarrá ¡nossafee, muy ynfiees, ¡ bautyzados,/ que na ley velba s’amarram¡ dosnegrosAbrauanees¡ dotrynados»,explicitaqáobern claraaoscristáos-novose A suafor9adaconversáo.Oraa ordemde expulsáodosjudeusfoi publicadaem Dezembrode 1496,concedendo-seo prazode dez mesesparaa saidadosque nAo quisessemabra~ara fé católica.

O texto de Duarteda Gamaé do mesmoperíodoe foi escritodepoisdoVeráo de 1496: falandodas novase desvairadasmodas«que se mudA cadadya», precisa:«Porquecomo fez foaAo ¡ huñ capuzmuyto comprido, / poloreyno foy sabydo,¡ todosdamja pelo chaáo»,alusáo evidenteá gangorraquetopo deSonsa,alo do Duque D. Jaime,trouxerade Castela,no regressodo exilio do Duque, cm 1496,e quefoi largamentemotejadapeloscortesáos(II, nY 596), inova~áoqueaindaestavafrescana memóriade todos,apontode suscitarurna nova modae de a explicar(II, it0 542).

QuemconheceaobracompletadeGil Vicenteese abalanQaaurnaleituracuidadae atentado Cancioneiro Geral e das restantesobrasde Garcia deResendenAo pode deixar de estabelecerfrequentesparalelosou de fazerconfrontos.Contemporáneos2,vivendona cortee fruindo aprotec§Aorégia,estesdois homenspareceterem passadolado a lado, ignorando-sepratica-mente.ProtegidopeloRainhaVelba e servindo-acomoartistade ourivesariae das letras,Gil Vicente serve aindaD. Manuel e D. bAo 111, cujascortesabrilhantoucom os seus autos. A ele confiou o Venturosoas primeiraspáreasde Quiloa, perpetuadasna custédia de Relém, e encarregoudeprepararas festasqueabrilhantariama suaentradaea da RainhaD. Leonorcm Lisboa. Resende,mo~o de cámarae de escrivaninhadeD. JoAo II, queoestimoude forma particular,está tambémao servi~odaquelesdois monar-

2 Garcia de Resende,nascido c. 1470, faleceua 3 de Fevereirode 1536. As datas donascinientoe damortede Gil Vicentesáoincertas: 1460? 1536?.A 16 de Abril de 1540, já itiopertenciaao mundo dos vivos, inclinando-seBraamcampFreirea pensarque talvez houvesseCalecidoem 1536, anoda suaúltima obraconhecida.

Page 5: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 41

cas:comD. Manuel,integra-seno sobreséquitoqueacompanhao soberanoe a jovem RainhaO. Isabel aCastela,ondese deslocamparaseremjuradosPríncipesherdeirosde todososreinosesenhoriosdos Reis Católicos(1498).Volvidos anos (1514), está cm Roma como secretário, e possivelmentetesoureiro,da magnificenteembaixadaque D. Manuel enviou a Leáo X,chefiadaporTristAo da Cunha,que nelaempenhoutodosos seusesforQosehaveres.Orgulhosoemborada esplendorosaentradana CidadeEternaque,«segundotodosdizem, foy a mais honrradae amais rica embaixadaquenuncaenirou em Roma»3- testemunhopessoalindesmentidoe confirmadopeía pena de Alberto de Carpe,embaixadorde Maximiliano 1, cm Roma,quena alturaenviou ao Imperadorurnalongamissivasobreestaembaixadaportuguesa- cedo TristAo da Cunha experimentadificuldades várias e,descrentee desalentado,escreve:«(...) e o Baram, que me a mym dizia cmLixboa que a embaixadade Roma namera boa, porque se gastauanellamuito dinheiro, elle ho sabiabern; masnamtenhooutraconsola~amsenamdespois que despendertodo meu dinheiro, acolber-me As minhas casasd’Enxobregas,como vós, Senhor,veras (...)»~.

SendoO.JoAo III aindaPríncipe,dedica-IheResendeo CancioneiroGeralque coligiu, entre outras razéesmais ponderosas,declaradastarnbém noPrólogo,«por cm algíia partesatisfazerao desejoque sempretiue de fazeralgúacousaem queVossaAlteza fosseseruidoe tomassedesenfadamento».Estaidela de «serviqo»é manifestadaaindano Prólogo da Crónica de D.Joño JI. quando,ao dirigir-se ao monarcareinante,escreve: «E porque,Senhor,VossaAltezasemprede suamocidadeate agorafoy muy incrinadoeteue muito amoraascousasd’EI ReyDom Ioam, vossotio, porquecm suacoronica f¡caram muitas por escreuer,por descuydoou esquecimento,trabalheycm minhamemoria,quantoa mi foy possiuel,por me lembraremalgfias; e por saberquantoVossaAlteza com isso hauiade folgar, pois llieparecetam bern, tomey estaacupayame lhe 1V esteserui~o cm escreuersuavida»4.

3 CartadeTrisffio daCunhaao SecretáriodeEstado,António Carneiro,escritadeRoma,aII de Abril de 1514. (In Corpo DiplomaticoPortuguez,cd. preparadaporLuis Augusto Rebelo.da Silva, Lisboa,AcademiaReal dasCiéncias,t. 1, 1862, p. 243).

4 ¡juro das obras de / Garúa de Reséde/ que trata da vida e ¡ grádissimasvirtu- ¡ des: ebódades: magnanimo ¡ esJór~,o: excelentescostu,nese ¡ manhas e muy craros fritos ¡ dochrtrtianissimo:multoal ¡ to etnuyropoderosopríncipeelReydA JoAoo se- / gundo<¡este forne: edosReysde Portugalo tre- ¡ zenodeglosiosamemoria:come~adodo seunacim~- ¡ lo e toda suavida atea ow de gua marte: có outras ¡ obras queadíantese seguem.

Este é o titulo exactodo volumequecontéma Crónica,tal comofoi estampadonaedicáoprincepsde 1545, titulo que trasladámosde D. Manuel 11, Livros AntigosPortugueses,3 vals.,Londres,MaggsEros, 1929-1935,Cf II, PP. 190 e Ss.

Sernpre que tivermos necessidadede nos reportarmosa esta obra, designá-la-emosporCrónica de 1). Joóo11 eservir-nos-cmosdaedigáointitulada Crónica deD. JoAo U e Miscelónea(com introdugáodeJoaquimVerissimoSerráo),Lisboa, ImprensaNacional - Casada Moeda,1973. na qual estáointegradosainda os seguintestextos: Treslada~a,n <2..) de Dom Joans oSegvndoda Séda cidade deSyluespera o Mosteiroda Batalba; A entradadEl ReyDomManoelcm (‘estella e a Ida da Infanta Dona Beatrizpera Saboya.

Page 6: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

42 Alda FernandaDías

Urna únicavez Gil Vicente,na sua vastaprodugáo,se referea Resende,fazendo-ofigurante de um dos seusautos, as Cortes de Júpiter: motivadopelo seu adiposocorpo,metamorfoseia-oern peixetamboril e engrossacornele o séquitoanfibio queacompanha,barrafora, aInfantaD. Beatriz,na suapartidaparaSabóia.nAo deixandode aludir a algumasdassuas«manhas»:

E Graciadc Resende.feito peixe tamboril,e inda quetudo entende,irá dizendopor endequemme deraum arrabil.5

ResendenAo esqueceuMestreGil ern trés das suasobras:no Cancioneiro,temo-lo representadono conhecidoProcessode VascoAbul (II, n.0 803), cmque emiteum parecerpor mandadoda Rainha D. Leonor; na Miscelanea,deixouconsignadoo grandevalor dasrepresentagéesvicentinase o primadodasnovas«invengóesachadas»,no conhecidopasso:

E vimos singularmentefazer representa9ées¿estilomuy eloquente,demuy nouasinuenqñes,e feitas por Gil Vicente;elle foy o queinuentonisto ca, e o usoucom rnais graQae maisdotrina,postoqueioam del Enzinao pastoril comcgou.

(Misc., p. 363).

Finalmente,no relato da Ida da Injónra Dona Beatrizpera Saboya, refereo grandeseráo do pago, organizadoparafestejar o casamentoda Infantacom CarlosIII, Duque de Sabóia:«E as dangasacabadas,se comegoubúamuy/o boa e muy/o bemfeyta comedía de muy/asfiguras,muy/o bern ataujadase muy naturaes, feyta e representadaao casamentoe partida da SenhoraInfante,cousamujao bern ordenadae bern a proposito:e com ella acabadaseacabou o serAo»6. A comédia, elogiosamentereferida, é a tragicomédiaCortes de Júpiter, cuja representagáoteve lugar a 4 de Agosto de 1521,segundoescreveGarcia de Resendeque, como vemos, omitiu o autor e otítulo do auto. Procedia,assirn, de forma similar á adoptadaquando,naCrónica de D. j

0a0 JI, caía o nome da Cataldoque, ern Evora, «fez búapratica A vinda e entradada Princesa»

7.Porqué estasatitudes?A interro-

5 Gil Vicente, Obras Completas (cd. preparadapor Marques Braga), 6 vols., Lisboa,ClássicosSá daCosta,1942-44.Servimo-nosdestaedicáo,apesardassuasdcftciéncias,pormaisaccssivel.

Crónica de D. Joóo II, p. 326. 0 itálico enosso.Ibid., p. 171.

Page 7: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 43

gagaoé pertinente,tantomaisque anteriormentenos tinha informadohavero Dontor Vasco Fernandesde Lucena, Chancelerda Casado Civel, terproferido,juntoá ribeirado Caia,«ÑapraticaderigidaáPrincesacm nomed’EI Rey e do Reyno»8.

E que pensarda quase nula representatividadede Gil Vicente noCancioneiroGeral?Conhecendo-seo empenhoe as diligénciaslevadasa caboporGarciade Resendenarecoihade textosparaacolectánea,servindo-seatéde intermediáriosparaa suaobtengáo;conhecendo-seo forte pendorsatíricode Mestre Gil, causaestranhezanAo yermos o seu norne associado,pelomenos,a tantas«cousasde folgar». que tiveram a suagénesenos pequenosnadasdo dia adía do pago, congregandoávolta do mesmotópico burlescoum sem-númerode servidoresde EI-Rel, quecontribuíam,destemodo,paraanimaros serñesda corte, a que o dramaturgoestavaintimamenteligado.Porque nAo fol incluido no Cancioneiro o Serm&o de Abrances(1506) oualgurnasdas«obrasmeudas»(urnaqueoutraseriaprovavelmenteanteriora1516, ano da edigflo princepsda colectánearesendeana),que falecem noquinto livro dasObras Completas,que ao tempoda 1 A edigáose desconhe-ciarnjá, «porqueas mais dasque o autorfez destacalidadese perderam»9?Ignoráncia propositadade Garcia de Resende?Atitude conscientede GilVicente, recusando(e porqué?)a suacolaboragáona empresade urn seucontemporáneo?Náo esquegarnosque, A época,as rivalidades,berncorno osdetractoreseram muitos e de temer: Gil Vicente enfrentou-ose den-Ihesréplica com o Sermaode Abran/ese com a Inés Pereira; Resendereconhecehaver-seexpostoa«perigos»e aouvir «glosadores»,quandotangoumAo dapenaparaescrevera CrónicadeJI. J

0a0 Ile aMiscelaneaque,cautelosamen-te, colocasob a égide de O. JoAo III, tal como fizera com o CancioneiroGeral. Rivalidades?(mas porqué?)Fumosde superioridade?Injustificadasjulgamos as duas atitudes,a existirem, porqueambos, tendo ern conta adistáncia que os separa,ocuparn um lugar na cultura portuguesadeQuinhentos,da qualosdoisse nAo poderndesligar.Parece-noslicito afirmarque nenhumcío de simpatiaou de boasrelagóesligava estesdois bornens,qu’ase fechadosnum mutismo reciproco. E, no entanto,um e outro sAoportadoresde marcasde umaépocade transigáo,sAo homensexcepcional-mentedotados,cujascapacidadesaproveitarncm dirnensóesdiferentes,t&minteressese pontosde vistacomuns,defendemidénticasposig&s e podem,com justeza,ser consideradosrepresentantesdo «bom Portugal o velho».Personalidadesmultifacetadas,Gil Vicenteé o artista do ouro e da palavrapoética;GarciadeResende,emboranaomodelandoo ouro num trabalhodeminiaturistae de delicadafiligrana, tem os dotesdo desenhadorvoltado parao campo arquitectónicoe parao «debuxo»(quernsabese tarnbémparaapintura?)lO e cultiva a poesia, revelando,cm algumascomposigées,urnalina

Ibid., p. 166.9 Obras, VI, p. 259.lO Esta interrogagáosurge ao nossoespirito, quando ternos o testamentode Garcia de

Page 8: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

44 Aida FernandaDías

análisedos maisprofundossentimentoslíricos e a capacidadedeos traduziremverso.

Mestre Gil e Resendet6m, cm certa medida,actividadesparalelas:se oprimeiro se incumbedeanimaro pagocomas representa9óesdos seusautos,paracujos cantarescompóe,por vezes,a músico,quer em datasfestivasdaIgreja, quer celebrando enlacesrégios e nascimentosprincipescos, querexaltandofeitoshistóricos,o segundoé o galantede circunstAncia,queparaacorte cornpñe e canta vilancetese cantigas e que, por mandadode D.Manuel, escreveas trovas«parahú joguo de cartassejugarno será»(II, n.0880). A corte, na globalidade, mas tambérn na individualidade dos seuscomponentes- reis, príncipes,donas,donzelase galantes- desfilaem textosdos dois autores,alguns,por vezes,bemcaracterizadospor facetastempera-mentais.

Ambos olham com interesse a poesia de tipo tradicional e a doscancioneiros,que Ihes sAo coevosou próxirnos: de um lado, vilancetesecantigasalheias preenchemespagoscénicos,cantadospelos personagenscm precisosmomentosou entrecortandomonólogose diálogos,enriqueci-da, assim,por esta técnica, a sua produ9áo;do outro, os mesmosesque-masformais ou versos isolados sAo fonte de inspiraváo,conduzemá glosaou encastoarn-senos textos, denunciando,num caso e noutro, urna farni-liaridade com a cria9áo alheia, assimiladapor via oral, manuscritae im-pressa.

O pendorrenascentistade ver na poesiade tipo tradicional porventura«místicosecos de Ja belleza natural»’’ torna-osreceptivosaos romanees.Comoerade esperar,a obravicentinacontinuasendomais rica. MestreGilnAo só revela conhecerdiversos romances(alguns erarn tAo correntesnaépocaque, apesarde seremcantadosnassuaspecas,sáoapenasindicadospeloprimeiroverso)como é levado aindaA suaelaboragáo.Muitos dos seusautosacusamo interessedo autorpor estetipo decomposiQóes:assirn,oraseapropriados textos tradicionaiscorn urna finalidade estética,ora cria elepróprio os romances,em línguaportuguesaecastelhana,ora salpicadiversosautosccm versosde romances,logicamenteconcatenadoscom as faJasdosprotagonistas,num A vontadede quemvive num contactocontinuocomestetipo de poesia,oravai atéá paródiade outros.MestreGil compñeromances,

Resendee constatamosquea Maria, sua fliha, paraU de outros legadosvaliosos, ¡he deixa«todosmeusretratosquevalemmuito eos sincolivros de debuxosquetemmuitavalia (.4». 0valor dos quadrosé confirmadomais urna vez, quandorecomendaque <dudo se venda comgranderecatoe o faqam sabera EI-Rci e aos Infantes, porqueha multas cousasde pinturasmilbores que ha no Reino e folgaráo de as comprar (.4». (Apud António BartolomeuGromicho,Otestamento de García de Resende, ir A Cidade de Evora. anoV, fases. 13-14, 1947,pp. 3 e Ss.).

Quen2era tAo largamentedotadoparao desenhonAo pintarlatamben,?É bemprovável quesim e talvez quealgum dos quadrosfossc da suaautoria.A hipótesetifo é de rejeitar, crelo.

Américo Castro,El pensamiento de Cervantes, Barcelona-Madrid,Edit. Noguer, 21972,p. 185.

Page 9: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 45

reproduz, cita, parodia e adaptatextos do Rornanceiroaos interessesimediatosda suaactividadeliterária’2.

Dos romancesporelecriadoséo de Flérida,En elmes era Abril, ¡ de Mayoantes un dio - que, no JI. Lluardos, se diz primeiro representadoe depoiscantadocorno remateda tragicomédia- aquelequeganhouprojecgaonotempoe no espago:publicadono Cancionerode romances sin año (irnpressocm Anvers, provavelmenteentre 1547 e 1549), entroutarnbémna Y ed. de1550, correu cm folhas volantesdos séculosXVI a xviii, saldasde prelosespanhóise portugueses,foi glosado no século xvi por António Lopes,estudanteportuguéscm Salamanca,e aindahojese rnantémvivo na tradi9áooral do paísvizinho, cm Portugal continentale insular e cm comunidadesportuguesase sefardisespalbadaspelomundo’3.E tocadopordois aconteci-mentosda vida de Nagáo,a morte deD. Manuel (1521) e a aclama~áodosucessor,D. Joáo iii, é a forma do romancequeescolhepara prantearoVenturosoe paracelebrarasubidaao trono do novo monarca.

Mas, nestegosto peía poesia de tipo tradicional, Gil Vicente vai maislonge: abreos olhos parao paralelismogalego-portuguése, avisadamente,colocacantaresdestafeiQáo na bocada gentehumilde, talvez nurn esforQo,náoconseguido,de recuperarestescantaresede osprojectarno seu tempoenos séculos futuros, corn a mesmavitalidade com que os romancessedifundiram,quer fossernde feigáojogralesca,artísticaou tradicional.Maismodestamente,o compilador do Cancioneiro, embora afirme que «polosrymangese trouas»se conhecemeperpetuamos feitos dos reise dosgrandes,apenasrecolheuna sua colectáneaurn romancede fei9áo lírica, o Tiempobueno, tiempobueno,a que teceuuma feliz glosa (II, n0 837), paralá de umque outro versodestescantares,cuja toadatambémassimilou’4.

12 Fis algunsexemplosquecorroboramasaflrma9bessupra:Remandováo remadores (Barcada Purgatório), Niña era la Infanta (Cortes deJúpiter), En el mesera de Abril (D. Duardos),Vocesdaban prisioneros(Breve Swnário da Ilistária deDeus) s~o criaQéesde Mestre Oíl. AiValenQa,guay Valenga(Autoda Lusitánia): o alfaiatee o filho cantamum fragmentodeHelo,helo,por do viene: Mal mequierenen Castilla (InésPereira), Em Paris estáDon‘Alda <ComédiadeRutena):o primeiro¿cantadopelo Escudeiro,enquanroosegundofaz partedoscantaresquea Ama conhecee se dispéea cantar;parodiamais do queurnavez a Bella malmaridada:cg.Frágua deamor, Triunfo da Inverno; Tiempoera el caballero, Majaderosois,amigo (C. de Rubenae Templode Apolo)sáoadapta~5esde vv. de Tiempoes,el caballeroe deromancesdeBernardodelCarpioedo CondeFernánGonzález.A obravicentinaé, no entanto,muito mais rica nesteaspectoe isso mesmoesperovir amostraren, estiMo doutraíndole.

13 Cf., entreoutrosestudos,CarolinaMichaélisdeVasconcelos,Estudos sobre o Ro,nanceiroPeninsular.RomancesVelhosem Portugal, Coimbra,Imprensada Universidade,2j934, Pp. 115-123; 1. 5. Révah,Édition critique <¡u «romance» de don Duardos et Flérida, in Bulletin <¡‘Ilistotre<¡u ThéAtre Portugais, t. III, nunjéro 1, Lisboa, Instituí Fran9aisa» Portugal,pp. 107-139;Manuel daCostaFontes,D. Duardos itt tite portuguese oral tradition, in Romance Philology. vol.XXX, ti.0 4, Berkeley, University of California Press,1977, Pp. 589-608; Íd., Lizarda: A rarevicengine bailad itt Ca4fornia, ibid., vol. XXXII, ti.0 3, 1979, Pp. 308-314.

~4 01/tosqueo vyramhyr (II, ti.0 871) eEstando muy de yaguar, ¡ bemfora de tal cuidar, ¡ emCoymbradaseseguo./ poíos camposdeMondeguo¡ caualeyros vy sornar (ibid., nY 861).Cf. osmeustrabalhosO «Cancioneiro Geral» e a poesiapeninsular de Quatrocentos(Contactos esobrevivéncia),Coimbra, Liv.a Almedina, 1978, pp. 278 e 274; Motos, vilancetes,cantigase

Page 10: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

46 A ida FernandaDías

Convém, todavia, notar que Mestre Gil, desde 1502 (Monólogo doVaqueiro) até 26 de Setembrode 1516, datada impressáodo CancioneiroGeral (obraonde Resendedeixou manifestadaa suasimpatiapelos roman-ces), só duasvezese erndois dos seusautos,Quem temfarelos?’5 e Auto dosFísicos (1512), acusaa presengade textos destaíndole: Por Maio era porMalo e En el mes era de M’aio, muito emborahouvessejá compostoumnúmerosignificativo de obras’6.Passam-seseis anosde produgáoe eis queapartir de 1518, com a Barca do Purgatório, o romanceiro invade a obravicentina, ganha nela raizes, testemunhandoa receptividadedo autor aogostopelos romances,que dominavaa Península.

Em fei~áo de hornem leigo e afrontandoa oposi9áode muitos, GilVicentepregao Sermao de Abran/es (1506). Garcia de Resende,por suavez,náo prega um serrnáo, mas determinaescreverum: porque sendornuitodevotodos Reis Magose porqueo nilo satisfaziaa diversidadedasprega9éesouvidas,redigiu em 1536, vinte dias antesdo seu falecimiento, um serrnáo«sobreavinda dossanctostresReismagos»,quedirige a alguérnquedesignapor Senhore por VossaMerck, masque ignoramosquemseja.

NAo eraaprímeiravez queo compiladordo Cancioneiro,naqualidadedeleigo, pisavao campoda doutrinareligiosa:de 1521 dataa primeira edkáoconhecidado «confessionariocm lingoajem portugues,feito per Garcia deResende,e emprimido per mandado»de D. Manuel. «Breve memorial dospecadose cousasque pertencemha confissam»,como reza o título, opequenoopúsculo acompanhouas armadasna obrade evangelizayáodosPortugueses.Mas, antesdaqueladata, já a obra.zita circulava, pois que dopresentedelivros comque o Venturosoobsequiouo PresteJ

0A0, organizadoem Portugal entre 1514 e 1515, faziam parte cern exemplaresdo ditoconfessionário

17E a 8 dcSetembrode 1523,sabemos,pelo seutestamento,redigido nesta

data, serseudesejoimprimir umaPaixáode Cristo,quenAo chegouaver cmletra de forma. Foi publicadapostumarnente,conhecendoaté hoje apenas

romarScesglosados (séculosxve xvi), sep. da Revista de Hístória Literária de Portugal. II],Coimbra, Faculdadede Letras, 1974.

15 Braamcampdatao auto dos fsns de 1508, comeqosde 1509, e alvitra que, só depoisdareptesenta~Aoao vulgo, fora apresentadoa D. Manuel, talvez cm 1511.

16 Duranteesteperíodode14 anos,escreveuGil vicenteefez representaros autosseguintes:Monólogo do Vaqueiro (1502), Aulo dos Reis Magos (1503), Auto dos Quatro Tempos (1503?),Auto deS. Martin/so (1504), Quem temfarelos? (1508?1509?), Auto da India (1509),Auto da Fé(1510), Auto das Fadas (1511),Auto das Físicos e Velí’lo da Horta (1512), ExortaQáo da Guerra eAuto daSibila Cassandra(1513), Comédia do Viávo (1514),Auto da Fama e Auto da Festa (1515).

Como cm Quem ten, járelos? e no Auto dos Fisicos apenassáo referidosos dois versosapontadossupra,náosei se trata, na realidade,de dois romancesdistintoson deun, mesmotexto,cujo primeiroversoacusaavarianteEnelmesera deMaio. variantevicentina?Náocustaaaceitarahipótese,visto quenáoconseguimoslocalizartal verso.Quantoaoprimeiro romance,Por Malo era por Maio, teve largayoga e entrouno Cancionero de romances, sin año, 11 251.

‘7 Apud Inocéncio Franciscoda Silva, Dicionário Bibliográfico Portugués, III, Lisboa,ImprensaNacional, 1869,p. 121; Álvaro J.daCostaPimpáo,Idade Média. Coimbra,Atlántida,21959,p. 371, n. 7, queapatitaos problemasde ordembibliográficasuscitadospeíadita obra

Page 11: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 47

esta edigáo, integradano Lyuro das obras de Garcia de Reséde, edigánprinceps18.

A epistolografiaé tambérnurnaáreatocadapor estesdois quinhentistas:de Gil Vicente apenasconhecernosa cartaescritade Santaréma EI-Rei O.JoáoIII, sobrea fala quefez aosfradesdestacidade,reunidosa seupedidonacrastado conventode S. Francisco,numatentativade dissiparos receioseas crendicesque se avolumaramá volta do terramotode Janeirode 1531.Práticafeliz, de efeitosconvincentese imediatos,reveladorada capacidadedeargumentagaoe de persuasiodo dramaturgo,da versatilidade do seuespirito, preocupadocorn ‘a purezada fé, que pretendiasimples, límpida,despidade superstigaes,e tarnbérncom urnaparteda sociedadeportuguesatilo perseguidae odiada quanto necessáriaao reino e que, todavia, nAoescapoutamb¿má suasátira.

Jávelbo e cheiode achaques,retiradonassuascasasdeÉvora,GarciadeResendeé aindao homemrespeitadoquea Cámaraescolheparaintegrar aassembleia,que devia eleger os procuradoresda sua cidade ás cortesconvocadaspor D. Joáo III. Impedido embora peía doenga,ainda sepreocupacoma respublica e, porcartade 1535,nAo sé indicaas pessoasque,cm seuentender,deviamtomarassentonascortes,comolembraa necessida-de de se requererao monarcaque «faga merge a esta gidade de todolosprevilejiosquetem e teuera gidadede Lixboa»,quese restaureaantigafeirafrancae que«paseaquy os EstudosJeraesperaa gidadese povoar»’Q.

A cartaque no mesmoanode 1535 dirige a O. Franciscode CasteloBranco.carnareiro-morde O. JoáoIII, «quandonAo servia no oficio» ¿ deleituraaliciante, nAo sé peíaestrutura,pelabelezae correcgáodo estilo, masporquenos revelaum Garciade Resende,a escassosmesesda morte, presoaindaá ideia de «servigo»devido ao Rei, ideia que o acompanhouao longoda vida e que eratimbrede todo o portuguésde boaestirpe.Depoisde pordiversas vezes havermosouvido os seus qucixurnes e desilusio face aodesconcertodo mundo, os quais envolviamtambéma corte, onde viveradesdemuito jovern, causaespanto,á primeira vista, o empenhocom quetenta demovero amigo do isolamentoaque se votou. Na rnissiva fala ocortesáo, conhecedorseguro e experimentadodo pago, que deseja verfrequentadoe ornadocomaaltafidalguia portuguesa.Peíaforga da palavraescritae numperspicazjogo desedugáo,acorteé pintadacomtodososseusencantos,deleitese atractivos,coma finalidadede urn efeito persuasor.Istodito apenasassim seriarevelarum Resendefalso, hipócrita, tentandolangaro amigo para um meio que o desgostara(como desgostaraum Sá deMiranda), pretendendoenvolvé-lo na suavida tentacular, que ResendetAo

~ A (151. CXLViJ, ternosa portadada Paixáo,que rezaassiam:Come~assea ¡ paixáo denossosen/sorJesux~o ¡ toda inteira: segundoos quatro / eus3gelistas:tirada de todoselles ¡ emlingoafñ portuguesaffitada / e cócertadaperGarcía deresen/depor seruí~oe louuor de deos.

19 Apud Anselmo BraamcampFreire, Em volta de urna carta de Carcia de Resende,inArquivo Histórico Portugués,III, Lisboa, 1905, pp. 47 e ss.

Page 12: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

48 <tiJa FernandaDias

bern conhecia.Mas a cartanAo diz apenasisto e foi habilmenteestruturadaparatentar surtir efeito.Garciade ResendenAo eratolo a ponto de descreverapenasosprazeresda vida pa~áa alguérnqueconheciao reversodarnedalhatAo bern como ele.

«Se cartasnAo fossem cartas,muitas vezes escreveriaa V. M. cornodesejo,masporquea silo o nilo ousode fazer,pois as nAo leva o vento,comopalavrase prumas,antesse guardamtAo bern, que a todo o tempo se podepedir raño de corno se escreverarne porque as escreveram»,assirn seexprime,cautelosamente,o compiladordo Cancioneiro,ao iniciar acartaemquestáo.E, pois D. FranciscoIhe mandavaqueIhe escrevesse,aqui vai o seupensamentoquanto A vida retirada a que se votou. O elogio de Lisboa,metrópolecosmopolita,a beleza e o sossegodas suascasas,o ambientefamiliar sáo, semdúvida,(e Resendenilo o nega,antespelocontrário)bensaestimar; tanto mais que se podem gozar sern serern perturbadospelosinconvenientes,contratempose dissaboresdo oficio, que muitos suportampor amor a EI-Rei, As mercés,ás honrase ás riquezas. E emboranumaatitudedesconcertanteafirmeque«EI-Rei NossoSenhorCern tantanobrezaebondadeque, como y. M. quiser o que ele quer, ele quereráo que vósquereis»(!), pretendeanularosmaleficiose aspectosnegativosda cortecomurna fdosofia de vida que apoiaem doutrina bíblica: o hornem nilo viveapenaspara si, tem de ser útil aosoutros,porquesenáoé como a figueirasemfrutos,queDeusmandouquesecortasse.Servir o Reí e o Reino, masaomesmotempo trabalbarparaconservare aumentarosbens,que os nossosantepassadosnos legararn,sAo pontosde honrade qualquerum. ludo o queLisboaIhe oferecede bomede agradável,tudo isso encontrarána corte,ladoa lado, todavia, com os dissaborese com os cuidadosa que procura darreniédio.E é aindaurna filosofia da vida, fliha da experiénciaedosanos,queo leva, no final da epístola,em jeito de sentenQasede urnaforma simplista,a indicar-Iheo antídotoparaos malesda cortecom os quaishá-deconviverdia a dia2O. Paraquemaquiserentender,a denúnciada podridáodo mundoe, de modoparticular,a da corte,aquiestá nestefinal de missiva, bern mar-cadopor estaprosabelamenteritmadaque, como disse Felipe Simées, se

20 Fis o passoa quenos reportamos:«Se V, M. disgerquenacortehá muitos¿dios,náonotenhaisa ninguém.Se vospesarcommentiras,falai vóssempreverdade.Se vosavorreceren,mexe-ricos, naoou~aismexeriquciros.Se quereismal a nalsins,náoentrenen vossacasa.Se souber-des riranias. afastai-vosde tiranos. Se tundes odio á inveja, apartai-vosde invejosos. Fugi deblasfemadores,mauscristáos,regeneradores.Se alguémvirdesfazer mal, vejamavós fazerbem.Se vos agastaremtristes, buscaihomensalegres, folgai com vossos amigos, conversaicomvirtuosos.Se vosdesprezaremruins,aprazer-vos-áoos bons. Se vos enfadarempecos,falai comos avisados.Se vos carregamsoberbos,sede,Senhor,mui humilde. Se vos penabayerladrées,trabalhai queos náobaja, e se mausdespachadores,naoserá por vossaculpa. Se enfastiammaldizentes,náo nos ou~ais nem vejais. Se vos anojam baixezas,cá sAo todalasaltezas.NRoquerendoQuvir hometis, ireis ouvir gentis damas.Se quiserdesquevos Iouvem, hA cA tantoslisonjeiros que vos alQarno no ar. Cá cresceráovossasrendase lA háo-de vos minguar. Se,Senhor,vos parecerquehA cápoucavirtude,avossaseráentRomuita>,. (ApudAndr¿eRocha.Acpistologra,tiacm Portugal,Coimbra, Liva. Almedina, ¡965, p. 82).

Page 13: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 40

pode resolver,«peíarnaior parte,cm versosde sete silabasnAo rimados»21.Mas em matéria de epistolografiaResendenAo se quedou por aqui,

integrando-setambémna corrente epocal das epístolasem verso, tAo aogostodos quinhentistas.Assirn, em versode redondilhamajor (o único quecultivou) escrevea Manuel de Goios, queestavana Mina por capitAo. EporqueesteIha pedia«novasda corte»,¿ sobrea cortequeResendevai falar,em trovas que formam como queum tríptico: noticias da familia real, quecresceemsaúde,galanteriaevirtude, ao ladode noticiasdasdamasdo pa9o,admiradase cortejadaspeíasuabeleza,noticias que salpica,por vezes,comumanotabrejeira;depois, sAo noticias maisligadas á empresaultramarina,explicitando, brevemente,alguns acontecimentose os portuguesesnelesempenhados.A «falaem geral»,querematao texto, perdepor completootom ligeiro efútil daspartesanteriores,pararevestiro cariz de crítica social,que apontaparaa cortee seusfrenquentadores,e ondea ambi9io ea inveja,osinteressese a intrigasilo as cartasquesejogamnumjogo desenfreado,porvezescompensatorio.

A composi9ioé quasetodacía tocadapeíanotada frivolidade. Conscien-tementeassima escrevee. quandosc aventurapelocampodas«novas»doreino, tcm o cuidadode avisar:

As nouasdegrandepesonam esperareysde mym,poys sabeysquehe defesoquemestaacm Almeyrymdizercom quesejapreso.Estoufora de falarnulase querocontaras com quesey quefolguayse 5’aquy nantoco mayspond’aculpa a nam ousar.

(It, n0 836)

Há a necessidadcde um prudentecalar, necessidadeque nAo deixa decontribuir, cm parte,parao tom de superficialidadequeocupagrandepartedaspáginasdo Cancioneiro.Estenáo ousarfalar continuaa ser denunciadono séculoxvi e vamosencontrá-lo,porexemplo,na penade Sá de Miranda,na ¿clogadirigida a bAo Rodriguesde Sá de Meneses,quandoMontanoconfia a Silvestre:

E porém,sabesquedigo?peraquemilhor me entendas,fugi asgrandescontendascomooganofez Rodrigo,por queneleme cox~prendas;porqueestemundo é talqueé milbor cA nos desertos

21 o Instituto, vol. XV, Coimbra, 1872, p. 192.

Page 14: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

50 <tída FernandaDías

sofrere calar o malquedescobriros secretosdestenossoPortugal.,

versos ao lado dos quais colocamoso testemunhode Marco Esteves,criadoe oficial de El-ReíD. .foAo III, que,cm 1541, escrevendode Almeirímpara o cabido da Sé de Viseu dizia: «calar e fazer o que Ihe mandarem,spi~ialmentenestetempo,quea verdadenom be ouvidae qucimio abocaaomenino se quer falar o quevee»22.

A empresaultramarina e as suas consequénciasnAo podiam estarausentesdas obrasde MestreGil e do compilador do Cancioneiro, muitoembora nenhum deles nela se tivesse empenhadode como e alma, querservindoa causada evangelizaQio,querseduzidospor intuitos maisimedia-toscomo fossema ilustra9io do nomeou a aquisigilo de riquezas.Ncm umnem outroembarcouparaas «partesde além»e ambosse quedaramporcá,frequentandoa cortee servindo-a.Gil Vicentenadanos diz destasuaatitude,mas Resende,ante os perigos a que se expéem os seuscontemporáneos,pagandomuitasvezescoma vida o seudenodoe ousadia,nAo se envergonhade afirmar claramentea razAo por queficou:

Tenhotam avorreQydatod’artede marearquenam ey nelad’entrarnesta vyda.

Oaqui tee mortemobrigno,quequarto,vyntena,meo,nem escreturasno seonam possamnadacomyguo.A esperan~aperdidatenho de nuncatratare muyto maysdenbarcarem tal hyda.

Tenhovyda tam ysentaquepormal quedigu’aasorte,nam ey-desabero noortenem mam - dacharem ementa.Estatenhoescolhyda,destame fuy contentar,a qual nam ey, semmedrar,porperdida.

(II, n0 522)23

22 Manuel .loaquim,Noticia de váriosdocumentosdosséculosjan.xlv, xv exví,existentesnoMuseude Grao Vasco,Visen, Publica9ñesdo Musen, 1965, p. 68.

23 0 texto transcrito constitni a respostade Resendea trovas que Brás da Costa Iheendere9ou,«quandoveo a nonadamortedo vyso Reyedo MarichalnaYndea».O Vice-Rei éD. FranciscodeAlmeida, falecidona Aguadado Saldanha,em luta com os monros (Margode1510), quandoreg-essavaaoreino, apósbayersido substituidoporAfonso de Albuquerque.OMarechalD. FernandoCoutinho faleceucm Janeirodo mesmoano, em luta inglória com oiflimigo.

Page 15: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 51

E, todavia,um e outroolhamcomorgulboosfeitos portuguesesdeentAo,que exaltam, maravilbadoscom tantos triunfos e vitórias, «sendotantaamultidAo de jentedos contrayrose tam pouca a dos nossos»24.Pequenoemuy grandioso,¡ poucagentee muito feito» (Cortesde Júpiter), e feitos dosmaishonrosose ousados,assimsintetizaMarte aempresaportuguesa,queGil Vicentee Garcia de Resendeassociamao espirito cruzadístico.E a esteempenhamentoreligioso queMestreGil adere,nAo pegandoem armas,naopartindo paraa luta, masservindopeíapena,peíapalavrae peía represen-ta~áocénica,numestimularde ánimose devontades,numavivardo espiritoguerreiro,tal comona IdadeMédia os jograisépicosfaziam,noscamposdebatalha ou junto dos grandessenhores,despertandoos espiritos para osfeitos guerreirose cavaleirescos.A darmoscrédito á tradi9áo,antesde selan~aremna batalhade Hastings(1066),osguerreirosouviramurna Chansonde Roland,anterioráquehoje conhecemos,da bocade um jogral. Recorde-mos,ainda,queAfonso X, o Sábio,estabelecenasPartidas«quelosjuglaresno dixiesen ant’ellos [os cavaleiros] otros cantaressino de ges/a o quefablasende fechos d’armas»,e seu sobrinho, D. Juan Manuel, insiste namesmalinha de pensamento,quandoescreve:«Desquehobierecomido etbebido,lo cual convienecontemplanzaet conmesura,ala mesadebeoir, sequisiere, juglaresque le canten et tangan estormentesante él, diciendobuenoscantares et buenasrazonesde caballería et de buenos fechos, quemuevanlos talantesde los que los oyerenparafacerbien»25.

O grito de guerradeOil Vicenteé«Africa foi de Christáos,¡ mourosyo-latérn roubada»,corno qualpretendedespertarosánimosdo clero,da nobrezae do poyo,concitando-ostodos, incluindo as damas,na cruzadaquelevaráaAzamor o Duque D. Jaime (ExortaQaoda Guerra). ComocruzadaentendiaMestreGil as nossasexpediQéese lutas: o Portugalde entilo é, paraele, o«alferezda Fé»e estaadesáoao serviQode Deuse da Igreja, em queo reinoestáempenhado,sintetiza-abem nos versosde artemaior, postosna bocadaFé do Auto da Fama:

Os fritos troianos,tambémos romáos,mui altaPrincesa,quesAo tam louvados,e nestemundo estáocolocadospor fa~anhososepor muito váos.Em o regimentode seuscidadáos,e atgñasvirtudese moraescosturnes,vós, PortuguesaFama,nAo tenhaisciumes,queestaisco]ocadanaflor dos ChristAos.

ResendenAoestásé nestaposi~áoeo se»pensarapresenta-secmperfeitaconsonAnciacom odo amigo, que rejeita todasas riquezasa troco de uma vida mais modesta(«antescanarerogar»)e mais isentade cundase canseiras:«Por passartantatormenta,¡ tempoe vyda tamforte! e tam perto ser da morte, ¡ antesnon qneropymenta».

24 Cancioneiro Cera!, Prólogo.25 Apud R. Menéndez Pidal, Poesía juglarescay juglares, Madrid, Centro de Estudios

Histéricos,1924, Pp. 335, 374-375e 376.

Page 16: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

52 <tiJa FernandaDias

vossasfacanhasestáocolocadasdiantedeChristo, Senhordasalturas:vossasconquistas,candesaventuras,sáocavalariasmui bem empregadas.Fazeisas mesquitasser deserdadas,fazeisna Igreja o seupoderio;portantoO quepodevos dá dominio,quetanto reluzemvossasespadas.Porqueo triunfo do vossovencere vossasvitórias exal~amafé,de serdeslaureadagranderañohe.Princesadasfamas,por vossovalernRo achamosoutra de mais merecer,pois tantosdestroqosfazeisa Ismael,cm nomede Christo tomaeo laurel,ao qual Senhorpraze sempreem vós crecer.26

Garciade Resendetambémfalanos feitos famososde Tróia e deRomae,tal como Gil Vicente, reconheceque os dos portugueses,colocadosemparalelo, nAo deslustramaqueles,antes ganhamoutra dimensAo, que ostornaimparesna história da humanidade,porqueguiadospor um ideal maisnobre: o serviQo de Deus. E ante a magnitudeda empresaultramarina,éResendequem avanQa na ideia da necessidadeda sua fixaQio por escrito,paraque pontosaltos da história de um poyo se nAo percamno olvido dotempo.

Apesar da conscienciado momentovivido, cujo valor urge n~o deixarcair no esquecimento,nAo vemos em Resendeo incitamento ao feitoguerreiro, mesmo que ele revista o cariz de urna cruzada,tal como oencontramosna Exorta~ao da Guerra. As reiteradasafirma9óesdo Prólogodo Cancioneiro sobrea for~a dasarmase as guerras«semnunca9essar»27,atravésdasquaisimpusemosa tantosreinose a poderosossenhoreso nossodominio, poderáo talvez ser interpretadoscomo a nAo total adesáodeResendea esta linha0 da política portuguesade entáoou, pelo menos,adiscordánciada forca como meio de a levara cabo.

As vidas postas em jogo, muitas vezes por ambiqéesdesmedidas,e asincertezasqueacompanbamcadaum no momentodo embarquesAo porele,comovimos, denunciadosexpressamente.Tanto MestreGil como Resendeconsignarani,cm vários dos seustextos, o descalabrosocial de entáo,seinque, no entanto,houvessemdenunciadoas suascausas.Nilo é admissivelque ao lúcido espirito de cadaum elas tivessemescapado:á sátirade carizrísonho ou moralizantede um e de outro subjaz o conhecimentode urna

26 Dcnotarqueo versomaisamplo substitui,aqul, aredondilbautilizadano restodo auto,porqueverso mais apropriadoaoencómiode Portugal,feito na figura da FamaPortuguesa.

29 Cf: «tantosreynose senhorios(...) per forca <¡armas tomados»; senhoreandoper for~a<¡‘armas tantapartede África, tondotantasvidades,vilas efortalezastomadasecontinuamenteguerrasemnuncatessar>x «tantosreysmourosegentiosegrandessenhoressamperforpafeytosSons suditose seruidores,~.

Page 17: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 53

sociedademinada nos segurosalicereesdo Velbo Portugal, consequ&nciainevitável dasdescobertas,que bem cedonos brindaramcom as marcasdopodere dagrandeza,poderegrandezaquenosdeslumbrarame estontearamberncedotambém.Feitosheráicos,grandesempenhamentos,actosdestemi-dos, actos de abnega~Ao, esseserarn para as praqasde Africa e para asrecónditasparagensorientais.Aqui, em Portugal,éramos«maysmoles queduros¡ polafroxezada terra»e a «nossafantesya¡ estaavapostaem folguar ¡e ás vezesem ganhar¡ em qualquermercadoria».(1, n0 394).Lisboa eraummar de riquezas, nadaIhe faltava senáo «gouerno [e] bons regimentos»(Mise.. p. 363). 0 desprezopelo trabaiho,a existenciade urna popula9ioinactiva, servidapelos bravosde milbaresde escravos,que enchemo reino,enquantoosseusnaturaisse ausentamparaas libas, Áfriea, Brasil e India,sinaisevidentesde próxima ruina, levam Resendea escrever:

veemosno reyno mettertantoscaptiuoscrescer,eyrem-sehos naturaes,quese assifor, 501am maiselles quenós, a meu veer.

(Misc. p. 363)28

sistemaque, longe de conduzirao bern-estarda sociedade,contribui paraafalta e paraa carestiadosprodutosalimentares(Auto da Feira). Grandesepequenos,nobrese plebeus,cleroregular e secularnAo gm em mentesenáo«crescere medrar»;nilo se olha á condi~Aonemácompeténciade cadaum,nAo se serve com lealdade, dedica~Ao e zelo; favorecem-seos amigos, oscargos sAo dados nAo por mérito próprio, mas por ~<aderencía».Físicosignorantesdo seu mister, juizes corruptos, pilotos adventicios, clérigosdissolutospululam na sociedadeportuguesa;ninguémquerviver segundooseuestadoe condiqio e a prosápiados nobresexige que«Todo o fidalgo deraca, ¡ em quea rendasejacurta,»deveviver urnavida de aparéncias(Farsados Almocreves). Nao seolha a meiosparaatingiros fins, a mentiracampeiapor todo o lado, a verdade,desprezadade todos, nAo encontraonde seacoiher, pois a mentiraé honrada«por melbor e mais principal» (Auto da[esta).

As falasde Todo o Mundo e Ninguém do Auto da Lusit&nia opóemduasnormasde conduta,urna todavoltadaparaosbenstemporais,ditadapelascircunstánciasda época,e que constituia regra,a outraolhandoaosvaloresmorais, tilo arredadosdo dia a dia dos homens: Todo o Mundo buscadinheiro, honra, lonvores,vida; quer o paraíso;é mentiroso e lisonjeiro.Ninguém buscaconsciéncia,virtudes, repréensio,conhecea morte; pagaoquedeve;é verdadeiroe desenganado.

A sátirade fei~Ao religiosa,visandotanto o cleroregularcomoo secular,

28 Ci as palavrasde Clenardo,transcritasatrás,p. 39.

Page 18: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

54 A ida FernandaDias

ocupagrandeespagona produyáovicentina29e agiganta-se,nurna ousadiainesperada,quandoa Igrejacomoinstitui9Ao, simbolizadapor Roma,vein Afeira comprar«paz,verdadee fé» a troco de indulgénciasejubileus.O clero,desdeo maisalto dignitárioeclesiásticoao mais modestopadrede aldeia, saiseinpre,dapenade Oil Vicente, tratadopeíanegativa.Padrese fradessAo tAomundanoscomo os mais mundanosleigos do seu tempo, movem-sepelosmesmos interesses,tém as mesmasambi9éese os mesmos defeitos: siloignorantes,jogadores,orgulhosos,beberróes,lobos vorazes(«A renda queapanhais¡ o melbor que vós podeis,¡ nas igrejas nAo gastais¡ aos provespouca dais, ¡ eu nAo sei que Ihe fazeis» (ExortaQaoda Guerra); galantes,espadachins,enamorados,mexeriqueiroscomotodo o bomcortesAo,conhe-cedoresprofundose experimentadosdo amor,nAo rezamas horascanónicas,mas as das «negligénciashumanas»(Auto da Lusit&nia); adoramCupido,discorremsobrea for~a do Amor, desenvolvendoo temaAmor víncit oninia(Auto das Fadas); «mantémas regrasdasvidascasadas»(Comédiasobre adivísa da cidade de Coimbra), «porquesilo leis dos antigosfados, ¡ cousanaterra já determinada, ¡ que os sacerdotesque nAo tém ninhada ¡ declerigozinhos silo excomungados»(ibid.). E todo este comportamentodesculpadopelo confessor.tambémele enamorado,que forQa a doutrinaevangélica a seubel-prazer,alegandoque Deus criou e ordenou o amor(Auto dos Físicos).

Nadabá a esperarde bomdestesmembrosda sociedadeportuguesae opróprio clerosenteereconhecequeé um cancrodo meio: «Filbo de clerigoes¡ nunca bó feito farás» observa o padre do Clérigo da Beira ao filboFrancisco,com quein partilba a reza do breviário, a vida familiar e osprazeresda ca9a. No Breve Sumório da Hístória de Deus, Abel diz aotentador:

Oh! e tu gabas-teefazes-tesaucto?Juro-te,amigo,quehypocrita es.Torna-temonge,descal~aessespés,e serásfino flessaarte dei tanto.

numaafirma~Ao corroboradaalgunsanosmaistardeporClenardo(cf. atrás,p. 39).

«Clericuset negotiatores»(sic) se definiu a si próprio o capelioda Farsados Abnocreves.Receberordens,professarnum convento,viver no ermitérioé pisar terrenoseguroparaurnavida despreocupada,é fugir As responsabili-dades exigidas peía expansá&u¶tramarina,é um meio de enriquecimento

29 Dos 44 autosconhecidos,que Oil Vicente nos legou (nRo contandocom o Jubilen deAmores, representadoem Bruxelasante o CardealAleandro, legado do Papa, que atónitoconfessavaparecer-IheestarnaSaxónia«e ouvir Luteroou estarno meio doshorroresdo saquedeRoma»),24deles,aosquaisdevemossornaro Pranto deMaria Parda ea Cartaa D. JoáoIII,voltam a suasátiracontrao clero, passandoa pente fino a vida e a condutairregularissimasdestesministrosde Deus.

Page 19: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombra dosgrandes 55

atravésde prebendase de beneficiosvários,é urnavia paraa obten~Aodeumbispado,é urnaporta abertaparase serde EI-Rel.

A leitura das trovasqueGarcíade Resendedirigiu a lUí de Figuciredo,que estava«detremynadopera se meter frade» (II, n0 878) denunciajá otestemunhovicentinoquantoao desregramentoda vida conventual,origina-do, cm parte,peía adop~áodo principio vigente de que os fflbos segundos,privadosda heranvapaterna,ou seguiama carreiradas armasou a vidareligiosa30. Esta era muitas vezes a escolhida,pois oferecia garantiasdemajor tranquilidade,de menor preocupagáoe responsabílídade,de malordesafogo. Sob o hábito e sob a aparénciade mortificado, se escondia,frequentemente,o cortesAo,o galanteenamorado,o espadachim,o homemmundano.Mas tun Frei Pacoou um frade, tipo fradeda Barca do Injérno,nAo se preocupavamcom as aparénciase manifestavamostensivamenteasmarcasdo homemdo século.Os conselbosqueResendedá ao amigo,quantoá vida quedeveviver no convento,sáode urnapomaa outra o eslniu9ardesituaQoese de comportamentostipicos dos mosteirosda época,cbeios dehomenssemvocaQioreligiosaenadapreocupadosem observaros principiosinerentesaosvotosproferidos. Religiososdesta índole, tornadosprofessossemvoca9áo,sAo condenadospor ResendecomosAo condenadospor MestreGil, que limpa estachagamoral,pondo-ihesnasmáosas armaseenviando--os paraa luta contraosmouros (Frágua de Amor). A leitura destetexto doCancioneiro Geral a todo o momentonos remeteparao teatro vicentino,recordando-noso Frei Pa9o e o Frei Narciso da Romagenide Agravados,oErmitAo da Tragicomédia Pastoril da Serra da Es/reía, o Frei Rodrigo daFrágua deAmor, o frade dominicoda Barca do Injérno: hipocrisia, traduzidanumavida de aparenteoragáo,sacrificio ejejum,que na celaencontravaosprazeresda comidae dacarne;o hábitovestia-seapenasno convento;na celaestavamtodos ospertencesdo cavaleiro, incluindo as armase a cabeleira«paracobrir a coroa»,semprequeseempreendiamsaidasfortuitas;«envejar,mexericar¡ sAo meussalmosde David ¡ quecostumode rezar»diz Frei PaQo,numacrítica idéntica á de Resende,quandoaconselbao amigo a ser «muymexeryqueyro»e a murmurarde unse de outros.

Todos os aspectosdo descalabrosocial, que ternosvindo registando,os

>0 As mulheres,queentravamnosconventos,semvocaváo,eram muitase tambéna sátiragilvicentina as denuncia,emborade forma mais atenuada:tambéni olas vRo á feira comprarunguentos«comque voe,n do convento»,na mira de remediaremuma situaqáoqueIhes foiimposta.E o velhotópicoliterário da«nonnemalgréelle»,deraizmedieval.A vidadeclausura,oestarem afastadasda vista e fala de parentese amigos revoltan, Domicilia e Dorosia,«agravadas»monjasda Romagemde Agravados.E a fugaparao convento,no intuito defugir ástenta~éesdo mundo,éatitudequeGil Vicentecondena:«A salvacáoeumefundo¡ nafreira nRosersegura,¡ porqueestásemprecmventura¡ estesegredoprofundo, ¡ cm quantoIhe a vidadura.¡ Quetambénláha peleja ¡ da rañocomapetito;¡ e isto nRo vale igreja. 1 (...) ¡ Serdesleigaecastaabasta;¡ eaindahebem mister¡ haverhi dascastascasta;¡ e quemdistose afasta¡loraescusadonascer»,diz aBeataa Cismena,quemanifestavao desojodeser religiosa.Cf. noCancioneiroGeral, 1, n.0 362; II, núms.611 e827, queapontamparaadissolucáodosconventosfemininos.

Page 20: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

56 AldaFernanda Dias

encontramosjá no Cancioneiro Genil e, mais tarde,na Miscetbnea.Autoresváriosdo Cancioneiro,e. g., Alvaro de Brito Pestana,Nuno Pereira,O. JoAoManuel, CondestávelD. Pedro,JoAn Rodriguesde CastelBranco, Luis daSilveira, Duarte da Gama, Diogo de Melo da Silva, Garcia de Resendeacentuamas mesmasnotas31.EstedescalabroapelidaDuarteda Gamadedesordens,enquantoÁlvaro de Brito, numa posiQio declaradamenteanti-judaica,fala dos ares mausqueinfestamo reino, principalmenteLisboa.

Homensde corte,entreguesás «gentilezase cousasde folgar», revelaminopinadamenteum poderdeobserva~áo,deanáliseedereflexáo,queos fazenveredarpelocampoda denúnciados malesqueminamo reino: os homensda justiya com as peitas, os comerciantesespeculadores,que roubam nospesose nasmedidas,‘as alcoviteirase osusureiros;os judeus, comas suastorpidadese «sotys enlygos», exercem ac9Ao nociva na sociedade;delescopiamosos mausexemplos,delesadoptamosas práticasjudaicase profana-mosa nossafé; imperaa falsidade,osamigossAo traídos,serve-semal o Rei,campeiao adultério («Casadostém barragáas¡ e casadasbarragAaos»),ocleroregular e seculartral os principiospor quese deviareger;a ambiQioédesmedidae todosqueremser senhores;flamengos,genoveses,florentinosecastelbanos,atraidos a Lisboa pelo negócio, «leuam ouro, trazem pao, ¡nossostratosmercadantes¡ desordenam»(1, n0 57).

Aventurámo-nosdesenfreadamentepelo campo dos vicios, pelo queDuarteda Gama, conscientedo abismo,escreve:

O cauallodesbocadonuncasc podeparar8cm prirneyro se cailssar,entamlogo he parado.Assy creyo quefaremosnos gastosdemasyados,e depoysdebern canssadospararemos.

A ~idadede Cartago,depoysdeser dcstroyda,fez cm Romamoorestragoqueantesde ser perdida:os romáosdésquevcnQerAforam dos vkyos venyydose seuslouuorescre§idospercyeranl.

Assy portiam pereycremos tam antiguoslouuoresdos nossospredeQessores,conuemdenos reprenderem

5’ CI. 1, núms. 57, 88, 142,257, 393; 11 núms.494, 512, 513,540, 542, 627, 536.respectiva-mente. De Resende,veja-seaindaa a/udc a Luis da Silveira, II. o. 513,

Page 21: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 57

dos vy~ios eda torpezacm quequeremosvyuer,antesde se conuertercm natureza.

(II, n0 542)

Na Miscelanea,Garcíade Resenderevela-seperfeitamenteconscientedasmutaQoesoperadasna sociedadeportuguesa.O desenganoque o invade, aamarguraque o domina sAo bern visiveis quando, lan~andomilo de urnaconstru9aoopositiva, nos refere as «desvairadasmudanQas¡ de vidas e decostumes»:

Tantoscome~ose cabos,tanto andare desandar,tanto subir e decer,tantasvoltas máse boas,tanto fazer, desfazer,tanto dar, tanto tomar,tantasmortes, tantasguerras,tam poucasvidasepazes,tanto ter, tanto nRo ter,tantosdescontentamentos,tantase vansesperangas,tanto mal, tam poucobemtanto fauor, desfauor,tanto valer,desualer,tanto prazer,tantosnojos,tam poueodar porvirtudes,tantosfalsose mentiras,tam poucafe e verdade,tantossoberbose baxos,tanto sabersemdarfruito,tantossimples eerrados,tam poueosos queacertáotantosserui~oscmvam,tanto medrarsemseruirtanto soltareprender,tantosenganose modos,tantosbons 5cm galardam,e tantosmaossemcastigo,conselhossemcaridade,ingratidamsemrazam,cobi9ase poucoamor,e amizadesfingidas,tam perseguidaa Igreja,de cristRosmais quedemouros,tanto trabalharporvida,tam poucoporbernmorrer,tantosauarOstiranos,tantoscuidadosdo mundo,tantosdescuidosdeDeosporcousasqueham de acabar.

(Prólogo,pp. 335-336)

Page 22: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

58 Aida FernandaDias

E tal comoSá de Miranda,desgostosoda vida da corte,há-defazermaistarde, retirando-separaa quinta da Tapada,tambémNuno Pereira,JoioRodrigues de Castel Branco e Diogo de Melo da Silva deixam a vidapalaciana.Cansadosdasambigéeseinvejas (acorteé «um grandemar ¡ comsomade pescadores»,assim a define Frei Pago), abandonamo Rel e oscortesios,a mesquinheze vaidade dos homens,em prol da pazde espirito,fruida em meios provincianos,longedas grandesurbes, alheiosaosproble-mase aos interessesdesenfreados,que minam os contemporáneos.E ei-losgozandoa aurea mediocritas, entreguesá paz benéfica dos campose aostrabalbosagrícolas,nadasaudososdo meio quedeixarame ousandomesmofazero confrontoentreavida passadae a presente,esta,agora,capazde Ihesdevolvera tranquilidadeperdida:

La lograae vossosseraáos,vossasdamase priuan~as005 cortCSaaOS,masbom parde bois nasmáosval seysparesdesperancas.

Mays me queroUi soo conchosode laranjase limoñes,ecom repOusO,quepreguntarondepouso00 d’Abreu sobrepayxoóes.

Priuarem cas da RainhaDeos yo-lo deyxefazer,e amy huñavinhae reguarhuñaalmoinhaem quetenhomoor prazer.Deos vos dé muyta priuangacom El Rey nossoSenhor,e a ruy lauranga,aguylhadaem vezde langa,vós pagaRo,eulaurador.

Por ter maysfolguadavida,lauro, cauo,quantop055o,naquelaydasoubegerto neespedidaqucemilbor o meu c’oo vosso.

Page 23: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 59

E vós la guallanteare eu com foge epadam,vos damejar,eu enxertosenxertar,quem teraamenospayxam?X’ós na cortecortesaáo,eu com meulogo e meu lar,Vós Iougaáoe eucon agor na maRo,qual he maysgerto folguar?

(1, n0 88)32

A estesespiritosdói aindaa ingratidáodos homens,quando,regressadosde longínquasparagens,onde puserama vida em jogo, chegamao reino eapenasencontramcomo pagaou recompensadetantossacrificioso esquecí-mento.Paraeles nAo há benesses,nAo há tengas;como prémio, apenasseIhes deparaa miséria, reversoaviltantede urna India promissora:

Armadasydas dalemja sabeyscomose fazem,quantoscatiuosla jazem,quantosla vam quenamvem!E quantosessemar temsomidos,quenam paregem,e quamgedo caaesquegem,sem lembrarema ninguem!

E algfisquesamtornadosliures dessasborriscadas,se os hys ver aaspousadasachay-losesfarrapados.pobrese negcssitadospor mui diuerssasmaneyras,por casasdasregateyrasos vestidosapenhados.

(1, n0 393)

Algumasdestasvozesdesconsoladasediscordantesanunciamjá Cam&s,queexperimentou,na carneeno espirito,as doresdasguerras,a ingratidAo ea incompreensiodos homens:

No martantatormentae tanto dano,Tantasvezesa morteaper~bida!Na terra tantaguerra,tanto engafo,Tantaneccssidadeavorrecida!Onde podeacolher-seum fraco humano,Onde terá seguraa curtavida,QuenRo se armee se indigne o céu serenoContraum bicho da terra táo pequeno?

(OsLusiadas,1, lOE)

32 0 fragmentotranscritoé da autoria de Nuno Pereira. Dentro da mesma linha depensamento,cf. 1, n0. 393 e II, n0. 627 deJoRo RodriguesdeCastelBrancoedeDiogo deMeloda Silva, respectivamente.

Page 24: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

60 Aida FernandaDías

Podemosmesmoconsiderá-lasantecipagñesdo Veiho do Restelo,comoele tambémreflectindo, A luz daprópriaexperiéncia,sobreo desejoda fama,da honra e da glória, buscadasno melo dasmaioresincertezase perigos.

Dura inquietagáodalmae da vida,Fontede desemparose adultérios,SagazconsumidoraconhecidaDe fazendas,dereinosede impérios.

(ibid.. IV. 96)

a desmedidaambiQAo origina que

Nenhumcometimentoalto e nefandoPor fogo, ferro, água, calmae frio,Deixa intentadoahumanageragáo,Míserasorte Estranhacondigáo!

(ihid., IV, 104)

Os temposmudaram,alterou-sea ordem, inverteram-seas hierarquiase,faceao desconcertodo mundo,um mantodenostalgia,de pesare de tristezavai baixandosobreosportugueses:já estáolongeos temposem quetudo eraprazer,gentileza,galanteria,ern que danqase cantaresalegravamo reino:

Em Portugal vi eu jaem cadacasapandeiro,e gaita cmcadapalheiro:e de vinte anosa canRo ha hi gaita nem gaiteiro.A cadaporta hum terreiro,cadaaldeadezfolias,cada casaatabaqueiro;e agoraJeremiashenossotamborileiro.

Sé em Barquerenahaviatamborcmcadamoinho,e no mais triste ratinhos enxergavabúaalegriaqueagoranRo tem caminho.Se olbardesascantigasdo prazeracostumado,todastem som lamentado,carregadode fadigas,longe do tempopassado.

O d’entáoeracantare bailar comoha-deser,o cantarperafolgar,o bailarpera prazer:queagorahe maoCachar.,33

Gil Vicente, Triunjb do Inrerno (1529); cf. toda a fala do Autor,com quese inicia o auto.

Page 25: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 61

versosantecedidospor unsde Resende,redigidosem 1510, visandoagoraomeio palaciano:

As damasnuncaparewm,os galantespoucossam,cousasde prazeresquegem,os negogeosvem e vam,nuncamingoam,seinprecre’~em.

Nam haja nenhfl folguarnem manhaseyxergytar,he tanto o requerimentoqueninguem nR traz o tentosenamcmquerermedrar

Meio palacianoque SA de Miranda recordarácom saudade,na cartaaO.Fernandode Meneses:

Os momos,os seraosde Portugaltain faladosno mundo,ondesáoidose as gragastemperadasdo seusal?

Dos moteso primor e altos sentidos,os ditas delicadoscortesáos,quédeles?QuemIhesdá somenteouvidos?35

A reeorda~Aodos diaspassados,em que osatropelose as ambigéesdoshomens,embora existentes,eram praticamentenulas faces ás propor~esassumidasna hora presente,faz com que esse tempo seja encaradoquasecomo uma idade de ouro, á qual muitos desejariamregressar,apesardecontrariedadese desofrimentosvividosentáo.O queforam essesdesgostoseagrurasfaceaosdesenganospresentes?Nada! Folbasqueo ventolevou, quebreve se dissolveramno rodar dos anos,assim tém de ser encaradospelosque se sentem incapazesde se integrarern e viverem na nova ordemestabelecida.

¿Quienno llora lo passado,viendocual va lo presente?¿Quienbuscamásacidentede lo qu’el tiempola dado?

cantao romanceantigo, Tiempobueno,tiempobueno,ao qual tantosespiritosdesiludidos se apegararn,parafraseando-o.E Resende lá está, entre osprimeiros que, antesde 1516,o glosaram36.

34 Vd aindaMiscel&nea, pp. 357,361 e 362.35 Obras Completas(cd. ao cuidadode RodriguesLapa), 2 vols., Lisboa, ClássicosSá da

Costa,1937; II, p. l04.36 Cf. o nossoestudoMotos...

Page 26: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

62 A ida FernandaDias

Tom profundamentepessimistaressaltada paráfrasede Luis da Silveira(II, n0 494) ao dito de Salomáo Vanitas vanitaturn que, ao longo de todo oLeclesiastes,surgecomo fio condutor.Nos seusversosperpassamo desen-cantoe a grandedesilusáodo autoranteo mundoe o seudesconcerto,quejáanteshaviam sido denunciadospor autorestrovadorescos37.E para quétantadiligéncia, paraqué gastardias e anosnestavil cobi9a, que sujeitaeescravizaos homensa tudo e a todos,se, no final, apósa morte, o temposemostra «liberal d’esqueyimentos,¡ de memoreasmuy escasso»?Pode aFortunaser incongruentena distribuiQio dos bens e dos males, pode fazergirara seubel -prazera rodado destino,que,cmdeterminadaalturada vida,todososhomeusseráoiguais, de nadavalendoriquezase honrarias:

O sesudoe o sandeuSudo vy quetinha fym,e disse entamaturemym:—Que meprestao sabermeu?Ynorantese prudentestodostém búamedida,na mortenem nestavidanam nosvejo ditierentes.

Tambémjá o disseraJorgeManrique,nascoplasque compósá mortedeseupai:

Nuestrasvidasson los ríosquevan a dar en la mar,ques el morir:alli van los señoríosderechosa se acabare consumir;allí los ríos caudales,allí los otros, medianose máschicos,allegadosson ygualeslos quevíuen porsus manose los ricos.~

E mais ou menospeía mesmaépoca. insistia Villon:

Je cognoisquepauvreset riches,Sageset fous. prétreset lais,Nobles,vilains, largeset chiches,Petits el grands,et beauxet laids,Dame a rebasséscollets,

3~ Cf. PeroMafaldo, Vej’eu asgentesandar revolvendoe o texto anónimoQuen viu o mundoqual o en /a vi, in Cancioneiroda Ajuda (cd. preparadaporCarolinaMichaélis de Vasconcelos,reproducáoanastáticada 1.0 cd.).2 vols., Turim, 1966, núms.435 e305.

38 Jorge Manrique, Cancionero(cd. a cargo de Augusto Cortina), Madrid, Espasa-Calpe,l966, p. 90.

Page 27: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombra dos grandes 63

De quelconquecondition,Portantatourset bourrelets,Mort saisitsans exception.30

Paraqué correr em buscada glória, se depoisternosde reconhecerque

Tudo sejaa desejouetudo savorregeoetudo seja ganhouetudo seja perdeo?

O melhor é, parao poeta,numavisAn carregadadepessimismo,crer

queos quenam nageram

sam os bern auenturados

e esperarque o tempopasseinexorávele exer~aa suaacvAo, pois

As cousasseutempoteme per seusespaagosvam,tempode mal e debem,tempode sy e denam.Tempoaade semearetempoaade coihere tempodobedegere tempo paramandaar.

Tiempoan todas las cosas afirmara, provavelmenteem meadosdo século XIV,

JuandeTapia4«,nAo o Tapiaquefigurano Cancionero General de Hernandodel Castillo (1511), mas aquele que, em 1432, tornou parte no cerco deNápolese se mostrousemprefiel servidorde Alfonso V, o Magnánimo,e deseu filbo e sucessorD. Fernando.

O tempoque passae nilo torna, a suaacQAo destruidora,as marcasdedesilusAoe de amarguraquedeixanoshomens,levando-osa considera9éesimpregnadasde cepticismoe ao desejo da morte, na qual encontrarlo olenitivo paratantosdesenganos,lenitivo queo mundoIhes nAo proporciona,silo consideragéesque vémde longe, e quenos poetascristAosentroncamjAnos livros sagrados,vinilo a ser largo motivo de inspira9io em autoresmanieristase barrocos,com especialdestaqueparaCamóes,mas que, noCancioneiro Geral, jA ecoarnem acordesbern sentidos.

A Resende,volvidosanossobrea glosaao Tiempobueno,jA nilo satisfazorecordarsaudosoe dorido do tempopassado.Agora, consideraque tudo ¿mutável, transitório e enganador.Só Deusconta, sóEle permaneceirnutá-

39 FrangoisVillon, OeuvresComplétes,Paris,Garnier-Flammarion,1965: Le Testament,p.55, XXXIX.

40 FranciscaVendrelí de Millás, El CancionerodePalacio-Ms. n0. 594, Barcelona,C. 5. 1. C.,1945, n0. 77.

Page 28: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

-Q

64 AidaFernandaDias

vel, por vezestAo esquecidodos homens,emborasendoo abrigo, o refúgio

paraos nossosmales:

tudo acabasenamamarDeos de coragameserui-Lo de vontade;todo o al hevaidadeecousasqueveme vam.

Porquesó Deostem poder,Elle só he O quesabe,ninguempodecomprehenderseusjuyzios e saberepoderquen’Elle cabe.Elle he toda bondade,Elle he toda verdade,Elle he o sumobern,Elle dáser e sostemnossafracahumanidade.

Quese Elle fosseesquecidode nós outroshú momento,todo seriaperdidoe o mundo destruydo,pois he nossavida vento.Tomareylogo daqui,destascousasque escreule de quantofoy e he,louvar fleos, teer firme fee,veer que sam. Como muscu.

(Misc., p. 381)

As linhas acabadasde redigir tornam evidenteque muitos aspectosdoteatrovicentinoe dassátirasde Miranda, bemcomopassosváriosdascartasde Clenardoe alguns topoi do Maneirismo e do Barrococedo foram de-nunciadose tiveram representatividadenas letrasportuguesas.Sé que, namaior parte dos casos,autorese textos silo ignoradosou recordadosporaspectosque nAo estes.

Conhece-seGarciade Resendeporqué?Porquecompilou un cancioneiro,porque compós urnas trovas á morte de Inés de Castro (nem sempredivulgadasna íntegra) e talvez ainda porqueescreveuuma Crónica de D.JÑo II. E Luísda Silveira?Porqueé o autordascoplas Vaidadedasvaidades¡ e tudo é vaidade. E Nuno Pereirae Joio Rodriguesde CastelBranco?Ah!urn entrou no Processodo Cuidar e Suspirar, o outro escreveua cantigaSen/tora,partem tao tristes ¡ meuso//tospor vós,meubeni. Duarteda GamaeÁlvaro de Erito, estes,silo logo associadosá crítica social, atravésde doistextosobrigatoriamenterepresentadoscmtodasas antologiasdo CancioneiroCera!. E o CondestávelD. Pedro?Paramuitospermaneceum desconhecido.

Page 29: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 65

Todavia,apesardosaspectosdignosde registoa que nosreferimos,esteshomense o seu pensarnentocontinuamvivendono esquecimento.A sombrados Grandes ofuscou-os, encobriu-os totalmente, quando, muito antesde um Gil Vicente, de um Sá de Mirandae de outros,haviamalertadoparamalesque, emborade todos os tempose própriosde todosos mortais,seacentuavama um ritmo vertiginoso.Cedo souberamapontarparaos malesda sociedadeem que viviam, refleetindo sobre eles, males que vilo sertranspostosparao teatro do século XVI, atravésdos tz~oscriadospor GilVicente que, com o seu poderde análisee de observagio,com a suaforQasatiricae com os seusdotesde artista,Ihes insutlou o soprovivificante, queos fez atravessaros séculos,pujantesde vitalidade.

E, todavia. necessário.embora nAo confundido a nuvem com Juno,reconhecere afirmar o mérito destesautores:é necessáriosubtrai-los Asombrados Grandes,arrancá-losao olvido dos homens,revelando-osnassuasdimens&speculiarese dar-Iheso realcea que tém jus41.

41 Imprimimos,sob a rubrícaANEXOS, os textosdeGarciadeResendee de Gil Vicenteque, no concernente á sátira religiosa, oferecem flagrantes semeihangas.

Page 30: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

ANEXOS

Pois trocaysa lybcrdadepor vyuer sempresojeyto,5cm averdessaudadedosamyguosde verdadevossossemnenhñrespeyto;<estais,senhor,departydaparaentrarem nouavyda,tomay isto que vos diguo,comod’um vossoamyguogrande,fora de medida.

Se determinaysvestyravyto com seucordam,nam aveis nuncaderyrno moesteyronem bolyr,qu’eesynal dedeuagam.Dyornal e breuyayro,contaspretase rosayrotrazey decotena mam,semrezardesoragama santodo calandayro.

S’y ouuerdegeprinar,hy com grandedeuagam,e depoysda casaestarhasescuras,agoutarryjo, massejano cham.Ameudesospirar,que todospossamcuydarqn eede muyto marteyrado.Assy estareispoupadosem vos da regra tyrar.

Aueys sempredemostrarque andais muy mal despostopor do coro escapar,qu’eegram trabalborezara quemnyssonam 5cmgosto.E ha mesagejumhar,que faqaystodospasmar!Mas tereyscm vossagelamantymentosemprenelacom que possaisjarrear.

Tereysnelaputarramquesejado vossogeyto:se batero goardyamha porta,dar-Ihe de mamparadebaixodo leyto.Se vos acharsuarentodizey que vossoelementohe estardessamaneyra:estaregra he verdadeyrae o al tudo hevento.

Tereysde so o coíchamjybam e caigasde malba,casco,luuas,burquelam,punhale espadarram,chugoe húanaualha,escadade corda boa,quesubae degaa pessoaseguradenam quebrar:cabeleyranam errarparacobrir a coroa.

Page 31: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes

CotOO sa Ifr¿poSet~fadaltosahytC~Sz:< faz mester,

vestidO afl~5 deWrporqueceta

1 dayíOpOYO ~ ca caininhO~

sedeaflYS~ do meitrnboe do aícaydCtan’~~~n’

nartl 4UCYTarn por bVOS~

0 nvn o-tomar-UOSpobrezae casú&adC.

obedyeEiae taruben’comon#adeha~ete~Scaildade

tuasnan’~erda~knen’ pagiCn~taIra lbtSY mwyto por hy’decasefl” casa pedytcos

0lhos po5W~puf te-Ca,90TqUe as~Y5~ fazag»erraineXhOl 4ue~ bofl’ sefUYt

pataineihol vossaluar,sedemv

e dovÚ~’5

eo goardian’louuk~~~ nido muY porynteytO-FataymaflSW edeVa~are &ou~>~~ de rezar

Frei POgo

n’e vir entraraSSicon’ CStt~5 geitOS quCil fago,

dar«queuesaib~deni1ateq ~ padreFiel pago.quesatO -

o m~ peitenceDeO grt2U~»< ~ re ~ nada,sitfl~ pal0 senW dasen~Oespadax,e¡n pareceporquemu~~0no Pa’o uazt1espada

Lii san’ fico de peSSOa.e porse duvidarreuSboa:fiz búa~ a coron,IcíxCí creceramandarrapar,stit~ nunca vo5 no digo

pisto,epot tanto ~ atentalsDeO gr’Ii~a ~ Chrís«’~~~Cn’IOUV~ledaquetras0con’~S0hábitO que he multo disSO.

sejaalto C de ,naamenteefaZeY-U~ muY gyefltCpor íaolhe~~nfC5at.

Se yo5 n’afldaícmvarreí,agoararuoresou.

1~~

~ os avY~¿?5XaUaT,

coni~Y 1053>0 5e dyzeY:detan’ (racaCotrabaihar

nalndignO reabai~armas,~‘UIfl pon no cliare-~ahyreYmono

Cabo

lsW ~0daCYStazar,

mas o boWi queavyda ten’naffl no aUCY vó~de sofrer,por jsSO, tesdeserfrade, nc5 bern:cefi

55 ben’ mCit~porqUC qun pade~

fradeveUWO~~tanw o ciaSreligiOSOtorna aten e

(Ci. de ReSeWde~<Jane Geta?,

~, n0

it

res,E. san’ ~n’ pag0cmabatqueroe posSObern~s

:25 nezerícarCIIS 5~1flIOS deDavid

queco5tn’~’~ de rezar-ltdo mUY doce,Cogran’

50tfla decofliprímentosobrasnaocase5pa~’~ quevoscontCfl~~O

0~pa1avr~5 d~vetCOSSou favor edesfávOtmeS~~or dosnanorados~engtlflO doscotffi.¿ñOSssofl sen’P~Ode OCoSd’affiOt,

ondoSinferQO deraras ~CO orada;

heja ale1 flan’e porquetudo senfria,amoass’ de sesiflaríae

5uspirodeflipreltada

Page 32: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

68 A ida FernandaDías

Frei Narciso:

E eu pregoa generosospríncipessingularmente,evivo muí austinente,marteirandoacarnee ossos,comocameu corpo sente;estudando,maginando,trabalhandoporprivar,semvontadejejuando,senáosomecteesperandose possomais arribar.

Ennit&o:

Agoraqueroeu dizero queaquí venhobuscar.Eu desojodehabitarnRa ermida a meu prazer,ondepodessefolgar.E quería-aeu acharfeitapor nRo cansarem fazé-la,quefossea michacollaantesbem largaquestreita,e quepodesseeu dangarcela;e quefossenum desertodínfindo vínho e pRo,e a fonte muito pertoe longea coctemplagáo.Muita cagae pescaria,quepodesseeu ter coutadae a casatemperada:no yerRo quefossefria,e quecteca invernada.A camamuito mimosa,e hum cravoa cabeceira,de cedroa suamadeira:

E porparecermisello,e toda a corteem mi creía,defumo-mecoestezelo,e fago o rosto amarelocom muita palhacenteia.E tudo isto padecipor haveralgum bispado,quasiassi arrezoado.E porquetardava,o pedi,e sahi bispo escusado.

(Gil Vicente, Romagemde Agravados)

III

porquea vida religiosaqueríaeu destamaneira.E fosseo meu repousaredormir até taeshorasquenaopodesserezar,porouvir cantarpastorase outrasassobiar.Á cae jactarperdiz,ao almogo mosaica,e vicho do seumatiz;e quea filba do juizme fizessesemprea cama.E enquantoeurezasseesquecess’ellaasovelbas,e ca celIa me abragassee mordessecasorelhas,indaqueme Iastimasse.Irmáos, pois deveissaberdaserratoda a guarida,praza-vosde medizerocdepoderei fazarestaminhasanctavida.(Íd., Tragicomédia PastorilEstrela)

de Serra da

IvFrade:

Senhores,fui carpicteiroda Ribeira de Lisboa,e muito boapessoa,e de mero malbadeiromefui fazer de coroa.Cousasm’aquecema míque o demoandacomígo.

Conselhou-mehum meu amigoquefossefrade e fi-lo assi,de Rui Pires, Freí Rodrigo.

Fis-me frade:andarembora.E fui azemelprimeiro,antesdesercarpinteiro,e estouassi fradeagora,porémfora do mosteiro.

Page 33: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses

A sombradosgrandes 69

Cupido:

Padre,quées lo quequereis?

Frade:

Quena-medesfazeretornasseis-mea fazermuito leigo, se podeis,que leigo tornassea Ser.Hum fidalgo assi meRo,hum Vasco de Foesn’altura,a barbadaquefla feitura,cRo tam denegridanRo,sonáoassi castanhaescura.l-luns oíhos gar~oscansados,e o ar de PeroMociz;e eupeitareíperdize dous paresde cruzados,se me mudais o matiz,Cupido:Porquéno quereisser fraile?Frade:Porquemeu sabernRo erra:somosmais fradesquaterra,semconto caCnístandade,sein servimosnunca cm guerra.E haviam misterrefundidos,ao menostrespartesdelles,cm leigos,e arnesesnellese rnui bern apercebídos,entRo a mouros co elles.

SenhorCopido,eu me fundonRo curarda conciéncia.Aborrece-meacoroa,o capelo eo cordRo,o hábito e a fekáo,

e avesporae a noa,e a m’ssaeo sermRo;eo sino eo badaloeo silencioe a deciplinae o frade quenos matina;no espertadoreRofalo,que a todosnos amofina.Parece-mebembailare andarnhúa folia,ir acada rociarlacom mancebosafolgar:isto he o queuquería.Parece-mebernjogar,parece-mebem dízer:—.-Vae chamarmínhamulherquemefacadejantar.fsto, eramá,he viver.Júpiter:De quéfacion ó edadquereisvos queos hagamos?Frade:Esperae,assi,vejamos,eu dírei minha vontade,pois ja cm al nRo estamos.Conheceiso Maríchal?assídaquellafei9áo,idadeedispos~Ro,assi nobree liberal,egaste-setodo carvRo.Cupido:Traeislícencia, Fray Puní>?Frade:Trago,senhor,abastante,assinadamuí galantepera mi e sote mil,quevirRo daquiavante.

lid., Frágua deAmor)

Page 34: A sombra dos grandes - Revistas Científicas Complutenses