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4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais De 22 a 26 de julho de 2013. A SEGURANÇA AMBIENTAL A PARTIR DAS MISSÕES DE PAZ: O CASO HAITIANO Área Temática: SI - Segurança Internacional Modalidade do Trabalho: Painel (avulso) Tadeu Morato Maciel Faculdade Santa Marcelina (FASM) Belo Horizonte 2013
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A segurança ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano

Feb 20, 2023

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Klaus Frey
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Page 1: A segurança ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano

4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais

De 22 a 26 de julho de 2013.

A SEGURANÇA AMBIENTAL A PARTIR DAS MISSÕES DE PAZ: O CASO HAITIANO

Área Temática: SI - Segurança Internacional

Modalidade do Trabalho: Painel (avulso)

Tadeu Morato Maciel Faculdade Santa Marcelina (FASM)

Belo Horizonte 2013

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Tadeu Morato Maciel

A SEGURANÇA AMBIENTAL A PARTIR DAS MISSÕES DE PAZ: O CASO HAITIANO

Trabalho submetido e apresentado no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI.

Belo Horizonte

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2013

RESUMO

A realidade internacional do pós-Guerra Fria demonstrava que o conceito de

segurança internacional não poderia se resumir aos conflitos entre Estados, devendo considerar as novas ameaças à governança global. Em meio a este cenário, destacou-se o vínculo entre conflitos internos ou transnacionais e as questões climáticas e ambientais. A segurança ambiental foi cada vez mais evocada nas Relações Internacionais, tanto que em 2007 o Conselho de Segurança debateu pela primeira vez o tema. Como exemplo desta dinâmica, este artigo propõe a análise de como a segurança ambiental se impõe em Estados em transformação pós-conflito, comumente considerados Estados falidos, fracos ou débeis, que enfrentam o desafio de recompor ou criar sua governança. A partir do exemplo da missão de paz no Haiti (MINUSTAH), pretende-se analisar a variável ambiental em missões com mandatos ampliados, que não se limitam a ações estritamente militares. Os fluxos de “refugiados ambientais” se destacam dentre as consequências indesejadas das questões climáticas e ambientais para a ordem internacional, fazendo com que os refugiados haitianos também façam parte da análise presente neste artigo.

Palavras – Chave

segurança ambiental; governança global; reconstrução pós-conflito

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A Segurança Ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano1

Introdução

A partir dos anos 1990, diversos autores do campo das relações internacionais

questionaram o conceito de segurança como exclusivamente vinculado a fatores militares.

Diante da crescente complexificação das relações internacionais, a segurança internacional

não poderia se resumir ao equilíbrio de poder entre as potências, havendo a necessidade de

englobar novas ameaças, como o terrorismo, os tráficos transnacionais (drogas,

armamentos, pessoas), os conflitos internos e transnacionais, a pobreza extrema, as

violações dos direitos humanos e a degradação do meio ambiente.

A partir deste cenário o termo “segurança ambiental” começou a ganhar espaço nas

relações internacionais nos últimos 20 anos, sendo debatido, inclusive, no âmbito do

Conselho de Segurança como elemento essencial para a governança global. Neste período

aumentaram os estudos que anteveem o adensamento dos conflitos (políticos, sociais e

étnicos) produzidos pelas mudanças climáticas e degradações ambientais. Essa crescente

importância da variável ambiental pode ser verificada nas missões de paz da ONU, que

cada vez mais assumem mandatos ampliados voltados à transformação pós-conflito, em

consonância com a ideia de segurança internacional como um termo mais amplo.

Desta forma, este texto procura compreender as alterações no conceito de

segurança internacional, com foco na ideia de segurança ambiental. Esta pesquisa utilizará

o Haiti (a partir da atuação da MINUSTAH) como estudo de caso, verificando como a

crescente utilização da segurança ambiental pode ser observada nas missões de paz em

Estados fragilizados. Também será abordado o fluxo de refugiados haitianos como elemento

essencial para a compreensão desta discussão.

A ampliação do conceito de segurança internacional no pós-Guerra Fria

Em 1989, a revista norte-americana “National Interest”, publicou o artigo “Será o Fim

da História?”, escrito por Francis Fukuyama antes de seu ingresso no Departamento de

Estado dos EUA. Para o autor, o fracasso do socialismo de Estado (marxismo-leninismo)

consolidaria a vitória da universalização da democracia liberal ocidental como a forma última

1 Este texto foi produzido a partir das pesquisas realizadas no âmbito do GT-II (Governança Global e Reconstrução Pós-

Conflito) do GAPCON (Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos). Desta forma, agradeço a parceria e compreensão dos colegas que fizeram parte desta pesquisa, que também resultou em um texto conjunto sobre o mesmo tema.

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de governo para a humanidade. Ele remonta a Hegel para afirmar que não haveria mais

combates de ideias com a vitória e universalização da democracia liberal. Assim, para parte

do internacionalismo liberal a nova ordem mundial seria definida pela “paz democrática”, a

partir de um sistema internacional no qual haveria a expansão do capitalismo e da

democracia, além da disseminação de valores universais vinculados aos direitos humanos.

Apresentava-se um novo panorama das diretrizes que pautavam as discussões

sobre os temas de paz e segurança mundiais. O que era denominado como internacional –

ou seja, entre nações –, deixava, gradativamente, de ser assunto exclusivamente tratado

nessa esfera, em especial no âmbito da segurança internacional. Os conflitos nas relações

internacionais começam a ser pautados pelo discurso da ação conjunta de Estados em

nome de valores universais e de uma nova ordem mundial. Conforme declaração do

presidente Bush em 1991, a ação do governo dos EUA contra o Iraque naquele ano não

demonstraria a luta pelo Kuwait, mas sim a busca por uma nova ordem mundial, em nome

da proteção de valores universais da humanidade (Rodrigues, 2012).

Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, o medo do embate entre

as duas grandes potências desapareceu, ao passo que, no decorrer das décadas seguintes,

outros temas tomaram conta da agenda dos governos e organismos internacionais, tais

como: os terrorismos (especialmente os vinculados aos fundamentalismos religiosos); os

tráficos transnacionais de drogas, de armamentos e de pessoas; as guerras civis e étnicas,

os genocídios e as epidemias (que repercutiam além dos limites das fronteiras dos

chamados Estados falidos, fracos ou débeis); e as questões climáticas e ambientais.2

Deve-se ressaltar que outros campos dos estudos de Relações Internacionais

também foram afetados pelas novas problemáticas que foram evidenciadas a partir dos

anos 1990. Diversos autores, inclusive realistas, passaram a questionar o conceito de

segurança como exclusivamente vinculado à segurança nacional e ao equilíbrio de poder

entre potências, ou seja, houve o deslocamento do “foco do problema da segurança do seu

vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo a questões para além, para aquém e através

do Estado” (Rodrigues, 2012: 8).

Diante desse cenário, o cientista britânico Barry Buzan afirmou que a segurança das

coletividades (organizadas no sistema estatal) não se resumiria apenas a fatores militares

(como antes descreviam os realistas), mas também a fatores políticos (estabilidade e

legitimidade das instituições políticas), econômicos (acesso a recursos mínimos para a

manutenção do bem-estar e das instituições), societais (preservação de elementos como a

2 Um dos primeiros documentos sobre as novas ameaças à segurança foi a “Agenda para a paz: diplomacia preventiva,

estabelecimento da paz e manutenção da paz”, acordada no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1992.

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língua, os costumes, a religião) e ambientais (manutenção da biosfera, necessária para o

desenvolvimento dos outros fatores) (Buzan, 2007: 38).

Assim, a ampliação do conceito de segurança demonstrava que não apenas as

fronteiras estatais deveriam ser protegidas, e, consequentemente, não apenas os conflitos

interestatais seriam uma ameaça à segurança internacional, mas também questões como a

degradação ambiental, as epidemias, os deslocamentos massivos de populações, a pobreza

extrema. Desta forma, será analisado de forma específica como os problemas climáticos e

ambientais são crescentemente abordados como questão de segurança internacional.

Segurança Ambiental e Governança Global

Nas últimas décadas, aumentaram os estudos que anteveem o adensamento dos

conflitos produzidos pelas mudanças climáticas e degradações ambientais. Além das

análises produzidas pelo International Pannel on Climate Change (IPCC), e dos relatórios

publicados no âmbito da Rio+20 (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento

Sustentável, realizada em 2012), livros como o Guerras Climáticas, de Harald Welzer

(2010), demonstram como a degradação ambiental e as mudanças climáticas podem tornar

certas áreas do planeta inúteis para a sobrevivência, causando o aumento de conflitos

(políticos, sociais e étnicos) por conta de disputas por recursos vitais escassos (como água

e terras férteis). Dessa forma, a segurança dos Estados (e de suas populações) seria cada

vez mais ameaçada pelos conflitos causados pelas questões climáticas, ou seja, guerras

civis, revoltas sociais, crises humanitárias, grandes fluxos migratórios e até mesmo conflitos

entre Estados seriam determinados pelas mudanças climáticas ou degradações ambientais.

Embora seja possível verificar discussões sobre questões ambientais na Conferência

de Estocolmo (1992), no Relatório Brundlandt (1987) e na Conferência das Nações Unidas

sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), pode-se considerar que em 2004 a

temática ambiental ganhou nova ênfase na pauta e no debate sobre os problemas de

segurança. Neste ano, a partir da demanda do então Secretário-Geral da Organização das

Nações Unidas, Kofi Annan, foi criado o painel chamado “High-level Panel on Threats,

Challenges and Change”, com a tarefa de apresentar medidas objetivas que possibilitassem

ações coletivas de promoção da paz e da segurança em nível global no século XXI. Os

estudos deste Painel resultaram, no final de 2004, no relatório “A more secure world: Our

shared responsibility”3, o qual procura demonstrar as diferentes inquietações e percalços

3 Cf. Relatório “A more secure world: Our shared responsibility”. Disponível em: <http://www.un.org/secureworld/>. Acesso em:

23/04/2013.

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atuais e futuros para o exercício da governança global. Neste estudo, destaca-se que o

conceito de segurança para o novo milênio deve considerar que as novas ameaças

desconhecem as fronteiras nacionais e são interligadas, exigindo, portanto, ações

preventivas e articuladas em nível global. Além disso, qualquer acontecimento que resulte

na morte em larga escala ou na diminuição da oportunidade de vida das populações

mundiais deve ser identificado como empecilho para a paz mundial.

Além dos terrorismos, dos genocídios, dos tráficos transnacionais e da proliferação

de armas de destruição em massa, quando se fala em segurança internacional também

devem ser consideradas as ameaças provenientes de questões climáticas e ambientais, tais

como enchentes provocadas pela alteração do ciclo de chuvas; aumento da temperatura e a

consequente elevação dos níveis dos oceanos; desmatamentos e desertificações; utilização

de energias poluidoras e não renováveis, etc. Tais problemas podem gerar consequências

graves, como a intensificação de fluxos migratórios, a escassez de água potável, o

alastramento de doenças infectocontagiosas, a diminuição acentuada da produção de

alimentos, etc, fazendo com que as questões ambientais e climáticas encontrem-se dentre

os seis grupos principais de ameaças que devem ser dirimidas nas próximas décadas.

Diante deste cenário, o Painel recomenda que o Conselho Econômico e Social

(ECOSOC) participe e contribua de maneira ativa para a segurança e governança globais.

Além disso, propõe que o Conselho de Segurança tenha maior participação nesse processo,

deixando de focar sua atuação em questões de conflito militar entre Estados ou nas

ameaças “tradicionais” (Soares, 2005), e que haja maior cooperação entre os órgãos da

ONU mais vinculados à promoção da paz e segurança, sobretudo os supracitados.

Em consonância com esse processo, em 2007 o Conselho de Segurança discutiu

pela primeira vez um tema associado às questões ambientais e climáticas, quando foi

proposto que este órgão debatesse sobre segurança energética e climática. Segundo

Margaret Beckett, Ministra das Relações Exteriores do Reino Unido (que presidia o

Conselho naquele período), o Conselho de Segurança deveria estar atento para os perigos

que as alterações climáticas e as questões energéticas podem provocar para a segurança

global. Tais problemas envolvem: a escassez de acesso à energia, alimentos e água

potável; a incitação a movimentos sociais e migratórios; as disputas intrafronteiriças e

transfronteiriças por territórios. Assim, para Margaret Beckett, as mudanças climáticas e

suas implicações econômico-sociais devem habitar o coração da agenda de segurança

global.4 Durante a mesma sessão do Conselho, o então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-

4 Security Council holds first-ever debate on impact of climate change (Informe do Conselho de Segurança – CS/9000).

Disponível em: <http://www.un.org/News/Press/docs/2007/sc9000.doc.htm>. Acesso em: 11/04/2013.

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moon, afirmou que as alterações climáticas não geram apenas problemas ambientais, mas

também graves implicações socioeconômicas que afetam diretamente a segurança.

Defendendo perspectivas diversas, outros países presentes na reunião, dentre eles a

China, o Paquistão e a África do Sul, sustentam que o Conselho de Segurança não é o

fórum adequado para discussão de temas relacionados ao meio ambiente. Embora

reconheçam que as questões climáticas e ambientais produzem impactos na segurança

global, tais países preferem que as ações de prevenção e solução desses problemas se

restrinjam ao ECOSOC e seus órgãos subsidiários. O Brasil, representado pelo embaixador

Piragibe dos Santos Tarragô, destacou a importância da reflexão do tema como demanda

de segurança. Entretanto, demonstrou que deve haver certo cuidado no estabelecimento de

vínculos entre conflitos e a utilização de recursos naturais ou a questão do clima. O

embaixador brasileiro também expressou preocupação com a inclusão deste tema na

agenda do Conselho de Segurança, por se tratar de um órgão menos democrático na ONU,

o que poderia deixar os países em desigualdade nas tomadas de decisões sobre as

tratativas ambientais. Dessa forma, a Assembleia Geral seria o espaço mais adequado para

tal debate, por ser um fórum de representação mais ampla e igualitária.

Por outro lado, algumas delegações que exercem forte influência no sistema da ONU

apoiaram o posicionamento da ministra britânica, tal como a missão francesa e a

representação da União Europeia, as quais reafirmaram o vínculo entre mudanças

climáticas, instabilidade e vulnerabilidade de grandes populações, emergências

humanitárias e o surgimento de conflitos. Neste ponto, é possível destacar que os europeus

foram pioneiros na incorporação das questões climáticas como um problema de segurança.

Em 2003, a Comissão Europeia publicou o documento Estratégia Europeia de Segurança

(EES), no qual questões como o terrorismo, o tráfico transnacional, as pressões migratórias,

o aquecimento global e os desastres naturais justificariam práticas contínuas de segurança.

A busca por recursos escassos tende a gerar inúmeros conflitos em regiões turbulentas,

como na África e Oriente Médio, onde estão fontes de gás natural e petróleo utilizadas pelos

europeus. Além disso, tais conflitos produziriam pressões migratórias nos países europeus.

A solução para as levas de imigrantes rumo à União Europeia combina a ajuda

humanitária para populações em regiões sensíveis com mecanismos de monitoramento das

fronteiras (com sistemas eletrônicos apoiados por câmeras e bancos de dados integrados -

vide criação, em 2004, da Agência Europeia para o Gerenciamento da Cooperação

Operacional nas Fronteiras Externas – FRONTEX). Tais ações estão apoiadas nos

princípios de “mitigação” e “prevenção”, sugeridos no documento “Combating climate

change: the EU leads the way”, lançado pela Comissão Europeia em 2007. Programas que

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mitiguem o desenvolvimento de conflitos alimentados por questões climáticas em regiões

pobres (fontes de energia e imigrantes) consequentemente previnem problemas de

fornecimento de energia, dificuldades geoestratégicas e crises humanitárias (e seus

refugiados). Portanto, a partir dos processos de securitizações e do apelo ao humanitarismo,

cria-se uma articulação entre segurança humana, segurança climática e segurança

energética na União Europeia (Rodrigues, 2012: 26).

Do ponto de vista acadêmico, há autores das Relações Internacionais que perdebem

as questões ambientais e climáticas como um vetor a mais das preocupações com a paz e a

segurança globais. Pode-se destacar a atuação de Joseph Nye (2009; 2012), teórico de

vertente liberal das Relações Internacionais que criticou tanto a recusa do governo de

George W. Bush em assinar o Protocolo de Kyoto como a guinada unilateralista na política

dos EUA após os ataques de 11/09. Para o autor, a construção da segurança global apenas

será efetiva se estiver atenta às novas ameaças, como os problemas ambientais. Seguindo

outra corrente teórica, Barry Buzan (conforme explicitado anteriormente) propõe o

alargamento do conceito de segurança e, neste sentido, defende que não se pode

desconsiderar que os problemas ambientais são também questões políticas e geram

situações de vulnerabilidade securitária. No Brasil, Marco Cepik (2001) sugere que as

consequências advindas das mudanças climáticas podem ter impactos diretos ou indiretos

na dinâmica dos conflitos internacionais, afetando as condições da humanidade, fazendo

com que o autor proponha o vínculo entre questões ambientais e segurança humana.

Diante do cenário apresentado, é possível afirmar que as questões climáticas e

ambientais habitam crescentemente as práticas, discursos e pesquisas sobre segurança

internacional e governança global. Desta forma, no próximo tópico pretende-se verificar

como a variável ambiental se apresenta como um elemento essencial nas ações de

promoção da paz e segurança globais, mesmo que por meio de ações ainda embrionárias.

Segurança ambiental, meio ambiente e reconstrução de Estados

As operações de paz não são uma novidade do mundo pós-Guerra Fria. O Brasil, por

exemplo, participa dessas operações desde 1947, quando enviou observadores militares

aos Bálcãs. Contudo, a mudança de paradigma sobre a segurança internacional forneceu

novos enfoques para os programas de promoção, manutenção e construção da paz como

instrumentos das ações securitárias em nível global. Em consonância com esse processo,

ganha crescente força o princípio da Responsabilidade de Proteger (R2P), o qual é

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composto por três categorias básicas: prevenir, reagir e reconstruir.5 Em meio a esta

dinâmica, crescem as ações de construção ou reconstrução de Estados classificados como

fracos, falidos ou débeis, vistos como ameaças à segurança global:

Dentro do sistema da ONU, e mais especificamente no Conselho de Segurança,

duas ‘normas’6 novas e bastante relacionadas surgiram desde o fim da Guerra Fria;

a primeira trata da preferência crescente pelas operações de paz segundo o

Capítulo VII (Haiti, Costa do Marfim e Líbia são exemplos recentes, assim como a

missão AU-ONU ‘híbrida’ em Darfur), sendo a segunda a doutrina da

‘Responsabilidade de Proteger’ (R2P), a qual contraria a norma tradicional de não

intervenção nos assuntos internos dos países. (Schoeman, 2012: 91).

É a partir deste quadro e de diversas recomendações (como aquelas apontadas

pelo Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças) que a preocupação com o

meio ambiente torna-se mais evidente nos programas de pacificação de regiões instáveis.

Verifica-se o entendimento nas atividades das missões de peacebuilding e peacekeeping

operacionalizadas pela ONU de que a questão ambiental é um elemento cada vez mais

necessário no processo de reconstrução de Estados. Este posicionamento é apresentado

pelos comitês que gerenciam missões em andamento e pela própria Peacebuilding

Commission, órgão da ONU responsável por apoiar a reconstrução de países em situação

pós-conflito. Em um dos grupos de trabalho da Comissão, Dr. Richard Matthew aponta que:

(...) a segurança não pode ser tratada de forma isolada, havendo a necessidade de

se levar em conta os fatores econômicos e ambientais que contribuem para o

conflito. (...) Há um crescente corpo de conhecimento sobre o vínculo das questões

ambientais com os conflitos. A interdependência entre esses fatores é evidenciada

pela recente violência em vários países afetados pela escassez de alimentos. Este

conhecimento precisa ser convertido em ferramentas práticas para a aplicação de

políticas mais eficazes. Fatores ambientais e recursos naturais podem contribuir

para o conflito de diversas maneiras (...). Eles podem exacerbar os conflitos em

curso e dificultar a resolução dos mesmos. (...) Entretanto, a instrumentalização dos

fatores ambientais e dos recursos naturais tem o potencial de possibilitar a

construção da paz.7

5

Cf. CUNHA, Mayara; STERNBERG, Sami; SOARES, Thaís; SANTOS, Victória. Responsabilidade de proteger: Avanços e desafios na implementação de um novo princípio para a proteção de indivíduos. Disponível em: <http://sinus.org.br/2012/wp-content/uploads/06-AGNU.pdf>. Acesso em: 26/04/2013. 6 Talvez estes não externem o significado pleno de ‘normas’ (ainda), porém ambos se tornam mais e mais influentes na forma

de operar do Conselho (nota do original). 7 Peacebuilding Commission - Working Group on Lessons Learned - From Conflict to Peacebuilding: The Role of Natural

Resources and Environment. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacebuilding/pdf/doc_wgll/environment_conflict/ wgll_chair_summary_08_05_2008.pdf>. Acesso em: 17/02/2013.

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Aos elementos mais tradicionais (normalmente associados a questões militares), que

compõem as ações em territórios sob conflito, são agregadas atividades que demonstram o

vínculo entre questões ambientais e a desestabilização de países, falta de legitimidade de

governos, migrações forçadas e dificuldades socioeconômicas. Ainda segundo o grupo de

trabalho da Peacebuilding Commission, se os recursos naturais não são tratados de forma

adequada, podem retardar o crescimento econômico e o desenvolvimento social, contribuir

para a ineficácia das operações de estabilização e levar a uma recaída da violência.

Da mesma forma, o Departamento da ONU para Operações de Paz (Department of

Peacekeeping Operations) reconhece que o meio ambiente, os recursos naturais e os

impactos das mudanças climáticas podem ser causadores de conflito. Nesse sentido, o

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sugere que nos últimos 60

anos, pelo menos quarenta por cento de todos os conflitos intraestatais têm ligação direta

com recursos naturais, e que esse vínculo dobra o risco de uma recaída ou retorno do

conflito nos primeiros cinco anos. Ainda segundo o PNUD, desde a década de 1990, ao

menos 18 conflitos violentos foram motivados pela exploração dos recursos naturais, como

madeira, diamante, ouro, minerais, petróleo, terra fértil e água.8

As recentes missões para estabilização e reconstrução de regiões conflituosas

devem alinhar suas ações com modelos de sustentabilidade ambiental, evitando a

recorrência da instabilidade social e econômica causadas pelo uso indevido de recursos

naturais ou pela degradação do meio ambiente. É possível verificar alguns desses

mecanismos na MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), a

qual desenvolve suas atividades de pacificação não apenas por meio da atuação militar,

mas também possibilita a implementação de projetos de saúde pública, de renovação

energética e de assistência sanitária e alimentar para a população haitiana, com base na

ideia de vincular a missão de pacificação à sustentabilidade ambiental.

Projetos de cooperação na área ambiental a partir da MINUSTAH

A MINUSTAH foi estabelecida em 01 de junho de 2004, pela Resolução 1542 do

Conselho de Segurança. Esta missão sucedeu uma Força Interina Multinacional, também

autorizada pelo Conselho de Segurança, após uma série de conflitos armados por todo o

país e a consequente saída para o exílio do ex-presidente Jean-Bertrand Aristides. Por

8 United Nations Peacekeeping - Conflict and resources. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/issues/

environment/resources.shtml>. Acesso em: 25/02/2013.

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conta da devastação causada pelo terremoto que atingiu o país em 12 de janeiro de 2010,

que resultou em 220 mil mortos (segundo o governo haitiano), o Conselho de Segurança

endossou a recomendação do Secretário-Geral da ONU e, por meio da Resolução 1908,

ampliou a capacidade de atuação da missão no sentido de estabilizar e reconstruir o Haiti.

Desde o início do seu mandato, a MINUSTAH implementou diversas ações que

propunham a concretização de uma paz mais sustentável, muito além de ações estritamente

militares, especialmente após o forte terremoto de 2010. Tal dinâmica pode ser identificada

nos discursos e ações do Exército brasileiro, pois para esta instituição o foco da atuação

brasileira na MINUSTAH “desloca-se, além da segurança, para obras de engenharia,

saneamento básico, assistência médica e atividades de cunho social”.9 Além disso, a

presença da MINUSTAH também potencializou projetos de cooperação implementados fora

do seu âmbito, por países e organizações que faziam ou não parte da missão.

Segundo Valler Filho (2007: 178-180), ao mesmo tempo em que eram

implementados os esforços político-militares iniciais para a estabilização, as Nações Unidas,

a Comissão Europeia, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento

anunciaram o financiamento de projetos considerados imprescindíveis para o processo

inicial de reconstrução. A partir de uma reunião em Nova York, em março de 2004, entre o

governo interino e os países doadores, foi elaborado o Quadro de Cooperação Interina

(Interim Cooperation Framework – ICF). Este documento pretendia ser o início de uma ajuda

internacional mais organizada rumo à superação da crise e do subdesenvolvimento no país.

Dois meses depois, reuniam-se em Porto Príncipe cerca de 250 consultores

(especialistas e técnicos internacionais e locais) – além de partidos políticos, da iniciativa

privada e de setores da sociedade civil – para realizarem o detalhamento e a elaboração

final do ICF. Dentre os subtópicos do documento, constavam itens relacionados ao meio

ambiente, como agricultura, proteção ambiental, água e saneamento, e manejo de resíduos

sólidos. A partir desta iniciativa, tanto a MINUSTAH quanto diversos países ou instituições

(que faziam ou não parte da missão) procuraram apresentar projetos de cooperação que

propiciassem a reconstrução da sociedade haitiana. Contudo, representantes da sociedade

civil haitiana afirmaram que o ICF se limitou à privatização de empresas estatais, sem

grandes intervenções na estrutura do Estado haitiano. Além do IFC, diversos outros

documentos, inclusive no âmbito das Conferências de Doadores, foram produzidos no intuito

de avaliarem as necessidades principais no processo de reconstrução do Haiti.

9 Exército Brasileiro. Missão no Haiti. Disponível em: <http://www.exercito.gov.br/web/imprensa/resenha>. Acesso em:

20/05/2012.

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Procurando focar nas ações desenvolvidas desde o início da missão, é possível

destacar os projetos voltados para o desenvolvimento ambiental e a recuperação de áreas

degradadas. Como exemplo, pode-se mencionar o projeto Transferência de Tecnologias em

Sistema de Produção e Processamento de Caju (desenvolvido por meio da Agência

Brasileira de Cooperação e da Embrapa), visto que os benefícios dessa cooperação não se

restringiriam à produção agrícola propriamente dita, pois o método de plantio do cajueiro

(com as árvores muito próximas umas das outras) possibilitaria uma cobertura do solo, o

que contribuiria para a conservação da água. Outro projeto desenvolvido pelas mesmas

instituições (ABC e Embrapa) objetivaria o desenvolvimento de um Sistema de Gestão

Territorial Estratégica, o qual disponibilizaria uma base de dados integrada sobre

informações geográficas. Esses dados evitariam os riscos de desertificação ao balizarem

políticas de planejamento ambiental, proteção ou conservação do ecossistema.

A presença da MINUSTAH possibilitou ainda ações em outras frentes que se

coadunam com as ambientais, tais como os projetos voltados para a saúde pública e os

projetos de infraestrutura. Entre os primeiros é preciso destacar os relacionados ao

tratamento da água, esgoto e lixo. Tais ações diminuiriam a vulnerabilidade da população

frente às inundações (ou outros desastres naturais), evitando a propagação de doenças, por

exemplo. Em relação aos últimos, o acento recai sobre a implementação de projetos de

iluminação de vias públicas através de luz solar (questão fundamental para o meio ambiente

local, pois a principal fonte de energia do país é o carvão, recurso não renovável e que

propicia uma grande devastação florestal)10.

Além dos programas desenvolvidos no âmbito da MINUSTAH ou dos projetos

bilaterais possibilitados pela presença da missão, existem ações de cooperação firmadas

diretamente com o governo haitiano no âmbito trilateral ou multilateral. Pode-se citar a

cooperação Triangular (com a participação do Brasil e da Espanha) para o Desenvolvimento

Florestal e Recuperação de Áreas Degradadas no Haiti, a qual se apresenta como

alternativa para a recomposição de áreas degradadas mediante a oferta de produtos

florestais e a elaboração de estudos para o fortalecimento de políticas públicas, além da

capacitação de técnicos e produtores rurais na área ambiental.11

Também é possível citar a atuação do Fundo IBAS, criado pelos países que

compõem o Fórum de Diálogo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul). O principal objetivo do

Fundo é financiar projetos autossustentáveis e replicáveis, voltados, normalmente, para

10

Sud-Est : Reprise de la vie nocturne à Sable Cabaret, désormais alimenté en énergie solaire - MINUSTAH. Disponível em: <http://minustah.org/?p=35943>. Acesso 10/06/2012. 11

Agência Brasileira de Cooperação. Haiti: Cooperação para Reconstrução e Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.abc.gov.br/intranet/Sistemas_ABC/siteabc/documentos/ViaABC12.pdf>. Acesso em: 13/04/2013.

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alívio da fome e da pobreza em países de Menor Desenvolvimento Relativo (MDRs) ou em

situação de pós-conflito. No caso da atuação deste Fundo no Haiti, há o projeto Coleta de

Resíduos Sólidos: uma ferramenta para reduzir a violência e conflitos em Carrefour-Feuilles,

uma das três iniciativas recomendadas ao Fundo das Nações Unidas para Peacebuilding

por uma missão conjunta de organismos internacionais que visitou o Haiti12.

Por fim, devem-se ressaltar os esforços de instituições da sociedade civil no território

haitiano. Neste cenário, a atuação da ONG brasileira Viva Rio pode servir como exemplo,

visto que seu trabalho foi iniciado no Haiti ainda em 2004, a convite da ONU. Dentre os

projetos desenvolvidos por esta ONG que possuem vinculo com o meio ambiente, pode-se

destacar a campanha Fatra pa Gen pye (Lixo não tem pé, em créole), que envolve ações

de limpeza e saneamento no bairro de Bel Air, em Porto Príncipe. Ainda sobre saneamento

básico, a Viva Rio propôs o biodigestor para o tratamento do esgoto haitiano – ligado a

banheiros públicos, reduz em até 70% o lodo e decompõe 85% das bactérias do esgoto,

sem o uso de produtos químicos. Há ainda projetos contra o desperdício de recursos

naturais, pela promoção do ecoturismo e de reflorestamento. Assim, as ações desenvolvidas

pela Viva Rio são um exemplo de como as organizações da sociedade civil atuantes no Haiti

potencializaram projetos que interferem na questão ambiental.

Como contraponto às colaborações de ONGs e às análises que percebem essas

atuações como benéficas, há os que pensam (como o General Santos Cruz, ex-comandante

da Força Militar da MINUSTAH) que as ONGs podem atrapalhar o desenvolvimento do país,

pois há uma grande quantidade dessas instituições atuando naquele país sem que haja uma

coordenação entre elas, resultando em ações repetidas ou conflituosas (Santos Cruz, 2010).

Desta forma, procurou-se identificar como a temática do meio ambiente tem sido

basilar nas ações de reconstrução pós-conflito, demonstrando o vínculo entre ameaças

internacionais e problemas ambientais e climáticos. Tais ameaças podem produzir, dentre

outras consequências, um movimento de pessoas atravessando fronteiras. Como exemplo,

é possível verificar tal dinâmica por meio dos fluxos de refugiados haitianos para o Brasil.

Os fluxos de refugiados e segurança ambiental

O conceito de intervenção humanitária, ampliado no decorrer dos anos de 1990,

apresenta um vínculo entre ameaças aos direitos humanos e/ou crises humanitárias e a

segurança internacional. Apesar de o Capítulo IX, artigo 60, da Carta da ONU, afirmar que o

12

Fundo IBAS. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/temas-mais-informacoes/saiba-mais-ibas/fundo-ibas/view>. Acesso em: 20/06/2012.

Page 15: A segurança ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano

tratamento de questões humanitárias deve ser assumido pela Assembleia Geral, tal temática

tem ganhado espaço no Conselho de Segurança. Na medida em que surgem situações

entendidas pelas grandes potências como ameaças ao fluxo de bens e pessoas em escala

internacional, e não mais apenas à integridade territorial de um Estado específico, as

temáticas são avocadas para o Conselho, sendo consideradas como objeto do sistema de

segurança coletiva. Assim, as dificuldades geradas pela ampla movimentação de refugiados

foram um argumento basilar para que crises humanitárias fossem tratadas como questões

de segurança e, dessa forma, passíveis de serem absorvidas pelo Conselho.

Como apontam Herz e Hoffman (2004), apenas quando as tensões econômicas,

políticas e sociais do início dos anos 1990 no Haiti geraram a migração de refugiados em

direção ao Estado da Flórida, nos EUA, em meados de 1994, é que este país passou a

encarar a estabilização política do Haiti como um objetivo imprescindível da política externa

estadunidense. Outro vínculo entre segurança internacional e refugiados pode ser

encontrado no conflito no Darfur (Sudão). Para Welzer (2010), este pode ser uma das

primeiras guerras climáticas, visto que os confrontos não foram causados exclusivamente

por questões políticas, étnicas ou religiosas, mas também pelo processo de desertificação,

que diminuiu as terras aráveis, causando a disputa por áreas férteis. Tal conflito gerou

grandes movimentos de refugiados, causando problemas nos países vizinhos (como o

Chade) e gerando a preocupação da União Europeia por conta desse fluxo migratório.

Na Conferência Rio+20 (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento

Sustentável), realizada em junho de 2012, António Guterres, Alto Comissário da ONU para

Refugiados, apresentou os resultados de uma pesquisa realizada em 2011, que avaliou os

impactos das mudanças climáticas sobre refugiados, com base em entrevistas com 150

migrantes somalis e sudaneses. Para Guterres, o estudo evidenciava que “as alterações

climáticas têm influência muito importante na mobilidade humana e está criando situações

em que cada vez mais pessoas são obrigadas a abandonar suas terras, comunidades e, por

vezes, países".13 Os entrevistados não consideraram que a situação conflituosa em seus

países adveio das mudanças climáticas, mas afirmaram que as secas e a escassez de

recursos propiciaram o agravamento da situação política e o seu impacto humanitário,

fazendo com que o deslocamento fosse forçado, portanto, não voluntário. A partir dos

resultados obtidos, Guterres afirmou que a comunidade global precisa se preparar para lidar

com refugiados provenientes de desastres naturais.

13

Mudanças climáticas agravam situação de refugiados, diz comissário da ONU. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/ portuguese/noticias/2012/06/120622_refugiados_clima_jc.shtml>. Acesso em: 22 jun. 2012.

Page 16: A segurança ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano

É nesse sentido que, a partir da ampliação do conceito de segurança e da temática

de segurança ambiental, além do constante vinculo entre desastres ambientais e refugiados,

considera-se essencial abordar a temática dos migrantes ambientais haitianos e o fluxo de

entrada no Brasil no início do ano de 2012.

O fluxo de entrada de haitianos no Brasil

Em abril de 2010, o então Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores

Antônio de Aguiar Patriota já chamava a atenção para a situação dos deslocados internos,

ao analisar os efeitos do terremoto de 12 de janeiro de 2010 que devastou o Haiti, deixando

aproximadamente 15% (1,5 milhão de pessoas) de toda a população do país desabrigada

ou morta. Diante do montante de sobreviventes, abrigados precariamente em campos

situados em áreas inundáveis, extremamente vulneráveis às temporadas de chuvas e

furacões (a exemplo dos mortos e desabrigados em decorrência das chuvas no final de abril

de 2012)14, Patriota clamava por uma resposta humanitária à altura das necessidades

básicas daquela população.15

Aproximadamente dois anos após o devastador terremoto e uma intensa epidemia

de cólera, os meios de comunicação alardeavam a entrada maciça de haitianos no Brasil,

sobretudo pelos estados do Acre e Amazonas. A questão dos migrantes, que se

apresentava para o Brasil talvez como um problema distante, surgiu, no início de 2012,

como um tema que exigia respostas rápidas. Em fevereiro de 2012, a Presidenta Dilma

Rousseff visitou aquele país e conversou com o presidente haitiano, Michel Martelly, sobre

questões relacionadas ao desenvolvimento econômico e ao processo de reconstrução do

Haiti, com destaque para a diminuição do contingente militar brasileiro naquele país e as

medidas tomadas pelo Brasil em relação aos imigrantes haitianos que chegavam ao País.

A principal dessas medidas partiu do Conselho Nacional de Imigração, órgão ligado

ao Ministério do Trabalho, que, em janeiro de 2012, aprovou a concessão de 1,2 mil vistos

por ano para haitianos que almejavam migrar para o Brasil. Este documento (além dos

vistos normais concedidos aos haitianos, como de trabalho, de estudo e de turismo) é válido

por cinco anos, fornecendo ao estrangeiro o direito de trabalhar e trazer a família para o

País pelo mesmo período.16 Contudo, no final de abril de 2013, a Resolução Normativa

14

Chuvas deixam centenas de desabrigados no Haiti – Revista Exame. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/ meio-ambiente-e-energia/noticias/chuvas-deixam-centenas-de-desabrigados-no-haiti>. Acesso em: 08/05/2012. 15

Cf.: PATRIOTA, Antonio de Aguiar. Haiti: Desafios e Oportunidades no pós-terremoto. Boletim de Economia e Política Internacional. IPEA, Número 2, Abr-Jun 2010. 16

Conselho de Imigração aprova 1,2 mil vistos por ano para haitianos – Portal G1. Disponível em: <http://g1.globo.com /politica/noticia/2012/01/conselho-de-imigracao-aprova-1200-vistos-por-ano-para-haitianos.html>. Acesso em: 20/05/2012.

Page 17: A segurança ambiental a partir das missões de paz: o caso haitiano

102/2013 do próprio Conselho revogou tanto o limite para a concessão desses vistos como

a exclusividade da Embaixada em Porto Príncipe em concedê-los. Segundo a organização

internacional não-governamental Conectas, há cerca de 1,5 milhão de migrantes regulares e

a estimativa de 200 mil migrantes não-documentados vivendo em território brasileiro.17

O grande fluxo de haitianos entrando pelo Acre fez com que, no início de abril de

2013, o então governador do estado, Tião Viana, decretasse situação de emergência social

nos municípios de Epitaciolândia e Brasiléia. Apesar da fiscalização pela polícia federal ter

sido reforçada nessa região – visando enfraquecer rotas ilícitas de imigração e combater a

ação dos chamados “coiotes” – o número de haitianos que busca o Brasil permanece

crescente. Diante deste cenário, dias depois Antônio Patriota afirmou que o governo

brasileiro estudava formas de controlar a entrada ilegal de haitianos no Brasil, pois, segundo

ele, “é preciso evitar aumentos repentinos do fluxo migratório e combater a ação dos

coiotes, pagos para viabilizar a entrada no país de imigrantes ilegais”.18

Se o discurso brasileiro mostra uma grande disposição em receber os haitianos, a

quantidade desses imigrantes que entraram no país passou a preocupar as autoridades.

Apesar dos esforços implementados pelo Estado e pela sociedade civil, deve-se ressaltar

que há entraves da política migratória brasileira. Como exemplo, pode-se citar que mesmo

que haja a proposta para uma Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador

Migrante – construída a partir da colaboração de diversos atores, inclusive da sociedade

civil, e aprovada em maio de 2010, pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) – também

existe uma equipe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que

estaria elaborando uma Política Nacional de Imigração que possibilitasse um processo de

imigração seletiva, valorizando a chamada “drenagem de cérebros”, e estabelecendo limites

para estrangeiros que fogem de seus países por conta de situações de pobreza.

Por fim, é preciso destacar que em princípios de 2012, o Comitê Nacional para os

Refugiados (CONARE), afirmou que os haitianos não deveriam ser considerados como

refugiados, uma vez que não se enquadrariam na definição brasileira, baseada na

Convenção de Genebra (1951) e na Declaração de Cartagena (1984), ambas sintetizadas

na Lei nº 9.474/97. No final de 2011, durante as comemorações dos 60 anos da Convenção

de Genebra, um grupo de cinco países (México, Costa Rica, Noruega, Suíça e Alemanha)

propôs soluções à comunidade internacional para preencher a lacuna criada pelo fato de

que a Convenção de 1951 define como refugiado apenas os indivíduos que são forçados a

17

Conectas. Brasil põe fim à cota de 1200 vistos anuais a haitianos. Disponível em: <http://www.conectas.org/politica-externa/brasil-poe-fim-a-cota-de-1200-vistos-anuais-a-haitianos>. Acesso em: 12/05/2013. 18

Brasil estuda como conter a entrada ilegal de haitianos. Disponível em: <http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/04/brasil-estuda-como-conter-entrada-ilegal-de-haitianos-diz-patriota.html>. Acesso em: 12/05/2013.

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migrar por conflitos ou perseguição, ou seja, atualmente os “refugiados ambientais”19 não

são beneficiados com os mecanismos de proteção oferecidos pela Convenção de Genebra.

Dessa forma, questões ambientais não servem para caracterizar um refugiado20, fazendo

com que os haitianos sejam tratados no Brasil como imigrantes sob caráter humanitário.

Considerações Finais

A partir das reflexões iniciais obtidas neste artigo, é possível verificar não apenas a

ampliação do conceito de segurança internacional, como também a crescente inclusão das

questões climáticas e ambientais no rol de novas ameaças à governança global. Contudo, é

preciso atentar para o fato de que não há consenso na comunidade internacional sobre o

tratamento a ser dado a esses problemas. Enquanto representantes dos EUA e União

Europeia solicitam a inclusão do tema no Conselho de Segurança, países como China,

África do Sul e Brasil entendem que tais questões estão mais relacionadas ao

desenvolvimento (devendo ser vinculadas ao ECOSOC).

Por meio da atuação da MINUSTAH foi possível apresentar um exemplo de como as

missões de paz contemporâneas assumem mandatos ampliados em prol da transformação

pós-conflito. Por meio de projetos para o tratamento do lixo, programas de reflorestamento,

ações de saúde pública, obras de saneamento básico, entre outros, os diversos atores que

atuam no Haiti, sejam vinculados ou não à MINUSTAH, pretendem contribuir com a

governança ambiental pós-conflito.

Em meio às análises que consideram a presença internacional no Haiti uma ação

humanitária e aquelas que a veem como um processo intervencionista, surge a pressão

migratória dos chamados “refugiados ambientais’’, a qual ativa tanto discursos humanistas

de receptividade como aqueles baseados em propostas de imigração seletiva. A

preocupação crescente com a temática dos refugiados ambientais demonstra a vinculação

entre as questões ambientais e climáticas e a segurança internacional. Desta forma, tais

considerações prévias pretendem demonstrar a necessidade de ampliação das pesquisas

que vinculam segurança ambiental, governança global e transformação pós-conflito.

Referências bibliográficas:

19

A expressão “refugiados ambientais” define indivíduos que, em decorrência de mudanças e catástrofes ambientais foram forçados a deixar seu local de origem. Ela foi cunhada por Lester Brown na década de 1970. No entanto, só foi popularizada após a publicação, em 1985, da pesquisa de Essam El-Hinnawi, acadêmico do Egyptian National Research Center. 20

Segundo a definição clássica, refugiado é aquela pessoa que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e, em virtude de perseguição ou fundado temor de perseguição baseada em sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertencimento a certo grupo social não podem retornar ao seu país de origem.

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