unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CLAUDEMIR CARLOS PEREIRA A REVOLUÇÃO MODERNISTA DE MÁRIO DE ANDRADE E SEU PROJETO POLÍTICO DE CULTURA POPULAR BRASILEIRA. 1
unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e LetrasCampus de Araraquara - SP
CLAUDEMIR CARLOS PEREIRA
A REVOLUÇÃO MODERNISTA DE MÁRIO DE ANDRADE E SEUPROJETO POLÍTICO DE CULTURA POPULAR BRASILEIRA.
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ARARAQUARA – SP2015
CLAUDEMIR CARLOS PEREIRA
A REVOLUÇÃO MODERNISTA DE MÁRIO DE ANDRADE E SEUPROJETO POLÍTICO DE CULTURA POPULAR BRASILEIRA.
Relatório Apresentado para aDisciplina Optativa – APF6692N –Política e Cultura – do Curso deCiências Sociais, ministrada peloProf. Dr. Milton Lahuerta.
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ARARAQUARA – SP
2015
RESUMO
Este trabalho foi elaborado de acordo com as leituras de textossugeridos e pelas aulas assistidas do programa da disciplinaoptativa de Política e Cultura, que visa discorrer a respeito dopapel e a relação do autor Mário de Andrade com a cultura políticabrasileira. O objetivo deste trabalho é refletir acerca dos nexoshistóricos para o entendimento da construção de uma culturaautêntica popular brasileira e do papel primordial deste intelectualbrasileiro, seguindo reflexões sobre o momento histórico social quese iniciou junto a Semana de Arte Moderna, em 1922 e a contribuiçãosubstancial de Mário de Andrade para a construção de um projeto denação brasileira.
Palavras – chave: Mário de Andrade. Cultura Popular. Modernismo.
ABSTRACT
This work was done elaborate in accordance with the readings of suggestedtexts and the classes attended the elective course's Policy and Culture,which aims to discuss about the role and the author's relationship Andradeto Brazilian political culture. The objective of this work is to reflectabout historical links to understanding the construction of a popularBrazilian authentic culture and the central role of this Brazilianintellectual, following reflections on the social historical moment thatbegan with the Modern Art Week in 1922 and the substantial contribution ofMário de Andrade to build a Brazilian nation project.
Keywords: Mário de Andrade. Popular Culture. Modernism.
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INTRODUÇÃO
O trabalho visa fazer um resgate da contribuição de Mário
de Andrade na sua ideia de construir um Brasil de fato, um
Brasil popular autêntico, em suas palavras “Conhecer um Brasil
profundo” e a história tem sido muito mediana com este gigante
das artes, das letras e da cultura. O Brasil de hoje é um país
especialmente contraditório quando dá as costas para os nexos
históricos e esquece em sua memória daqueles que mais o
defenderam e lutaram para construir uma identidade de povo
autenticamente brasileiro. Mário de Andrade fez muito pelo
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Brasil, mas foram necessárias sete décadas de sua ausência
para que começássemos a fazer jus à sua suculenta “obra
artística” e ao seu “valioso legado” de gestor cultural.
Este trabalho tem o objetivo de jogar um pouco de luz
sobre sua marca modernista e também sobre sua trajetória
pessoal. Mário de Andrade nasceu e viveu em São Paulo, na
Barra Funda, e amou sua cidade profundamente. Nela, entre as
paredes do tradicional Teatro Municipal, apresentou ideias que
fizeram rachar as estruturas mais sólidas do conservadorismo
paulistano e brasileiro, quando lá instalou a Semana de 22,
com uma série de apresentações artísticas e debates que
plantaram o Movimento Modernismo na mente do país.
O intuito deste trabalho é fazer um resgate deste gigante
e, através da análise do Macunaíma, de seus projetos, como o
Departamento de Cultura, de sua crítica literária, de seu
interesse pela cultura popular, pela arte em geral, de sua
expressão intelectual, enfim, sobre os vários “Mários”, que
deram uma contribuição considerável para o desenvolvimento de
seu projeto de Política e Cultura na construção da nação
brasileira.
Não à toa, ele é considerado o “papa do modernismo”, além
de ser uma das cabeças do evento, leu suas poesias
modernistas, “contra tomates e ovos” que foram atirados pelos
atônitos em sua cabeça, e defendeu sua ideia de que o país
tinha que ingressar no “concerto das nações cultas”, sob uma
perspectiva universalista que era gritante naquela época.
O autor de Macunaíma, em seus primeiros estudos sobre a
cultura popular privilegiou autores que pudessem unir a
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temática da cultura popular, os intelectuais e a construção da
nação. Após um contato intenso com as teorias estéticas das
vanguardas europeias do início do século XX, Mário se volta
para o estudo de etnógrafos europeus, privilegiando os autores
alemães. Através da leitura do filósofo alemão Herman
Keyserling1, Mário de Andrade toma contato com a teoria
herderiana sobre o folclore e a constituição da cultura
nacional alemã.
A principal ideia de Herder2, que estava presente no
pensamento brasileiro desde o século XIX, com Silvio Romero, é
“a possibilidade de formação de uma cultura autêntica que
teria suas bases no universo popular”. A postura antielitista
e a grande dose de humanismo foram os fatores que mais
despertaram Mário de Andrade para a compreensão não somente do
romantismo alemão, mas também dos autores brasileiros
romancistas - José de Alencar e Álvares de Azevedo.
Nos anos 30, um período conturbado politicamente no país,
sua grande preocupação foi definir a vocação social da arte.
“Isso se concretiza quando ele é convidado para ser diretor do
Departamento de Cultura de São Paulo. Lá, ele fez um trabalho
1 Mário de Andrade chegou a dizer que a obra de Keyserling era a chave paraa interpretação de Macunaíma. O tema de sua obra era a decadência ocidentalfrente à pluralidade dos tempos históricos nas civilizações do mundo. Ooriente lento, o progresso europeu e o primitivismo americano formariam umaharmonia mundial das temporalidades.2 Johann Gottfried Von Herder (1744 – 1803) foi um importante filósofonascido na Prússia Oriental. Em seus Fragmentos sobre a literatura alemã moderna,escritos entre 1766 e 1767, já proclamava que o gênio literário de umanação é idêntico ao gênio de sua língua e convida os literatos alemães areencontrarem suas fontes de inspiração nas origens germânicas. É esseapelo à criatividade de uma literatura autenticamente nacional queretomaria e ampliaria em toda sua obra, exercendo grande influência nagênese do Romantismo alemão. Atacou a tirania da estética clássica e daimitação dos antigos.
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ímpar, muito diferente de tudo o que havia na época, com o
intuito de por em contato vários segmentos da sociedade. Era
para ele um projeto de vida e do próprio modernismo”. Sabe-se,
por exemplo, que quando chefiava o Departamento de Cultura,
Mário de Andrade criou um projeto de centros culturais para
crianças e jovens que promovessem a cultura em ambientes de
ampla convivência social.
Era “sesquinhos”, na definição do diretor do SESC-SP,
Danilo Miranda. “Ele chegou a desenhar um espaço, uma planta
de um centro infantil de iniciação à vida, cultura, atividade
física, alimentação – tudo ali, como hoje no vemos no SESC”,
revela. Para Danilo, Mário de Andrade teve uma “presença
luminar” como pessoa e, como modernista, revolucionou a
cultura no país. Fato cultural mais grandioso no Brasil, para
ele, não tem: “A Semana de 22 é a independência do Brasil do
ponto de vista da arte, da cultura, do pensamento”.
Mário de Andrade era um inquieto, artista vasto, íntimo da
música como da literatura, e, sobretudo, um embaixador natural
de Cultura. Uma citação de Alceu Amoroso Lima, tirada do livro
Companheiros de Viagem: “Mário de Andrade tinha o tipo físico
de um índio espadaúdo. Uma boca enorme, cheia de dentes, que
os caricaturistas aproveitavam com razão como foco central de
sua fisionomia. Umas mãos enormes como patas de urso. Uns
ombros muito largos, uns óculos muito espessos, um riso muito
aberto, uma fala muito caipira, mas nada descansada, tudo nele
respirava irradiação, dinamismo, exuberância, alegria de
viver. Estava trabalhado fisicamente para agitador”. E
agitador ele era de fato, preocupado que foi com a arte
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coletiva, a identidade cultural brasileira e a valorização da
cultura popular do país.
A Revolução Modernista do inicio do século XX.
Intelectuais modernistas dos mais diferenciados matizes
políticos conceberam a pesquisa do folclore como fonte de
inspiração do artista culto. Guardadas certas especificidades,
o mesmo se deu com Mário de Andrade, autor preocupado com a
construção de um discurso sobre a identidade cultural
fundamentado numa ideia de brasilidade. Seu modernismo
nacionalista repensou os significados do “popular” e do
“erudito”, sem abandonar os diálogos com as tendências
estéticas europeias.
Os modernistas pretendiam romper com o projeto cultural
dos homens da Belle Époque3 carioca e paulistana. As elites
burguesas e intelectuais das cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo, a partir dos fins do século XIX e, em especial, nas
duas primeiras décadas do XX, imbuídas dos ideais de
“civilização” e de “progresso”, visavam eliminar os vestígios
do “atraso” brasileiro simbolizado pela escravidão (abolida em
1888) e pela economia marcadamente rural da Colônia e do
Império. Para alguns, era imprescindível promover o
3 A expressão francesa Belle Époque significa “bela época”, e representa umperíodo de cultura cosmopolita na história da Europa. A época em que estafase era comum foi marcada por transformações culturais intensas quedemonstravam novas formas de pensar e viver. Considerada uma época de ouro,beleza, inovação e paz entre os países. Paris, com os balés, livrarias,óperas, teatros e diversas expressões de cultura, era considerada o centroprodutor e exportador de cultura mundial. Estes ambientes tornaram-se,nesta época, muito comuns na rotina dos burgueses e apenas eles tinhamacesso ao mundo da arte.
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branqueamento da população, exterminar todos os traços
culturais que lembravam a “barbárie” (danças obscenas, como,
por exemplo, o maxixe e os ritmos frenéticos e dionisíacos dos
cordões carnavalescos) e promover o saneamento mediante a
erradicação de epidemias como a varíola e a febre tifoide.
Essas elites procuravam imitar o modelo civilizatório
tendo como paradigma a cidade de Paris. A reforma urbanística
empreendida por Pereira Passos no Rio de Janeiro, sob o
governo de Rodrigues Alves (1902-1906), foi inspirada em
Haussmann4, prefeito de Paris, durante o III Império.
Em São Paulo, a elite cafeeira, estabelecida nos bairros
de Higienópolis e Cerqueira César, inspirou-se nos modelos
culturais e artísticos da burguesia ilustrada francesa, como o
positivismo de Auguste Comte, firmando a sua identidade
sociocultural e política em salões nas mansões das famílias
Almeida Prado, Penteado, Freitas Valle (Villa Kyrial, em
especial).
A Belle Époque pretendia transformar o cotidiano dos
paulistanos numa autêntica obra de arte. Freitas Valle
estabeleceu um rigoroso ritual em seu convívio com
intelectuais, artistas brasileiros e estrangeiros que
visitavam São Paulo: a poesia, a música, a pintura, o vinho, a
culinária, o perfume. Essas raízes poderiam ter sido
inspiradas no soneto Correspondances, de Charles Baudelaire, que
4 A Reforma urbana de Paris foi promovida pelo Barão Georges EugèneHaussmann entre 1852 e 1870. Haussmann, o então prefeito do departamentodo Sena, concentrou os esforços da reforma urbana no sentido de promovermelhorias nas manobras militares, assim como na circulação e nahigienização da capital da França. Para tal fim, demoliu inúmeras viaspequenas e estreitas residuais do período medieval, e criou imensosboulevards organizadores do espaço urbano, assim como jardins e parques.
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proclama a sinestesia sugerindo afinidades profundas entre a
cor, o som, o perfume. Há também, no caminho que conduz ao
Simbolismo, o drama musical de Wagner, tentando fundir as
artes.
A elite paulistana da Belle Époque elegeu a França como o
berço da “civilização” e da “cultura”. Muitos de seus membros
escreviam, em francês, as suas poesias simbolistas. Em sua
essência, com o crescimento vertiginoso da cidade de São
Paulo, esses intelectuais procuravam torná-la uma cidade
eminentemente francesa, paradigma de uma cultura superior.
A periodização dessa conjuntura histórica abrangeu os fins
do século XIX até 1914 (início da Primeira Guerra Mundial),
momento em que o homem trocou o campo pela cidade, os
automóveis aposentaram as velhas charretes, os aviões passam a
cruzar rapidamente o céu paulista, os motores passaram a
acelerar o ritmo frenético das fábricas, as lâmpadas elétricas
começaram a iluminar essa nova era. Para registrar esses
progressos surgiram as máquinas fotográficas e o cinema, entre
outros avanços tecnológicos. Os cronistas mitificaram, em seus
artigos publicados em jornais e revistas, o progresso urbano
da cidade de São Paulo: “a cidade que sobe”. O estilo Art
Nouveau5 consagrou-se entre os membros dessa elite. O homem
moderno burguês devia dedicar-se às atividades políticas,
intelectuais, à magistratura, e o trabalho manual era coisa de
negros e imigrantes europeus.
5 Na arte, o estilo Art Nouveau era comum no período da Belle Époque. Suascaracterísticas envolvem a valorização das cores vivas, curvas sinuosas quese baseavam nas formas das plantas, animais e mulheres, além dosornamentos. As principais obras deste estilo são fachadas de edifícios,vitrais, joias, móveis e portões.
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Nos inícios dos anos 1920, o parnasianismo e o simbolismo
foi suplantado pelos interesses dos modernistas preocupados
com os problemas nacionais, aflorando, assim, um novo olhar
sobre o popular, agora livre do deboche. O nacional sem
ufanismo oco e grandiloquente.
Mário de Andrade e os compositores Villa-Lobos, Camargo
Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Luciano Gallet procuraram
atribuir novos significados às concepções sobre o “popular” e
o “erudito”, oriundos do romantismo do século XIX, tendo como
ponto nodal o papel do povo na elaboração de uma música
erudita nacional modernista, não deixando de abandonar os seus
diálogos com as tendências estéticas europeias. Para Peter
Burke, a descoberta da cultura popular inter-relacionou-se com
a ascensão do nacionalismo na Alemanha, Suécia, Finlândia,
Grécia e Polônia, entre outros povos.
O imaginário nacionalista aflorado, com intensidade, a
partir da década de 1920 no Brasil, prendeu-se, de um lado, a
forte tradição europeizante das elites da Belle Époque que
abominavam a cultura popular, e, de outro, a presença em São
Paulo de correntes imigratórias (italianos, espanhóis,
japoneses, portugueses) culturalmente distante do chamado
folclore brasileiro. Mário de Andrade vivenciou esse conflito
marcado pelos simpatizantes da cultura francesa e pelos
professores, maestros italianos que detinham hegemonicamente o
ensino da música em São Paulo (Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo).
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No Brasil, a vanguarda6 modernista inspirou-se num outro
movimento europeu dos anos 1920: defesa da pesquisa e a
apropriação pelos compositores eruditos de elementos das
chamadas culturas “primitivas”, ao mesmo tempo em que se fazia
a defesa da nacionalização das artes criando uma identidade
cultural própria e singular.
Essas duas tendências redundaram num “projeto” em prol do
(re) descobrimento do Brasil pelos intelectuais, opondo-se à
sacralização das culturas eurocêntricas defendidas pelos
críticos e músicos da Belle Époque.
A partir das pesquisas folclóricas sobre o jongo, o
martelo, o pastoril, entre outras manifestações populares e as
suas respectivas internalizações, conscientes ou
inconscientes, pelo compositor modernista, este procurou,
paralelamente, utilizar novos elementos técnicos introduzidos
nas linguagens musicais contemporâneas — polimodalidade,
polirritmia, politonalidade. De um lado, a inspiração na
temática folclórica, e, de outro, o emprego de técnicas
compatíveis implicou a procura dos traços fundamentais para
elaborar o “retrato” sonoro do Brasil.
Fundamentando-se nessa metodologia, os modernistas visavam
consolidar e fortalecer o nacional para opor-se à música
estrangeira ou à música exótica ou regional. Villa-Lobos,
6 Vanguarda termo derivado do francês avant-garde significa literalmente aguarda avançada ou parte frontal de um exército. Seu uso metafórico data deinícios do século XX, o uso anglo-americano é reservado a assuntospolíticos (como "partido de vanguarda"), e o francês avant-garde, nosentido de liderança cultural e artística. O termo vanguarda foi deslocadopara as artes pelos seus seguidores e aplicado aos movimentos artísticosque produzem ruptura de modelos pré-estabelecidos, é a relação entre formasantitradicionais de arte ou o novo nas fronteiras do experimentalismo.
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fortemente envolvido pelas modas de viola mineiras e pelos
mais diversos gêneros populares executados pelos chorões
(mazurcas, valsas, modinhas), independentemente do projeto
modernista, já vinha propondo a construção da nação através da
música. E, com a consolidação de uma escola nacionalista de
composição, tornar-se-ia possível atingir a universalidade
através da penetração das obras dos modernistas nos principais
polos culturais da Europa e das Américas.
Mário de Andrade defendia uma consciência criadora
nacional, ou seja, no caso brasileiro, a pesquisa do folclore
como o eixo da modernidade. Por esse motivo, no Ensaio sobre a
música brasileira, Mário lamentava o pouco interesse dos
intelectuais brasileiros pelos estudos folclóricos:Pode-se dizer que o populário musical brasileiro édesconhecido até de nós mesmos. Vivemos afirmandoque é riquíssimo e bonito. Está certo. Só que meparece mais rico e bonito do que a gente imagina.E, sobretudo mais complexo. (...) do que estamoscarecendo imediatamente é dum harmonizador simples,mas crítico também, capaz de se cingir àmanifestação popular e representá-la comintegridade e eficiência. (ANDRADE, 1962)
O autor pensa num primeiro momento o Brasil, como o país
que coincide com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que
entrava na ordem do mundo urbano industrial, ou seja, um país
que passava, portanto pela experiência da grande cidade, ou se
incluía, portanto, numa atmosfera cosmopolita. Ou seja, ele
pensa o Brasil da grande cidade na sua relação com o mundo.
No segundo momento, há uma espécie de descoberta do
Brasil. Então, ele vai se empenhar na construção de uma
cultura brasileira integrada entre o popular e o erudito. Esse
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projeto tem como base a cultura popular que está espalhada por
todo o país na forma de repentes, de reizados, de bumba meus
bois, de toda oralidade da música popular.
E é nesse trabalho de resgate da cultura popular que ele
vai dedicar boa parte da sua vida. “Macunaíma” é um livro que é
uma interpretação do Brasil, feita com base nessa estratégia
da cultura brasileira, que é pesquisar amplamente a cultura
popular.
Com o propósito modernista de elaboração de uma identidade
nacional, a constituição de uma arte nacional será bem-vinda
se estiver vinculada aos processos artísticos de criação
popular.
Levando em conta a questão da nacionalidade, os
modernistas brasileiros buscam uma nova estética baseada na
matéria popular. Nesse sentido, já possuem uma visão mais
crítica da realidade, diferente dos românticos, pois conseguem
ter consciência de uma estética popular que está longe de ser
ingênua, simples e pura. Ao contrário, o fazer artístico
popular é considerado, aos olhos dos modernistas, bastante
complexo, porque é constituído de estruturas diferentes da
criação erudita.
Para uma nova visão dos estudos folclóricos no Brasil, foi
necessário o impulso modernista, no qual a figura de Mário de
Andrade sobressai enquanto empreendedor e importante
incentivador de pesquisas sobre a cultura popular brasileira.
Embora Mário não se considere um folclorista, seu trabalho de
coleta, organização e registro dos dados revela um pesquisador
minucioso e sério.
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Nas viagens ao interior de Minas, Norte e Nordeste do
país, Mário de Andrade reúne aboios, toadas, maracatus
pernambucanos, cocos; registra as danças dramáticas e a música
de feitiçaria. Seu interesse reside basicamente na parte
musical. Como músico e crítico, pretende investigar como se dá
o processo de criação artística popular. Trabalha arduamente
anotando texto e música do cancioneiro popular, fazendo também
importantes observações de caráter estilístico, sociológico,
antropológico e histórico sobre o material.
Em Danças Dramáticas do Brasil (1982), por exemplo, analisa
criticamente o desenvolvimento dos bailados atentando para o
contexto sociocultural em que são executados. Criticando a
postura eurocêntrica dos compositores brasileiros, Mário de
Andrade intitula-se um “apaixonado da coisa popular” e aponta
seu exemplo de estudioso: Antes fizessem o que eu fiz, conhecessem o queamei, catando por terras áridas, por terras pobres,por zonas rurais, paisagens maravilhosas, essaúnica espécie de realidade que persiste através detodas as teorias estéticas, e que é a própria razãoprimeira da Arte: a alma coletiva do povo (ANDRADE,1982, p. 56).
Até certo ponto, nas palavras de Mário de Andrade, há uma
identificação com o ideal romântico, quando ele fala de “alma
coletiva do povo”. Parece remeter à concepção de povo
idealizada pelos românticos: suporte transcendente capaz de
revelar virtudes e valores recônditos. No entanto, quando se
propõe ao empreendimento de pesquisas folclóricas, viajando
por algumas regiões do país, dá-se o contato com o povo –
constituído, a seus olhos, de pessoas simples, Mário de
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Andrade não fecha os olhos à realidade socioeconômica do povo
brasileiro, no entanto, sua preocupação maior está nos
processos de criação artística popular que ele “louva sempre,
observando a criação do povo, a existência da ‘poiesis’, da arte ligada diretamente à
vida, considerando isso um fator de luta contra a alienação cultural”.
Afirmando seu propósito de arte ligada à vida no seu Ensaio
sobre a música brasileira (1928), ele aponta o folclore como um
importante recurso no qual o compositor brasileiro deve se
basear quer como meio de inspiração, quer como documentação. A
importância dada à estética popular confirma um ideal de nação
comprometida com seus valores culturais e artísticos.
Com um olhar atento às formas populares de expressão,
Mário de Andrade soube perceber a beleza e a complexidade dos
fenômenos da criação popular. No prefácio de Na pancada do ganzá,
ele faz referência a exibição de um violinista popular que
teve oportunidade de presenciar. Analisa-a criticamente: “está
claro que a peça era horrível de pobreza, má execução, ingenuidade”. No
entanto, não descuida de encontrar aspectos positivos quanto à
forma de criação: “mas assim mesmo tinha frases aproveitáveis e invenções
descritivas engenhosas. E principalmente comovia” (ANDRADE, 1980, p. 56).
A Semana de Arte Moderna de 1922
A Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, realizada
em São Paulo, é importante referencial para reflexões
estéticas e para a crítica de arte do país. Essa manifestação
é potencializada pelo contexto em que ocorre. As questões
associadas ao nacionalismo emergente do pós-Primeira Guerra
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Mundial e à industrialização que se estabelece, especialmente
em São Paulo, motivam intelectuais e jovens artistas
entusiasmados a reverem e criarem novos projetos culturais.
No jornal Correio Paulistano de 29 de janeiro de 1922, uma
nota anuncia a realização de uma semana de arte no Teatro
Municipal, entre 11 e 18 de fevereiro, com a participação de
escritores, músicos, artistas e arquitetos de São Paulo e do
Rio de Janeiro. De acordo com a notícia, a Semana, organizada
por intelectuais das duas cidades, tendo Graça Aranha à
frente, tem por objetivo dar ao público de São Paulo “a
perfeita demonstração do que havia em nosso meio em escultura,
pintura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista
rigorosamente atual”.
Seja quem for o autor da ideia, o objetivo da Semana de
Arte é renovar o estagnado ambiente artístico e cultural de
São Paulo e do país. Acentua-se a necessidade de “descobrir”
ou “redescobrir” o Brasil, repensando-o de modo a desvinculá-
lo, esteticamente, das amarras que ainda o prendem à Europa. É
verdade que os jovens participantes da proposta inovadora
procuram a “proteção”, a diplomacia e a arregimentação de
Graça Aranha – espécie de avalista ou “carro-chefe”, capaz de
impor respeito a setores menos abertos à modernidade.
A ideia cresce e avança levada por Paulo Prado, figura
representativa da intelectualidade e da alta camada social
paulista. Os equívocos são muitos. A comissão organizadora, de
cunho mais tradicionalista, está distante da sensibilidade
realmente moderna de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di
Cavalcanti, Villa-Lobos, Brecheret e Anita Malfatti. A Semana
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realizou-se perante aplausos e vaias. Enquanto nos dias 13, 15
e 17 de fevereiro ocorrem, no interior do Teatro Municipal,
conferências e concertos, no saguão, os artistas e os
arquitetos expõem seus trabalhos.
Por esse motivo, a Semana de 1922, caracterizada como um
índice de um possível surgimento de uma nova etapa das artes,
de uma literatura e da música brasileira refletia a
internalização de uma nova ideia de Brasil nos campos
histórico e estético, visando construir um projeto hegemônico,
fundamentado no nacional (folclore + povo) como fonte de
inspiração dos artistas, escritores e compositores envolvidos
cientifica e emotivamente, com vistas a escrever obras capazes
de construir uma identidade cultural da nação. A Semana não
chega a ser propriamente a realização acabada da modernidade,
mas insiste em ser seu índice, daí certo desequilíbrio entre o
que se alardeia e o que se mostra.
Mário de Andrade em O Movimento Modernista defendeu com
propriedade os três princípios do Modernismo: “O direito
permanente à pesquisa estética; atualização da inteligência
artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional”.
Em seu livro Pauliceia Desvairada (1922), o "prefácio
interessantíssimo" é o prefácio que por muitos é considerado a
base do modernismo brasileiro. Mundocultural abre com uma
citação do escritor belga Émile Verhaeren, que é o autor de
Villes Tentaculaires. O prefácio não fala do livro, mas sim de
uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de
manifesto poético, em versos livres.
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No início do Prefácio ele próprio denuncia a sua atitude.
Depois de afirmar que “está fundado o Desvairismo”, afirma que
o seu texto é meio a sério meio a brincar. O que lhe dá um
caráter inconfundível de, por um lado, programa poético e, por
outro, paródia. Assim o sério e o divertimento se misturam num
todo sem fronteiras definidas. Repare-se ainda que é um texto
muito assertivo, provocativo e polêmico no que é
característico o Modernismo.
Num estilo rápido e solto, com ideias truncadas, e que
atinge um efeito de grande dinamismo. Mário de Andrade luta
por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja
agarrada a formas do passado: “escrever arte moderna não
significa jamais para mim representar a vida atual no que tem
de exterior: automóveis, cinema, asfalto.”
Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste
Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão
para a livre expressão do escritor no Brasil. Assim ele afirma
que “A língua brasileira é das mais ricas e sonoras”. Para
reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa
propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque
brasileiro. Assim aparece muitas vezes neste manifesto “si” em
vez de “se”. Neste ponto está a ser completamente contra os
poetas parnasianos que defendiam uma ideia de que a língua
portuguesa seria a língua dos bons e grandes escritores do
passado. Neste ponto, Mário de Andrade é um nacionalista.
Mas não admira Marinetti. É contra a rima. E contra todas
as imposições externas. “A gramática apareceu depois de
organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe
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da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”. “Os
portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu
sou brasileiro”. (Citado por Celso Pedro Luft).
A ideia talvez mais importante deste Prefácio seja a de
Polifonia e de Liberdade. "Arroubos... Lutas... Setas...
Cantigas... povoar!" (trecho da poesia Tietê) Estas palavras
não se ligam. Não formam enumeração. “Cada uma é frase,
período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico”.
Pauliceia Desvairada (1922) é uma viagem lírica no espaço tenso
e contraditório de São Paulo em via de transformar-se na
grande cidade industrial sul-americana, onde o novo começa a
sobrepujar o velho, onde gentes de varias nacionalidades
misturam os seus falares, tal como se misturaria, nos poemas,
a história pessoal do poeta e a memória histórica do Tiete, o
rio dos bandeirantes de dois séculos atrás, que agora
acompanhava largas avenidas asfaltadas, trilhos de bondinhos
elétricos trepidantes e automóveis pagos com os lucros do
café, enquanto em meio a um passado provinciano, de missas na
Igreja de Santa Cecília, de passeios nos parques, a antiga
classe senhorial dos fazendeiros paulistas metamorfoseia-se,
abandonando os seus antigos hábitos aristocráticos.
Macunaíma – o herói sem nenhum caráter
Mário de Andrade é considerado um escritor completo e
inigualável, um dos maiores renovadores da cultura nacional na
primeira metade do século XX. Iniciou pesquisas e cursos de
etnografia e folclore, desenvolveu estudos da língua. Com a
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semana de Arte Moderna de 1922, da qual foi um dos
organizadores, seu nome se projetou em todo o país como um
líder do modernismo.
Como é conhecido, “Macunaíma” nada mais é do que uma
bem organizada cópia de vários outros livros que variam desde
culturas de povos indígenas que viviam nas margens do rio
Orinoco até livros que retratam, com um pensamento filosófico,
a realidade do capitalismo. Sendo assim, Mário de Andrade
retrata nesse romance - que é classificado com “rapsódia”7, a
realidade vivida pela sociedade brasileira no começo deste
século, em que se percebe, quando comparada, que não é muito
diferente da vivida atualmente (o começo e a perpetuação da
dominação de outras culturas sobre a brasileira).
O livro narra a história de um índio chamado Macunaíma
(“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa
gente... Houve um momento em que o silêncio foi tão grande
escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas
pariu uma criança feia...”) sua vida, seus “tropeços” e, em um
determinado momento do livro, há uma ação que se torna o tema
central do livro : a procura da pedra Muiraquitã - que nada
mais é do que a própria cultura brasileira representada na
forma de uma pedra muito preciosa , a qual somente as “índias7 Rapsódia designava na Grécia antiga, a recitação de fragmentos de poemasépicos, notadamente homéricos pelos rapsodos, poetas ou declamadoresambulantes, que saíam de cidade em cidade, propagando a Ilíada e aOdisséia. Surgidos provavelmente no século VII a C (... ) Adotado poralguns compositores do século XIX, para assinalar toda peça musicalpermeada de emoção e melodia, ou a utilização livre de temas populares parapiano e orquestra, nos domínios literários o vocábulo “ rapsódia” equivalepara compilação, numa mesma obra, de temas ou assuntos heterogêneos e devárias origens. Macunaíma, de Mario de Andrade, constitui a rapsódia dasprincipais lendas afro-indígenas que compõem o substrato folclóriconacional.
21
amazonas” teriam acesso - somente estas sabiam onde encontrar
e como encontrar - e que é também muito cobiçada pelos
“estrangeiros” : os recém chegados italianos , que são
representados por Venceslau Pietro Pietra. E, na luta entre
Macunaíma e Venceslau é que o livro todo se desenvolve.
Mas, Mário de Andrade não queria tão somente escrever
uma estória sobre as “peripécias de um índio”, este projeto
era sobre algo muito maior e muito mais sério e real: a
retratação real da cultura brasileira existente - se é que ela
é existente (“Meu Macunaíma nem a gente pode bem dizer que é
indianista. O fato dum herói principal de livro ser índio não
implica que o livro seja indianista. A maior parte do livro se
passa em São Paulo. Macunaíma não tem costumes de índios, tem
costumes inventados por mim e outros que são de várias classes
de brasileiros. O que procurei caracterizar mais ou menos foi
a falta de caráter do brasileiro... - in obra já citada). E
para isso, fez uso dos livros de vários teóricos sobre esse
assunto, mas são dois que exerceram uma real influência para a
realização deste livro: Johann Gottfried Herder e Oswald
Spengler8.
8 Filósofo, matemático e historiador alemão Oswald Arnold Gottfried Spengleré hoje quase um desconhecido, mesmo entre filósofos e historiadores. Noentanto, no começo do século XX, no entre guerras, foi um fenômenofilosófico e editorial. Responsável por uma interpretação original dahistória e da civilização ocidental, para o público alemão, ele parecia terprofetizado em A Decadência do Ocidente o ambiente sociocultural de criseda época. O livro é a aplicação para o domínio histórico e cultural dométodo “morfológico” elaborado originalmente por Goethe para as CiênciasNaturais. Essa metodologia consistia em derivar os fenômenos a partir de umfenômeno primitivo único. Esse procedimento assume um aspecto frutífero aoconsiderar como fundamental o caráter histórico das Culturas, Civilizaçõese do Mundo.
22
Mário de Andrade utiliza a obra de Herder no que esta
diz respeito à sua teoria sobre cultura. Herder defende a
dialética da realidade - assim como Hegel e Marx - todas as
coisas no mundo conhecem o processo de transformação. E,
quando se faz um paralelo com “Macunaíma”, percebe-se o quanto
isso é presente na história: a transformação passada pelo
índio que começa como herói e ao final transforma-se no seu
próprio inimigo - próprio vilão; é o considerado “anti-herói”.
A transformação sofrida pelo personagem que começa como índio,
que é uma representação do real povo brasileiro, e que quando
vai para a cidade em busca da pedra Muiraquitã (que foi
roubada por Venceslau Pietro Pietra), torna-se outro, é
seduzido pelas novidades introduzidas pelos estrangeiros na
cidade: fábricas, automóveis... E assim perde a sua
ingenuidade para deixar-se levar pela cultura estrangeira.
Mário de Andrade afirma que “o estrangeiro está na
história para corromper. Este vem para destruir uma cultura já
existente” - e é o que realmente este livro afirma. Herder
também afirma que uma determinada cultura é composta pelos
seguintes elementos: geografia ( natureza) - raça - povo. A
natureza é o molde da raça e, esta se manifesta através de uma
determinada cultura. Com isto pode-se chegar a seguinte
conclusão: que no Brasil, antes do descobrimento, já havia uma
cultura - que era indígena - e que é a “real cultura do
Brasil”, já que levando em conta essa teoria, a cultura aqui
imposta pelos europeus é, logicamente, a deles e não é
respeitada a ordem geografia - raça – povo, nessa imposição.
23
Mas, pior que essa “obrigação” foi o que aconteceu com o
passar do tempo: a aceitação e absorvição desta cultura
estrangeira em lugar da cultura genuína brasileira, o que fez
com que o Brasil fosse uma mera reprodução (muito mal feita,
aliás) da cultura europeia. E, para que esta argumentação
fique mais bem explicitada, é necessário que se exponha ao
modo Herderiano de ver, o que é cultura: “É a construção de um
discurso simbólico, é o conjunto de informações reunidas por
um povo”.
Mário de Andrade faz uso desta definição no que diz
respeito na própria organização textual do livro: ele utiliza
toda a cultura brasileira - as denominadas “tradições
regionais” - mesclando-as e o que deixa a mostra é a grande
variação linguística encontrada, o grande número de palavras
que são sinônimos e que possuem uma estrutura gramatical
completamente diferente, comprovando que a cultura popular é
muito rica aqui (“tendência especializada em trabalhar a
substância brasileira”).
E, sobre esse fator língua, Herder também deixa bem
exposto seu caráter nacionalista e que acompanha sua obra - e,
claro “Macunaíma”. Para aquele, “A verdade de um povo está no
idioma”. Esta afirmação ainda encontra força na argumentação
da imposição europeia: o português falado aqui é uma das
“culturas” absorvidas pelo Brasil, que antes da colonização
europeia, falava as línguas indígenas.
Enfim, essa afirmação de Herder deixa bem a mostra o já
citado caráter nacionalista existente na obra de Mário de
Andrade. É por essa importante característica que ele faz uso
24
de suas teorias em “Macunaíma” - que se transforma também por
isso uma biografia do Brasil (“principal objetivo da obra, que
é estudar em profundidade o temperamento brasileiro”).
Mário de Andrade faz uso da teoria de Spengler no seu
livro no que, também, diz respeito a cultura e a História de
um povo. Segundo sua teoria, sobre a história, não existe a
considerada “História Universal”, mas sim apenas “histórias
nacionais” - e somente aqueles povos que possuíram uma
verdadeira história é que conseguiram desenvolver uma cultura
sólida: sem ou com uma ínfima interferência de outras
culturas.
Seguindo esse raciocínio e aplicando-o aqui no Brasil
percebe-se que este não possui história, e por consequência,
muito menos cultura ( havia, mas a absorção da imposta foi
tamanha que anulou qualquer possibilidade de reação), e quando
esta tentou a reação foi interceptada pela chegada dos
italianos (começo do século XX), acabou não resistindo e cedeu
por completo. Apesar de tudo isto, Mário de Andrade continuava
acreditando no movimento Modernista e na guinada da cultura
brasileira: “O Brasil é a civilização do próximo milênio, já
que a Europa está morta...”.
Spengler ainda aparece em “Macunaíma” quando este se
faz representar a “grande alma” brasileira - que é necessária
para o desenvolvimento da história/cultura de um povo, porém,
quando aquele vai para São Paulo e entra em contato com outra
cultura absorvendo-a de maneira feroz, perde sua
“brasilidade”, e quando acontece o “afastamento das raízes,
uma cultura morre” (Spengler, in: “A decadência do
25
ocidente” ). E foi o que justamente aconteceu e que Mário de
Andrade deixa exposto nessa magnífica
obra.
A decadência da cultura ocorre no ápice da
industrialização, pois nessa fase não há mais qualquer lugar
para o mítico, para o lúdico. É exatamente este o esquema
desta obra modernista e sempre atual: Macunaíma nasce grande
alma, conhece a civilização, decai abandonado pelos deuses da
floresta e morre sozinho e inútil. “Macunaíma o herói sem
nenhum caráter” vêm mostrar que o Brasil já possuiu uma
cultura própria riquíssima, mas que se deixou enfeitiçar pelas
“maravilhas” que a Europa proporcionou, e assim nossa cultura
morreu. O próprio índio Macunaíma o qual iria criar a
civilização brasileira não resistiu.
Mário de Andrade e um projeto de Brasil: seu
legado do Gestor Cultural
Abancado à escrivaninha em São PauloNa minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus!
[muito longe de mim,Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhosDepois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.Esse homem é brasileiro que nem eu...
(Mário de Andrade, “Descobrimento”, de Dois Poemas Acreanos)26
O modernismo, ao colocar o debate entre cosmopolitismo e
nacionalismo como o centro da questão política e da criação
artística, demonstrou que cultura e política não podiam ser
dissociadas. Construir uma cultura brasileira era um problema
político, já que colocava em questão a formação de uma
identidade nacional baseada numa unidade cultural. Era essa
identidade entre cultura e política que dava aos intelectuais
a vocação de elite dirigente, já que cabia a eles forjar essa
unidade a partir dos fragmentos da cultura popular. Era o
momento de "redescobrimento do Brasil", movimento fundamental
no processo de definição da brasilidade e que buscava
explicitar o inconsciente nacional do povo. (RAMA, 1985, p.41)
Em 1935, durante uma era de instabilidade do governo
Vargas, Mário de Andrade organizou, juntamente com o escritor
e arqueólogo Paulo Duarte, um Departamento de Cultura para a
unificação da cidade de São Paulo (Departamento de Cultura e
Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo), onde Andrade
se tornou diretor.
Mário de Andrade teve um papel fundamental no
despontamento de São Paulo como o polo cultural brasileiro,
pois, seu trabalho no Departamento de Cultura foi o primeiro
órgão oficial destinado a coordenar atividades artísticas. Em
31 de maio de 1935, Mário de Andrade começou seu trabalho como
diretor da divisão de Expansão Cultural, por isso teve que
abandonar suas atividades de professor e, segundo Toni (n.d,
14), “começou a sentir as angústias de um intelectual à frente
de um cargo administrativo.” Após três anos de relevante
27
trabalho, Mário de Andrade saiu do Departamento de Cultura
para trabalhar no Rio de Janeiro, em 1938. Entretanto, segundo
Bollos (2006, p. 119), “foi na mídia impressa que parte de sua
produção bibliográfica se deu, onde podemos destacar muitos
artigos, crônicas e textos de crítica literária e musical”.
Em 1938 Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo
de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros. Tinha
como objetivo declarado, de acordo com a ata da sua fundação,
"conquistar e divulgar para todo país a cultura brasileira". O
âmbito de aplicação do recém-criado Departamento de Cultura
foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica,
como construção de parques e recriações, além de importantes
publicações culturais.
Exerceu seu cargo com a ambição que o caracterizava:
ampliar seu trabalho sobre música e folclore popular, ao mesmo
tempo organizar exposições e conferências. As missões
resultaram um vasto acervo registrado em vídeo, áudio,
imagens, anotações musicais, dos lugares percorridos pela
Missão de Pesquisas Folclóricas, o que pode ser considerado
como um dos primeiros projetos multimídia da cultura
brasileira. O material foi dividido de acordo com o caráter
funcional das manifestações: músicas de dançar, cantar,
trabalhar e rezar.
Trouxe sua coleção fonográfica cultural para o
Departamento, formando uma Discoteca Municipal, que era
possivelmente as melhores e maiores reunidas no hemisfério.
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Em sua vida e obra, Andrade revela sua preocupação e amor
pela arte brasileira, sua obra registra a militância
intelectual do autor sempre em busca de novos desafios com
objetivo de tornar a cultura brasileira mais nacional. A
influência de Andrade foi decisiva em todos os setores do
pensamento cultural brasileiro. Nesse sentido, Bollos (2206)
reitera: Suas contribuições no campo da música, assim como no daliteratura, corroboram para que ele seja um dosprincipais, senão o mais importante, articulador dacultura brasileira na primeira metade do século XX. Suaveia crítica e perspicaz é presente na grande maioria deseus escritos sejam eles resenhas ensaios, crônicas ouromances. (BOLLOS, 2006, p. 127)
Mário de Andrade também foi um dos mentores e fundadores
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, junto
com o advogado Rodrigo de Melo Franco de Andrade. Limitações
de ordem política e financeira impediram a realização desse
projeto (que seria caracterizado por uma radical investida no
inventário artístico e cultural de todo o país), restringindo
as atribuições do instituto, fundado em 1937, à preservação de
sítios e objetos históricos relacionados a fatos políticos
históricos e ao legado religioso no país.
Em fins do ano de 1939, Mário de Andrade viu a sua
situação como funcionário do Ministério da Educação e Saúde
regularizada pelo ministro Capanema. Ele foi contratado como
consultor técnico do Instituto Nacional do Livro e recebeu
como primeira tarefa a elaboração dos projetos da Enciclopédia
Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional. Foi Augusto
Meyer, diretor do Instituto Nacional do Livro, que encomendou
o anteprojeto da Enciclopédia Brasileira a Mário de Andrade no29
mesmo ano. O método e o rigor da disciplina de trabalho de
Mário eram conhecidos, e seus estudos sobre a cultura popular
brasileira já vinham sendo feitos desde os anos 20. Mas,
apesar da comprovada competência do autor, o seu anteprojeto
de Enciclopédia Brasileira não foi desenvolvido e, mesmo tendo
tomado a precaução de pedir para ocupar uma função apenas
auxiliar na execução dos trabalhos, ainda assim Mário
despertou a desconfiança de Augusto Meyer no sentido de que se
preparava para substituí-lo na direção do Instituto.
Mário de Andrade acreditava que a ideia de publicar uma
Enciclopédia Brasileira era um "verdadeiro ideal" de
importância fundamental para a cultura do país. E ele
principia por justificar essa importância com argumentos
bastante pragmáticos. Em primeiro lugar, a necessidade de
fazer frente à especialização cada vez maior do conhecimento
humano e também o desejo de se equiparar a outros países que
já possuíam as suas próprias enciclopédias. Outra
justificativa pragmática é de ordem econômica: a Enciclopédia
Brasileira representaria uma economia significativa para as
famílias brasileiras, já que valeria por toda uma biblioteca.
Isso tem muita importância porque poucas pessoas no Brasil
tinham a possibilidade de adquirir uma biblioteca, mas uma boa
enciclopédia editada pelo poder público (o que significaria
priorizar a qualidade e não as preocupações comerciais, já que
se eliminaria a premência do retomo financeiro) poderia ter um
preço baixo que a tornasse acessível às classes populares.
Mário de Andrade define o ideal da enciclopédia em termos
bastante objetivos: "O ideal, neste sentido, será construir-se
30
uma ótima enciclopédia e vendê-la por tal menor preço e com
tais facilidades de pagamento, que ela possa viver nos lares
operários”.
Mudou-se em 1938 para o Rio de Janeiro para tomar posse de
um novo posto na UFRJ, onde dirigiu o Congresso da Língua
Nacional Cantada, um importante evento folclórico e musical.
Em 1941 retornou para São Paulo e voltou ao antigo posto do
Departamento de Cultura, apesar de não trabalhar com a mesma
intensidade que antes.
Andrade morreu em sua residência em São Paulo devido a um
enfarte do miocárdio, em 25 de fevereiro de 1945, quando tinha
52 anos. Dadas as suas divergências com o regime do Estado
Novo, não houve qualquer reação oficial significativa antes de
sua morte. Dez anos mais tarde, porém, quando foram publicados
em 1955, Poesias completas, quando já havia falecido o ditador
Vargas, começou a consagração de Andrade como um dos
principais valores culturais no Brasil. Em 1960 foi dado o seu
nome à Biblioteca Municipal de São Paulo e, cujo projeto se
espalhou por diversas cidades do Estado de São Paulo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos
brasileiros, Mário de Andrade construiu um caráter
revolucionário na literatura brasileira, que se iniciou com
Pauliceia Desvairada (1922), onde analisa a cidade de São Paulo e
todos seus elementos (provincianismo, aristocracia, burguesia,
rio Tietê, Avenida Paulista). O autor também é considerado um
dos primeiros musicólogos do país, e seu maior interesse era a
31
música, particularmente os ritmos nordestinos, nos quais
tentou pesquisar e valorizar, assim como fez com a Missão de
Pesquisas Folclóricas, tentando criar um estudo e uma
descoberta das raízes culturais do Brasil. Isso também ocorreu
com seu romance mais famoso, Macunaíma, considerada uma das
obras capitais da narrativa brasileira no século XX.
A importância de Mário de Andrade continua sendo
ativamente expressa nos dias atuais, e ainda se fala sobre sua
obra seja para estudo ou para a investigação do Brasil: "pela
amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos
[...] [porque] tinha uma visão panorâmica abrangente [e]
dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que
todos os outros”.
Segundo o biógrafo Francisco de Assis Barbosa (1944)
“Poucos como o grande poeta e crítico de São Paulo estariam
mais indicados para a tarefa difícil. A vida literária de
Mário de Andrade foi um lutar constante. Os artigos de crítica
e polêmica que escreveu em jornais e revistas deram para mais
de seis volumes; os mais importantes deles foram publicados em
livros, na edição das Obras Completas de Mário de Andrade,
iniciativa da Livraria Martins. Não foi sem razão que o
chamaram de “papa do modernismo”. Concordo que não há dúvida
que indica tal papel do escritor: a sua linha de conduta, a
sua ação prodigiosa, a sua fé na literatura, o seu valor
moral”.
Por todos esses motivos, Mário de Andrade deve ser
considerado a figura mais importante dentre os agitadores do
movimento modernista. Mas não é só por isto. Hoje, decorridos
32
mais de 92 anos depois da celebre Semana de Arte Moderna,
vemos que foi uma obra que encontrou maiores ressonâncias na
turma da geração mais nova de sua época e ressoa sua
influência em toda a história de nossa cultura e literatura.
Procuramos com este artigo realizar um resgate da história
deste gigante das Letras brasileiras e trazer uma reflexão
sobre sua luta e projeto de nação e povo brasileiro, uma vez
que em nossos atuais dias, estamos perdendo os nexos
históricos e nossa identidade quanto a nossa cultura e
história.
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