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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 A REPETIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL EM ELOCUÇÕES FORMAIS Camila Cristiane MORESCHI (UEM) Introdução De acordo com os critérios propostos por KOCH & SOUZA e SILVA (1996), as aulas de ensino superior podem ser consideradas elocuções formais, uma vez que os papéis e a posse do turno são fixados previamente, havendo poucas marcas de interação (o professor em geral responde a perguntas feitas pelos alunos). Além disso, esses textos também têm um início bem marcado com a apresentação dos objetivos da aula ou do trabalho, bem como um encerramento no qual os objetivos da aula seguinte são antecipados. Outra característica a ser destacada é o fato de poderem ser encontrados marcadores “meta-pedagógicos” como certo? e de referência ao saber já internalizado pelos alunos ou pela audiência. Este artigo mostra a investigação sobre as manifestações e as funções exercidas pela repetição enquanto estratégia de construção textual em elocuções formais no corpus do Funcpar (Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/ Noroeste do Paraná). A concepção de língua falada que embasa a pesquisa (uma vez que o corpus é constituído de textos orais) não concebe fala e escrita como modalidades estanques, antagônicas, mas em um contínuo tipológico (KOCH, 2006). De acordo com CHAFE (1994), desde que se começou a estudar a linguagem, três posturas distintas já foram adotadas a respeito da relação entre língua oral e língua escrita. Primeiramente, na tradição gramatical iniciada pelos gregos e pelos romanos, a escrita gozava de maior prestígio do que a fala. Com o nascimento da Lingüística, a ênfase dada ao estudo de línguas que ainda não tinham uma tradição escrita elevou a fala a uma posição de prestígio. Essa modalidade foi considerada o verdadeiro objeto de estudo dos linguistas e a escrita era concebida apenas como uma representação da fala. Nas últimas décadas passou a ser difundida uma concepção mais equilibrada da relação entre fala e escrita. De acordo com essa concepção, as duas modalidades são realizações diferentes da linguagem, com funções diferentes. Um equívoco cometido por muitas pesquisas que tratam da relação entre a fala e a escrita é conceber as duas modalidades como antagônicas. A visão de OCHS (1979) sobre o planejamento do discurso mostra que a fala e a escrita podem, na verdade, representar um contínuo. A autora fala de quatro níveis de planejamento: discurso falado não planejado, discurso falado planejado, discurso escrito não planejado e discurso escrito planejado. Assim, um bilhete escrito às pressas pode ter muito mais semelhança com uma narração informal de uma história a um amigo do que com um editorial de jornal, por exemplo. Esse mesmo editorial, por sua vez, também pode apresentar muito mais semelhanças com um discurso elaborado feito a uma platéia do que com o tal bilhete escrito às pressas. MARCUSCHI (2000, p. 28) também critica essa visão dicotômica da relação entre fala e
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A REPETIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO … · unidades mais longas e complexas sintaticamente do que as do texto falado. Portanto, o texto escrito, evidenciar-se-ia por ser

Nov 17, 2018

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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

A REPETIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL

EM ELOCUÇÕES FORMAIS

Camila Cristiane MORESCHI (UEM)

Introdução

De acordo com os critérios propostos por KOCH & SOUZA e SILVA (1996), as

aulas de ensino superior podem ser consideradas elocuções formais, uma vez que os papéis

e a posse do turno são fixados previamente, havendo poucas marcas de interação (o

professor em geral responde a perguntas feitas pelos alunos). Além disso, esses textos

também têm um início bem marcado com a apresentação dos objetivos da aula ou do

trabalho, bem como um encerramento no qual os objetivos da aula seguinte são

antecipados. Outra característica a ser destacada é o fato de poderem ser encontrados

marcadores “meta-pedagógicos” como certo? e de referência ao saber já internalizado pelos

alunos ou pela audiência.

Este artigo mostra a investigação sobre as manifestações e as funções exercidas pela

repetição enquanto estratégia de construção textual em elocuções formais no corpus do

Funcpar (Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/ Noroeste do Paraná).

A concepção de língua falada que embasa a pesquisa (uma vez que o corpus é

constituído de textos orais) não concebe fala e escrita como modalidades estanques,

antagônicas, mas em um contínuo tipológico (KOCH, 2006). De acordo com CHAFE

(1994), desde que se começou a estudar a linguagem, três posturas distintas já foram

adotadas a respeito da relação entre língua oral e língua escrita. Primeiramente, na tradição

gramatical iniciada pelos gregos e pelos romanos, a escrita gozava de maior prestígio do

que a fala. Com o nascimento da Lingüística, a ênfase dada ao estudo de línguas que ainda

não tinham uma tradição escrita elevou a fala a uma posição de prestígio. Essa modalidade

foi considerada o verdadeiro objeto de estudo dos linguistas e a escrita era concebida

apenas como uma representação da fala. Nas últimas décadas passou a ser difundida uma

concepção mais equilibrada da relação entre fala e escrita. De acordo com essa concepção,

as duas modalidades são realizações diferentes da linguagem, com funções diferentes.

Um equívoco cometido por muitas pesquisas que tratam da relação entre a fala e a

escrita é conceber as duas modalidades como antagônicas. A visão de OCHS (1979) sobre

o planejamento do discurso mostra que a fala e a escrita podem, na verdade, representar um

contínuo. A autora fala de quatro níveis de planejamento: discurso falado não planejado,

discurso falado planejado, discurso escrito não planejado e discurso escrito planejado.

Assim, um bilhete escrito às pressas pode ter muito mais semelhança com uma narração

informal de uma história a um amigo do que com um editorial de jornal, por exemplo. Esse

mesmo editorial, por sua vez, também pode apresentar muito mais semelhanças com um

discurso elaborado feito a uma platéia do que com o tal bilhete escrito às pressas.

MARCUSCHI (2000, p. 28) também critica essa visão dicotômica da relação entre fala e

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escrita que, segundo ele, “postula para a fala uma menor complexidade e uma maior

complexidade para a escrita”.

Outro equívoco cometido por muitos pesquisadores a respeito da relação fala/escrita

é, segundo TANNEN (1982), analisar textos de tipos diferentes e atribuir as diferenças

encontradas à modalidade de língua. Escolhe-se um texto oral de um determinado tipo e um

texto escrito de um tipo diferente. Para TANNEN, muitas das diferenças que surgem, nesse

caso, são originadas pelas diferenças nos tipos de texto. Neste trabalho, para evitar esse

problema, são utilizados textos de um mesmo tipo, mas nas modalidades oral e escrita.

Como aponta NEVES (1996), a modalidade oral e a modalidade escrita utilizam um

mesmo sistema, mas diferem no que diz respeito aos métodos de produção, transmissão,

recepção e de estruturas de organização.

Na fala não planejada previamente, a produção em se fazendo do texto oral leva à

fragmentação (CHAFE, 1985) e a descontinuidades no fluxo discursivo (KOCH, 2006),

motivo pelo qual essa modalidade é muitas vezes vista de forma estigmatizada quando

analisada à luz da teoria gramatical que se desenvolveu a partir da escrita.

De acordo com KOCH (2006, p.46), pressões de ordem pragmática levam o falante,

na fala não planejada previamente, a “sacrificar a sintaxe em prol das necessidades de

interação”. Em decorrência disso, encontram-se no texto falado falsos começos,

truncamentos, correções, hesitações, inserções parentéticas, repetições e paráfrases, que

funcionam, na maioria das vezes, como estratégias de construção do texto falado, “servindo

a funções cognitivo-textuais de grande relevância” (KOCH, 2006, p. 46).

A repetição, segundo MARCUSCHI (2006), é uma das estratégias mais utilizadas

pelos falantes e apresenta inúmeras finalidades, como, por exemplo, “contribuir para a

organização discursiva e para a monitoração da coerência textual, favorecer a coesão e a

geração de sequências mais compreensíveis, dar continuidade à organização tópica e

auxiliar nas atividades interativas” (p. 219).

1. Desenvolvimento

A investigação foi realizada a partir de 5 elocuções formais que compõem o corpus

do Funcpar (Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/ Noroeste do Paraná). Os

informantes são professores universitários de Maringá (PR) que nasceram na cidade ou

residem nela há mais de 10 anos. As gravações foram feitas durante aulas de graduação,

motivo pelo qual se espera um alto grau de formalidade nos textos.

O tipo de transcrição alfabética adotado segue um padrão baseado nas normas do

projeto NURC (PRETI, 1993: 11-12) com algumas adaptações. A segmentação é feita com

base em unidades de entonação. Segundo CHAFE (1987), a fala espontânea não é

produzida em um fluxo contínuo, mas em uma série de breves jorros que expressam a

informação que está sendo focalizada pela consciência no momento da enunciação. Esses

jorros são chamados por CHAFE de unidades de entonação. Para a identificação dessas

unidades, CHAFE propõe três critérios:

- Entonação: a maior parte das unidades termina com um contorno típico de final de oração;

- Pausa: a separação entre as unidades é feita por uma breve pausa;

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- Sintaxe: há uma tendência para as unidades corresponderem a orações simples.

Esses critérios podem ser observados no exemplo a seguir, retirado do corpus:

.. estudar é uma coisa prazerosa,

.. agora ESCREVER já:: ... faço por obrigação e pressionado.

Ambas as unidades se iniciam por pausa e têm a estrutura de uma oração. A

primeira unidade tem curva entonacional estável, representada pela vírgula. A segunda

unidade, por sua vez, tem entonação descendente, típica de final de oração, representada

pelo ponto.

CHAFE (ibid.) ainda faz duas observações importantes a respeito da identificação

das unidades. A primeira é que nem sempre os três critérios aparecerão simultaneamente

em uma unidade. A segunda é que nenhum dos três critérios é suficiente para identificar

uma unidade, pois não se deve esperar que um fenômeno cognitivo se manifeste

mecanicamente por meio de fenômenos linguísticos.

Considerando que o presente artigo objetiva a análise da repetição em um corpus da

modalidade língua falada com ênfase no registro oral, é interessante salientar alguns

aspectos sobre as modalidades língua falada e escrita.

Como postula KOCH (2006), embora a língua falada e a língua escrita façam uso do

mesmo sistema linguístico, ambas possuem suas especificidades. Compartilhando do

mesmo ponto de vista, MARCUSCHI (2007) afirma que língua falada e língua escrita não

são duas línguas diferentes, e sim, dois sistemas de representação da mesma língua.

Portanto, são dois modos de funcionamento da língua, e não dois sistemas linguísticos.

MARCUSCHI (2007).

Ainda segundo KOCH (2006), fala e escrita se encontrariam em um continuum

tipológico, ou gradação perpassada pelos gêneros textuais de acordo MARCUSCHI (2007),

de uma maneira na qual escrita formal e conversação espontânea, coloquial, se

apresentariam como pólos divergentes cabendo aos diversos tipos de textos escritos ou

falados situarem-se entre esses extremos, tanto mais próximo à extremidade da fala

conversacional quanto a do extremo da escrita formal.

A partir deste ponto de vista do continuum tipológico, não se poderia afirmar que a

fala é contextualizada, implícita, concreta, redundante, não planejada, imprecisa e

fragmentada. Em oposição à escrita que seria descontextualizada, explícita, abstrata,

condensada, planejada, precisa e integrada, pois, de modo geral, essa forma dicotômica de

análise da linguagem não é fundada nas condições empíricas do seu uso, mas em posições

ideológicas e formais. (MARCUSCHI, 2007), o que foi considerado por MARCUSCHI

(2007) como uma visão “pouco saudável” de se adotar perante a fala e a escrita porque as

relações que se estabelecem entre esta e aquela não são previsíveis, ao passo que refletem o

dinamismo da língua em funcionamento.

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Dessa forma, a língua escrita não pode ser considerada como uma simples forma de

se transcrever a fala nem a fala uma simples oralização do texto escrito, pois como afirma

CHAFE (p. 41-42), fala e escrita têm manifestações físicas distintas: na fala, a manifestação

é por meio de sons, e, na escrita, por meio do registro gráfico.

A língua falada constituir-se-ia de um processo de produção de textos orais que

acontece simultaneamente com seu planejamento, isto é, concebe-se no decorrer da

interação conversacional, face a face, entre os falantes em um contexto específico. Tal

processo de produção de textos tende a ser não planejado, pois este e a sua realização

discursiva são concomitantes. Em consequência disto, a fala carrega algumas marcas de

produção, como, por exemplo, a hesitação.

Levando-se em consideração que o tempo de produção da fala é bem mais curto do

que o da escrita, durante o momento em que se enuncia, há a produção de apenas uma

“ideia” por vez, geralmente de menor extensão e complexidade sintática do que na escrita.

Essa “ideia” é materializada através do que CHAFE (1985) chama de unidades de ideia,

que podem ser entendidas como uma forma que o falante dispõe para fazer uma divisão

daquilo que ele diz, com intenção de ser compreendido melhor. Tais unidades possuem

uma dada quantidade de informação que outro falante é capaz de compreender, ou mesmo

verbalizar em um único foco de consciência.

CHAFE (1985; 1987) defende que as unidades de ideia geralmente correspondem a

sete palavras, que, por sua vez, podem coincidir sintaticamente com as orações, que são

unidades de análise para o texto escrito. Para o Professor, estas unidades expressam um

conteúdo presente na memória de curto prazo que podem ser acionadas durante um foco de

consciência.

Esse pesquisador ainda assevera que uma das características do texto escrito é o fato

de as unidades de ideia se evidenciarem com clareza através do uso dos sinais de pontuação

para a indicação de seus limites. Outra característica desse tipo de texto é a ausência do

contato face a face. O escritor não interage com o leitor, tendo para si a responsabilidade de

planejar e elaborar o texto podendo utilizar-se do que CHAFE (p. 43) denomina “worked

over”, ou seja, a oportunidade que o texto escrito confere a quem o produziu de retornar a

ele lendo-o, revisando-o e até mesmo refazendo-o antes da exposição do seu conteúdo.

Assim, o processo “worked over” favoreceria o processo de expansão das unidades de

ideia, uma vez que as unidades do texto escrito têm a capacidade de serem ampliadas para

unidades mais longas e complexas sintaticamente do que as do texto falado.

Portanto, o texto escrito, evidenciar-se-ia por ser planejado, o que, por conseguinte,

explica o fato de não possuir marcas de produção como acontece nos textos orais. A sua

produção entende-se no tempo (CHAFE, p. 42), antagonicamente aos textos orais. Nas

palavras de MARCUSCHI (2007,p.22), “o tempo de produção e recepção, na fala, é

concomitante, e na escrita, é defasado”.

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No que concerne à repetição, MARCUSCHI (2007) defende que é uma das mais

frequentes e também essenciais estratégias de retextualização na fala. O autor a caracteriza

como uma estratégia facilitadora, ao passo que apresenta uma maleabilidade funcional,

visto que desempenha um conjunto diversificado de funções atuando sobre a organização

discursiva, coesão, continuidade tópica e nas atividades interativas, proporcionando um

envolvimento interpessoal maior e uma textualidade menos densa.

Na fala, que se constitui de um processo de formulação on-line, portanto desprovido

da possibilidade de “worked over”, a repetição é parte integrante do processo formulativo.

O oposto acontece com a escrita, que, ao permitir o “worked over”, possibilita apagamentos

sucessivos que ao chegar à versão final do texto escrito reduziu significativamente a

ocorrência de repetições. Essas realizações diversas da repetição, como aponta

MARCUSCHI (2007), fazem dela um processo que tem avaliação e papel diverso tanto na

fala quanto na escrita.

Para MARCUSCHI (2007, p. 220), “repetir não é simplesmente um ato tautológico,

pois há a expressão de algo novo”. Portanto, repetir os mesmo elementos linguísticos é

diferente de se repetir o mesmo conteúdo, pois durante um evento comunicativo, repetir a

mesmas palavras não tem obrigatoriamente que equivaler a um mesmo conteúdo. Nas

palavras do autor “repetição é a produção de segmentos textuais idênticos ou semelhantes,

duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”.

MARCUSCHI (2007) afirma que a repetição acontece com base em um segmento

discursivo anterior, denominado de Matriz -M- e um segundo segmento, isto é, a repetição -

R-, que deve ser constituída a sua semelhança ou identidade. A Matriz pode gerir

diversificadas repetições aos níveis fonológico-valendo-se de aspectos prosódicos-

morfológico, sintático, lexical, semântico ou pragmático, sem exclusão da criatividade ou

atividades reformuladoras.

A manifestação da repetição é multifuncional. No que diz respeito à produção,

divide-se em autorrepetições e heterorrepetições. Na primeira delas, o falante produz a

repetição da sua fala enquanto que na segunda o interlocutor que repete um segmento

materializado pelo locutor.

No que concerne à distribuição das ocorrências de repetição na cadeia textual, elas

podem encontrar-se adjacentes (contíguas ou próximas a Matriz) ou ainda distantes,

apresentando a repetição de um segmento diversos segmentos adiante. Existem as

repetições com identidade de forma, as quais podem manter um segmento da Matriz

integralmente repetido e que por si só são mais raras dos que as com variação, nas quais,

por exemplo, um item lexical no singular da Matriz pode ser repetido no plural.

Reportando-se a quais categorias linguísticas o segmento repetido pode pertencer,

encontram-se: repetições fonológicas, repetições de morfemas, repetições de itens lexicais,

repetições de construções suboracionais, repetições de construções oracionais.

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MARCUSCHI (2007) aponta como sendo parte do aspecto funcional da repetição a

atuação sob a formulação textual discursiva mais detalhadamente nos planos da

coesividade, compreensão, continuidade tópica, argumentatividade e interatividade.

Ao ressaltar a coesividade, MARCUSCHI menciona o encadeamento intra e

interfrástico no plano da contextualidade destacando a utilização das repetições com a

coesão sequencial e a abundante presença desta na coesão referencial considerando a

modalidade de texto falado como principal portadora dessas relações através de listagens,

amálgamas sintáticos e enquadramentos sintático-discursivos.

No plano da compreensão, as repetições tem por objetivo a atuação na facilitação da

compreensão seja através do fornecimento de pistas que favorecem a apreensão de um

enunciado anterior, isto é, a sua explicitação. Ou ainda, através da repetição com variação,

nas quais a repetição tem escopo de esclarecimento através de expansões sucessivas ou

mesmo tem a finalidade de modificar o tema de um enunciado seguinte a partir do rema de

uma proposição antecedente com isso dando ênfase ao item repetido.

No que diz respeito à organização tópica, MARCUSCHI (2007) ressalta que, dentre

as funções textuais discursivas, as repetições servem para introduzir, reintroduzir, manter

ou delimitar tópicos. E que, para tanto se utilizam de elaborações estruturais diversificadas

em modalidades e extensões, tais como marcadores discursivos, itens lexicais, sintagmas,

orações entre outras. Concernente à argumentatividade, as repetições, especialmente as

oracionais, têm desempenho significativo na construção da argumentação, reafirmando,

contrastando e contestando argumentos.

2. Resultados e Discussão

Nas ocorrências do corpus, ratifica-se amplamente que a função primária da

repetição é de dar ênfase ao que foi dito, ou o professor vale-se dela para assegurar-se de

que foi compreendido pelos alunos durante a exposição do conteúdo, como no exemplo (1).

Há 26 ocorrências desse tipo no corpus exprimidas através de repetição (ou repetição +

expansão, ou repetição + redução ou inversão de ordem). Respectivamente exemplos (1),

(2), (3) e (4).

(1) “Repetição”

.. pode gerar fome mesmo?

.. claro que não,

.. claro que não.

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(2) “Repetição + expansão”

.. é legal,

.. é legal pra fixar.

(3) “Repetição + redução”

.. o Brasil é u::m território/ .. é um país chamado de país .. agro – industrial.

.. ... PROFESSO::R.. agroindustrial?

(4) “Inversão de ordem”

.. a solução verdadeira é uma dispersão?

... primeira pergunta que eu faço pra vocês.

... uma solução .. verdadeira .. é uma dispersão?

A presença da repetição pode ser igualmente marcada por meio do paralelismo

sintático. Há 16 ocorrências desse tipo de repetição no corpus. Em uma das ocorrências,

encontrada em uma aula de Geografia, o professor fala sobre migrações no Brasil

motivadas por desenvolvimento econômico. Ele afirma que se a economia estava se

desenvolvendo no Nordeste, as pessoas iriam para aquela região. E a mesma estrutura

pergunta-resposta é repetida para as demais regiões: Norte, Centro, Sul e Sudeste. Exemplo

(5)

(5) “Paralelismo sintático”

... então a economia estava se desenvolvendo lá no norde::ste,

.. o:: no norde::ste?

.. o pessoal vai pro nordeste,

.. pro nordeste.

.. tá pro no::rte?

.. va::i pro no::rte.

.. tá no CE::ntro?

.. va::i pro centro.

.. tá no SUL?

.. va::i pro sul.

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.. tá no sudeste?

.. vai pro sudeste.

O mesmo professor, ao explicar que os produtores rurais estão deixando de produzir

para arrendar suas terras para usinas de cana de açúcar, usa da repetição para ilustrar que os

vários vizinhos que estão produzindo diferentes culturas tenderiam a seguir o caminho de

um dos vizinhos que arrendou a sua propriedade e conseguiu sustentar-se de forma melhor

do que antes, apenas produzindo ruralmente, como observado no exemplo (6)

(6) “Paralelismo sintático”

.. e eu to produzindo nessa propriedade rural .. feijão.

.. o meu vizinho .. também tem uma propriedade rural,

.. tá produzindo milho,

.. o meu o::utro vizinho tá produzindo .. soja,

.. o meu o::utro vizinho tá produzindo .. arro::z,

.. o meu o::utro vizinho tá produzindo::/

.. que que é isso aqui?

.. milho né?

.. hã?

.. feijão,

.. milho,

.. soja,

.. arroz,

.. e abacá::te .. né,

[risos]

.. mandio::ca,

.. e o meu o::utro vizinho aqui do canto .. tá produzindo cana de açúcar.

Por outro lado, o paralelismo sintático indicando contraste (7) só teve uma

ocorrência no corpus, assim como a repetição de vocábulo para encadeamento de referente

(8), indicadas a seguir.

(7) “Paralelismo sintático indicando contraste”

.. UDR .. União Democrática ... Democrática .. Ruralista.

.. de um lado tem .. esses caras,

.. e do outro lado tem .. o MST,

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.. que é o Movimento dos Trabalhadores ... Traba::lhadores .. Rurais Sem Terra ... Rurais ...

Sem Terra.

(8) “Repetição de vocábulo para encadeamento de referente”

... vai pra cidade.

... chega na cidade,

Além desses casos de repetição, foram encontradas no corpus dez ocorrências de

repetição com motivação icônica, sendo cinco delas para expressar iteratividade (9), três

expressando duração (10) e duas, intensidade (11).

Pode-se apontar uma motivação icônica para a repetição da forma verbal em (11),

uma vez que a reiteração sugere que a manipulação da semente de soja teve alguma

duração.

(9) “Iteratividade”

.. de um lado tem água,

.. do outro lado tem ração.

.. o gado vai,

.. bebe água,

.. come ração,

.. bebe água,

.. come ração,

(10) “Duração”

.. pegam uma sementinha de soja,

.. começam a manipular,

.. manipular,

.. manipular,

.. manipular a sementinha da soja,

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(11) “Intensidade”

.. ó o imposto do feiJÃO,

.. cortei,

.. cortei,

.. cortei,

.. corte::i hein.

E também há dez casos de repetição da estrutura com troca de termos

intercambiáveis (paráfrase com sinônimos, hipônimos, hiperônimos), como no exemplo

(12), que esboça paráfrase com sinônimo, em (13) com a presença de hipônimo e em (14)

com hiperônimo.

(12) “Paráfrase com sinônimo”

.. professor eu não quero comer esse negócio não .. hã,

.. eu não vou comer esse negócio não professor,

(13) “Paráfrase com hipônimo”

.. num frigorífico,

.. num abatedouro de frangos,

(14) “Paráfrase com hiperônimo”

.. disse que a soja transgênica .. até:: faz bem para o corpo,

.. para o organismo,

Considerações finais

Conclui-se, ao analisar as aulas que compõem o corpus da Funcpar (Grupo de Estudos

Funcionalista do Norte/ Nordeste do Paraná), que as ocorrências de interações são

basicamente nulas, pois, como afirma KOCH (2006, p.391), “o professor detém o poder da

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palavra e produz um discurso praticamente monólogo”, pois, como a mesma autora afirma,

nas elocuções formais não há possibilidade simétrica de troca de turno. Ou seja, o

professor, na posse do turno, busca transpor os conteúdos de forma bastante coesa, munido,

para tal, de estratégias de retextualização como a repetição, a paráfrase e a inserção

parentética. Entretanto, nos momentos em que se apresentaram trocas de turnos no corpus,

elas evidenciaram por serem intervenções na forma de perguntas ou reinterações.

Referências

CHAFE, W. Cognitive Constraints on Information Flow. In: TOMLIN, R. Coherence and

Grounding in Discourse. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1987. p. 21-51.

_________. Discourse, Consciousness and Time. The flow and displacement of conscious

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