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A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO Por Ana Leticia Pereira Marques Ferreira Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares Maleval UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Instituto de Letras 2005
71

A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

May 11, 2023

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Page 1: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Por

Ana Leticia Pereira Marques Ferreira

Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro como

requisito para obtenção do título de Mestre em

Literatura Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares

Maleval

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Instituto de Letras

2005

Page 2: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

EXAME DE DISSERTAÇÃO

FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia —

romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado

em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º.

Semestre de 2005. 71 p.

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________ Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora - UERJ)

______________________________________________________ Profa. Dra. Suely Reis Pinheiro (UFF)

______________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Barcellos (UERJ)

______________________________________________________ Prof. Dr. Sergio Nazar David (UERJ) (suplente)

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Este trabalho é dedicado à vó Durvalina e ao

Rodrigo, que vivem comigo a real importância de

tudo isso.

Aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à professora Maria do Amparo Tavares Maleval por ter me apresentado à

Idade Média ainda na Graduação e pelos ensinamentos posteriores, tão importantes e eternos

para mim. Agradeço ainda ao apoio e à solicitude com que sempre me atendeu durante o

curso.

Aos professores que lecionam literatura do século XIX, sem o auxílio dos quais jamais

concluiria minha pesquisa. Agradeço especialmente ao professor Sergio Nazar David, que, em

suas brilhante aulas, faz com que nós, seus alunos, sejamos eternos amantes da literatura e da

cultura vitorianas.

À professora Suely Reis Pinheiro, que, apesar de não me conhecer pessoalmente, não

hesitou em dar a sua preciosa ajuda, através do empréstimo de sua tese Carlitos: a paródia do

herói.

Aos funcionários da Secretária de Pós-Graduação da UERJ sempre prontos a auxiliar,

desde o processo de seleção.

Às amigas Renata e Evânia, ainda da Graduação, que nunca me deixaram desistir...

Aos meus amigos e familiares “do lado de fora” da Universidade, que souberam

compreender as minhas leituras e minhas ausências para que eu pudesse concretizar esse

trabalho.

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SINOPSE

A literatura picaresca como um gênero derivado da Idade

Média. A neopicaresca como releitura do gênero original. A

neopicaresca no século XIX. A divisão d’ A Relíquia em três

aspectos da neopicaresca: religião, trabalho e amor.

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SUMÁRIO

Introdução

1. O romance picaresco e suas origens

1.1 A personificação da astúcia

1.1.1 O Lazarilho de Tormes — o pícaro original

1.2 A representação do herói

1.2.1 Sobre o amor

1.3 O cavaleiro medieval e o pícaro

2. A Relíquia — romance neopicaresco no século XIX

2.1 O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”

2.2 A Relíquia e a recepção da crítica

2.2.1 A classificação d’ A Relíquia como Neopicaresca

2.2.2 Neopicaresca: nova paródia do cavaleiro medieval

3. Aspectos fundamentais da Neopicaresca

3.1 A religião e o trabalho: a moral no século XIX

3.1.1 A Relíquia: dinheiro e religião

3.2 A traição do ideal erótico burguês

3.2.1 Imagens queirosianas da perdição

4. Conclusão

5. Referências Bibliográficas

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FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia —

romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado

em Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º.

Semestre de 2005. 71 p.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é uma leitura da obra A Relíquia, de

Eça de Queirós, sob a ótica da picaresca. Sabemos que a

picaresca foi um gênero surgido na Espanha do século XVI, mas

consideramos uma hipótese de possível recriação do gênero no

século XIX.

Observaremos as origens do romance picaresco e sua relação

com a literatura medieval. Posteriormente, veremos as condições

socio-econômico-culturais para a concretização do gênero no

século XIX. A Relíquia será analisada como um romance

neopicaresco vitoriano em três aspectos básicos para o gênero

picaresco e a sociedade da época: a religião, o trabalho e o amor.

Palavras-chave: Eça de Queirós

A Relíquia

Romance Picaresco

Século XIX

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FERREIRA, Ana Leticia Pereira Marques. A Relíquia —

romance neopicaresco vitoriano. Dissertação de Mestrado em

Literatura Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1º. Semestre de

2005. 71 p.

ABSTRACT

The objective of this project is a lecture of the book A Relíquia,

by Eça de Queirós, from the perspective of picaresque. We

know that the picaresque was a existing genre in Spain’s 16th

century, but we consider a possible new creation of the genre in

the 19th century.

We will notice the picaresque origin and its relation to medieval

literature. At a later stage, we will see the social, economic and

cultural conditions to the genre takes place in the 19th century. A

Relíquia will be analyzed like a Victorian new picaresque novel

in tree basic aspects for the picaresque genre and for the

Victorian era’society: religion, work and love.

Key-words: Eça de Queirós

A Relíquia

Picaresque novel

Nineteen century

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“não olhes ao que possam dizer, mas só ao que te

importa, ou seja ao teu proveito.”

Fala do arcipreste em Lazarilho de Tormes

“Quem deseja ler na arte um mundo melhor confessa,

implicitamente, a negatividade do real; quem, na arte,

insiste na negatividade, espera dela consolo e

superação.”

Flávio R. Kothe

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INTRODUÇÃO

Os romances de Eça de Queirós1, expoente do Realismo português no século XIX, têm

sido estudados pela crítica com avidez proporcional à importância de sua obra. Entretanto,

alguns de seus trabalhos que se abeiram do realismo fantástico não são desmerecidos, mas

recebem sempre uma menor atenção em detrimento de outras obras consideradas uma análise

minuciosa da sociedade lisboeta.

Algumas dessas obras, como O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, Os Maias,

são facilmente lidas como de acordo com os objetivos realistas e o contexto social da época.

O que dizer de uma obra como A Relíquia, que sempre foi desprestigiada pela crítica luso-

brasileira apesar do sucesso alcançado no exterior?

Desde a sua publicação, essa obra enfrenta problemas com a crítica, que a rejeitou ainda

no concurso da Academia das Ciências de Lisboa. A maior dificuldade de compreensão por

parte dos estudiosos está presente na complexa classificação imposta ao romance, uma vez

que A Relíquia não se enquadra facilmente em nenhum padrão preestabelecido. Literatura

realista, fantástica, sátira, paródia, pastiche, farsa, picaresca? Como identificar apenas um

gênero em uma obra tão distinta das demais publicadas no período e mesmo das publicadas

pelo próprio Eça? De que forma seria possível relacionar A Relíquia com a picaresca?

A literatura picaresca surgiu com o Lazarilho de Tormes, romance anônimo, de 1554,

na Espanha do Século de Ouro. Analisando os estudos já realizados sobre o gênero,

observamos que estava restrito a um dado contexto socio-econômico-cultural, visto que o

pícaro, personagem principal, segue um determinado conjunto de características para

participar de uma jornada própria em busca da ascensão social.

Tendo em vista a semelhança de comportamento entre o pícaro original, Lázaro, de

Lazarilho de Tormes, e Teodorico Raposo, de A Relíquia, vários críticos, como Manuel da

Costa Fontes (1976: 30) e Alberto Machado da Rosa (1963: 206), não hesitaram em

classificar a obra como picaresca. Contudo, Carlos Reis, um dos maiores pesquisadores da

1 Eça de Queirós nasceu em 15 de novembro de 1845, em Póvoa do Varzim, Portugal, filho natural de José de Almeida Teixeira de Queirós e Carolina Augusta Pereira de Eça. Aprendeu a ler e a escrever com um padre e freqüentou, posteriormente o Colégio de Nossa Senhora da Lapa. Forma-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1866, mas no mesmo ano já começa a escrever para o jornal Distrito de Évora; logo consolidaria sua carreira literária. Morreu em 16 de Agosto de 1900, em Paris. Para maiores informações, consultar bibliografias queirosianas: SIMÕES, João Gaspar. Vida e Obra de Eça de Queirós. Lisboa: Bertrand, 1980., MAGALHÃES, José Calvet. Eça de Queirós: a vida privada. Lisboa: Bizâncio, 2000.

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obra de Eça de Queirós, no que diz respeito a A Relíquia, refuta essa classificação,

indicando a restrição encontrada no contexto do século XIX, que em nada se pareceria com o

contexto original do gênero, no século XVI.

Para resolver esse impasse e por acreditar que em épocas distintas ao Século de Ouro

espanhol houve personagens como o pícaro Lazarilho (de origem baixa, astuciosos, ociosos,

beirando a marginalidade e interessados em vencer em uma sociedade que apenas privilegia

os ricos e bem nascidos, mas que oferece caminhos escusos para os “mais espertos”),

compartilhamos da opinião do crítico Mario González. De acordo com esse pesquisador da

USP, podemos considerar uma categoria de romances publicados nos séculos XIX e XX, que

não se apresenta exatamente como o original Lazarilho de Tormes, mas que oferece

características semelhantes de seu personagem principal e “pode ser lida à luz do modelo

clássico espanhol”. (GONZÁLEZ, 1988: 41). A essa categoria o autor dá o nome de

neopicaresca e será essa a terminologia que utilizaremos nesse trabalho.

Iniciaremos pela demonstração da relação parodística existente entre o romance

picaresco e os modelos clássicos de narrativa, como a novela de cavalaria. Para este primeiro

momento, utilizaremos como objetos de análise a primeira obra picaresca, Lazarilho de

Tormes e das suas Fortunas e Adversidades, e narrativas medievais, tendo como fim

evidenciar a relação primeira que há entre o pícaro e o cavaleiro medieval, seu inspirador.

O nosso principal objetivo é apresentar a neopicaresca como um gênero plenamente

integrado ao contexto socio-econômico-cultural do século XIX, provando assim que A

Relíquia não é de forma alguma uma obra desvinculada do que se considera o Realismo

português e o estilo queirosiano.

Para tanto, analisaremos não só o modo como os realistas se viam em Portugal

enquanto movimento literário, mas também a recepção da crítica na época do lançamento do

livro e as visões posteriores que relacionaram a obra à picaresca. De acordo com as

conclusões observadas acerca da picaresca, podemos dividir o romance neopicaresco

vitoriano em três aspectos fundamentais que serão abordados na parte final desse trabalho: a

religião, o trabalho e o amor.

Esses três temas são caríssimos tanto ao Romantismo quanto ao Realismo, estilos

preponderantes no século XIX, e, da mesma forma, são pontos fundamentais para que o

pícaro se apresente como um indivíduo capaz de galgar a escada social. Assim, pretendemos

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estabelecer um caminho único entre uma criação próxima à picaresca original e um

romance da época vitoriana.

Tomaremos como base a edição do Lazarilho de Tormes publicada em Alcalá, na

tradução de Arsénio Mota. A versão de Alcalá foi escolhida por ser a única não alterada pela

Inquisição, que ficou incomodada com as referências aos maus hábitos de alguns

eclesiásticos. No que diz respeito à A Relíquia, consideraremos a segunda edição, uma vez

que ainda durante a sua publicação em folhetins na Gazeta de Notícias, em 1887, o livro foi

lançado sem a autorização do autor. A segunda edição, entretanto, foi publicada em 1891 com

a autorização de Eça e é considerada ne varietur.

1. O ROMANCE PICARESCO E SUAS ORIGENS

Durante séculos, a novela de cavalaria foi uma das poucas, senão a única boa

representação literária da Idade Média. Considerado por muitos historiadores como uma

época “negra”, de decadência, o período medieval possuía como contraponto as idealizadas

virtudes dos santos e, o que nos interessa mais de perto, dos cavaleiros — belos, corajosos,

determinados, leais e, acima de tudo, defensores das donzelas, dos injustiçados e desvalidos.

É certo que essa literatura, carro-chefe das manifestações artísticas de uma era,

influencia até hoje obras da literatura mundial. Entretanto, o que poderíamos dizer sobre sua

influência no romance picaresco, gênero surgido em 1554 — período em que, independente

das manifestações culturais e do pensamento filosófico renascentistas, a organização socio-

econômica já começava a negar o sistema feudal?

A primeira idéia é acreditar que, sendo o romance picaresco uma obra moderna em

relação à produção anterior, esse gênero seria nada mais que uma ruptura, uma negação direta

dos valores medievos. Essa conclusão inicial é lógica, uma vez que o pícaro, personagem

representante da desonra e da ascensão social através de trapaças, mostra-se o inverso dos

ideais cavalheirescos. Todavia, é possível observar nessa oposição características típicas da

literatura medieval. Não cabe aqui analisar as origens desse paradoxo ou questionar o fato de

o romance picaresco ser ou não uma releitura da novela de cavalaria. O objetivo é sim,

distinguir o que de tão especial na Idade Média e no herói medieval continuou influindo na

literatura após esse período.

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Para isso, será analisada A vida de Lazarilho de Tormes e das suas Fortunas e

Adversidades, não apenas por ser a primeira novela picaresca, mas também porque foi a única

obra do período picaresco espanhol clássico (1552-1646) que não foi influenciada pela

censura da Inquisição. A partir, então, das características observadas no pícaro, será feita uma

comparação com as características do herói medieval para que possamos constatar os aspectos

da tradição medieva que integram as narrativas ditas picarescas.

1.1 A personificação da astúcia — o romance picaresco e seu herói

Para entendermos o romance picaresco, precisamos conhecer seu herói — o pícaro. Esta

palavra, usada inicialmente para designar os ajudantes de cozinha, passou a significar

“desocupado ou subempregado que, sobrevivendo pela astúcia, atingia facilmente a

delinqüência” (GONZÁLEZ, 1992:17). Considerado um anti-herói, o pícaro é alguém com

origem social baixa, que vive astuciosamente para ascender na sociedade. Para isso, faz o

mínimo de trabalho e o máximo de trapaça possível, sempre se envolvendo em aventuras e

sem, de forma alguma, ter crises de consciência em relação ao “vencido”.

O pícaro é um herói único porque, por meio de suas atitudes, rebaixa a si mesmo, por

desprezo à classe social à qual pertence, mas também rebaixa as classes privilegiadas, por

inveja.

Como seu grande objetivo é ascender socialmente, comporta-se como os ricos — não

trabalha e ostenta uma falsa imagem por conta do vestuário. Vive de aparências porque

este é o caminho mais simples para ser um “homem de bem”, sua meta final. Evidencia

assim não só a sua ilicitude, como também a daqueles que detêm o poder. Esse anti-herói

nada mais é que uma paródia da promoção social burguesa, em uma sociedade que

despreza os valores dessa classe.

É certo que toda obra literária, mesmo que não intencionalmente, reflete a sociedade

em que está inserida, algumas vezes relacionando-se à função de compensação, outras de

crítica etc. Isso fica ainda mais claro quando tomamos por base o que é o pícaro. Torna-se

evidente, através da sua trajetória de vida, a crítica, ou melhor, a sátira a uma estrutura

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social específica. Então, é possível concluir que o romance picaresco não pode ser visto

desvinculado do período histórico ao qual pertence.

Para entender esse gênero, é preciso desvendar o sistema social que necessita de um

herói tão astucioso. Para isso, é necessário lembrar que o período que envolve a segunda

metade do século XVI e a primeira do século XVII na Espanha, época do surgimento do

romance picaresco, é considerado o Século de Ouro2 espanhol, pois é durante esse tempo

que as artes e a literatura, em particular, apresentam grande desenvolvimento. No entanto,

também é caracterizado pela disparidade na distribuição de renda e poder. Conviviam no

mesmo país a riqueza de poucos e a miséria absoluta de muitos, cuja vida se resumia em

um verdadeiro estado de mendicância.

Também é importante ressaltar que o Absolutismo excluía todos aqueles que não

pertencessem à nobreza e a “unificação ideológica dos cidadãos peninsulares” (GONZÁLEZ,

1994: 21) afastava ou bania todos os que não fossem católicos.

Dessa forma, estavam impossibilitados de ascensão social pela organização político-

ideológica os nobres com pouco poder, a burguesia (cuja parcela significativa era formada por

judeus) e, os naturalmente excluídos, escravos e pobres em estado de mendicância, como o

pícaro Lázaro de Tormes.

Os burgueses que conseguiam enriquecer (às vezes por meios escusos) tentavam se

aproximar dos nobres, sendo repelidos. Os nobres sem poder só alcançavam um extrato

superior se fossem grandes conquistadores. Independente dos dois aspectos, o pícaro unirá em

sua trajetória os dois caminhos — a “trapaça” burguesa e a aventura cavaleiresca.

Através da sociedade em que vive,

vemos no pícaro não apenas uma conduta “desviada”, mas uma realização paralela à da banida ideologia burguesa, a maña que já Lázaro de Tormes enuncia junto com a fuerza, que, em nosso entender, seria a paródia da conquista cavaleiresca. (GONZÁLEZ, 1994: 33)

2 O Século de Ouro espanhol dura, na verdade, mais de um século e corresponde ao período entre o reinado de Carlos V (1516) e Filipe IV (1659). Com a extração de ouro e prata da América, a Espanha realizou várias operações comerciais favoráveis e expandiu seu território, alcançando grande poder econômico e político. Também nessa época surgiram grandes nomes da cultura como Cervantes, Lope de Vega, Quevedo, Gongora e Velázquez, entre outros.

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Deduz-se que o pícaro não existiria se não houvesse o contexto social no qual está

inserido. É preciso frisar que esse anti-herói não é conseqüência da sociedade, mas sim uma

reprodução de tipos existentes. Constitui, primordialmente, uma sátira em detrimento da

crítica simples e objetiva. O desenvolvimento do pícaro, enquanto personagem, é dependente

das condições econômicas da Espanha dos séculos XVI-XVII e da estrutura imóvel dessa

sociedade, que impedia por meios simples e lícitos a ascensão social.

Seria fácil, portanto, inferir que o romance picaresco ficou restrito àquele contexto

espanhol. Contudo, é possível observar características da picaresca em obras muito

posteriores ao período citado. É certo que o contexto socio-econômico-cultural jamais se

repetiu, mas o que torna as obras posteriores ao Lazarilho de Tormes pertencentes à picaresca

é a “resposta semelhante” do pícaro às diversas situações (GONZÁLEZ, 1994: 282). Isso

significa que o ambiente não é o mesmo, mas as atitudes são semelhantes. Essas reproduções

do primeiro pícaro podem ser chamadas de Neopicaresca.

Podemos afirmar então, que o romance picaresco (independente de estar relacionado à

primeira obra do gênero) é o contexto socio-econômico-cultural do pícaro, enunciado através

de uma narração crítica, ficcional e autobiográfica das suas trapaças para ascender

socialmente.

1.1.1 O Lazarilho de Tormes — o pícaro original

O Lazarilho de Tormes e das suas Fortunas e Adversidades é o primeiro romance

picaresco de que se tem notícia. Narrativa de autor anônimo e de tradição oral, vem para

transformar o panorama de sucesso absoluto das novelas de cavalaria, uma vez que teve um

bom êxito entre o público e obteve três edições no ano de sua publicação (1554), fato

marcante para a época. Das três edições, Burgos, Antuérpia e Alcalá, apenas a última

encontra-se em sua versão original, aqui analisada. Isso se deve ao fato de, visto o interesse

demonstrado pelo público, a obra ter sido censurada pela Inquisição, uma vez que um dos

principais alvos de sua crítica é o clero.

Esse livro, considerado o primeiro romance picaresco, nada mais é que uma antítese das

novelas de cavalaria — seu protagonista é um anti-herói, verdadeiro representante da desonra,

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e possui como principal objetivo a ascensão social, independente dos meios que utiliza.

Seu sucesso pode ser explicado pela situação de imobilidade social vivida pela burguesia

espanhola, que, apesar de ser criticada e satirizada no livro, será seu principal consumidor.

O texto, ao contrário da tradição medieval, é narrado em primeira pessoa, o que nos dá a

visão de mundo do personagem. Lazarilho nasce à beira do rio Tormes, filho de um pai ladrão

e de uma mãe que logo o entrega a um cego para ser seu guia. O responsável por Lázaro o faz

passar fome, o que resulta no desenvolvimento das astúcias do protagonista para enganá-lo e

conseguir comer. Do amo cego, Lázaro passa a um clérigo, ainda mais avaro, que descobre

seus pequenos furtos e o despede. Então, se torna criado de um escudeiro, que vive de

aparências e acaba sendo sustentado pelo próprio Lázaro. Após a fuga de seu amo, o herói (ou

melhor, anti-herói) passa a ser criado de um frade pouco confiável e, logo depois, de um

buleiro trapaceiro. Por fim, Lázaro passa a vender água para um capelão e já se considera um

“homem de bem”, por vestir-se melhor. Procurando ascensão social, consegue ser pregoeiro,

ofício no qual conhece um arcipestre. Este religioso casa Lázaro com uma criada sua para

encobrir a relação clandestina que com ela mantinha e parecer bem perante os fiéis e a

sociedade.

Dessa forma, o protagonista, caracterizado por sua total falta de honra, serve ao

propósito da obra, de desvendar a desonra de uma sociedade de aparências. A crítica

efetivada se destina à hipocrisia dos homens, em especial dos eclesiásticos e do próprio

escudeiro, que não admite ser pobre e ostenta uma aparência falsa. Todavia, o principal

aspecto crítico de Lazarilho está no fato de o protagonista não se reconhecer como uma

reprodução do sistema, visto que durante sua vida trapaceia tanto quanto seus amos. Mente,

finge, comporta-se sempre de maneira imoral em benefício próprio, buscando em todas as

situações tirar proveito particular. Não se pode dizer que seja inteiramente mau, mas também

não é apenas vítima de uma sociedade que o fez miserável. É, sim, limitado moralmente como

a sociedade criticada pela obra, uma vez que almeja, a todo custo, uma situação de remediado

conforto e sempre tenta driblar as suspeitas da sociedade local sobre seu casamento, tão

hipócrita como toda a sua trajetória.

O que faz o Lazarilho ser tão interessante é o fato de vencer escudado na hipocrisia

alheia, já que, se tenta acabar com as desconfianças sobre seu casamento, também se beneficia

da situação, vingando-se na certeza de que é o único realmente favorecido, comodamente

amparado pelos olhares complacentes da sociedade.

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Tendo em vista a vida do pícaro Lázaro, cuja imoralidade e desonra o tornam tão

diverso do cavaleiro medieval, é de grande importância compará-los para que possam ser

observadas as oposições entre ambos.

1.2 A representação do herói

Como é sabido, a imagem de herói existente na Idade Média cabe ao cavaleiro. Até o

final do século IX, a Cavalaria era um “grupo social bastante próximo da aristocracia rural

originária da nobreza carolíngia” (COSTA, sd: 1), trabalhando para esta aristocracia.

Entretanto, nos séculos subseqüentes, os cavaleiros ascenderam e tornaram-se detentores de

terra, apesar de em alguns lugares, como em Portugal, continuarem a ser vistos como uma

“camada mais baixa da nobreza” (COSTA, sd: 1). De qualquer forma, continuaram a existir

cavaleiros que mantinham relações de vassalagem com seu senhor, justificadas através do

serviço militar oferecido pela Cavalaria. Essa estrutura feudal era a causa da violência

promovida pelo grupo, que pilhava e agredia para destruir o poder dos inimigos de seu senhor.

Com o fim de proteger todos aqueles que sofriam as agressões dos cavaleiros

(camponeses, principalmente), surgiram várias assembléias para criar uma campanha

denominada Paz de Deus, que visava à cristianização da Cavalaria, numa tentativa de torná-la

mais “civilizada”. Forma-se, então, um ideal cavaleiresco para que as pessoas não-armadas

não fossem agredidas, mas sim protegidas pelos cavaleiros. Uma das representações desse

ideal cavaleiresco é o Livro da Ordem de Cavalaria, de Ramon Llull, cujo objetivo era

iluminar com valores morais e éticos os novos pretendentes à cavalaria, registrando por escrito os códigos cavaleirescos, a sacralização do rito de passagem (adoubament), a simbologia das armas do cavaleiro e principalmente as virtudes que o cavaleiro deveria conhecer e os vícios que deveria evitar para honrar a ordem de cavalaria e se tornar um cavaleiro de “bons costumes e bons ensinamentos” (COSTA, sd: 01).

Como defensor do Cristianismo — “ofício de cavaleiro é manter e defender a santa fé

católica pela qual Deus, o Pai, enviou seu Filho para encarnar na virgem gloriosa Nossa

Senhora Santa Maria, e para a fé ser honrada e multiplicada” (LLULL, 2000: 23) — , o

cavaleiro deveria ser amado e temido por todos para que a ordem pudesse voltar a vigorar:

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Amor e temor convêm entre si contra desamor e menosprezo; e por isso, convém que o cavaleiro, por nobreza de coragem e de bons costumes, e pela honra tão alta e tão grande que lhe foi feita por eleição, e pelo cavalo e pelas armas, seja amado e temido pelas gentes, e que pelo amor retornassem a caridade e ensinamento, e pelo temor retornassem a verdade e a justiça (LLULL, 2000:15).

Fica clara a intenção de controlar os impulsos por vezes sanguinários dos cavaleiros,

visto que até mesmo do temor nascem duas virtudes (verdade e justiça) e para ser temido, não

necessariamente é preciso ser violento.

São narrados ainda o exame pelo qual passava o escudeiro para sagrar-se cavaleiro, a

forma como deveria entrar na Cavalaria e o significado de suas armas. No entanto, a parte

mais importante do Livro é o penúltimo capítulo, que explicita “os costumes que pertencem a

cavaleiro” (LLULL, 2000: 89). Aqui, Llull opõe as virtudes dos cavaleiros aos vícios

humanos.

Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são justiça, prudência, fortaleza e temperança. (LLULL, 2000: 89)

Com as virtudes teologais, o cavaleiro teria sempre em mente que serve a Deus e não

faltaria coragem para vencer os inimigos e ter piedade para com eles e com os desprotegidos.

Já as virtudes cardeais serviriam para que o cavaleiro fosse temperante, justo e prudente em

sua vida e em suas batalhas, sempre forte para combater os sete pecados capitais. Segundo

Ricardo da Costa, “de todas as virtudes, a fortaleza seria a mais necessária ao cavaleiro, pois

ela combateria a luxúria, a avareza, a preguiça, a soberba e a inveja, pecados mortais que

provavelmente assolavam a cavalaria da época” (sd: 10).

Apesar de utópica, essa é uma obra não-ficcional, que realmente visava à doutrinação

dos cavaleiros. De acordo com a crítica (COSTA, 2000: XXV), o livro de Llull foi

provavelmente escrito entre os anos de 1279 e 1283, o que explica a influência literária

exercida em seu Prólogo. Para justificar os objetivos do manual, o autor narra a história de um

eremita, ex-cavaleiro, que encontra um escudeiro desejoso de tornar-se cavaleiro. Ao saber

que o rapaz não conhecia as regras da Cavalaria, o eremita lhe entrega o livro, que ensina a

honra e a ordem necessárias. Depois de sagrado cavaleiro, o aprendiz do eremita dá o livro de

presente ao rei, para que todos fossem melhor doutrinados a partir daquele momento. Fica

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clara a relação entre o Prólogo d’ O Livro da Ordem de Cavalaria e as novelas do

chamado Ciclo do Graal, iniciado no século XII. As histórias do Ciclo contam a busca do

Graal pelos cavaleiros do rei Artur, para que a prosperidade retornasse a Camelot. A presença

do bosque, do ermitão doutrinador do escudeiro que quer ser cavaleiro, do discurso alegórico,

já foram citadas pela literatura especializada (COSTA, 2000: XXVI) como uma relação óbvia

entre realidade e ficção.

As obras ficcionais também pregavam um bom comportamento do cavaleiro. Talvez a

mais significativa entre as novelas do Ciclo, A Demanda do Santo Graal possuía em comum

como O Livro da Ordem de Cavalaria não apenas o prólogo, mas também o público-alvo e o

contexto histórico.

A versão portuguesa d’ A Demanda do Santo Graal (NUNES,1995) pertencente à

Biblioteca Nacional de Viena, foi traduzida no século XV, provavelmente de um original

francês do século XIII. Essa expoente novela de cavalaria narra a saga de Galaaz, que, apesar

de ser filho bastardo de Lancelote, é o cavaleiro “puro dos puros”, que irá, ao lado de Boorz e

Persival, iniciar a demanda para encontrar o vaso que contém as últimas gotas do sangue de

Cristo, recolhidas por José de Arimatéia. Apenas Galaaz é o eleito, justamente por ser o único

que não comete pecados. Sem questionar sua imensa qualidade literária, é possível afirmar

que a Demanda é um livro extremamente didático, inclusive citado por António José Saraiva

como um condicionador da “educação severa dos filhos de D. João I” (Apud MONGELLI,

1992: 61).

Dentre as razões existentes para a criação de uma obra moralizante na Idade Média estão a voga do

neoceltismo, que poderia significar um perigo frente à fé cristã, a divulgação das Cruzadas e a ascensão da

Cavalaria, que se aproximava cada vez mais de um modelo de confraria religiosa.

Impregnada da atmosfera mística da Baixa Idade Média e às vezes “colada” à realidade histórica, a Demanda pode ser interpretada como admirável alegoria de uma peregrinatio nos moldes cristãos das Cruzadas, a ponto de se confundirem os limites entre verdade e fantasia (MONGELLI, 1992:76).

Logo, em uma obra mesclada de realidade e ficção, não é passível de estranhamento o

fato de a Demanda opor a castidade de Galaaz aos pecados mortais concretizados por seus

companheiros. Assim, o perjúrio, a prevaricação, o adultério e a traição são as causas de os

demais cavaleiros perderem para Galaaz a chance “divina” de encontrar o Graal. A honra de

Galaaz é a razão para ter sido, antes de mais nada, sagrado cavaleiro. Ao saber que Lancelote

Page 20: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

fará Galaaz cavaleiro, o ermitão que o acompanha afirma que o pecado do nascimento

não atingiu Galaaz, muito pelo contrário, através do poder divino, ele será o escolhido para

triunfar:

Ca Deus, que te fez nascer em tal pecado como tu sabes, por mostrar seu gram poder, essa gram virtude te outorgou por piedade e pola bõa vida que tu começaste de tua menenice até aqui que te dará poder e força e bondade de armas e de ardimento sobre todolos cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres, assi que tu darás cima a todalas outras maravilhas e aventuras u todolos outros falecerom e falecerám. E por em quero todos teus feitos saber que acabarás, que foste feito em tal pecado, u os outros nom poderom hi aviir, que forom feitos em leal casamento (NUNES, sd: 22).

Já em busca do Graal, Boorz e Galaaz hospedam-se no castelo do rei Brutos. Lá, a filha

do rei se apaixona por Galaaz e deseja se relacionar com ele, que jamais vê nisso uma

tentação para sua pureza. Apesar da surpresa inicial diante da recusa do herói, ela reconhece

logo no cavaleiro uma figura diferente do imaginário (ou da realidade?) popular:

Nom é ele cavaleiro dos cavaleiros andantes, que dizem que sam namorados, mas é daqueles que a sua vida e a sua lidice é sempre em penitência, pola qual lhes vem gram bem pera o outro mundo e perdoa Deus aaqueles que erro houverem feito contra ele. E per niũa tem, disse ela, nom posso eu acabar com ele o que querria. E, como quer que este cavaleiro seja ledo pera parecer, grande é o marteiro da sua carne; mas mostra bem que o seu coraçom pensa em al. Tal a minha carne mizquinha cativa hei quanto pensava. E este é dos verdadeiros cavaleiros da demanda do Santo Graal e em mal ponto foi atam fremoso por mim (NUNES, sd: 93).

Lancelote, pai de Galaaz e talvez o único que pudesse ser comparado a ele por ser o

mais famoso e valente cavaleiro do rei Artur, concentra em si mesmo uma ambigüidade que a

Demanda não pode permitir. Não há espaço para os vícios, pois pecar contra Deus significa

perder todas as outras virtudes. Em uma visão, Lancelote é “avisado” do triste fim que poderia

ter após trair a amizade de Artur ao se envolver com sua mulher, Ginevra:

E Lançarot, que estas vozes tam dooridas ouvia, foi tam espantado que cuidava a morrer de medo e rogava aqueles que o levavam que o leixassem ir, mas eles nom querriam, ante o levavam a ũa cova muito escura e mui negra e chea de fogo que cheirava tam mal que maravilha era. E el catava na cova e viia ũa gram cadeira de fogo assim acesa como se i ardesse todo o fogo do mundo. E em meo daquele fogo ũa cadeira em que siia a rainha Genevra toda nua e suas mãos ante seu peito; e siia escabelada e havia a língua tirada fora da boca e ardia-lhe tam claramente como se fosse ũagossa candea; e havia na cabeça ua coroa de espinhas que ardia a gram maravilha e ela meesma ardia de todas partes ali u siia.

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(...) — Ai, Lançarot! Tam mau foi o dia em que vos eu conhoci! Taes sam os galardões do vosso amor! Vós me havedes metuda em esta grande coita em que veedes; e eu vos meterei em tam grande ou em maior, e pesa-me muito, ca pero eu som perduda e metuda em gram coita do Inferno, nom querria que aveesse assi a vós, ante querria que aveesse a mim, se Deus aprouvesse (NUNES, sd: 159-160).

Em nenhum momento, Lancelote pensa em trair a Cavalaria e seu amor por Ginevra é

puro e verdadeiro, no entanto, não abre mão desse amor e vive em pecado até a morte da

rainha. Além disso, não podemos esquecer que Lancelote é o pai que causa a origem ilícita de

Galaaz, gerado fora do casamento. Assim, observa-se a moral que permeia toda a obra, a

castidade é o único meio de lutar contra os vícios e não perder as virtudes, que levam a Deus e

garantem a salvação.

É portanto lógico que o único verdadeiramente casto, Galaaz, seja o escolhido para

encontrar o Graal. Ainda poderíamos questionar se essa é realmente imagem que se deseja ter

de um cavaleiro medieval. Em outra novela de grande sucesso, publicada em língua espanhola

em 1508 por Garcí Rodríguez de Montalvo, o Amadis de Gaula, cria-se um cavaleiro

totalmente distinto de Galaaz. Apesar de ser honrado e justo, e de defender o reino e a

religião, como o herói da Demanda, Amadis fará também a defesa da mulher amada. A meta

de Amadis é distinta da de Galaaz, pois tem a mulher amada, que é o seu Graal.

Não podemos nunca esquecer que, apesar de Galaaz e Amadis serem exemplos de

moral, isso, contudo, não diminuía o caráter humano presente nas obras de ficção, como nos

mostra o Amadis de Gaula. A idealização não passava perto das situações de batalha, durante

as quais a proteção do reino e da honra da donzela eram justificadas a qualquer preço.

O cavaleiro mostrava-se distinto da pureza de sentimentos e amorosidade que

demonstrava no trato com a mulher amada. A força e a crueldade eram suficientes para

“decapitar a rir o inimigo”, como, por exemplo, no caso de Amadis (MALEVAL, 1992:151).

Essas atitudes diante de um combate não se pareciam com os demais valores dos cavaleiros

ficcionais, entretanto estavam justificadas tendo em conta seu objetivo final.

O que realmente diferencia Amadis de Galaaz é a escolha do seu amor. Ao passo que n’

A Demanda do Santo Graal o amor é espiritual, voltado para a salvação do reino e dos

homens, no Amadis de Gaula, o amor é totalmente material e visa, antes de mais nada, a

realização da carne.

Page 22: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Tendo em vista os objetivos reais de transformação da Cavalaria e sua conseqüente

cristianização, é possível concluir que o ideal de cavaleiro, modelo a ser seguido, era Galaaz

que coloca seu reino e sua religião acima de qualquer outro amor que pudesse haver. Ou

melhor, nem sequer cogita a possibilidade de existir um outro amor que não seja pela Fé e

pelo seu senhor.

1.2.1 Sobre o amor

Ainda que tenhamos em mente o ideal de cavaleiro como Galaaz, que apenas vê a

religião e a pátria, não é possível deixar de observar que um cavaleiro como Lancelote ou

Amadis via no amor carnal um outro tipo de realização. Assim como o Livro da Ordem de

Cavalaria regia o comportamento moral do cavaleiro em relação ao seu senhor , às batalhas e

ao inimigo, também havia como reger o comportamento amoroso do homem.

Acreditamos não caber novamente o questionamento acerca do que se insere ou não na

esfera do ficcional3. Ao tratarmos de Idade Média, é certo que manuais de conduta serão, se

vistos sob os olhos hodiernos, utópicos. Talvez também o fossem naquela época, mas se

existiam é porque havia grande necessidade de delimitar o que poderia ser aceito ou não em

dada sociedade.

Assim, existiam manuais de conduta para o amor (cortês), amor que certamente não se

encontrava no espaço do casamento. Este, via de regra, entre os nobres consistia em um mero

contrato, visando o acréscimo patrimonial das famílias dos nubentes, necessitando de uma

válvula de escape para a sua manutenção. Daí o costume dos solteiros se dedicarem à corte de

uma dama casada de forma respeitosa.

Talvez o mais famoso dentre os tratados seja De Amore, de Andreas Capellanus, escrito

por volta do século XII, com primeira edição datada do século XV. Na tradução de Maria do

Amparo Tavares Maleval, André Capelão afirma que “o amor é uma paixão inata que tem sua

origem na percepção da beleza do outro sexo e a obsessão por essa beleza pelo que se deseja,

sobre todas as coisas, possuir os abraços do outro e, nestes abraços, cumprir, de comum

acordo, todos os mandamentos do amor” (Apud MALEVAL, 1999: 65). É evidente a tentativa

de regulamentar o amor e o sexo como se regulamentava a estada do cavaleiro na Cavalaria.

3 Sobre o caráter ficcional do amor cortês, é interessante ler DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

Page 23: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Isso, entretanto, não diminui o caráter idealizado e literalmente cortês do Tratado que

prega, entre outras regras:

I. Deves conservar-te casto para tua amada. (...)

VII. Busca pertencer sempre à cavalaria do amor obedecendo aos mandados de suas damas. VIII. Ao dar e receber os prazeres do amor, deve-se respeitar sempre o pudor.

(...) XI. Mostra-te educado e cortês a todo momento (Apud MALEVAL, 1999: 65).

As regras estabelecem, dentre outros aspectos, as qualidades da mulher que mereça ser

cortejada e o combate à avareza e a outros procedimentos que pudessem ser considerados

descorteses, como a maledicência e a mentira. O que o Tratado de André Capelão deixa claro

é o amor como um servir, devendo a dama ser superior, respeitada e atendida sempre.

De acordo com Maleval, é claro o caráter fictício do amor cortês, visto que

o amor se colocava, então, literariamente, como um serviço, sendo o trovar um depurada forma de se prestar vassalagem à ‘senhor’, ora objetivando o alcance de recompensa, ora de forma abnegada, esta muito comum ente os trovadores galego-portugueses, que tematizavam preferentemente a coyta em seus cantares (MALEVAL, 1995: 38).

Então, considerando já a tendência como mais um aspecto literário da construção da

figura do cavaleiro, temos este que se coloca na figura de vassalo para louvar a mulher, que se

apresenta como suserana. A mulher e o amor são invariavelmente idealizados. No entanto,

nem sempre são necessariamente consumados da forma pudica apresentada no Tratado. De

outro lado da tradição medieval, temos as cantigas de amigo nas quais a mulher nem está

sempre distante do homem, mas pode apresentar um comportamento mais “masculinizado”,

no sentido de buscar a conquista amorosa em vez de esperar ser louvada. A própria novela de

cavalaria mostra regras do amor cortês já citadas, principalmente as relativas à castidade em

relação a outras mulheres e à devoção à mulher sendo cumpridas, porém mostra a mulher

como parcela participativa no jogo amoroso. Em Amadis de Gaula, tanto Elisena quanto

Oriana não pensam duas vezes antes de se entregarem a Perion e Amadis, respectivamente,

ainda que fora do casamento.

É importante retomarmos o amor como aspecto do imaginário medieval porque ele será,

assim como as características morais, revisitado por obras literárias posteriores. Os tratados,

Page 24: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

assim como as narrativas das novelas de cavalaria eram obviamente doutrinadoras e

serão, justamente por conta disso, desconstruídos nos gêneros que recriam a Idade Média

através de um olhar satírico.

1.3 O cavaleiro medieval e o pícaro — coragem e artimanhas

Como já observamos, as novelas de cavalaria apresentavam o cavaleiro como um

modelo de virtude. Com beleza, coragem e lealdade inigualáveis, o herói era determinado na

defesa do seu reino, da sua religião e da mulher amada, cuja beleza e virtude também eram

ímpares.

O Livro da Ordem de Cavalaria, como um grande manual de conduta que pretendia ser,

apresenta a defesa de valores caros à época, com um fervor (obviamente necessário, tendo em

vista a situação social vivida) que beira o ficcional. É lógico, portanto, que mantenha grandes

semelhanças com obras ficcionais como é o caso da Demanda do Santo Graal. Mas apesar de

ser um manual nem sempre cumprido por todos, estava próximo também do cavaleiro

retratado nas narrativas de linhagens — que traçavam a genealogia dos nobres — justamente

por essas serem histórias reais (ou com leves toques de ficção para a valorização da

linhagem).

Real ou ficcional, o que há de comum a respeito da vida dos cavaleiros é a coragem e as

artimanhas empregadas para a concretização de um objetivo, ainda que para isso a violência

fosse justificada a qualquer preço.

Para falar do cavaleiro medieval e retomar as características medievas em Lazarilho de

Tormes, foi escolhida a narrativa dos livros de linhagem Miragaia, ou A Lenda de Gaia

(MATTOSO, 1983: 49). Trata-se da história de D. Ramiro, um rei com poucas virtudes (ou

nenhuma) e com um caráter semelhante ao do anti-herói Lazarilho. Esta narrativa possui duas

versões — a primeira é do Livro Velho de Linhagens (1260-1270) e a segunda, do Livro de

Linhagens ao Conde D. Pedro (1340)4. A edição do Conde D. Pedro será aqui analisada

4 As duas versões diferenm no que diz respeito ao caráter do rei cristão (Ramiro) e do rei muçulmano (Alboazer). Na primeira narrativa, a esposa de Ramiro é raptada por Alboazer, que quebra um acordo de paz. D. Ramiro então procura pela esposa nos domínios de Alboazer, mas é denunciado pela própria esposa. No entanto, salva-se e ainda consegue vingar-se de Alboazer. À esposa que negou-lhe a fidelidade, D. Ramiro dá a morte e a criada que o ajuda em sua aventura, o lugar de esposa.

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porque, além de ser uma versão mais extensa que a do Livro Velho, traduz de forma mais

explícita o caráter dúbio do rei Ramiro. Este, apesar de depreciado moralmente, tem como

ponto positivo a “honradez” firmada ao vingar o adultério da esposa. É digno de nota que,

ainda que o rei Ramiro não seja um exemplo de virtude aos olhos contemporâneos, na época

em que a narrativa foi escrita, os Maias, descendentes do rei, reclamavam a valorização de seu

nome.

Em Miragaia, D. Ramiro se apaixona pela irmã de um rei mouro e, apesar de ser

casado, faz amizade com esse homem a fim de lhe pedir a moça em casamento. Ao ver seu

pedido negado, D. Ramiro, com a ajuda de um astrólogo que fazia parte de sua comitiva, rapta

a mulher. O rei mouro, Alboazer Alboçadam, para se vingar, rouba também a legítima esposa

de D. Ramiro.

E el levou a moura a Minhor, depois a Leom, e bautizou-a e pos-lhe nome Artiga, que queria tanto dizer naquel tempo, como castigada e ensinada e compridda de todolos bees. Alboazer Alboçadam teve-se por mal viltado desto e pensou em como poderia vingar tal desonra. E ouvio falar em como a rainha dona Aldora, molher de rei Ramiro, estava em Minhor, postou sas naos e outras velas e foi aaquele logar de Minhor e entrou a vila, e filhou a rainha dona Aldora, e meteo-a nas naos com donas e donzelas que i achou (MATTOSO, 1983: 51).

Enlouquecido com a resposta do mouro, D. Ramiro invade seu reino em naus

camufladas de árvores, avisa a seus vassalos que o ajudem quando tocar seu berrante e sai

vestido de mendigo. Através de uma criada, consegue entrar no castelo e encontrar-se com

sua rainha raptada. O rei mouro, advertido pela mulher de Ramiro, resolve matá-lo.

Entretanto, D. Ramiro, para se livrar da morte, mostra-se arrependido e pede um fim

vergonhoso. Engana Alboazer, pedindo para morrer comendo um frango assado, bebendo

um copo de vinho e tocando o berrante na frente de muitas pessoas do reino inimigo. Atrai

assim seus companheiros, mata o mouro e leva consigo sua mulher. Quando sua esposa

reclama da morte de Alboazer, mostrando que este tinha maiores virtudes. O filho de

Alboazer incita então o pai a matar a mãe:

“Esto é demo. Que querees dele, que pode seer que vos fugira?” e el rei mandou-a entom amarrar a ũa moo e lança-la no mar. E des aqule tempo lhe chamarom Foz d’Ancora. E

Nessa versão D. Ramiro é vítima do mouro, já na segunda, pertencente ao Livro ao Conde D. Pedro, o caráter dos reis será invertido, apesar de vitória de D. Ramiro, como analisaremos adiante.

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por este pecado que disse o ifante dom Ordonho contra a madre, disserom despois as gentes que por esso fora deserdado dos poboos de Castela (MATTOSO, 1983: 66-67).

Após a morte da rainha, passado algum tempo, Ramiro casa-se com a irmã do rei

mouro.

Apesar de as narrativas de linhagem conterem histórias que se pretendem reais, e por

isso não terem necessidade de apresentar heróis com características ficcionais, como seria o

excesso de virtude presente nas novelas de cavalaria, é preciso lembrar que na Idade Média,

principalmente após o século XI, a nobreza estava intimamente ligada à Cavalaria. Logo, ao

apresentar os valores dos nobres, as narrativas medievais estavam, de certa forma, mostrando

os valores que também deveriam fazer parte da Cavalaria. Ainda que se argumente que nem

sempre Cavalaria e nobreza estiveram associadas, pode-se sempre ressaltar que as narrativas

de linhagem, como Miragaia, deveriam enaltecer suas origens, trazendo aspectos heróicos e

virtuosos de sua história, o que fica evidente através do “caráter romanesco” várias vezes

identificável nos nobiliários5, que “revestem-se de interesse literário, com intercalarem

episódios históricos ou lendários no rol das genealogias, evidentemente com intenção

justificadora das mesmas, ou disciplinadoras” (MALEVAL, 1999: 51).

Ora, não é essa virtude que se vê em D. Ramiro, cuja vida só pode ser aceita como

heróica se considerarmos a máxima maquiavélica “os fins justificam os meios”. Além de ser

infiel e hipócrita, D. Ramiro denuncia uma tendência anti-cristã ao aliar-se a um astrólogo.

Vejamos, então, o que há de comum entre Lazarilho e D. Ramiro, legítimos anti-heróis da

literatura européia, pois é possível delimitar uma série de antíteses entre as narrativas de

cavalaria e o romance picaresco, entre eles:

Narrador onisciente x Narrador-protagonista

Herói x Anti-herói

Honra x Desonra

Moralidade x Imoralidade

Genealogia x Anti-genealogia

Nobreza x Pobreza

5 Vale lembrar que, além do enaltecimento da família, os nobiliários tinham como objetivo dar fim a questões de ascendência para o cumprimento de transações como a avoenga, o padroado e o casamento. Também tinham como função transmitir lições de moral, com o intuito disciplinador. Sobre o tema é interessante ler MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Miragaia. In: Rastros de Eva no imaginário medieval. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 1995. pp 49-63.

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A principal diferença entre os dois gêneros está presente na escolha do narrador — no caso

do romance picaresco, o próprio protagonista, fato justificável pela ausência de moral do

personagem. Uma história de um trapaceiro não seria digna de ser contada por outra pessoa, a

não ser que houvesse um objetivo moralizante, o que, definitivamente, não é o caso do

Lazarilho de Tormes.

Também se deve destacar a imoralidade do pícaro frente ao cavaleiro e o interesse próprio

com que conduz suas aventuras.

A genealogia do cavaleiro e a anti-genealogia do pícaro já traduzem sua conseqüente

condição social, fato que diferencia profundamente o objetivo final da luta e das aventuras de

ambos. Se o alvo das narrações são distintos, o que as torna tão próximas?

A coragem para empreender as peripécias é a mesma. Percebe-se em Lazarilho e em D.

Ramiro a mesma força e a ausência de medo — esses protagonistas não cogitam a hipótese de

algo não funcionar, o que nos leva a uma outra característica, a presença de um objetivo. Para

Lazarilho, há um propósito maior, a ascensão social. Já em D. Ramiro é possível perceber

como alvo não apenas resgatar a mulher, mas vingar-se do rei mouro.

Observemos agora os seguintes trechos extraídos do Lazarilho de Tormes e de Miragaia.

resolvi fazer na base da vasilha uma fontezinha ou orifício subtil, por onde o vinho corresse; tapava-o delicadamente com uma bolinha de cera muito delgada, e na ocasião de comer, fingindo ter frio, refugiava-me entre as pernas do triste cego a aquecer-me ao nosso escasso lume, e logo que a pouca cera se derretia com o calor, começava a fontezinha a destilar vinho para a minha boca (Lazarilho de Tormes, 1977: 26).

Aquele logar, de ũa parte e da outra, era a ribeira cuberta d’arvores, e as galees encostou-as sô os ramos delas, e, porque eram cubertas de pano verde, nom pareciam. El deceo de noite a terra com todolos seus, e falou com o infante que se deitasse a-sô as arvores o mais encubertamente que o fazer podesse e per nem ua guisa nom se abalassem ataa que ouvissem a voz do seu corno, e ouvindo-o, que lhe acorressem a gram pressa (MATTOSO, 1983: 52).

Apesar da disparidade existente entre os dois casos — Lázaro se aproveita do cego,

enquanto D. Ramiro se prepara para ludibriar o rei mouro — nota-se a ambição dos

protagonistas em tornar os objetivos realidade, ainda que isso custe enganar os outros. A

“vitória intelectual” sobre os inimigos dá aos nossos “heróis” um ar de galhofa único e os

torna vencedores maquiavélicos, que em nenhum momento têm crise de consciência em

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relação ao vencido. A ausência de virtude é, portanto, a característica mais marcante da

personalidade de Lázaro e D. Ramiro.

Da mesma forma que iludem os inimigos, metem-se em confusões. É justamente esse

espírito de aventura o maior elo entre a narrativa medieval e o romance picaresco. Assim

como o cavaleiro, o pícaro também passa por uma série de façanhas para alcançar seu

objetivo.

Considerando o objetivo e a coragem como probidades, também se pode citar a

esperança presente na resistência à fome e à sede, característica marcante para o herói

medieval. O Lazarilho, cuja história é considerada por muitos uma verdadeira “epopéia da

fome” (MOTA, 1977: 11), tem boa parte de suas aventuras baseada nessa virtude, uma vez

que Lázaro começa a enganar quando seu corpo já não pode suportar a fome e a sede.

Igualmente, pode ser observada em Miragaia a resistência, neste caso ardilosa, de D. Ramiro à

fome e à sede quando chega ao castelo, para que mais tarde possa ludibriar o mouro pedindo

para morrer comendo e bebendo. Em ambos os personagens, a resistência terá como

conseqüência a astúcia, levando ao golpe para o roubo de comida na narrativa picaresca, e ao

golpe da falsa morte na narrativa medieval.

De grande importância para os cavaleiros, uma vez que é a sua primeira identificação e

a representação de seus princípios, a roupa também aparece como presença do medieval no

romance picaresco. Lázaro só se acha realmente digno da ascensão social e do respeito alheio

quando consegue comprar uma roupa de “homem de bem”.

Tão bem me correu o ofício que ao fim de quatro anos, tendo posto os meus lucros a bom recato, aforrei o suficiente para me vestir muito dignamente com roupa usada. (...) Logo que me vi com trajes de homem de bem, disse ao meu amo que tomasse conta do burro, que eu não queria continuar mais naquele ofício (Lazarilho de Tormes, 1977: 95-96).

É através dessa indumentária que dá o salto para assumir o tão almejado papel de

remediado. Para o Lazarilho, a roupa é o passaporte para a conquista do lugar social reservado

para ele. D. Ramiro também tem um relacionamento importante com a roupa, pois é com seu

traje de mendigo que inicia sua investida contra Alboazer Alboçadam e sua posterior vitória.

Ainda como tradição do medieval, encontramos em ambas as obras uma analogia ao

“simulacro de combate” (COSTA, 2000:33) pelo qual o cavaleiro passava ao entrar na Ordem

de Cavalaria. Se na vida real o cavaleiro levava um soco na nuca ou no rosto para marcar sua

entrada na nova vida, também na ficção há um ponto de partida excepcional para a

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concretização das peripécias. Para D. Ramiro, o golpe é a inesperada vingança do rei

mouro, visto que o protagonista engana-o com falsa amizade mas em nenhum momento teme

que a recíproca seja verdadeira. Já Lázaro tem como golpe a real pancada que lhe dá o cego

com um jarro, quando sente falta do vinho bebido pelo menino. É exatamente aí que se inicia

a vingança de Lázaro contra o cego e contra a sociedade em geral. Se Lázaro e D. Ramiro já

continham em si o germe da astúcia e a presença de espírito para concretizá-la, é no suposto

“simulacro de combate” que passam a se mostrar como os verdadeiros anti-heróis que

marcarão as narrativas de aventura da literatura européia.

É certo que muito do que há de religioso na literatura medieval se deve ao crescente

apelo da Igreja Católica para difundir o Cristianismo. A Cavalaria, tão proclamada

protagonista das narrativas, era, como já foi dito, na verdade um grupo social representante da

pilhagem e de atos violentos. A versão romanceada dos cavaleiros estava a serviço de um

contexto notadamente pedagógico, que deveria ser difundido não só como literatura, mas

também como estilo de vida. Por conseguinte, não é justo desvalorizar Miragaia enquanto

narrativa medieval por ter um anti-herói como protagonista. Se D. Ramiro não se porta como

os cavaleiros das novelas, nem como os idealizados pelo Tratado da Ordem de Cavalaria,

podemos supor que se aproxime muito das atitudes de um autêntico cavaleiro da vida real.

A Vida de Lazarilho de Tormes aparece para dividir o público leitor das novelas de

cavalaria, visto que a própria Cavalaria já era uma instituição em decadência na época da

publicação da primeira picaresca. Suas principais características, para se opor ao gênero já

consagrado, eram o anti-herói, a vitória pela imoralidade e a infidelidade amorosa, que em

nada lembra o amor cortês dos tratados e das novelas. Entretanto, como pudemos observar

através da análise, retoma, ainda que de forma satírica, aspectos essenciais para a construção

de uma narrativa medieval, como a aventura, a coragem, o objetivo, a indumentária etc.

Ainda que tenhamos observado as semelhanças existentes entre um cavaleiro real, D.

Ramiro e o pícaro, é possível afirmar que o romance picaresco, representado aqui por

Lazarilho de Tormes, seja uma paródia não do modelo mais humanizado, mas do herói

virtuoso das novelas de cavalaria, pois censura o contexto socio-econômico-político espanhol

através de uma imitação das novelas, ridicularizando traços como a aventura e a roupa para

ressaltar os aspectos negativos do pícaro, contrários à moral do cavaleiro. É justamente por

ser paródia das novelas de cavalaria que o gênero picaresco apresenta sempre um tom cômico

e galhofeiro, inclusive no que diz respeito ao amor, que deixa de ser uma manifestação de

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amor cortês como era para o cavaleiro medieval e passa a uma simples relação de

interesses. Tendo em vista a análise feita de Miragaia, também pode ser dito, sim, que o

pícaro, se não descende diretamente desse gênero, tem alguns traços das narrativas de

linhagem. Boa parte das características do romance picaresco existe, portanto, graças às

narrações da Idade Média e, como toda obra realmente moderna, carrega um grande traço de

tradição.

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2. A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO NO SÉCULO XIX

2.1 O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”

Sabendo que o gênero picaresco, como já foi falado, estava restrito ao contexto histórico

espanhol do Século de Ouro, é preciso pensar sobre obras posteriores que apresentam traços

da picaresca original. Se o pícaro é uma forma de reproduzir tipos sociais existentes, o que

podemos dizer de um anti-herói realista que também se mostra como uma ficção que se

pretende realidade?

Este é o caso de Teodorico Raposo, personagem de A Relíquia, de Eça de Queirós,

romance muito contíguo ao Lazarilho de Tormes. Vamos então refletir sobre os objetivos da

literatura realista, para compreendermos o que a torna, em certos pontos, semelhante à

picaresca.

Em junho de 1871, ao criticar a “literatura de boulevard” na conferência O Realismo como

nova expressão da arte, Eça de Queirós nega a produção romântica, que seria desvinculada de

ideais sociais. Para o autor, a nova literatura, o Realismo, deveria objetivar a “anatomia do

carácter”, cujo objetivo maior é “corrigir e ensinar”.

Eça encerra a discussão sobre a obscenidade das obras realistas — vistas por muitos

críticos como uma desculpa para a divulgação da pornografia e como péssima influência para

a formação moral dos leitores — quando liga a literatura à justiça e à ciência. Ele acredita

que, ditando a moral em suas obras (ainda que esta apareça como conclusão final, após uma

série de cenas consideradas impróprias na época), ajudará a propagar a idéia de justiça;

criticando os costumes, auxiliará a ciência e a consciência (mais uma vez o alvo da pregação

da moral), e assim formará uma obra “bela, justa e verdadeira”.

Justamente por isso, Eça passou a ser considerado um discípulo de Zola. Cerca de sete

anos após a Conferência, Machado de Assis iria aproximar a obra do autor português do que

acreditava ser um realismo vulgar. Falando sobre O Primo Basílio, explicita sua opinião sobre

o “realismo sem condescendência” de Eça de Queirós:

Page 32: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas.

(...) Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue no extremo de correr o reposteiro conjugal (ASSIS, 1943).

É certo que a obra de Eça não se limita a cenas eróticas como base de pensamentos

morais. Tampouco a de Machado revela o romantismo ingênuo de O Guarani, aclamado pelo

brasileiro na mesma crítica. Devemos, é claro, ser condescendentes com o autor das

Memórias Póstumas, visto que o brasileiro ainda não havia escrito sua obra da chamada fase

madura, e ainda via com excessivo rigor o movimento realista, no qual, posteriormente,

também buscou inspiração.

Interessante, no entanto, é atentar para a contradição entre o que seriam os romances

românticos e os realistas. Ao se imbuir do dever de difundir a moral, mostrando os vícios e as

degenerações da sociedade portuguesa para contribuir com a formação ética do leitor, Eça

volta aos princípios do romance romântico. Estabelece, assim como no estilo anterior, uma

“tese”: “serão castigados todos aqueles que infringem determinadas regras da moral”; e

apresenta punições severas para esses personagens.

Talvez seja possível afirmar que não há muitas modificações, no que diz respeito aos

propósitos da literatura, nas produções do século XIX. Até porque, apesar de absolutamente

diferente do século anterior, a sociedade vitoriana6 era por demais específica (e de lentas

transformações internas) para que mudanças no contexto social chegassem a alterar

totalmente a temática literária. Portanto, intenção moralizante no Romantismo, intenção

idêntica no Realismo, apenas com abordagens distintas.

A respeito disso, podemos lembrar a carta de Eça de Queirós a Teófilo Braga, em

1878. Comentando sobre O Primo Basílio, afirma:

A sociedade que cerca esses personagens — o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturarinha acéfala (Ernestinho), o

6 Utilizaremos a partir de agora o termo vitoriano, assim como seus derivados, de acordo com duas das três concepções encontradas no dicionário Novo Aurélio Século XXI: vitoriano1. Adj. 1. Pertencente ou relativo à rainha Vitória da Inglaterra, ou ao período do seu reinado (1837-1901). 2. Que demonstra a respeitabilidade, o puritanismo, a intolerância, etc. atribuídos geralmente à classe média da Inglaterra vitoriana (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, 1999: 2081).

Page 33: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacai-as é um dever.

(...)

merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem. (QUEIRÓS, 1946: 43).

Eça explicita a homogeneidade da formação da sociedade lisboeta, destacando a

raridade que é encontrar alguém ético como o Sebastião do segundo romance do autor. E, tal

qual em um espelho, segundo suas próprias afirmações, deseja reproduzir essa sociedade para

criticá-la. Mais uma vez, pode-se constatar que o intuito é realista, mas o resultado,

romântico. Eça de Queirós, verdadeiro “homem de bem”, considera-se, enquanto autor, figura

primordial para a reconstrução da moral e da ética na sociedade, pois será ele quem dará a

“bengalada do homem de bem”, apesar de não ser romântico, visto que preza o moralismo,

mas também deixa aparecer o que o moralismo não pretende mostrar.

É dessa forma que se irá construir a obra de Eça, através das teses segundo as quais a

sociedade é formada, extraímos as lições de moral, sempre após a constatação de que o

mundo (e o autor) já desferiu sua bengalada.

Essa lição de moral está, é claro, presente n’ A Relíquia, obra que trata de hipocrisia

relacionada ao trabalho e à religião, temas tão caros ao século XIX.

2.2 A Relíquia e a recepção da crítica

Essa obra foi, por muitos anos, desmerecida pela crítica. Apesar disso, e do descrédito

da crítica luso-brasileira, em outros países o romance foi exaltado pela mistura de “sátira

aristofanesca, poesia bíblica e romance” (DA CAL, 1970: 7), tanto assim que esse é o livro de

Eça com maior número de edições e traduções.

Queirós, em carta a Ramalho Ortigão, diz que inscreverá o livro no concurso da

Academia das Ciências de Lisboa “não porque haja sequer a sombra fugitiva d’uma

probabilidade mais magra do que eu, de que me seja dado o conto” mas porque deseja “gozar

a atitude da Academia diante de D. Raposo!” (QUEIRÓS, 1946: 136). Possuindo uma cadeira

na Academia, o autor sente-se moral e socialmente impelido a participar com uma obra sua,

Page 34: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

concorrendo ao prêmio de um conto então oferecido. Eça, entretanto, sabia que a

Academia não estava preparada para o recebimento de uma nova proposta de narrativa como

é a d’ A Relíquia.

O autor estava certo. Pinheiro Chagas refutou a obra baseado em uma pretensa

“inverossimilhança do sonho de Raposão”. No verbete sobre A Relíquia, do Dicionário de

Eça de Queirós, Campos Matos reproduz a crítica do próprio Pinheiro Chagas,

Quer dizer: “Um pateta moderno, um devasso reles, vicioso e beato, mantido por uma tia no culto piegas de Nossa Senhora da Conceição e no sagrado horror de saias e fazendo às furtadelas as suas incursões pelo campo do amor barato” não podia alçar-se às alturas do sonho da crucificação de Cristo tal como Eça o descreve, devia era dar “um Evangelho burlesco”, isso é que seria verossímil. (MATOS, 1988: 553).

Pinheiro Chagas, assim como o restante da Academia, acreditava que um personagem

baixo, sem grandes nuances psicológicas, não seria digno da grande Revelação da religião que

ocorre durante o sonho. Segundo sua visão, autor e personagem fundem-se no romance, como

se isso fosse obra apenas de um descuido de Eça. Já de acordo com o autor d’ A Relíquia, a

obra nunca poderia ser verdadeiramente analisada naquele ambiente.

A RELÍQUIA é certamente um livro malfeito. Às suas proporções falta harmonia, elegância e solidez; certos personagens, apenas recortados e não modelados, oferecem uma notação uniforme e esfumada; a forma não tem suficiente fluidez e ductilidade, antes por vezes encaroça e empasta, e por querer ser grave parece hirta como sucede aos grandes homens da província, etc., etc.,... Mas estes defeitos, que só podem ser sentidos por um gosto muito afinado na perene convivência das coisas de Arte, nunca poderiam provocar a condenação dum livro numa Academia que não está povoada de artistas (QUEIRÓS, sd: v.2, 1456).

O lançamento do livro torna-se uma verdadeira contenda entre o autor e os críticos.

Mariano Pina escreve, em 20 de julho de 1887, uma crítica para a revista A Ilustração sobre o

novo romance, “incoerente mas sempre superior” (PINA, 1887: 210). Assim como Pinheiro

Chagas, afirma que o problema do livro, passível de ser corrigido em uma segunda edição,

É a questão do eu, o ser o livro a conversa na primeira pessoa dum personagem bastante medíocre e bastante ignorante, recebendo durante sua viagem de Lisboa a Jerusalém impressões e sensações como só as recebe um espírito superior, e vendo aspectos e indivíduos através dum prisma como só pode possuir e manobrar um artista maravilhosamente dotado, como o Sr. Eça de Queiroz (PINA, 1887: 210).

Page 35: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Como ressalva, Pina afirma que o terceiro capítulo é uma “obra-prima da arte

escrita” e que a obra “não deixa (...) de ser o precioso invólucro que encerra dentro de si todas

as notáveis e variadas qualidades do talento dum grande artista... E por isso ela é digna do

nosso respeito e da nossa admiração” (PINA, 1887: 211).

Como resposta ao artigo de Mariano Pina, Eça envia-lhe uma carta, publicada

posteriormente em Notas Contemporâneas sob o título A Academia e a Literatura. Afirma

que as razões de Pinheiro Chagas para não aceitar o livro são “comezinhas e miudinhas,

rasteiras e grosseiras, como se, em lugar de falar numa Academia, se achasse conversando

num botequim diante de homens incultos, incapazes de compreender tudo o que é elevado ou

profundo!” (QUEIRÓS, sd: v.2, 1459). Eça de Queirós não concorda com a escolha do

vencedor entre obras extremamente heterogêneas e com o desejo da Academia de receber um

Jesus mais burlesco e um Teodorico mais sério, — mas regozija-se, ainda que ironicamente,

por ter sido recusado, já que toda recusa, para ele representa a inovação que a tradição

representada pela Academia precisa para evoluir (QUEIRÓS, sd: v.2, 1458).

Ao ler a carta a Mariano Pina, Pinheiro Chagas levanta-se contra Eça em um artigo que

é replicado em outra carta, que receberia mais tarde o nome Ainda sobre a Academia. Nela,

Eça resume-se a mais uma vez explicar os argumentos da carta a Mariano Pina, uma vez que

Pinheiro Chagas não os havia contestado, mas apenas concluído que a tese de Eça de Queirós

estava cheia de despeito, pois “Tudo isso é ferro por não teres apanhado o conto!”

(QUEIRÓS, sd: v.3, 921).

Logo após o lançamento do livro, em carta a Luís de Magalhães (QUEIRÓS, 1946:

139), Eça de Queirós também havia afirmado não gostar de seu resultado final, por faltar-lhe

“um sopro naturalista d’ironia forte que daria unidade a todo o livro” e diz que seu único valor

é o “realismo fantástico da Farsa”. Porém, a crítica não conseguiu perceber durante muito

tempo o significado das cartas em que, ao concordar com o julgamento do concurso, Eça

estava ironizando o valor dado a uma instituição incapaz de reconhecer um novo estilo

narrativo. Eça era a inovação que a tradição não conseguia enxergar. Segundo Pedro Luzes,

no verbete (A) Relíquia: do realismo/naturalismo a uma “estética da imperfeição”, do

Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós,

o constante vaivém entre autor e personagem, assim como as variações de tom e estilo, não resultam da falta de atenção de um autor caquético, mas sim de uma deliberada subversão de uma forma narrativa precisa, a Realista/Naturalista, que imitava e controlava o conteúdo e a maneira do que poderia ser escrito. Por outras palavras, Eça libertava-se dos constrangimentos

Page 36: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

de uma estética literária prévia que definia, como é apanágio de todos os programas, o que devia ser escrito e como. (LUZES, 2000: 565)

Essa subversão justifica a difícil classificação da obra, que transita admiravelmente pela

farsa, sátira, literatura fantástica e picaresca. De acordo com ROSA (1963: 337), Eça era

conhecedor da picaresca clássica, leitor d’ O Lazarilho de Tormes e do Gil Blas, picaresca

francesa. Ainda que nada tenha dito no imbróglio do concurso, reconhecia-se como o primeiro

autor de picaresca portuguesa. Se isto procede, a narrativa medieval portuguesa analisada

anteriormente seria uma sua precursora.

Outros críticos também acreditam que “Eça compreendeu a estrutura picaresca espanhola

muito antes da crítica” da época (FONTES, 1976:40). Todavia, apesar de ser clara a

influência da picaresca na obra, talvez não seja possível afirmar tão categoricamente que Eça

estivesse pensando em seguir essa linha quando escreveu o romance. Se assim fosse, em

alguns de seus escritos encontraríamos menções à picaresca ou à classificação d’ A Relíquia.

Ainda seguindo essa linha de raciocínio, e considerando como séria a carta a Luís de

Magalhães, Eça não hesitaria em acentuar os traços naturalistas, uma vez que estes são

inerentes ao pícaro, cuja trajetória aventuresca é muito mais interessante que sua origem ou

sua relação com o meio. Até mesmo o episódio do sonho, causador de tantas controvérsias na

crítica, seria melhor explicado pelo autor se fosse apresentado como picaresco, uma vez que é

através dele que a aventura máxima de Raposão — a camisa de Miss Mary — se realiza e

também porque, para o pícaro, personagem baixo, é comum que acontecimentos inexplicáveis

para seu próprio proveito (como é o caso da Revelação) ocorram.

Contra a classificação da obra como narrativa picaresca, há a crítica de Carlos Reis, que, em

Estatuto e Perspectivas do narrador na Ficção de Eça de Queirós, afirma que “só

abusivamente esta obra pode ser identificada com um tipo de narrativa que se gerou motivada

por condicionalismos socioculturais bem específicos." (1986: 203). Também falando sobre a

relação entre A Relíquia e a narrativa picaresca, Maria João Simões (1996:542) cita a

pesquisadora Alison Weber, que acredita não ser a picaresca um conceito classificatório, uma

vez que obedece a “un sistema de posibilidades, una constelación de estructuras”. É óbvio que o

contexto em que a picaresca original estava inserido não se reproduzirá igualmente em outras

épocas e situações para que haja um perfeito “encaixe” de uma obra nesse gênero. É por isso

que a crítica portuguesa Maria João Simões opta por classificar A Relíquia como uma paródia

Page 37: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

da picaresca, porque apresenta apenas uma parte das características do paradigma original

e transforma outras.

No entanto, preferimos aqui a definição do pesquisador brasileiro Mario González:

“propomos o termo neopicaresca — já utilizado por outros críticos — para a literatura

produzida nos séculos XIX e XX e que pode ser lida à luz do modelo clássico espanhol, mesmo

sem guardar uma relação direta com o mesmo” (GONZÁLEZ, 1988: 41).

Compartilhamos de sua visão, ao alegar que sempre que há uma “resposta semelhante” do

pícaro a determinadas situações (também semelhantes às originais) e que, por isso, a

denominação neopicaresca abarca o conceito de paródia do herói clássico, cavaleiro, e não

paródia do próprio gênero.

Consciente ou não do gênero que representava, Eça escreveu, de toda forma, o primeiro

romance “picaresco” português, representação digna da sociedade que elegia d. Patrocínio

como um padrão de moral.

2.2.1 A classificação d’ A Relíquia como neopicaresca

É difícil, à primeira vista, falar sobre o gênero picaresco cerca de trezentos anos após

seu aparecimento. No entanto, a mesma exclusão dos não-católicos e a jornada da ascensão

social para os burgueses que caracterizaram a sua época, continua no século XIX. Segundo

Peter Gay,

muitos burgueses nutriam grandes expectativas de riqueza, prestígio, fama ou ascensão social. Não eram totalmente irrealistas, pois no século vitoriano existia certo grau de mobilidade social ascendente para os extraordinariamente talentosos, extraordinariamente afortunados ou extraordinariamente inescrupulosos (GAY, 2002: 29).

Torna-se impossível discutir a ascensão dos inescrupulosos, em uma sociedade que

valorizava a religião, e não lembrar do pícaro. A rede de trapaças e aventuras que garantiam o

final feliz do rapaz sem escrúpulos é talvez muito mais fácil de ser encontrada na vida real do

século XIX, do que na do século XVI. Assim, é natural que a picaresca seja considerada

literatura realista, já que dialoga abertamente com o contexto social da época. Cumpre

lembrar que, ainda no século XVIII, o gênero fez grande sucesso na Inglaterra com os textos

Page 38: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

de Tobias Smollett, apesar da rejeição francesa. No século seguinte, a picaresca eleva-se

no México, com o primeiro romance hispano-americano, El Periquillo Sarniento.

Teodorico Raposo, protagonista d’ A Relíquia, de Eça de Queirós é a prova de como um

rapaz de origem baixa, criado em meio à burguesia e à religião, poderia ascender por meios

escusos.

Como já foi dito, são tomadas como base para a análise da neopicaresca as

características da primeira novela, Lazarilho de Tormes. Há muito em comum entre o livro

espanhol e A Relíquia, podendo ser aceitas, portanto, como características da neopicaresca o

caráter autobiográfico, a origem baixa e confusa do protagonista e sua infância sem amor,

longe dos pais. Também vale citar a necessidade de ser aceito pelo protetor (a Titi) como

meio de sobrevivência, os ardis que emprega para isso, a ausência de culpa ou

arrependimento, caracterizando total falta de moral. São ainda traços da neopicaresca o

caráter de aventura, o erotismo do protagonista e seu envolvimento com mulheres de

reputação duvidosa e o tom muito mais satírico do que crítico da história.

2.2.2 Neopicaresca: nova paródia do cavaleiro medieval

É certo que o mundo medieval influencia até hoje as obras literárias. Isso porque, além

de a literatura medieva ter sido um dos germes do romance, as virtudes dos cavaleiros e os

princípios defendidos por eles são importantes em qualquer época nas sociedades ocidentais.

Em períodos como o Realismo, em que há uma necessidade maior de mostrar vícios e

imoralidades, os valores medievais são constantes, apesar de serem vistos sob o signo da

paródia. Na neopicaresca, a retomada do medieval é um auxílio parodístico ao tom

moralizante, que permeia a reflexão acerca da realidade.

A Relíquia (1887) irá recuperar características medievais. É importante, portanto,

ressaltar o que há de comum entre o pícaro e o cavaleiro medievo, representado novamente

pela narrativa de linhagem Miragaia.

O romance narra a história de Teodorico Raposo, órfão que, ainda menino, fica sob os

cuidados da Tia Patrocínio. A Titi, extremamente religiosa, cria Teodorico com mãos-de-

ferro, o que não impede o desenvolvimento da astúcia do menino. Logo, ele aprende a

Page 39: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

manipular o interesse da tia pela religião para conseguir dinheiro e liberdade. Fingindo

devoção, Teodorico, já adulto, percorre Jerusalém em nome da tia, em uma missão religiosa.

Traz para d. Patrocínio o que ela considera uma relíquia (falsa, é claro), mas rapidamente se

descobre que, na realidade, a relíquia é uma camisa de prostituta. Sem o apoio da tia,

Teodorico passa ao comércio de falsas relíquias, enganando outras beatas. Casa-se com a irmã

do amigo Crispim, por interesse no dote, e recupera seu prestígio social.

Pela síntese da história de Raposão, podemos antever nele características que em muito

se aproximam das do cavaleiro medieval.

Como nos mostra MALEVAL (2001: 151-154), Raposão, apesar de órfão, tem origem

algo nobre, e “serve” a uma “senhora”, a Titi. Também representa um autêntico cavaleiro ao

ser presenteado pela tia com um cavalo, o que lhe garante maior auto-confiança e uma

pequena mesada, que remete ao soldo do cavaleiro. A especialista também demonstra como

Raposão parodia um peregrino ao fazer sua viagem para a Terra Santa. É certo que esse é um

“universo cavaleiresco-religioso ao inverso”, entretanto, o caráter de inversão não é tão

grande quando a comparação se dá em relação ao cavaleiro das narrativas de linhagens, D.

Ramiro.

Como um cavaleiro que ia ser admitido na Ordem de Cavalaria, é com um beijo que

Raposão inicia sua trajetória de sobrevivência. Se até então era um menino ingênuo e

amedrontado, após o beijo enojado da tia aprenderá a ser dissimulado:

(...) ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, duma frialdade de pedra: e logo a titi recuou, enojada.

— Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo! Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ele e murmurei:

— Sim, titi. (QUEIRÓS,1997: 852)

Se inicialmente mostra-se assustado, Teodorico logo irá compreender que aquele é o

início de sua jornada para cair no gosto da tia e, assim, melhorar suas condições de vida. A

ambição, outra característica de d. Ramiro, também será brevemente absorvida por Raposão:

Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do comendador G. Godinho. (...) E tudo pertencia à titi. Que rica era a titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!... (QUEIRÓS, 1997: 863)

Page 40: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

É lógico que a astúcia está presente em toda a obra. Não é preciso lembrar que

Raposão é um perfeito anti-herói e faz de tudo para conseguir seus objetivos. É exatamente

essa característica que mais o aproxima de personagens como D. Ramiro. A forma como

Raposão engana a tia fingindo ser religioso mostra uma perspicácia poucas vezes vista.

Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas — e conheci logo, sem moderação, todas as independências, e as fortes delícias da vida. (...) Todos os quinze dias, porém, escrevia à titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus hábitos, as copiosas rezas e os rígidos jejuns, os sermões de que me nutria, os doces desagravos ao Coração de Jesus à tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em Santa Cruz no remanso dos dias feriados... (QUEIRÓS, 1997: 857)

É possível afirmar que a vida inteira de Raposão constitui uma aventura, uma vez que

vive de forma astuciosa e sempre diante da possibilidade de ser desmascarado pela tia ou por

alguns dos religiosos que freqüentam a casa. Sua maior investida é, com certeza, a ida a

Jerusalém. Destaca-se nesse momento da narrativa a maneira teatral pela qual convence a tia

de que precisa fazer a viagem. Assim como o cavaleiro das narrativas de linhagens, reúne em

si artimanha, coragem e ambição:

Fui ao oratório; desmanchei o cabelo, como se por entre ele tivesse passado um sopro celeste; e corri ao quarto da titi, esgazeado, com os braços a tremer no ar.

— Ó titi! Pois não quer saber? Estava agora no oratório, a rezar de satisfação, e vai de repente pareceu-me ouvir a voz de Nosso Senhor, de cima da cruz, a dizer-me baixinho, sem se mexer: “Fazes bem, Teodorico, fazes bem em ir visitar o meu Santo Sepulcro... e estou muito contente com a tua tia... Tua tia é das minhas!... (QUEIRÓS, 1997: 885)

É importante ressaltar esse fato porque esta é a grande batalha de Raposão. Na Terra

Santa, precisa lutar contra as tentações, representadas pela prostituta Miss Mary. Não há

dúvida de que Raposão gostou muito de cair nessa tentação, mas foi exatamente através dela

que perdeu sua batalha. Não se pode esquecer que, como um anti-herói vitorioso, termina a

história recuperando o prestígio e o dinheiro. Entretanto, sua queda (e o ponto alto da

narrativa) dá-se com a perda dessa batalha.

Também é no episódio da camisa de Miss Mary que Raposão demonstra a sua total falta

de virtude. Após ter sua “relíquia” descoberta e ser expulso, Teodorico se arrepende de não ter

conseguido por em prática um último subterfúgio:

Page 41: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Sim! quando em vez duma Coroa de Martírio aparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de pecado — eu deveria ter gritado, com segurança: “Eis aí a Relíquia! Quis fazer a surpresa... Não é a Coroa de Espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no Deserto!...” (QUEIRÓS,1997: 1032)

Ainda quando alguma vez a Voz da Consciência tente convencê-lo de que seus atos são

imorais, Raposão não se deixa levar pelo arrependimento. Aliás, como acontece na narrativa

de D. Ramiro e no Lazarilho de Tormes, não há espaço para remorso, porque o êxito (mesmo

que pequeno e interno, como é o de Teodorico) dá ao anti-herói uma vitória irônica única e

inalienável. Não há como arrepender-se, visto que para esses personagens todos os ardis são

justificáveis como caminhos para o objetivo final, a ascensão social, ou, no caso de D.

Ramiro, a recuperação de um “bem” (a esposa).

Independente da paródia feita aos cavaleiros, que torna o pícaro uma caricatura dos

heróis medievais, o romance picaresco traz em si a base medieval. Não se trata apenas de

temática ou estrutura, mas de um contexto semelhante. Se as condições econômicas e políticas

são distintas, o sistema social é o mesmo. Não importa se estamos falando de Portugal do

século XIV, da Espanha do século XVI ou novamente de Portugal do século XIX. O que

realmente interessa é a reprodução, através dos tempos, de um sistema social que necessita de

herói astucioso.

Se trocássemos os personagens nas obras analisadas, verificaríamos que D. Ramiro,

Lazarilho e Raposão sairiam vitoriosos em qualquer época, porque as sociedades que

promovem a ascensão através da astúcia são muito semelhantes.

É importante retomarmos o medieval para demonstrar que determinadas características

suas continuaram e continuarão presentes em grandes obras da literatura, como

representativas de um caráter humano nada maniqueísta.

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3 . ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA NEOPICARESCA

3.1 A religião e o trabalho: a moral no século XIX

O Realismo, apesar de interpretado de forma generalizante como um movimento

literário revolucionário e vanguardista, apresenta, em grande parte de suas obras, um tom

moralizante e até mesmo reacionário.

Representação máxima da burguesia, o Realismo português mostra, sim, a

degeneração presente naquela sociedade, promovendo a valorização da moral e da família.

Para isso, não receia em momento algum tornar-se uma “auxiliar pedagógica” para a

formação dos leitores (e principalmente das leitoras) portugueses.

Entretanto, a literatura realista não se resumiu a manuais de moral. O mais interessante

para uma análise sincrônica é examinar a presença (ou a ausência) da moral, da culpa e de

seus efeitos sobre a consciência, isso em uma época em que literatura e psicanálise ainda não

andavam juntas.

As intensas modificações ocorridas no século XIX, sobretudo nas áreas social e

científica, provocaram uma sensação de mal-estar generalizada. É possível afirmar que a

sociedade vitoriana em geral sentia dificuldades para enquadrar-se na nova ordem social

burguesa.

Com um claro caráter de salvação, as pessoas buscavam uma corrente capaz de analisar

e solucionar as questões éticas e morais da época. Ainda na esteira iluminista, correntes

positivistas conviviam com a criação de novas religiões de cunho místico e, o que é mais

interessante, com o ressurgimento da fé na Igreja Católica e seu embate filosófico com o

protestantismo. O que havia, na realidade, era uma necessidade de acreditar em algo.

Citando Freud, David explica essa necessidade de religião que o homem sente:

Ela preenche três funções: a de satisfazer a sede de conhecimento do homem; a de garantir conforto na desventura; a de estabelecer preceitos, proibições e restrições. A religião estaria entre as medidas adotadas pelo homem para abolir o mal estar “na” cultura. (DAVID, 2003: 39).

Page 43: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

A fé católica era representada em sua maioria pela burguesia, essencialmente pelas

mulheres. Apontada por muitos historiadores como passatempo de senhoras, a religião cristã

do século XIX está marcada pela extrema valorização da filantropia e de rituais como missas

e procissões — verdadeiramente muito mais eventos sociais do que práticas religiosas, tanto

para burgueses quanto para trabalhadores.

Parece contraditório que esse revival da religião esteja muito próximo da

secularização, mas na realidade, isso tanto evidencia a necessidade da sociedade daquele

século de agarrar-se (mesmo que ingenuamente) a algo que a conforte, quanto reflete a falta

de senso moral daquele mundo vitoriano, que misturava religião com festas e bebidas.

Falando sobre os encantos que os eventos religiosos provocavam, não podemos deixar

de citar, na obra de Eça, Luísa, de O Primo Basílio e Amélia, de O Crime do Padre Amaro.

Embora diferentemente das “mocinhas românticas”, d. Patrocínio também entrava em transe e

mostrava-se extasiada, perdida em sua fé burguesa quando se tratava dos rituais católicos.

Religião e trabalho sempre andaram juntos. Destacadamente no século XIX — no qual

a ascensão da burguesia comprovava os méritos do trabalho —, o labor era considerado um

meio eficiente de manter a mente ocupada, uma vez que a ociosidade seria o caminho para a

propagação do pecado.

Em O século de Schnitzler, Peter Gay conclui que a religião sempre foi considerada

uma “polícia interna”. No século vitoriano,

O assunto adquiriu urgência renovada. Os críticos do capitalismo vitoriano insistiram em dizer que a inoculação das ordens inferiores contra a descrença era essencialmente uma conspiração capitalista. Afinal, um trabalhador que acredita em Deus terá menos probabilidade de fazer greve e sabotar a maquinaria

(...) Essa é a teoria do controle social, uma visão hostil das motivações burguesas, inicialmente aventada pelos próprios burgueses (GAY, 2002: 205).

A divulgação do trabalho como aliado à religião não fazia parte apenas do cotidiano

burguês, mas sobretudo do dia-a-dia da classe trabalhadora. A burguesia valorizava o

trabalho, ainda que não física e ostensivamente como “apoiava” o dos trabalhadores. Essa era

a forma mais óbvia de garantir que, não desejando mais do que Deus poderia dar-lhes, a

classe trabalhadora manter-se-ia para sempre conformada com sua posição social.

Page 44: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Em contraposição a essa difusão do ideal burguês do labor estava a própria

família burguesa, cujos filhos nascidos na prosperidade ganharam ares de aristocracia,

desprezando o trabalho e legitimando o ócio como garantia de “status” social. Nessa categoria

encaixa-se perfeitamente Teodorico Raposo, que não é rico, mas vive, ainda que

aventureiramente, sob a égide da prosperidade da Titi.

Talvez seja possível afirmar que nem sempre os vitorianos estavam interessados em

cumprir as idéias que difundiam. No entanto, é certo podermos dizer que a moral do século

XIX era constituída por crença e trabalho, ainda que fossem exercidos de maneira hipócrita.

Apesar de nem sempre de forma proposital, as características de uma sociedade estão

refletidas em obras literárias. Nada como a farisaica sociedade portuguesa vitoriana para

propiciar um (re)surgimento do romance picaresco.

3.1.1 A Relíquia: dinheiro e religião

Como já foi observado, A Relíquia é uma obra neopicaresca, pois possui todas as

características da picaresca clássica. Com isso, torna-se interessante material de estudo para

tratar da moral e da culpa, ou melhor, da sua ausência, visto que todas as peripécias de seu

personagem principal giram em torno desse assunto.

O romance também é válido para analisar o tema porque contém as “bengaladas” de

Eça de Queirós para uma sociedade hipócrita em relação à religião e aos seus próprios atos.

Pertencente ao grupo de obras publicadas na década de 70, A Relíquia traz em si a

“culpabilização do mundo e da consciência” tão presentes nos romances do autor .

Ao tratar da manipulação que Teodoro faz da religião da Titi, Eça parece estar criando

uma tese — anterior à criação das religiões, a Consciência deve nortear o homem para que ele

não se perca no vício e nas mentiras, como fez Teodorico. Apenas a Consciência é capaz de

moralizar, já que, apesar de ter sido criado sob bases religiosas, foi exatamente isso o que,

aparentemente, causou o desvirtuamento do protagonista.

Antes de observarmos o desenvolvimento da obra, é importante a reflexão sobre o

destinatário dessa tese queirosiana. Os recentes estudos sobre o masculino apontam o século

Page 45: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

XIX como um período de efervescência da demonstração do “ser homem”7. É certo que a

maioria das obras do século vitoriano estava destinada às mulheres, apesar da variedade de

temas e da abrangência que possuíam na sociedade burguesa. No entanto, é possível observar

um claro diálogo entre o escritor e seu público-alvo n’ A Relíquia, de Eça de Queirós. Vários

críticos já apontaram o caráter epistolográfico da obra (REIS & LOPES, 1987: 35). Fica

evidente ainda no prólogo que se trata de romance com destinatários certos, uma vez que o

objetivo parece ser dar uma “lição lúcida e forte” (QUEIRÓS, 1997: 845).

Acreditando ter atingido a maturidade plena, Raposão explica porque escreve suas

memórias e as apresenta como um meio de aplicar uma lição de moral. É sabido que boa parte

da obra de Eça constitui-se sobre a base de “culpabilização do mundo e da consciência”,

todavia, é importante ressaltar qual é a relação entre o autor e o destinatário dessas

“bengaladas”. Tratando-se A Relíquia da história de um legítimo trapaceiro que faz de tudo

para ascender socialmente, inclusive ludibriar uma tia fanaticamente religiosa, fica óbvio que

o romance não estava destinado a senhoras leitoras do século XIX.

Salientando a filosofia da sobrevivência do pícaro Raposão, chegamos à conclusão de

que sua falta de moral e sua ausência de arrependimento diante dos fatos é conseqüência

incontestável de sua personalidade desviada (em relação ao que a sociedade esperava de um

homem médio burguês do século XIX); desvio este plenamente justificável pela mesma lógica

maquiavélica de sobrevivência. Enquanto o esperado de um burguês é que ele seja um homem

provedor, forte e persuasivo diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d.

Patrocínio (aquela que literalmente “patrocina”), fraco e dominado por mulheres.

Torna-se claro, portanto, que Eça, ao criticar a sociedade que legitima o surgimento e

o crescimento de um Raposão, buscava atingir em primeira instância um tipo de homem

burguês que visse as ações e as relações do protagonista com algo astucioso, sim, mas

perfeitamente condizente com a postura de um ambicioso qualquer nascido no século

vitoriano.

Para falarmos das ações da Consciência na vida de Teodoro, é preciso pensar o

protagonista d’ A Relíquia em dois momentos distintos. O Teodorico da infância traz, é certo,

7 A respeito dos estudos sobre a masculinidade no século XIX é interessante ler BARCELLOS, José Carlos. Homossociabilidade masculina e homoerotismo na ficção de Eça de Queirós. In: SCARPELLI, Marli Fantini & OLIVEIRA, Paulo Motta (org.). Os Centenários: Eça, Freyre e Nobre. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2001. e BARCELLOS, José Carlos. Masculinidade como silêncio: revisitando Herculano e Eça. Revista da ABRAPLIP, 2001.

Page 46: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

dentro de si o germe da imoralidade, porém ainda não é o Raposão adulto, que busca o

gozo pleno através de inúmeros ardis.

Logo no Prólogo, o narrador explica o porquê de suas memórias:

Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha Vida — que neste século, tão consumindo pelas incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte (QUEIRÓS, 1997: 845).

Independente das ações que vai protagonizar na história que começa a contar,

Teodoro acredita-se uma lição de moral “lúcida e forte”. Ainda assim, prefere ser chamado

de profanador de túmulos a adorador de antepassados, e tudo isso para agradar à Burguesia

Liberal. Será a diluição entre as figuras do autor e do personagem? Será que Teodorico

realmente se moralizou? Antes de refletirmos sobre isso, vale lembrar o final do Prólogo,

onde há a reafirmação do objetivo realista de moralização: “...nestas páginas de repouso e

de férias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas

roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a carapaça vistosa da Farsa”

(QUEIRÓS, 1997: 847).

Teodoro, o menino que cresce sem o amor da mãe e logo perde o pai, chega à casa da

Titi esperando encontrar um amor substituto de mãe. Todavia, descobre na figura da tia

Patrocínio que o mundo não é tão bom quanto lhe parecia, na clássica cena em que recebe da

tia “um beijo vago, duma frialdade de pedra” (QUEIRÓS, 1997: 852).

Quando a tia manda que passe pelo oratório e faça o sinal da cruz, Teodoro tem o

primeiro contato com os objetos de culto religioso. Os santos, a luz das velas e o Cristo feito

em ouro deixam Teodorico deslumbrado. Sua ambição já aparece quando pensa que no Céu

católico tudo será como a perfeição digna de um Céu merece: anjos e santos recobertos de

ouro e talvez de pedras preciosas.

Ainda sem conhecer o poder do dinheiro, Teodoro conclui facilmente: “Que rica era a

titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!” (QUEIRÓS, 1997: 863). Só vai,

entretanto, começar a desfrutar os prazeres que o dinheiro da tia pode oferecer quando, após

anos de internato, passa a morar na hospedagem das Pimentas, onde conhece

sem moderação, todas as independências, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta

Page 47: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

que usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carme com saborosos amores no Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão (QUEIRÓS, 1997: 857).

A maturidade e a virilidade chegam para começar a transformação de Teodoro em

Raposão. MEDINA (1988:556), citando Larbaud, já atenta para a proximidade semântica de

“Raposão” e “raposa”, nome que está ligado à idéia de astúcia, ardil. As maiores astúcias

começam quando, apesar da relativa liberdade da qual goza longe de casa, Teodoro escreve à

tia contando sobre os falsos estudos, jejuns e novenas e sofre quando a rotina das práticas

religiosas torna-se realidade nas férias de verão, ao lado da tia. Mesmo tendo percebido que

seu caminho e sua salvação não estão na religião, Teodoro começa a entender que apenas por

meio dela conseguirá agradar a tia, que está presa a uma beatice cega.

Ainda aqui não é insensível. Teodoro conhece Xavier, um parente afastado, e fica

emocionado com a pobreza em que vivem este e a família, composta por uma espanhola, com

quem é amigado, e seus três filhos. Chega a pensar em pedir ajuda à tia, mas quando d.

Patrocínio critica Xavier por suas “relaxações”, vê-se, apesar de tudo, obrigado a concordar,

já que precisa garantir a sua própria sobrevivência.

A conduta hipócrita de Teodoro agrada cada vez mais à Titi, que acredita no seu

puritanismo. Esconde dela seu interesse pelas mulheres, enquanto encontra-se escondido com

Adélia. E faz mais, chega a simular uma carta em que se mostra chateado com um colega que

o convida para “relaxações”. Em diversas situações, finge teatralmente o encontro com as

maravilhas da religião no oratório. Toda essa encenação do protagonista deslumbra a tia que,

como uma boa burguesa, deixa-se levar por adornos de santos e arroubos de transe religioso:

em festas com órgão, e um Santíssimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar gosto, ninguém bate cá os nossos portugueses!... (QUEIRÓS, 1997: 882).

A idéia que se tem é que Teodoro não tem problemas com a Consciência. A Culpa é

do mundo, que o deixou sem amor de mãe, órfão, pobre, dependente de parentes. A Culpa é

da Titi, que não soube dar-lhe afeto de mãe, que ama apenas o Cristo de ouro no oratório.

Page 48: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Entretanto, as coisas começam a se modificar ao descobrir que a Titi pretende

deixar a herança para a Igreja e que seu rival é Jesus Cristo em pessoa. Ambiciosamente,

Teodoro deduz que é preciso aumentar sua “fé”:

Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu procurara agradar à titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora fervente. (...) Até ai a Titi podia dizer com aprovação: "É exemplar". Era-me preciso, para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: "E santo!" Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a Religião e o Céu; (...) Então, evidentemente, ela testaria em meu favor — certa que testava em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja! (QUEIRÓS, 1997: 872).

É a partir desse momento que os efeitos da Consciência de Teodoro decaem até a

extinção completa, pois passa a agir em nome da ambição. Não visa mais somente à

sobrevivência. Agora quer todo o ouro da titi, ouro que aprendeu a admirar desde a infância.

Uma vez que o Mundo o diminuiu, com sua origem baixa e sua infância triste, resolve gozar

com o que, supõe, sempre lhe faltou. Cada vez que engana a tia não é só para garantir a casa

e a comida que ela lhe dá, mas para ter o gozo antevisto e suposto sem limite.

A Culpa por seus atos não deixa de ser sempre do outro, já que não abandona a

posição de vítima quando passa a agir em benefício do gozo próprio. Nunca se pode esquecer

que Teodoro tem uma profissão, cultura e poderia iniciar sua própria vida, sem depender da

Titi. Mas é claro que Raposão sucumbe à tentação. Por que ele não “tocaria a campainha”?

Por que, como ele mesmo diz, não “fartaria o bandulho”? Já sob a ótica de Eça, a sociedade

não presta, precisa levar uma bengalada; ninguém melhor do que Raposão para recebê-la.

Teodoro dá então lições de humildade e devoção, pensando em ludibriar a tia até a sua

morte, quando herdaria tudo por ter sido admiravelmente exemplar. Isso ocorre até o

momento em que surge a oportunidade de ir para Jerusalém, representar a tia Patrocínio na

Terra Santa. Aí surge realmente a grande chance do pícaro Raposão — trazer a relíquia tão

ardentemente desejada e pedida pela titi.

Assim que chega a Alexandria, tem um caso com Miss Mary, uma luveira inglesa de

reputação contestável, que lhe deixa de lembrança uma camisa de dormir, chamada por

Teodorico de “relíquia de amor”. Um leitor mais desatento pode não se dar conta, mas desde

já Eça inicia o paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas e desejadas por Raposão,

Page 49: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

ambas causadoras de sua ruína. A relíquia de Mary traz a seguinte dedicatória: "Ao meu

Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" (QUEIRÓS,

1997: 897). Além da importância óbvia que têm as palavras e os objetos na vida do pícaro,

não é possível deixar de relacionar o gozo antevisto de Teodoro com a relíquia da tia e o gozo

com Mary, que irá destruir futuramente o gozo supostamente sem limite sonhado desde a

infância.

Na chegada a Jerusalém inicia-se a desconstrução do ideal religioso burguês vitoriano.

A idéia de santuário sublime, Terra Santa e morada eterna do Cristo adorado pela titi é

demolida pela imagem de uma Jerusalém humana e cheia de “Teodoros” vendendo ridículas

relíquias.

Recusado por uma prostituta, Raposão sente saudades de Portugal,

onde não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! lá nenhum corpo bárbaro fugiria, com lágrimas, à carícia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da Titi, o meu amor não seria jamais ultrajado, nem a minha concupiscência jamais repelida. Ah! meu Deus! Assim eu lograsse, pela minha santidade, cativar a Titi!... (QUEIRÓS, 1997: 917)

Ligando sempre o amor ou o sexo (ambos só obtidos através de prostitutas) ao dinheiro

da tia, resolve escrever para ela, dizendo que está à procura da “grande relíquia”, aumentando

ainda mais seu repertório de falsidades ao relatar visões de santos e conversas com imagens,

nas quais d. Patrocínio é sempre louvada.

Ainda não estamos na passagem do sonho, mas Teodoro mostra-se dúbio, como é

comum a todo pícaro:

Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete de um altar-mor: e de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S. Joãozinho, sussurrei um Padre-Nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas, trauteando o fado da Adélia.

(...) Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas dessas águas, desses montes, sentia-me forte — e igual aos homens fortes do Êxodo. Pareceu-me ser um deles, familiar de Jeová, e tendo chegado do negro Egito com as minhas sandálias na mão

(...) Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaã este urro piedoso: — Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a Corte do Céu! (QUEIRÓS, 1997: 920)

Page 50: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Em momentos como esse, não é possível saber se Raposão está envolvido no

ambiente religioso que Jerusalém lhe proporciona e deixa-se levar pelos arroubos religiosos

que são comuns a sua tia ou se seus vivas a Cristo são apenas em função do gozo antevisto da

felicidade da tia com a falsa relíquia.

Teodoro, “com um brilho de visitação celeste”, encontra os galhos espinhosos que se

tornarão a futura relíquia. Teme que a falsa coroa de espinhos de Jesus Cristo tenha alguma

virtude verdadeira e d. Patrocínio fique boa dos seus inúmeros males. Segundo Raposão, ele

só “começaria a viver — quando ela começasse a morrer”. Instaura-se o conflito interno

(religioso ou filosófico?) de Teodorico — seriam verdadeiros todos os “ensinamentos” da

Titi? Imagens, relíquias, visões teriam algum significado e poder de decisão sobre o seu

destino? Eça coloca a Religião ao lado da Ciência. É por meio de Tópsius que Teodoro tem a

coragem necessária para forjar a relíquia, uma vez que é o sábio quem lhe garante, com sua

ciência, ser capaz de

afiançar à senhora sua tia, da parte de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi... — Foi? — berrei ansioso. — Foi o mesmo que ensangüentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!... (QUEIRÓS, 1997: 925)

Inicia-se então o período do sonho, narrativa que abarca um terço do livro e vai

mostrar a Revelação tão refutada pela crítica. Jerusalém, a cidade da Revelação católica, será

também o templo da Revelação da Verdade, do cristianismo humano e da moral anterior a

qualquer religião.

Teodoro acompanha com Tópsius a prisão de Cristo, a desconfiança da população em

relação aos seus objetivos e à sua castidade. Na casa de Gamaliel, doutor da Lei, aprende que

as virtudes teologais são anteriores a Cristo, fazem parte de várias religiões e constituem o

saber necessário para o bom desenvolvimento da Consciência.

Teodorico, que literalmente desconhece o Cristo católico, irá encontrá-lo “no seu corpo

humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam

os caminhos humanos!...” (QUEIRÓS, 1997:115). Entrará no mesmo transe religioso que

toma conta dos beatos fanáticos como d. Patrocínio:

Page 51: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Estava eu bastante purificado, com jejuns e terços, para afrontar a face fulgurante do meu Deus? Não! Oh mesquinha e amarga deficiência da minha devoção! Eu não beijara jamais, com suficiente amor, o seu pé dorido e roxo na sua igreja da Graça! Ai de mim! (QUEIRÓS, 1997: 946)

Questiona a sua fé como somente um católico vitoriano faria, relacionando a crença à

imagem encontrada na Igreja, dando importância única a esse aspecto do culto. A mesma

relação entre imagem e pessoa dar-se-á quando Teodoro assistir à crucificação de Cristo.

Então, ansioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta, cravada com cunhas numa fenda de rocha. O Rabi agonizava. E aquele corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão passado entre as pernas — encheu-me de terror e de espanto... (QUEIRÓS, 1997: 975)

Este é o início da Revelação — Teodoro descobre que Cristo não é apenas a imagem

do oratório da Titi. Daquele Cristo, o da imagem, ele não tinha medo, pois durante toda a sua

vida não conteve nenhum significado. Já o Cristo “verdadeiro”, do sonho, o assusta frente à

desumanidade do mundo, o faz acreditar não no Cristo da religião católica, mas nas virtudes

que ele representa.

Mesmo após o sonho, a mescla de religião (ainda que falsa) e ambição continuam

fazendo parte de Teodoro. Ao entregar as falsas relíquias à Titi, Teodorico diz

Atirei a alma para as alturas, gritei desesperadamente, em toda ânsia do meu desejo: — Oh Santa Virgem Maria, faze que ela rebente depressa! (QUEIRÓS, 1997: 1009)

Após a descoberta feita pela Titi de que a coroa de espinhos era na verdade a camisa

da prostituta, Raposão vai embora de casa, fugido. Passa a vender as falsas relíquias para

sobreviver, e com isso mostra que não tem nenhum arrependimento do que fez. Seu único

desespero é ver-se sem o dinheiro da tia e as mordomias das quais gozava em sua casa.

Questionando-se sobre como os embrulhos teriam sido trocados, Teodoro pensa em

algo de sobrenatural e avista um Cristo crucificado dentro de uma caixa. Inicia aí um diálogo

no qual acusa a imagem, afirmando que é a desgraça que recebe em troca depois de ter se

compadecido de sua morte no episódio do sonho. O Cristo sai então do caixilho e aponta os

Page 52: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

erros de Teodoro — suas mentiras e a falsa beatice para a d. Patrocínio, enquanto dormia

com a prostituta Mary em segredo.

Ora, justiceiramente aconteceu que o embrulho que ofertaste à titi e que a titi abriu — foi aquele que lhe revelava a tua perversidade! E isto prova-te, Teodorico, a inutilidade da hipocrisia! (QUEIRÓS, 1997: 201)

Chegou o momento da tão esperada bengalada de Eça de Queirós. Teodoro apavora-se

com a Voz, que o persegue e o faz sofrer. É finalmente a hora em que a Culpa o atormenta e

em que a Consciência inicia o seu papel:

Perguntavas-me, há pouco, se eu me não lembrava do teu rosto... Eu pergunto-te agora se não te lembras da minha voz... Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos homens... Sou anterior aos deuses transitórios: eles dentro em mim nascem; dentro em mim duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem; e eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciência; sou neste instante a tua própria Consciência refletida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual, tu, mal-educado e pouco filosófico, estás habituado a compreender-me... (QUEIRÓS, 1997: 1028)

Essa é a Revelação — a Verdade não está nas religiões, mas sim na Consciência, que

deve dirigir o Homem, não simplesmente para que este não infrinja as regras de moral

católicas, mas as da moral necessária para o bom desenvolvimento de uma sociedade. A

Consciência, da qual descendem todas as religiões, é o triunfo do romance de Eça. Talvez seja

mesmo o seu personagem principal, que só aparece no último capítulo.

Teodoro ainda tenta agir como antes. Chega a iniciar uma oração, clamando pelo

“Senhor Jesus, Deus e filho de Deus”, mas a Consciência já teve sua ação e seu caminho

agora é tornar-se um “homem de bem”, casado, pai, respeitável e até mesmo dono de

mosteiro.

Mas Eça não poderia deixar de mostrar que as crenças cegas estão (ou podem estar)

acima da Verdade. E é justamente disso que se valem os pícaros, como Raposão, para

prosperarem. Teodoro lembra-se que o bilhete de Miss Mary continha as iniciais M.M. e que

ele poderia ter afirmado tratar-se da camisa de Maria Madalena. Estaria assim ainda mais

realizado e por que não o fez? Por que perdeu a sua oportunidade de prosperar?

Page 53: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu — cria, através da universal ilusão, Ciências e Religiões. (QUEIRÓS, 1997: 1033)

A Relíquia é farsa, sátira, picaresca; é crítica ao catolicismo da culpa e do castigo, do

fanatismo e da secularização. Reproduz tudo o que a sociedade européia do século XIX queria

esconder sobre a religião, a moral e sua relação com o trabalho e os meios lícitos de ascensão.

Combalida pela crítica, A Relíquia não é certamente a obra-prima de Eça de Queirós,

mas pode ser considerada um marco em sua obra, pois ali assume um estilo narrativo

incomparável a qualquer outra produção portuguesa do século XIX.

É também única a fuga do maniqueísmo, que uma obra satírica é capaz de proporcionar.

Reduzir o romance à validade das bengaladas de Eça ou criticá-lo pelo aspecto burlesco do

protagonista, é desmerecer uma obra que não pára na crítica simples, mas se estende à

reprodução dos efeitos da Consciência no ser humano, anunciando o objeto de estudo tão bem

desenvolvido posteriormente pela psicanálise.

3.2 A traição do ideal erótico burguês

É sabido que a mola propulsora dos atos picarescos é a sociedade sem amor. É por conta

dela que o anti-herói possui uma família instável financeiramente e, após ficar órfão, precisa

trapacear, usurpando as características dos verdadeiros ricos para sobressair nessa sociedade

que não o acolhe. Dessa forma constrói sua relação com dois dos três traços estruturais de sua

vida — o dinheiro (necessário para a ascensão) e a religião (meio encontrado para as

trapaças).

É também a sociedade sem amor que vai guiar outro principal traço do pícaro, as

relações amorosas. Sua família de origem escusa, que logo desaparece, é sua única ligação

com o amor durante a infância. A ausência da mãe ou de qualquer outra figura materna faz

com que o pícaro crie certa fixação em relação à sua genitora, pois de alguma forma crê que,

se ela estivesse viva (ou se recebesse de outra um carinho maternal), não precisaria vingar-se

de um mundo que o agride e o desampara. Não podemos esquecer que no século XIX a mãe

Page 54: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

representava o papel de guardiã da moral, educadora religiosa, aquela que faz feliz o

marido e seu lar. Pensando vitorianamente, a falta da mãe é um estímulo para a perdição,

como acontece com o pícaro.

A patrulha da moralidade existente na sociedade e seu amor incondicional pela mãe são

fundamentais para entendermos que seus objetos amorosos são sempre prostitutas ou

mulheres do povo.

O amor que só encontra realização no erotismo constitui mais um traço da trajetória

baixa picaresca e revela a dificuldade de confluência das duas correntes de amor freudianas

que, no pícaro, leva ao gozo do corpo, mas nunca à realização de seus desejos. Vale sempre

lembrar que o objetivo maior desse anti-herói é a ascensão social, mas por trás disso, está

sempre presente a aspiração inalcançável, a família que ele nunca teve.

Para entendermos melhor como o binômio família-sociedade pode levar a uma

insatisfação amorosa, abriremos um parêntese em que estabeleceremos uma reflexão sobre as

correntes amorosas e sua existência na vida dos homens do século XIX, a partir da concepção

freudiana.

Em suas Contribuições à Psicologia do Amor, Freud considera haver duas correntes

para um “comportamento amoroso completamente normal” (1997: 78), a afetiva e a sensual.

A primeira é formada ainda na infância e possui como objeto amoroso os pais, cuja afeição já

aparece em seus cuidados paternais e revela certo erotismo; a segunda corrente inicia-se na

puberdade e une os afetos infantis ao erotismo, sempre limitada, claro, pela “barreira do

incesto”.

O ideal é que, na idade adulta, a duas correntes se unam. Entretanto, o ser humano

depara-se com a frustração diante da escolha de objetos amorosos diferentes dos infantis e

com a persistência da atração pelos objetos infantis. Quando esses dois obstáculos são

tenazes, a corrente sensual se restringe e tende apenas a objetos que não lembrem o incesto,

para que possa ter sexo com alguém que não precise ser amado, afastando-se, portanto, da

imagem da mãe. Logo, ama-se a prostituta porque ama-se cada vez mais a própria mãe.

Dessa forma, as duas correntes não se unem, e amor e desejo nunca estão representados

em um único objeto escolhido. É exatamente por isso que esse homem só se sente plenamente

realizado sexualmente quando deprecia a mulher, pois não pode desejar aquela a quem ama.

Isso gera uma atração por um tipo de mulher “eticamente inferior” (FREUD, 1997: 84),

representada por uma prostituta, mulher de má fama ou simplesmente alguém de classe social

Page 55: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

inferior. Assim, escondido por trás dessa mulher menos respeitosa que ele, o homem

pode realizar-se sem que o restante da sociedade possa julgá-lo.

Como aponta Freud, o julgamento da sociedade é muito importante para esse “homem

civilizado”, típico representante do século XIX. Há uma forte luta pela privacidade, pela

respeitabilidade e pelo controle de sentimentos, sejam eles nobres ou não. Para que esses

limites sejam respeitados, surge uma grande repressão dos impulsos.

Citando Freud em “Kulturelle” Sexualmoral, Peter Gay afirma que a civilização

atravessa três estágios de conduta sexual aceitável: na primeira, toda atividade sexual é livre, esteja ou não voltada para a reprodução; na segunda, só se permite a atividade sexual que atenda às finalidades reprodutivas; na terceira, essa restrição torna-se ainda mais aguda, admitindo oficialmente apenas a reprodução legítima (GAY, 2000: 303).

Todavia, no século XIX, só eram aceitas a segunda e a terceira condutas, especialmente

a última. Logo, a satisfação só era permitida dentro do casamento, o que exigia abstinência

pré-nupcial e fidelidade. Essa repressão da sociedade dita civilizada levava ao nervosismo,

demonstrado através da somatização dos conflitos sexuais, uma vez que o sexo quase nunca

era livre.

Outra conseqüência dos limites impostos pela moral, talvez a mais visível, era a

prostituição, meio mais simples de tornar possível a realização sexual fora das condutas de

finalidade reprodutiva apontadas por Freud.

Ora, é essa coerção social das condutas sexuais que leva o homem a não conseguir

equilibrar as correntes afetiva e sensual, buscando a realização sexual não no casamento, ou

com a mulher amada, mas marginalmente, isto é, por meio da prostituição. Esse também é o

seu caminho inconsciente de buscar uma parceira que seja depreciada por ele para o sexo.

Logo, é possível concluir que a repressão da sociedade burguesa do século XIX e suas

conseqüentes saídas para a concretização do sexo estavam intimamente ligadas à impotência

psíquica do homem vitoriano.

É preciso lembrar também que, quando falamos do contato dos burgueses com a

prostituição, não estamos apenas lidando com pessoas supostamente distintas em relação à

ética; na verdade, trata-se antes de mais nada de uma diferença socio-econômica que não deve

ser relevada. Existe no imaginário popular uma tendência a acreditar que os padrões sexuais

diferem de acordo com a classe social a qual a pessoa pertença. Peter Gay (2000: 344),

citando os estudos de Freud nas Conferências de Introdução à Psicanálise, confirma a

Page 56: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

diferença existente entre a normal vida sexual do pobre e a vida sexual do burguês,

abalada pelas repressões.

É portanto lógico que os burgueses se interessassem sexualmente pelas moças de classe

inferior ou pelas prostitutas, se eram as moças pobres que exerciam a prostituição. Valendo-se

de relações de dependência econômica, o homem burguês usava não só a cortesã, mas seduzia

empregadas, operárias etc., pois o ideal de vida sexual selvagem atraía tanto quanto o de

objeto depreciado.

É por isso que a prostituição vem a ser a “válvula de segurança e respeitabilidade”

(GAY, 2000: 313) tão bem representada em estudos científicos da época sobre seus

defensores e combatentes, pois não infringe as normas morais de respeito e impede a sedução

de moças de família e criadas honestas.

Por ser uma traição óbvia e inerente às exigências do ideal erótico burguês de fidelidade

conjugal, a prostituição foi inúmeras vezes representada em obras ficcionais de qualidade —

não há como esquecer A Dama das Camélias e Lucíola, para citar apenas dois romances da

era vitoriana. Independente de serem relatos fiéis à realidade (já que na vida real as prostitutas

não se restringiam às cortesãs caras e luxuosas), eram uma forma de, através da prostituta de

bom coração com morte trágica, aplicar uma lição de moral à sociedade, que deveria ter

sempre em mente que o sexo livre é perigoso para o corpo e para o amor.

Para observarmos como a relação entre o burguês e as mulheres do povo estavam

implicitamente presentes nos romances do século XIX, vamos analisar Teodorico Raposo, que

assim como o Lazarillo, pícaro original, só consegue amar e encontrar realização com

mulheres do povo, em relacionamentos escusos. Vejamos, então, Teodorico, o neopícaro

queirosiano plenamente apaixonado por duas cortesãs, Adélia e Miss Mary.

3.2.1. Imagens queirosianas da perdição

Como já foi dito anteriormente, Eça de Queirós estava realmente empenhado em

escrever “romances de combate”, sempre imbuído do discurso de verdade presente na estética

realista. A tentativa de reprodução do mundo real era sempre o pano de fundo para suas

“bengaladas” em nome da moral burguesa. Não é de se estranhar, portanto, que, ao falar das

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relações sensuais de seus personagens, também queira desvendar a verdade do sexo. É

claro que, como conseqüência disso encontraremos uma visão moralista a respeito do sexo

desvinculado do amor conjugal.

Ao comentar a postura de Eça em suas Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres,

Ana Luísa Vilela afirma:

A persistente tendência misógina; esta terminante condenação do amor não procriativo; as referências algo galhofeiras às criadas chantagistas londrinas e ao escândalo da prostituição (...) duas alusões jocosas (uma das quais bastante desenvolvida) ao lesbianismo; o contido regozijo (e porventura a narrativa levemente mistificadora) de “Uma partida feita ao Times” — compõem, nestes textos jornalísticos, uma atitude de distância simultaneamente folgazã e moralista em relação ao prazer e à irregularidade erótica, inconsequentes mas sintomáticas anedotas de um quotidiano pré-catastrófico (VILELA, 200: 276).

Todos esses tópicos abordados por Eça nos textos jornalísticos da década de 1870

acabaram por ser brilhantemente desenvolvidos nos romances do autor. As más

conseqüências do amor “não procriativo” estão presentes em quase toda a sua obra. Não há

como esquecer a criada chantagista d’ O Primo Basílio e as punições recebidas por todos os

protagonistas que ousaram amar fora dos padrões morais da época. Para perpetuar

ficcionalmente a prostituição, nada como as cortesãs d’ A Relíquia, que exemplificam a idéia

central do eros queirosiano — a figura feminina é, antes de mais nada, a imagem da perdição

e da desordem quando desassociada a um casamento modelo de fidelidade.

Para relacionarmos o amor de Teodorico Raposo pelas prostitutas é interessante

rememoramos seus objetos amorosos infantis. Sua mãe morre logo após o parto, e

aparentemente a única figura feminina que ele conhece é Gervásia, a criada. Já no caminho

para a casa de d. Patrocínio, Teodorico, então com sete anos, estabelece sua primeira relação

entre o sensualismo e a figura materna — a “inglesa do barão” é comparada à Virgem Maria,

“cheia de graça”:

No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-Marias. Nunca roçara corpo tão belo, dum perfume tão penetrante: ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras... (QUEIRÓS, 1997: 851)

A antipatia sentida pela Titi desde sua chegada é compensada pelo carinho da criada

Vicência, que sempre aludia em suas conversas com o menino à necessidade de agradar a tia,

Page 58: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

tendo em vista sua riqueza. A relação de Teodorico com sua “conselheira” é um misto de

afeição e erotismo, como ocorre na corrente afetiva.

À porta do colégio a Vicência dizia “Adeus, amorzinho”, e dava-me um grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu pensava na Vicência, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e brancos como leite. E assim foi nascendo no meu coração, pudicamente, uma paixão pela Vicência. (QUEIRÓS, 1997: 856)

É interessante observar que, com a chegada da puberdade, a primeira briga, o fumo dos

cigarros, a ausência da amizade homoerótica com o colega Crispim, o amor de Teodorico pela

criada “desapareceu um dia, insensivelmente, como uma flor que se perde na rua”

(QUEIRÓS, 1997: 856).

Já na idade adulta, o autor nos faz saber da única aventura de Teodoro até então. Ainda

que mal desenvolvido, seu relacionamento com Tereza dos Quinze, no Terreiro das Ervas em

Coimbra, revela o início da atração do anti-herói por um tipo de mulher que “me chamava de

‘único afeto da sua alma’ e me pedia dezoito tostões” (QUEIRÓS, 1997: 860).

Durante as férias em Lisboa, Teodorico encontra um amigo, que possui o sugestivo

apelido de Rinchão, e que o leva para conhecer Adélia. Aquele encontro com a prostituta de

“casa de classe média”, que inspira ao longe um ar mais respeitável que o de um prostíbulo,

deixa Raposão “comovido” e já inclinado para o amor, sem nem ao menos conhecê-la:

E a Adélia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um cigarro lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos. Só quando o Silvério e a Ernestina correram dentro à cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar à Adélia, corando: — Então a menina donde é? Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era tristonho aquele tempo de chuva. Ela pediu-me outro cigarro, cortesmente, dizendo-me — o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas largas do seu roupão, escorregando, descobriam braços tão brancos e macios, que entre eles a Morte mesma deveria ser deleitosa.

(...) Tinha um sobrinho que também chamava Teodorico; e isto foi como um fio sutil e forte que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu (QUEIRÓS, 1997: 861).

A timidez diante do “mulherão” confunde atração sexual e afeto em Teodorico. Ao

mesmo tempo em que tem consciência da condição social de Adélia, Raposão encanta-se com

a forma pudica da prostituta ao tratá-lo por cavalheiro. Tudo isso unido ao discurso

romântico do protagonista-narrador, que ousa enxergar um “fio sutil e forte” unindo sua vida

Page 59: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

à da mulher, leva-nos a antever o amor que sentirá por Adélia. A analogia amor de

mãe/amor de prostituta pode parecer estranha à primeira vista, mas é inteiramente justificada

pelas reminiscências infantis da ternura da figura materna e a diferença quase nula existente

no imaginário infantil entre o sexo da mãe (ou da figura materna) com o pai e o sexo

oferecido aos homens pelas meretrizes. Teodorico deixa-se, convenientemente, levar pelo

jogo de Adélia, que mescla respeito e sedução, o que seria uma forma mais delicada e discreta

de trair o ideal erótico burguês de castidade e fidelidade.

Teodoro Raposo não se dá conta disso, mas encaixa-se perfeitamente no modelo de

homem que precisa amar mulheres de má fama, usando seus objetos amorosos como

substitutos da figura materna. Está plenamente de acordo com as precondições para o amor

(FREUD, 1997: 66), pois se interessa pela prostituta, cuja figura é desconfiável e induz a

haver sempre uma terceira pessoa prejudicada, já que nunca pertencerá a um só homem. Essa

atração também provoca uma valorização compulsiva da mulher e um grande desejo de salvá-

la, já que ela é eticamente inferior e pode perder o “controle moral”. Ora, é justamente esse

amor inexorável que Raposão sentirá por Adélia e que será satirizado por Eça através do

discurso ridiculamente romântico do protagonista — “Então a Adélia, revirando-se

languidamente, puxou-me a face — e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério,

mais sentido, mais profundo que até aí abalara o meu ser” (QUEIRÓS, 1997: 862).

Teodorico volta à universidade para terminar seus estudos, sem com isso esquecer a

prostituta — “Em Coimbra procurara mesmo fazer-lhe versos; e esse amor dentro do meu

peito foi, no último ano de Universidade, no ano de direito eclesiástico, como um maravilhoso

lírio que ninguém via e que perfumava a minha vida...” (QUEIRÓS, 1997: 865) . Quando

retorna a Lisboa e passa a receber da tia uma mesada, resolve procurar novamente Adélia na

quase óbvia rua da Madalena, agora não mais independente em sua casa burguesa, mas

“patrocinada por Eleutério Serra, da firma Serra Brito & Cia.” (QUEIRÓS, 1997: 865). Na

nova postura de mulher teúda e manteúda, interessa ainda mais a Raposão, que vê (assim

como a maioria dos homens vitorianos) nesse tipo de mulher uma espécie de esposa

substituta, concubina com a qual pode ao mesmo tempo ser respeitável e realizar seus desejos

sexuais.

A suposta “respeitabilidade” de ambos continua, aliás, a ser extremamente excitante

para Teodorico (“Mandei-lhe uma carta ardente e séria, pondo reverentemente no alto: ‘Minha

senhora.’ Ela respondeu, com dignidade: — ‘o cavalheiro pode vir aqui ao meio-dia’ ”

Page 60: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

QUEIRÓS, 1997: 865). Adélia primeiro certifica-se de que Raposão não é do comércio,

o que poderia atrapalhar sua vida com Eleutério, e, logo depois, insinua-se para o novo

amante, que mostra-se já entregue após um longo período de amor idealizado na distância de

Coimbra — “Ajoelhei sobre a esteira, trêmulo, esmagando o peito contra os seus joelhos,

ofertando-me como uma rês; ela abriu o seu xale; aceitou-me misericordiosamente”

(QUEIRÓS, 1997: 866).

Enquanto o esperado de um burguês é que ele seja um homem provedor, forte e

persuasivo diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d. Patrocínio, fraco e

dominado por Adélia. A imagem construída pelo protagonista é bem diversa do que a

sociedade da época precisava demonstrar. Raposão não é o forte, o conquistador, é o amante

maternal, que oferta-se e aceita passivamente da amante ter ela um patrocinador, o Eleutério,

sob a justificativa de ser ele, Teodorico, “o eleito do seu seio” (QUEIRÓS, 1997: 866). A

própria visão de um homem que se apaixona pela prostituta e se deixa dominar por ela revela

um certo afeminamento, que aqui mostra-se excessivamente caricatural, uma vez que constitui

uma sátira aos arroubos românticos de amor.

Sabendo que a titi deseja deixar todos os seus bens para a Igreja, Raposão empenha-se

mais na sua falsa devoção para tornar-se o único herdeiro. Pendura na parede de seu quarto

imagens de santos, ensina à tia a devoção de santos menos conhecidos e passa assistir a várias

missas e novenas diariamente. À noite, após tamanha peregrinação, encontra-se sempre

cansado, o que passa a irritar Adélia. Do apelido de morcão logo chega a carraça e vê a

amante cada vez mais distante, inclusive “deixou de me fazer a carícia melhor, que eu mais

apetecia — a penetrante e regaladora beijoca na orelha” (QUEIRÓS, 1997: 874).

Sem receber fortuna alguma de Teodorico e ainda sem a presença da figura masculina

que ele deveria representar, Adélia se desinteressa até ao ponto de ser vista com o sr. Adelino,

a que apresenta como sobrinho.Com medo de ser descoberta, “Nessa noite a Adélia,

resplandecente, tornou a chamar-me morcão, restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa

semana foi deliciosa como a de um noivado” (QUEIRÓS, 1997: 875).

É interessante observar que o idílio de Raposão é solitário e a imagem da mulher que é

concubina de outro lhe dá a sensação de relacionamento sólido e sério, uma vez que chega a

compará-lo a um “noivado”. Apesar da condição de prostituta de Adélia, Raposão tem por ela

amor de esposa e de amante, ainda que para alcançar esse estado de confluência precise da

mulher eticamente inferior. Tanto é necessário para Teodorico legitimar seu amor sabido

Page 61: A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO

incompatível com o objeto amoroso, que tem como desejo, se herdar os bens da tia,

tornar Adélia sua concubina; também utiliza termos como “noivado” e sentir-se “viúvo, sem

ocupação e sem lar” (QUEIRÓS, 1997: 878), posteriormente, quando perceber que a perdeu.

Logo a verdade aparece. A figura da criada tão comentada por Eça de Queirós aparece

para revelar o segredo. Sabendo que Adelino também é amante da prostituta e que seu

dinheiro foi usado para comprar roupa para o outro, Raposão ainda pensa se “Não seria mais

sensato e mais proveitoso acreditar nela, tolerar-lhe um fugitivo transporte pelo sr. Adelino, e

continuar a receber egoistamente o meu beijinho na orelha?” (QUEIRÓS, 1997:878).

Entretanto, configura-se clara para Teodorico a diferença entre a prostituição e o desejo.

Eleutério, o amante oficial sempre foi aceito por Teodorico como o pagador da prostituição,

enquanto ele próprio representava o amor real, a escolha de Adélia; neste caso, Eleutério era o

traído, a terceira pessoa prejudicada — precondição para a realização do amor. Diante de

Adelino, ele, o Raposão de poucos, mas presentes tostões, passa a ser o enganado, traído,

verdadeiramente humilhado por aquele que é o objeto eleito da amante. Ainda que

apaixonado, é preciso agora diminuí-la, torná-la inferior, de forma que ele não pareça o

burguês enganado e mesmo assim enamorado, por isso chama-lhe “bêbeda” (QUEIRÓS,

1997: 878). Levando a prostituta à lama, consegue fazer com que ela, seu objeto de desejo,

não seja mais digna do seu amor.

Tenta ainda assim fazer novenas para resgatar o amor de Adélia, visto que pedir à Nossa

Senhora é o mesmo que pedir à figura da mãe, que por sua vez confunde-se com a figura da

prostituta. É tarde. Ao procurá-la pela última vez, ouve como resposta a seus chamados o

que gostaria de dizer-lhe a sociedade a quem engana em sua fuga burguesa e seu caminho de

vícios: “— Atira-lhe para cima dos lombos o balde de água suja!” (QUEIRÓS, 1997: 880).

Do desejo de ir a Paris esquecer Adélia surge a oportunidade de representar a Titi em

Jerusalém, mostrar-se santo e assim assegurar a herança sem, contudo, deixar de “fartar o

bandulho”. É lá no ambiente de religião e sonho dessa viagem que irá conhecer seu outro

grande amor, mais uma vez uma prostituta, Miss Mary:

Eu, acendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era por intenção da tia Patrocínio, que me recomendara uma jaculatória a S. José, apenas pisasse esse solo do Egito, tomado, desde a fuga da Santa Família em cima do seu burrinho, chão devoto como o duma Sé. Amar era por necessidade do meu coração, ansioso e ardido. (...) Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha vendia canas-de-açúcar, a tranqüila rua das Duas Irmãs. Aí (murmurou ele) eu veria, pendurada sobre a porta duma lojinha discreta, uma

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pesada mão de pau, tosca e roxa — e por cima, em tabuleta negra, estes dizeres convidativos a ouro: MISS MARY, LUVAS E FLORES DE CERA. Era esse o refúgio que ele aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua, junto duma fonte chorando entre árvores, havia uma capela nova onde a minha alma acharia consolação e frescura. — E diga o cavalheiro a Miss Mary que vai de mandado do Hotel das Pirâmides.

(QUEIRÓS, 1997: 892)

Diferentemente de Adélia, Miss Mary é uma prostituta que atua em uma loja com

fachada ilícita, como era muito comum no século XIX, numa tentativa de tornar a prostituição

ainda mais clandestina, em lojas de luvas ou de tabaco. Com ela, demonstra ser mais amante

que maternal, ao contrário do que aconteceu com Adélia. No entanto, não deixa nunca o tom

romântico das narrações e comportamento excessivamente comovido e impressionável com

atitudes de carinho:

Ela era silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu modo gentil de dobrar o Times, saturava o meu coração de luminosa alegria. Nem precisava chamar-me "seu portuguesinho valente, seu bibichinho". Bastava que o seu peito arfasse: — só para ver aquela doce onda lânguida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos, eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem repouso, até onde as águas do Nilo são brancas! (QUEIRÓS, 1997: 893)

O nosso “portuguesinho valente” passeia idilicamente com sua nova amante e a leva em

jantares no Hotel das Pirâmides como se ela fosse sua esposa. Repete, portanto, o padrão de

comportamento que teve com Adélia, chegando mais uma vez a sonhar com a oficialização do

relacionamento que seria condenado aos olhos de todos. Pensa novamente que, herdando a

fortuna da tia,

poderia comprar esse doce retiro, forrá-lo de lindas sedas, e viver ao lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas as inquietações da civilização. (...) E passaria os dias numa fofa preguiça oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola francesa, e recebendo perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me dava só com deixar arfar o seio e chamar-me "seu portuguesinho valente" (QUEIRÓS, 1997: 895).

Raposão nunca duvida de ser correspondido por Miss Mary. Ao seguir viagem, sofre

com a separação, mas recebe como consolo a famosa camisa de dormir que, como já sabemos,

é a causa da descoberta de suas trapaças. Como prova inconsciente para a fidelidade de Mary

e para elevá-la em relação à Adélia, Teodorico sonha que está com ambas subindo uma colina

quando encontram o Diabo. Não indica a reação de Miss Mary, mas afirma que “A insaciável

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Adélia atirava olhadelas oblíquas à potência dos seus músculos. Eu dizia-lhe, indignado:

"Porca, até te serve o diabo?” (QUEIRÓS, 1997:899). Para Raposão pouco importa que Miss

Mary seja tão prostituta quanto Adélia, o que realmente conta é a promiscuidade de uma em

vista da fidelidade amorosa da outra. Apesar de escolher como objeto amoroso uma prostituta

— por conta principalmente, da desconfiança exercida pela sua figura que gera,

inexoravelmente, uma agradável sensação ao ego masculino, de rivalidade com os demais

homens —, o que o protagonista mais gosta é justamente do fato de a prostituta lhe ser fiel,

pois assim reproduz seu ideal de relacionamento: ama a mãe, que é fiel ao pai. Procura na

prostitua a figura da mãe e finalmente a encontra.

Porém, pouco tempo depois descobrirá que a fidelidade idealizada não existe. Ao

encontrar Alpedrinha no Hotel de Josafá, pede notícias de Mary e descobre que ela agora está

em Tebas, para onde foi acompanhada de um italiano fotógrafo.

— Que descarada! — gritei eu, varado. — Então com um italiano? E gostando dele? Ou só negócio?... Hein, gostando? — Babadinha — balbuciou Alpedrinha. E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josafá. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me na alma uma suspeita abominável. — Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui há perfídia, Alpedrinha! Ele baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que ele o levantasse já eu lhe empolgara com sanha o braço mole. — Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Também petiscaste?

(...) — Também petisquei! Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Também aquela — com aquele! Oh, a Terra! a Terra! que é ela senão um montão de coisas podres, rolando pelos céus com bazófias de astro?

(...) Ia rebolar-me no divan, rasgá-lo com as unhas, rir sempre, num desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte apareceram alvoroçados. (QUEIRÓS, 1997: 1000).

Fica sabendo que o tão propalado amor da luveira estava apenas na imaginação dele.

Mary não passa de uma prostituta, que vende seu amor tanto afetivo quanto carnal a quem

aparecer primeiro. Precisa, então, degradá-la, tornar inferior seu objeto de desejo, como já

havia feito com Adélia, por isso agora Miss Mary é a “descarada”. Sente-se traído também

pelo envolvimento de Alpedrinha com a luveira, que possuía um padrão óbvio de

comportamento, e deu a seu outro amante português um “chambrezinho” (QUEIRÓS, 1997:

1000) de presente e até mesmo um apelido próprio: “mourozinho catita” (QUEIRÓS, 1997:

1000). Mais uma vez é necessário marcar o desnível moral que há entre ele (!) e a prostituta,

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por isso utiliza o verbo “petiscar”, denotando algo como “aproveitar-se rapidamente”, ou

“comer coisa sem importância”.

Desespera-se, mas deve manter sua postura perante Topsius e Potte, já que um homem

de sua condição social poderia envolver-se com uma prostituta, no entanto, nunca amá-la e

deixar-se levar pelo ciúme. Raposão dá-se conta do alto preço que tem a pagar por amar uma

cortesã — a mulher trai naturalmente e a sociedade joga-lhe na cara a condição pecaminosa

de homem que não escolhe uma mulher honesta para casamento, mas vive em concubinato

para manter a aparência diante de todos, principalmente da Titi, a quem deseja agradar para

herdar. A escolha de seu objeto amoroso é como uma resposta do mundo, que lhe repete

incessantemente: ame ou deseje, pois nunca conseguirá concretizar os dois simultaneamente.

Como não consegue herdar, amar ou desejar, a única saída possível para Teodorico é

arrumar um casamento de conveniências. Sem o dinheiro da tia Patrocínio, reencontra seu

colega de infância Crispim, representante da firma Crispim e Cia, que lhe oferece um

emprego. Logo aproxima-se da irmã de Crispim, d. Jesuína. Sem atrativos, mas dona de um

bom dote, é ela quem vai se tornar a escolhida de Raposão:

Casei. Sou pai. Tenho carruagem, a consideração do meu bairro, a comenda de Cristo. E o dr. Margaride, que janta comigo todos os domingos de casaca, afirma que o Estado, pela minha ilustração, as minhas consideráveis viagens e o meu patriotismo — me deve o título de Barão do Mosteiro. Porque eu comprei o Mosteiro. (QUEIRÓS, 1997: 1031)

Raposão renunciou ao desejo que encontrava com suas prostitutas. É certo que amava

antes mesmo de acreditar ser amado. Mas sua crença o levava a um estado de confluência

entre amor e desejo, que apesar de não correspondido, era suficientemente satisfatório para

alcançar a figura maternal que lhe faltou durante a infância. Se a falta da mãe leva às

prostitutas e se elas representam a perdição do século XIX, Raposão estava mesmo sem saída,

ou melhor, com uma única saída — renunciar para adequar-se à sociedade pela qual ele tanto

deseja ser acolhido. O meio para isso é o casamento honesto, o bom dote, o baronato, tudo

leva à consideração dos outros, consideração de um daqueles que Teodorico sempre sonhou

ser. Abre mão do desejo amoroso porque seu desejo absoluto é ter amor e dinheiro ao mesmo

tempo, e isso ele nunca conseguiria alcançar, ainda que herdasse toda a fortuna da Titi.

Esse viés romântico de Raposão, que entrega-se à paixão pelas prostitutas, em um meio

realista, que as usa para manter a ordem e a moral vigentes, revela um final que não deixa de

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ser extremamente romântico (ou será extremamente vitoriano?) — a renúncia é a mais

conveniente (talvez a única) saída para o burguês.

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4. CONCLUSÃO

É sempre um trabalho complexo analisar obras de um autor canônico. O que dizer então

de pesquisar sobre sua obra mais combatida? Ao dissertarmos sobre A Relíquia, estamos

tentando valorizar aspectos da tradição e da inovação em uma obra de sucesso pouco

elogiada. Qual seria portanto o valor desse estudo para o mundo acadêmico?

É raro encontrarmos um estudo sobre picaresca na literatura de língua portuguesa.

Apesar de haver no Brasil um grande pesquisador do tema, Mario Gonzalez (1994), e de

alguns pesquisadores, como Suely Reis Pinheiro, apostarem nesse tema, esse assunto ainda é

considerado por muitos como um tópico menos interessante no que diz respeito ao estudo da

literatura. Por isso achamos importante olhar A Relíquia sob uma nova perspectiva,

relacionando sua semelhança com a picaresca original, sem contudo, nos esquecermos de sua

condição de obra literária do século XIX e da filiação de seu autor ao Realismo.

Foi possível observar que a literatura picaresca é uma paródia às narrativas medievais,

tão caras aos escritores vitorianos. Repete, de forma irônica e distanciada as aventuras dos

cavaleiros medievais, transformando virtude em ambição, bom caráter em desonestidade e

assim por diante.

Comparando a postura crítica do pícaro original diante da vida e os valores mais

importantes para a sociedade do século XIX, chegamos à conclusão de que tanto o pícaro

como Lazarilho de Tormes quanto um indivíduo comum vitoriano pautariam sua vida

baseados em três faces da moral: a religião, o trabalho e o amor.

Ainda que o século XIX não apresente códigos de conduta sistematizados como na

Idade Média, quando ficava claro o que se esperava do homem em sua sociedade. No entanto,

torna-se evidente um desejo latente de fixar como deveria ser o comportamento de um

vitoriano, mesmo que não através de manuais de comportamento, mas por meio do

rebaixamento daquele que se apresenta como desviante do modelo esperado pela sociedade

vitoriana. O ideal da literatura é também demonstrar como um homem deveria (ou não)

comportar-se no século XIX face às cobranças da sociedade em relação ao trabalho, à religião

e ao comportamento amoroso.

O neopícaro vitoriano reconstrói o traço fundamental do pícaro original — a

individualidade. A compaixão por Xavier, o fato de já conseguir dirigir o olhar a uma terceira

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pessoa e, principalmente, o amor (sentimento inalcançável para o primeiro pícaro,

claramente misógino) são marcas evidentes de que o neopícaro é um personagem que não

vive a mercê do individual. A vontade de reconstruir a família que nunca teve e de alcançar o

status que acredita merecer o levará a agir em nome do seu desejo, mas em comunhão com

outras pessoas.

Ser um neopícaro no século XIX é viver os conflitos característicos desse século − a

ascensão social a qualquer preço, a dificuldade em entender uma possível confluência entre o

amor e o desejo sexual, as dúvidas em relação às verdades religiosas −, mas também

contrapor-se a esses conflitos com o “surgimento” da consciência e dos bons sentimentos em

relação ao outro.

O que deve ser ressaltada é a continuação no século XIX não apenas da importância do

dinheiro, do “parecer” ser um homem de bem, da delinqüência evidente na sociedade, mas,

principalmente, uma continuação de um “modelo” de narrativa autobiográfica da qual

podemos extrair duas leituras — uma simples, que enxerga apenas uma incoerência entre

narrador e personagem; outra, adotada por nós, mais privilegiada, abarcando uma série de

aventuras próprias de um personagem único em uma época e uma forma subversiva de narrar

no Realismo.

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