1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A RELAÇÃO ENTRE “TATUAGEM FEMININA”, SUBJETIVIDADES E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Flávia Cunha da Silva - PPCIS/UERJ 1 Resumo: Neste trabalho, apresento questões acerca do tema do uso da “tatuagem feminina” e sua relação com subjetividades e marcações sociais da diferença. Através de entrevistas realizadas durante trabalho de campo, discuto as falas de mulheres que possuem tatuagens e suas idéias sobre: a) quais tipos de tatuagem consideram aceitáveis e quais não são aceitáveis; b) quais lugares do corpo podem ser marcados ou não; c) quais desenhos ou escritas podem ser adotados ou não, segundo uma lógica que tem a ver com “feminilidades possíveis”. Essas diferenças de classificação possuem marcações sociais específicas e interseccionais de gênero, raça, classe, sexualidade, geração, entre outros, como buscarei demonstrar. Estudos sobre tatuagens e outras modificações corporais no meio urbano (e na “modernidade”) costumam abordar temas como “individualização”, “individualismo” e/ou “subjetividades autônomas”. Procuro, por outro lado, afirmar os processos de formações culturais coletivas de construção de subjetividade, considerando a complexidade das formas de sentir, estar e agir no mundo. Dada a necessidade de abordar a ligação entre os estados internos dos sujeitos e o poder, interessa entender as tatuagens enquanto marcas distintivas no processo de construção de subjetividades em contextos cultural, temporal e historicamente marcados. Abordar a questão da subjetividade nesses termos é importante pois reforça a noção de que os sujeitos são existencialmente complexos e contextualmente situados. Palavras-chave: Tatuagem; Gênero; Subjetividade; Marcadores sociais da diferença; Interseccionalidade Neste artigo apresento algumas reflexões sobre a relação entre o uso de tatuagens, subjetividades e marcadores sociais da diferença a partir de um corpus de entrevistas realizadas no âmbito de uma pesquisa etnográfica sobre “tatuagens femininas”. Entre os anos de 2011 e 2014, conduzi 25 entrevistas com mulheres de idades entre 18 e 62 anos de classes sociais, raças e etnias e ocupações distintas: professoras, donas de casa, desempregadas, estudantes, aposentadas, entre outras. As entrevistas foram realizadas durante as sessões de tatuagens das mesmas que ocorreram em um estúdio chamado Traço Tattoo, localizado na cidade de Niterói. Nessas entrevistas, temas como noções de autonomia sobre o corpo, feminilidades e o entendimento da tatuagem enquanto uma prática de embelezamento do corpo foram abordados por 1 A pesquisa que possibilitou este artigo se deu durante minha graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, concluída em 2015. No momento, cursando o mestrado pelo PPCIS/UERJ desde 2016, dou continuidade ao estudo sobre tatuagem, agora atentando para o racismo e (cis) sexismo presentes na sociedade brasileira. Tenho como interesse o estudo crítico da branquitude e suas relações com o uso da tatuagem. Pretendo investigar se existem tipos específicos de tatuagens que são considerados aceitáveis (desejados e admirados) e outros que são considerados inaceitáveis (indesejados e desprezados) por pessoas que se autodefinem como mulheres brancas, no contexto das relações de poder e dominação de gênero, de raça e da (cis) heteronormatividade.
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A RELAÇÃO ENTRE “TATUAGEM FEMININA”, … · âmbito de uma pesquisa etnográfica sobre “tatuagens femininas”. Entre os anos de 2011 e 2014, conduzi 25 entrevistas com mulheres
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A RELAÇÃO ENTRE “TATUAGEM FEMININA”, SUBJETIVIDADES E
MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA NO CONTEXTO DA
SOCIEDADE BRASILEIRA
Flávia Cunha da Silva - PPCIS/UERJ 1
Resumo: Neste trabalho, apresento questões acerca do tema do uso da “tatuagem feminina” e sua
relação com subjetividades e marcações sociais da diferença. Através de entrevistas realizadas
durante trabalho de campo, discuto as falas de mulheres que possuem tatuagens e suas idéias sobre:
a) quais tipos de tatuagem consideram aceitáveis e quais não são aceitáveis; b) quais lugares do
corpo podem ser marcados ou não; c) quais desenhos ou escritas podem ser adotados ou não,
segundo uma lógica que tem a ver com “feminilidades possíveis”. Essas diferenças de classificação
possuem marcações sociais específicas e interseccionais de gênero, raça, classe, sexualidade,
geração, entre outros, como buscarei demonstrar. Estudos sobre tatuagens e outras modificações
corporais no meio urbano (e na “modernidade”) costumam abordar temas como “individualização”,
“individualismo” e/ou “subjetividades autônomas”. Procuro, por outro lado, afirmar os processos de
formações culturais coletivas de construção de subjetividade, considerando a complexidade das
formas de sentir, estar e agir no mundo. Dada a necessidade de abordar a ligação entre os estados
internos dos sujeitos e o poder, interessa entender as tatuagens enquanto marcas distintivas no
processo de construção de subjetividades em contextos cultural, temporal e historicamente
marcados. Abordar a questão da subjetividade nesses termos é importante pois reforça a noção de
que os sujeitos são existencialmente complexos e contextualmente situados.
Palavras-chave: Tatuagem; Gênero; Subjetividade; Marcadores sociais da diferença;
Interseccionalidade
Neste artigo apresento algumas reflexões sobre a relação entre o uso de tatuagens,
subjetividades e marcadores sociais da diferença a partir de um corpus de entrevistas realizadas no
âmbito de uma pesquisa etnográfica sobre “tatuagens femininas”. Entre os anos de 2011 e 2014,
conduzi 25 entrevistas com mulheres de idades entre 18 e 62 anos de classes sociais, raças e etnias e
ocupações distintas: professoras, donas de casa, desempregadas, estudantes, aposentadas, entre
outras. As entrevistas foram realizadas durante as sessões de tatuagens das mesmas que ocorreram
em um estúdio chamado Traço Tattoo, localizado na cidade de Niterói.
Nessas entrevistas, temas como noções de autonomia sobre o corpo, feminilidades e o
entendimento da tatuagem enquanto uma prática de embelezamento do corpo foram abordados por
1 A pesquisa que possibilitou este artigo se deu durante minha graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal
Fluminense, concluída em 2015. No momento, cursando o mestrado pelo PPCIS/UERJ desde 2016, dou continuidade
ao estudo sobre tatuagem, agora atentando para o racismo e (cis) sexismo presentes na sociedade brasileira. Tenho
como interesse o estudo crítico da branquitude e suas relações com o uso da tatuagem. Pretendo investigar se existem
tipos específicos de tatuagens que são considerados aceitáveis (desejados e admirados) e outros que são considerados
inaceitáveis (indesejados e desprezados) por pessoas que se autodefinem como mulheres brancas, no contexto das
relações de poder e dominação de gênero, de raça e da (cis) heteronormatividade.
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todas as pessoas participantes do estudo. Minha proposta é examinar enxertos das entrevistas dadas
durante o trabalho de campo em que a experiência do que se entende por autonomia sobre o corpo
ganha forma nos discursos e atitudes das entrevistadas, concretizando-se a partir da
interseccionalidade dinâmica entre relações de gênero, de classe e concepções a respeito da
sexualidade feminina. Interessa, a partir disso, pensar sobre tatuagens como marcas distintivas no
processo de construção de subjetividades em contextos cultural, temporal e historicamente
marcados. Existe uma grande quantidade de estilos e formas de tatuagens que se distinguem entre si
pelos tipos de desenho (que podem ser imagens ou escritos), cores, referências e técnicas
empregadas. Alguns dos estilos mais conhecidos são o old school (com contornos grossos e uma
gama de cores básicas: preto, azul, verde, amarelo e vermelho), o realismo (retratos de pessoas,
paisagens, obras de arte, animais, etc.), o tribal (linhas grossas, bem definidas e pretas), as
tatuagens em aquarela (que emulam pinturas feitas com tinta aquarelada), o pontilhismo (imagens
construídas com pontos) e o geométrico (tatuagens feitas a partir de figuras geométricas complexas
ou simples). A exterioridade do corpo humano2 é modificada de acordo com parâmetros social e
culturalmente definidos. É a partir do entendimento de que questões de subjetividades, corpo e
identidades estão intimamente relacionadas à experiência das relações sociais (BRAH, 2006) que
desenvolvo meu estudo.
O Estúdio Traço Tattoo3
O contato com as pessoas entrevistadas ocorreu por indicação dos tatuadores que
trabalhavam no local e por minha própria iniciativa, uma vez em que me sentia confortável no
espaço e havia liberdade para circular pelo estúdio. O estúdio Traço Tattoo se localiza na zona sul
de Niterói, no bairro de Icaraí (rua Mariz e Barros, numero 147/201). A área é valorizada
economicamente, e nela se encontram lojas de grife, bistrôs e cafés frequentados pela classe média
e alta da cidade. Na época da pesquisa, o estúdio possuía três tatuadores: Alexandre, Lúcio e
Marcos.
O ambiente do estúdio oscilava rapidamente entre tumultuado e calmo, não havia meio
termo. Os sons do trânsito somados às vozes sobrepostas em conversas animadas por vezes faziam
com que fosse difícil permanecer concentrada em apenas uma coisa. O pouco espaço (cerca de 4m x
2 Parto do dualismo cartesiano corpo/mente uma vez em que essa visao foi predominante no trabalho de campo. 3 Os nomes dos tatuadores, das entrevistadas e do estúdio foram alterados para garantir seu anonimato.
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6m) somado ao costume de pessoas4 irem acompanhadas de amigos e parentes para as sessões de
tatuagem ou aplicação de piercings podia fazer com que fosse difícil ouvir quem estivesse ao meu
lado. As paredes eram predominantemente brancas, com prateleiras cobertas de itens variados como
perfumes importados, anéis e brincos, até despertadores elétricos decorados com símbolos de super
heróis de histórias em quadrinhos. Em cima da mesa da recepção havia um mostruário feito de
madeira com piercings e alargadores de orelha, reais e falsos5. Os únicos outros móveis da área
comum eram quatro bancos quadrados vermelhos e estreitos, localizados ao lado de um computador
em que os clientes podiam ver os portfólios dos tatuadores, utilizar a internet para procurar
referências para suas tatuagens e escolher músicas. Havia duas cabines de 2m² equipadas com
macas e computadores, nas quais os tatuadores do estúdio atendiam seus clientes alternando dias e
horários. Os mais antigos, Alexandre e Lúcio, tinham prioridade na utilização das mesmas; Marcos,
um tatuador iniciante, costumava agendar sessões antes ou depois do horário de funcionamento
regular do estúdio. Embora fosse considerado pequeno, o espaço de cada cabine fora pensado para
dar privacidade a clientela e aos tatuadores, possuindo janelas com cortinas que podiam ficar
abertas ou não, dependendo da preferência do cliente. Costumava me sentir à vontade para circular
pelos ambientes e iniciar conversas ou apenas observar o que ocorria durante as sessões e outras
interações que se passavam no local.
Muitas das reflexões presentes no trabalho são fruto de experiências diversas, vivenciadas ao
longo de vários anos, o que me leva a considerar o trabalho de campo também como um processo
para além das entrevistas, observação participante e participação observante no estúdio Traço
Tattoo. Aqui, cabe pontuar que possuo quinze tatuagens, cinco feitas durante o tempo em que
pesquisei no estúdio e quatro delas feitas pelo Alexandre6. Faz parte da minha rotina ser abordada
por pessoas na rua, na faculdade ou em outros lugares para falar sobre tatuagens. Perguntas sobre o
4 Esse costume é mais comum por parte das mulheres, como pude observar em campo. Andréa Osório (2006) realizou
um estudo sobre tatuagem e gênero na cidade do Rio de Janeiro e constatou que as principais diferenças de gênero se
relacionavam a experimentacao da dor, ao desenhos e regioes do corpo tatuadas e ao controle dos corpos femininos pela
familia, fundamentalmente no que concerne a oposicao ou apoio ao uso das tatuagens (OSÓRIO, 2006, p.74). O
controle dos corpos femininos por parte de familiares e amigos é dado importante para a discussão. Ouvi de algumas
das entrevistadas que não seguiriam os “conselhos” de mães, pais, amigas ou companheiros, contudo essas figuras
sempre se fizeram presentes. Todas as vinte e cinco entrevistadas estavam acompanhadas, assim como todas fizeram
alusão a noção de liberdade de escolha e expressão de uma subjetividade autônoma. Como bem pontua Osório: “Jamais
ouvi algum homem falar que a esposa não gostava de tatuagens, como jamais vi algum explicar à sua esposa que o
corpo é dele e que pode fazer com o seu corpo o que quiser” (idem, p.78). 5 Alargadores são objetos utilizados na modificação corporal (body modification e body art) e tem como finalidade o
aumento de perfurações feitas em determinadas áreas do corpo como lóbulos, nariz e lábios, entre outros. Os
alargadores falsos são brincos que simulam o alargamento da área em que são colocados. 6 Por conta da minha relação de clientela e amizade com Alexandre minha inserção no estúdio enquanto pesquisadora
foi facilitada.
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que as minhas significam, dicas de estúdios de tatuagem, cuidados com a pele, sugestões para
desenhos e estilos: convívio com isso cotidianamente. Para pensar um “trabalho de campo
contínuo”, utilizo a leitura de Karina Biondi e do livro “Junto e Misturado: Uma Etnografia do
PCC” (2010) escrito por ela. O contexto do campo de Biondi é bastante específico – seu marido
fora preso e ela desenvolveu a parte da pesquisa “em campo” durante as visitas a ele. Não pretendo
equivaler a minha experiência com a pesquisa e a dela, contudo o que ela descreve se assimila à
esse processo que fiz menção acima:
As coisas não me foram todas dadas a conhecer em períodos delimitados, em
segmentos da pesquisa de campo passíveis de serem descritos. Muitas me passaram
despercebidas, outras sem importância ou relevância, a ponto de eu sequer me preocupar
em tomar nota. (...) Mas tempos depois, ao vivenciar outras experiências, situações
ocorridas em alguns daqueles dias eram requisitadas a se unir a novas informações e
compor dados importantes para a pesquisa. Aquelas informações ganhavam, então,
visibilidade e importância, pois eram fundamentais à elucidação do que estava acontecendo
(BIONDI, 2010, p. 24)
Mais do que servir para as análises propriamente ditas, a contínua interpelação sobre
tatuagens e seus diversos aspectos por pessoas conhecidas e desconhecidas ao longo dos anos me
(re)colocavam constantemente em contato com a pesquisa. Tinha ela sempre em mente e, ao ouvir
certas questões ou análises repetidas por pessoas diferentes, pude estar mais atenta durante o
trabalho de campo.
Uma vez aceita a proposta de pesquisa no estúdio, comecei imediatamente a fazer a
observação e as entrevistas. Estas não tiveram um roteiro rígido e não tive dificuldades para realizá-
las, já que a maioria das pessoas gostava de falar sobre suas motivações e marcos pessoais - “o que
a tatuagem significa”, apontados por grande parte das entrevistadas como motivo principal para
fazerem suas tatuagens. Pontuei questões sobre como eram feitas as escolhas pelas tatuagens: o
desenho, o lugar do corpo a ser marcado e a escolha do tatuador ou tatuadora. A amizade com um
dos tatuadores não apenas me proporcionou um ambiente confortável como também uma posição
favorável para iniciar as entrevistas, uma vez que o próprio Alexandre por vezes indicou clientes
considerados “legais” para conversar.
As entrevistadas: mulheres com tatuagem
Dado que eram pessoas distintas, com idades, empregos, estados civis, raças e etnias, classes
sociais e configurações corporais diferentes e que, principalmente, não se entendiam enquanto uma
“tribo urbana” (ou algum grupo específico do tipo), prefiro pensar em mulheres com tatuagem ao
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invés de “mulheres tatuadas”. Essas pessoas com tatuagem faziam distinções entre elas mesmas, e
possuíam idéias específicas sobre: a) quais tipos de tatuagem seriam aceitáveis de ter e quais não
seriam aceitáveis, b) quais lugares do corpo poderiam ser marcados ou não; c) quais desenhos ou
escritas poderiam ser adotados ou não, seguindo uma lógica que teria a ver com feminilidades
possíveis - isso segundo elas próprias. Pode-se observar, preliminarmente, que: 1) existem múltiplas
formas possíveis de se exercer feminilidade, o que pretendo abordar é a interseção entre esses
modelos tendo como recorte a situação estudada; e 2) a feminilidade (ou conjunto de feminilidades)
que estudo é (estão) relacionada a valores que regem estéticas, moralidades, discursos, ações e
costumes.
Foi a partir das entrevistas que passei a pensar até que ponto as tatuagens ditas femininas
(ou “tatuagens de mulher”), entendidas enquanto expressão da subjetividade autônoma pelas
entrevistadas não seriam marcadas pelas imposições e constrangimentos das regras sociais
interiorizadas pelos sujeitos. Uma vez que estão inseridas no contexto de diferenciação e dominação
do gênero masculino sobre outras identidades de gênero não-hegemônicas, é possível inferir que os
papéis de gênero esperados ditam a forma como essas pessoas entendem a si mesmas, ainda que
em graus distintos, uma vez que existem intersecções estruturais entre gênero, raça, classe, geração
e sexualidade, entre outros7. Procuro enfatizar, por meio do estudo da tatuagem, os processos de
formações culturais coletivas de construção de subjetividade, considerando a complexidade das
formas de sentir, estar e agir no mundo. Abordar a questão da subjetividade nesses termos é
importante pois reforça a noção de que os sujeitos são existencialmente complexos e
contextualmente situados.
As análises de Sherry Ortner (2007) sobre subjetividade e a necessidade de uma
antropologia crítica que a estude são as principais contribuições nas quais me baseio. A ligação
entre subjetividade e poder são pontos importantes nessa investida. Em seu texto, Ortner fala sobre
processos de formações culturais e estados internos dos sujeitos (com ênfase na analise das
ansiedades existenciais), destacando diferentes abordagens teóricas – e suas implicações políticas,
que formulam os conceitos de pessoa, sujeito, ator, agente, entre outros. A autora define a
subjetividade como sendo o:
7 Entendo que reconhecer e estabelecer marcadores sociais da diferença é importante para dar densidade à discussões e
não apenas elencar características “da diversidade” - muitas vezes essencialistas e, por isso, reducionistas das
experiências humanas. As motivações político-acadêmicas para o trabalho em curso partem da noção de que categorias
como gênero, classe e raça são primordiais para o estudo da sociedade, suas instituições e sistemas de poder que
produzem desigualdades. Enxergar a interseccionalidade dessas categorias é atentar para as conexões sociais entre (que
estruturam e são estruturadas por) elas.
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Conjunto de modos de percepção, afeto, pensamento, desejo, medo e assim por diante, que
animam os sujeitos atuantes. Mas eu sempre me refiro, da mesma forma, às formações
culturais e sociais que modelam, organizam e povoam aqueles modos de afeto, pensamento,
etc. (ORTNER, 2007,p. 276)
“Tatuagem feminina”: marcações de gênero e feminilidades
Adoro quando me perguntam sobre ela [tatuagem]. Um cara que eu conheci uma vez me
disse que se interessou por mim logo de cara ao ver a minha tatuagem, disse que dava pra
perceber que eu era interessante, livre, mas “bem mulher”. Tem algumas pessoas que não
se preocupam com isso, acho estranho. Tem umas tatuagens que não casam; homem
com borboleta, com tatuagem delicadinha; mulher com aqueles desenhos enormes,
sem cor, sem detalhe, sei lá. Me sinto poderosa, uma mulher poderosa, a tatuagem me
proporciona isso. (Fátima, 43 anos, autônoma)
Eu quis essa cereja no ombro porque queria mostrar como eu sou: sensual. Tenho também
essa fada na lombar. Gosto que me reparem na rua, quando saio a noite e acho que um
desenho bonitinho chama a atenção pra essa parte do meu corpo. Uso bastante decote,
brinco muito com meu cabelo, todo mês apareço com alguma novidade de estilo e acho que
a tatuagem combina muito com esse estilo. Quero que me vejam como uma mulher sexy,
sem frescura, mas que se cuida. (Luiza, 28 anos, vendedora) [grifos meus]
Trago uma reflexão acerca do uso da tatuagem por pessoas do gênero feminino e como essa
marca se relaciona com uma construção de si feminina dentro de parâmetros bem definidos
(RAMOS, 2011). A inscrição na pele aparece como demarcação da expressão estética de gênero8
(SABINO; LUZ, 2006) e entre as pessoas que entrevistei predomina uma idéia de incorporação da
tatuagem às possibilidades estéticas socialmente aceitas para - e por- estas mulheres. Luiza e Fátima
destacam as especificidades de suas tatuagens e como elas são parte de um conjunto de
características que as identificam enquanto mulheres não só para si mesmas, mas para os outros.
Fátima diz que, além de ser apontada como uma mulher “interessante e livre”, a tatuagem que
possui a marcou como “bem mulher” para outra pessoa; para ela, a tatuagem proporciona sentir-se
“uma mulher poderosa”. Luiza se define como “sensual” e gostaria que a vissem enquanto “uma
mulher sexy, sem frescura, mas que se cuida”. Entendo que existam diferentes questões em suas
falas (como as noções de poderosa, livre, sem frescura, etc.), mas vou me ater a uma qualidade
compartilhada pelas duas, a de que são mulheres e de que as tatuagens que fizeram (ou pretendem
fazer) as identificam como tal. Outra entrevista importantíssima foi a de Adriana, uma estudante de
direito de 28 anos. Conversávamos sobre as motivações que a levaram a se tatuar e o seu
posicionamento foi o seguinte:
Todo mundo faz o que acha certo com seu corpo, tem gente que põe aqueles piercings no
nariz, aqueles que parecem de índio, sabe? Eu particularmente não gosto, acho que fica
muito grosseiro, principalmente em mulher. Já vi tanta menina bonita com aquilo no rosto,
8 Mas não só de gênero. Contudo, considerando o espaço e o tempo de pesquisa, só pude dar ênfase a essa análise.
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acho que estraga um pouco. Tem que ser delicada, né. Até tive piercing, mas no umbigo,
tenho esses aqui na orelha. Enfim, cada um faz o que quer, o que acha legal, mas eu não
faria algumas coisas. Tatuagem também, a gente tem que ter cuidado, pensar no desenho,
no lugar. Se vai dar pra cobrir em alguma situação, imagina numa festa de trabalho e você
com um trambolho tatuado competindo com sua roupa? Não fica elegante. E a gente tem
que ser elegante, né? Acho importante.
O argumento de Adriana se inicia pela marcação “todo mundo” e termina com “a gente” e
isso é bastante significativo: todas as pessoas, segundo ela, tem a liberdade pra fazer o que querem
com o corpo, mas “a gente” não tem, “a gente” tem que ser “delicada” e tem que ser “elegante”.
Esse grupo ao qual Adriana se refere e inclui nós duas é o que ela entende por “(ser) mulher”. Um
dado relevante é que todas as 25 entrevistadas fizeram alusão à idéia de autonomia sobre o corpo
em algum momento, assim como todas fizeram concessões a respeito do que consideravam
“aceitável” ou “não aceitável” para as tatuagens em mulheres.
Meu ex-namorado foi quem me convenceu a fazer a primeira, era o sobrenome dele, aqui
na lombar (mostra o lugar). Sempre tive muito certo que ia casar com ele, então fui lá e fiz
mesmo, ficou sexy e ele adorava. Acho assim, que tatuagem tem a ver com o que as
pessoas querem pra vida, ou pelo que já passaram, tipo homenagem. Cada um escolhe e é
livre pra fazer o que bem entende. (...) quando acabou o relacionamento achei melhor
cobrir porque me sentia marcada que nem vaca com aquele nome. Aí fiz o escorpião, mas
só fiz também porque é meu signo. Acho que quando tem um motivo mesmo, tudo bem
mulher ter desenho de bicho assim porque tem bicho que não é muito bonito. Cobra,
rato, barata, essas coisas não fica bom, não dá pra fazer, muito feio e nojento. Agora,
borboleta, golfinho, pássaros, assim tipo o seu, aí tudo bem. São bichos mais bonitos.
(Karen, 32 anos, vendedora em loja de roupa)
Sempre quis ter tatuagens, desde novinha. Acho muito legal a coisa toda, mostra que
somos donos da nossa vida, que a gente aguenta dor, que somos constantes também,
porque tem essa decisão de ser pra vida toda, isso de escolher uma coisa nossa e fazer (...)
Todo mundo lá de casa fez uma tatuagem pro meu avô. Eu, meus irmãos e meu pai, todo
mundo mesmo. Uma das coisas que mais lembra ele é o barco que ele tinha, aí escolhemos
um desenho simples, só de traço e todo mundo tem igual. Eles fizeram na parte de fora do
braço, e eu fiz no pulso, diminui o tamanho e fiz no pulso. Achei mais delicado. Pra
eles ficou muito bom no braço, mas pra mim não dava, né? (Paula, 18 anos, estudante)
A entrevista de Karen traz mais elementos que ajudam a tentar formular uma idéia do que é
considerado razoável para as “tatuagens femininas”. Se ficar “sexy” ou retratar alguma coisa
“bonita” está dentro do que é aceitável, então é permitido. O que é “feio e nojento”, como ratos,
baratas e cobras, não é permitido. Ela também reforça o argumento de Adriana de que cada pessoa é
“livre pra fazer o que bem entende”, mas a mulher tem que ter “um motivo mesmo” ou então “não
dá” para fazer. Paula, por sua vez, argumenta que para os irmãos e pai a tatuagem no braço fica
“boa”, mas pra ela “não dava”; a dela teria que ser “delicada”. As subjetividades que tem como
referências padrões de feminilidade (e a adoção de “tatuagens de mulher” nesse contexto) estão
inseridas no nexo das relações sociais concretas e possuem tensões, interpelações, constrangimentos
e demandas especificas – que muitas vezes podem não ser entendidas como tal.
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O uso da categoria "tatuagem feminina" (ou “tatuagem de mulher”) foi observado durante o
trabalho de campo e não é um estilo propriamente dito, mas faz parte de um referencial
compartilhado por pessoas que possuem, pensam e/ou trabalham com tatuagens e consiste na
principal diferenciação entre as categorias de tatuagem, como pude observar: a tatuagem e a
tatuagem feita em mulheres. O tipo “tatuagem” é tido como neutro, mas indica as tatuagens feitas
em homens. Autoras como Hirata (1995), Chabaud-Rytchter (2014), outras feministas e alguns
autores como Bourdieu (2011) apontam para essa identificação do que é considerado enquanto
masculino como neutro ser dado significativo para ilustrar uma das diversas formas da dominação
masculina: ela marca as relações de desigualdade de gênero uma vez em que pensa o masculino
como universal sem ao menos pontuar isso. A visão androcêntrica do mundo é naturalizada e faz
parte da estruturação de práticas de distinção e diferenciação (BOURDIEU, 2011). César Sabino e
Madel T. Luz (2006) discutem a adoção de tatuagens por freqüentadores de academias de
musculação que compartilham a lógica do fisiculturismo, na cidade do Rio de Janeiro e afirmam
que:
“as divisões estabelecidas pelos desenhos configuram a manutenção, reprodução mesmo, da
gramática das diferenças inerentes às relações de gênero. Quando pensa escolher seu
desenho (seja ele qual for), o individuo é “escolhido” por todo um conjunto de
representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas pelo estilo de vida
que articula e imita (EDMONDS, 2002). Tal sistema (inconsciente) aparta, organiza,
distingue e constitui as (dis)posições sociais, alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a
sua condição de gênero e classe (SABINO e LUZ, 2006, p.255)
Confirmando a separação entre tatuagem e tatuagem feminina, os autores apontam a
existência de três grupamentos de tatuagens, separados pelos desenhos: femininas, masculinas e
unissex9. Durante minha pesquisa pude observar uma lógica parecida. Contudo, acredito que seja
importante destacar que, ainda que os desenhos ou as temáticas de desenhos sejam similares, eles
não são adotados da mesma forma: nem nos mesmos locais do corpo, nem com o mesmo discurso.
Geralmente, nos corpos ditos (e entendidos enquanto) femininos, as tatuagens serviam para: a)
“realçar” curvas e contornos considerados “sexys”; e b) para marcá-lo de forma “discreta”. Os
locais do corpo costumeiramente eleitos pelas mulheres eram a cintura, pulso, abaixo dos seios,
glúteos, lombar, pescoço, pés, virilhas, calcanhares, coxas e omoplatas. Quando a tatuagem alude a
9 “Mulheres tendem a tatuar determinadas figuras, como rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol,
personagens femininas de histórias em quadrinhos, beija-flores, gatos e fadas. Ideogramas, desenhos tribais, palavras e
frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra, corações, duendes, deuses ou deusas mitológicos são
símbolos inscritos tanto na pele de homens quanto de mulheres. Águias, cruzes, panteras, tigres, dragões, demônios,
caveiras, armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões, esqueletos com foice e capuz e, principalmente, cães
da raça pitbull, são tatuagens masculinas” (Ibid, p.255).
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ideais e idéias sobre feminilidade – sobre a concepção, o que seria – ela articula um processo que
permite à pessoa com tatuagem se fazer, perceber-se e (re) afirmar-se enquanto parte do “grupo
mulher”, como pode ser visto nos discursos das entrevistadas. Essa classificação dialoga
diretamente com as divisões de gênero e “com suas relações de poder inscritas no corpo” (idem:
p.259).
“Tatuagem de piranha” (ou um novo olhar sobre dados antigos)
Apresento a seguir o início de uma discussão sobre um tipo específico de tatuagem, cuja
referência foi freqüente por parte das pessoas com quem convivi: “a tatuagem de piranha”10. A
relação entre padrões estéticos adotados e sexualidade (e suas implicações negativas e positivas)
fazia parte da retórica das entrevistadas. Nenhuma delas disse possuir esse tipo de tatuagem, mas
não demonstraram dificuldade em descrevê-lo em outras pessoas e tecer comentários negativos a
respeito de ambos.
As noções de vulgaridade, elegância, sensualidade e de “baixeza” são adotadas para
assinalar diferenças e perpetuar estereótipos femininos desiguais e estigmatizantes, como aponta a
pesquisadora Fernanda Ferrari (2016). A autora indica a relação entre o que é considerado sexy em
oposição ao que seria vulgar: ser sexy e sensual seria uma característica permitida (e desejada) pelas
mulheres em geral, já a vulgaridade (o exagero desses atributos) seria vista de forma negativa.
Diferentemente da pesquisadora, não tenho intenção de estudar “grupos urbanos” ou a moda, ainda
que sejam temas relevante. Entretanto, conceitos opostos como elegância e vulgaridade (que fazem
parte do léxico ao se falar sobre sexualidades e feminilidades) são importantes em minha análise.
Na tatuagem, como na moda, existem muitas características almejadas, assim como existem
restrições em relação ao que se pode fazer ou não – dependendo da intenção de cada sujeito. Ferrari
afirma que a vulgaridade existe como característica a ser evitada: pode ser a forma de falar
associada a um tipo específico de roupa e de locais que se frequenta e sua caracterização parece ser
mais associada à mulheres do que a homens. A vulgaridade seria tida como inadequada, oposta ao
estar “na moda”, ser “elegante” ou ser “estilosa”11. Ela pode ser falta (de decência, de adequação, de
roupa) ou exagero (nos gestos, na quantidade de pele exposta, na forma de falar). Quando
intencional, costuma ser vista como uma afronta direta a moral e aos bons costumes.
10 Pude constatar que quando as entrevistadas e os tatuadores falavam em “tatuagem de piranha”, “tatuagem de
vagabunda”, “tatuagem de vadia”, “tatuagem de puta”, entre outras, costumavam descrever tatuagens (e pessoas que as
carregavam) semelhantes. Adotei “tatuagem de piranha” como um recurso de escrita para a análise. 11 Ainda segundo Ferrari (2012), na arte a vulgaridade também é vista como atributo negativo, como algo inferior.
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
As implicações sociais sobre a vulgaridade que as tatuagens podem denotar ou não foram
constantemente acionadas pelas entrevistadas. Em tempo, essa caracterização era sempre vista
como algo a ser evitado. Acredito que pensar a tatuagem por esse viés é uma possibilidade de
investigar os modos de ser socialmente esperados e aceitos que as mulheres de um determinado
contexto devem adotar.
Fiz essa borboleta no pé hoje, mas já tinha uma coroa e um símbolo do infinito no pulso,
fiz com a minha irmã pra mostrar como a gente é ligada e sempre vamos ser. Quis fazer
outra porque achei bem pequena e delicada, combina muito com o meu jeito. Tive medo da
minha mãe falar quando fiz as primeiras, eu e minha irmã tivemos, na verdade... Mas como
foram pequenas ela nem ligou e até apareceu em casa com uma gaivota no pulso também!
(Anne, 19 anos, estudante)
Tatuagem pra mim é enfeite. Tem que valorizar meu corpo, minha história também, mas
principalmente meu corpo. Não consigo me ver fazendo uma que não seja com cores bem
delicadas, tipo rosa, amarelo, azul claro. Tem que ser sensual também, mas não pode ser
vulgar ou bruto. Bem feminino, sensual, dizendo quem você é, né.
(Carla, 19 anos, estudante)
Como Anne, Carla e demais entrevistadas nos fazem entender, existe a idéia de que a
tatuagem pode ser sexy, discreta ou ambas: o que interessa é se ela seja “delicada”, em contraponto
ao que seria “agressivo”, “bruto” ou “vulgar”. No que diz respeito às noções de desvio, estigma e
estética vulgar (ou marginal), percebo algo parecido ao que Leitão (2004) afirma:
As mulheres que entrevistei não faziam uso da tatuagem como emblema de desvio. A
prática não era por elas procurada como possibilidade de transgressão a normas ou padrões
estéticos. Em suas falas, ao contrário, tentavam desvincular suas tatuagens de qualquer
representação sobre desvio. É claro que essa suposta ressemantização da tatuagem não é um
processo linear e simples, sendo permeada por tensões e contradições. Um exemplo disso é
a forte marcação e separação que as entrevistadas faziam entre a imagem delas e de suas
tatuagens e a de outras tatuagens e outros tatuados. O desvio era sempre percebido como
existente, mas sempre entrava na categoria do “esse não é o meu caso”, sendo sempre
localizado no outro”. (LEITÃO, 2004, p. 6)
Mabel T. Luz e César Sabino (2006) falam de uma “desmarginalização” da tatuagem, mas
penso que o “marginal”, o que é estigmatizado continua a existir, inclusive entre as pessoas que
possuem tatuagem e as que exercem a função de tatuadores: o marginal está no “outro”. Como ouvi
de uma das entrevistadas: a “minha [tatuagem] é bonita, delicada, bem feita e limpa. E ainda por
cima, tenho motivos [significados] para ela” (grifos meus). Se a questão que orienta a tese de
Andréa Osório (2006) é acerca dos motivos que levariam “todo mundo” a se tatuar hoje em dia, a
minha pode ser resumida em duas perguntas: se todo mundo se tatua hoje em dia, por que alguns
tipos de tatuagens são considerados aceitáveis e outros não? Essa distinção teria a ver com a
tatuagem em si ou com os corpos que as carregam?
A hipótese que orienta o trabalho até o momento é a de que a classificação binária
aceitável/não aceitável tem marcadores sociais específicos e interseccionais de gênero, raça, classe,
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
sexualidade, e de geração. Baseando-me também na leitura das autoras e autores citados acima é
possível afirmar que a “tatuagem de mulher” deve e/ou pode ser: sensual, “não agressiva”, “bonita”,
“de bom gosto”, “sexy”, servir de adorno, e destacar/embelezar lugares específicos no corpo. O que
essa tatuagem não pode ser é: “agressiva”, “bruta”, “masculina”, “de presídio”, “vulgar”, “de puta”,
“de piriguete”, “de vagabunda”, “grosseira”, etc.
Referências
BIONDI, Karina. Junto e Misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome,
2010.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.