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A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA. JÚLIO CÉSAR DE OLIVEIRA
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A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

Feb 21, 2023

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Page 1: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO

DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789):

A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

JÚLIO CÉSAR DE OLIVEIRA

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................

Cap. I - A Real Feitoria no Rincão de Canguçu –1783-1789...............

Cap. II - Produção e reprodução historiográfica...................................

Antônio José Gonçalves Chaves e as suas “Memórias econômico-

políticas”...................................................................................................

Fernando Luis Osório e sua obra “A cidade de Pelotas”.....................

João Simões Lopes Neto e sua obra “Apontamentos referentes à

história de Pelotas e de outros dois municípios da zona sul: São

Lourenço e Canguçu”..............................................................................

Sebalt Rüdiger e a “Colonização e propriedade de terras no Rio

Grande do Sul – Século XVIII”.................................................................

Ângelo Pires Moreira e a obra “Pelotas na tarca do tempo”...............

A Feitoria no “Município de Canguçu – RS” de Cláudio Moreira

Bento..........................................................................................................

A “Real Feitoria de Pelotas” segundo Zênia de Leon...........................

Aurélio Porto e a Feitoria no “O trabalho alemão no Rio Grande

do Sul”........................................................................................................

Carlos de Souza Moraes e a ”Feitoria do Linho Cânhamo”..................

Com a palavra, o Conselho Estadual de Cultura...................................

Cap. III - Considerações finais................................................................

Referências Bibliográficas......................................................................

Anexos......................................................................................................

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INTRODUÇÃO

A escrita relativa às atividades humanas, independentes do período histórico, sempre é

influenciada pelos que a escrevem. Como a formação de cada ser é diferente, pois segue a

sua percepção de mundo, temos possibilidades múltiplas de entendimentos sobre a mesma

temática.

O indivíduo é, num paradoxo existencial, ao mesmo tempo o uno e o todo. É uma

massa conceitual e estrutural e traz em sua formação individual os parâmetros gerais da

sociedade. Como o historiador não é um extraterrestre ou um indivíduo alheio às

transformações político-econômico-sociais, também, traz consigo as definições e conceitos

que são normalidades da sociedade em que está inserido. Suas experiências pessoais, sejam

intelectuais ou corriqueiras, influem na sua interpretação da documentação e dos fatos

estudados. A própria escolha da temática a ser interpretada historicamente é influência de

suas experiências. O historiador é aquilo que a sociedade o fez ser. Com uma única

diferença dos demais, ele enxerga o mundo com olhos diferentes, com percepção mais

apurada e com a eterna dúvida dos que escreveram a história que o antecedeu,

principalmente sobre os interesses envoltos pela “capa dura“ da história.

De um período narrativo da história, direcionado aos interesses das classes

poderosas, foi-se para outro que busca interrogar as personagens da história que está

escrita, e interessado em escrever a que ainda não foi para o papel. Nas mais diversas

formas de conceituação e metodologia, a história pode se dedicar às minorias, aos alheios à

escrita histórica. Os momentos tidos como banais passaram a receber atenção especial dos

pesquisadores e, as migalhas da história se tornaram o centro das atenções. A longa duração

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passou a ser substituída pelos períodos de curta duração, com uma análise mais

aprofundada dos principais fatores que os compõem e as suas influências na

macroestrutura. As pesquisas acadêmicas se voltaram aos períodos curtos das mais diversas

atividades e setores sociais. A história cultural possibilitou a análise e a pesquisa de

temáticas que iriam arrepiar os cabelos de historiadores do passado, sem uma perspectiva

econômica, revolucionária ou conceitual. Muitas vezes analítica e narrativa, busca analisar

os fios e rastros, como diria Ginzburg1, de vários emaranhados históricos.

Talvez a escrita histórica tenha voltado à plenitude de sua origem, ou seja, à

filosofia. Ou quem sabe, estamos participando de uma revolução do fazer histórico,

interrogando o passado com olhos no presente. Métodos, conceitos e objetos são mutáveis

e, desta maneira, a história econômica, política, social, agrária, antropológica, da cultura

material, demográfica e qualquer outra, com o advento da Nova História, passou a ser

tratada como História, simplesmente. Os mais diversos pontos de análise do fazer histórico

são aceitos, pois, aperceberam-se os historiadores que a humanidade é feita de uma colcha

de retalhos históricos e que a própria infância das personagens e do pesquisador pode

influenciar no que se executa e se escreve em história, independente do tempo e do espaço.

A própria funcionalidade histórica, ou seja, a sua necessidade social e humana, é

tema de pesquisa. A participação efetiva, por parte de muitos historiadores, em movimentos

sociais, segue a determinação da criação do intelectual orgânico, premissa básica do

pensamento Gramsciano para a existência de intelectuais. A percepção da influência na

formação pessoal e acadêmica dispõe sobre os fins intelectuais que serão utilizados no fazer

1 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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histórico. Escreve-se história para quem? Qual o fim da ciência histórica? Quais vozes do

passado os documentos trazem em seu seio?

Muitas questões envolvem a escrita da história, assim como a sua interpretação e

divulgação por meio da escola normal e de publicações. A academia, envolta em seus

métodos e conceitos sobre a escrita da história, negligencia aos acadêmicos a realidade que

enfrentarão no mercado de trabalho historiográfico. Não ensinam aos estudantes

universitários que os questionamentos exacerbados aos escritos Rankianos não poderão ser

repetidos nas classes escolares do ensino fundamental e médio. Por incrível que pareça, as

diversas conceituações oportunizadas pelas escolas historiográficas, na maioria das vezes,

não são aceitas nos programas de vestibular das universidades, as mesmas que ensinam que

o saber é relativo e as opiniões são, na maioria das vezes, apesar de divergentes, verdades

de ângulos diversos.

Na temática tratada nesta pesquisa, ou seja, a produção historiográfica sobre a Real

Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão de Canguçu, existem divergências dos mais variados

aspectos. Na bibliografia analisada podemos encontrar as diversas escolas historiográficas,

numa primazia do documental, do oficial, do factual.

Neste espírito da análise historiográfica é que trataremos a temática. Propomo-nos,

analisar o que se escreveu sobre a instalação, duração e transferência desta empresa

lusitana, a primeira empresa agrícola estatal instalada em solo gaúcho, assim como a buscar

identificar a persistência das teses defendidas pelos autores, analisar as fontes e o interesse

das publicações.

O primeiro capítulo se dedica à temática principal da pesquisa, descrevendo os

diversos momentos da existência da Feitoria, com sua formação, administração, plantio do

linho e força de trabalho, assim como sua transferência para o Faxinal do Courita. O

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segundo capítulo estuda a produção e reprodução bibliográfica sobre a temática pesquisada,

numa análise de diversos autores que se dedicaram a escrever sobre a Feitoria, assim como

o parecer do Conselho Estadual de Cultura, referente à solicitação de tombamento do

conjunto arquitetônico da Ilha da Feitoria, como sede da empresa portuguesa. O terceiro

capítulo se dedica às considerações finais.

Nos anexos se pode verificar, através de aquarelas, a formação da força de trabalho

da Feitoria, assim como, sua localização geográfica, as delimitações espaciais apresentadas

por diversas produções cartográficas da época e o relatório de escravos e animais da

Feitoria.

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CAPÍTULO I

A Real Feitoria no Rincão de Canguçu –1783-1789

O estabelecimento de uma Feitoria no Rio Grande de São Pedro buscava a auto-

suficiência na produção destinada ao consumo de Linho Cânhamo pela coroa portuguesa. O

empreendimento teve seu início em terras catarinenses, com sementeiras experimentais,

assim como ocorreria na província de São Pedro do Rio Grande do Sul com objetivo de

uma maior produção interna e independência econômica, principalmente da coroa inglesa,

em plena revolução industrial (1ª fase).

Na Província de São Pedro, atual estado do Rio Grande do Sul, as sementeiras

experimentais, que tinham como objetivo proporcionar terreno destinado a esta atividade,

vingaram e determinaram a localidade do Rincão de Canguçu como o mais apropriado a

esta cultura agrícola. As sementeiras foram dispostas a partir do ano de 1782, por Antônio

Gonçalves Pereira de Farias, conhecido pela alcunha de Faxina ou Velho Gonçalves,

primeiro agricultor a plantar o Linho Cânhamo ainda em terras catarinenses, conhecedor

desta cultura e responsável pela ampliação do plantio. Ele conhecera o Pe. Francisco

Rodrigues Xavier Prates, professor de filosofia, que viria a ser o primeiro inspetor da

Feitoria, quando ainda habitava em Santa Catarina. O Vice-rei D. Luiz de Vasconcelos, em

correspondência a Martinho de Mello e Castro, datada de 27 de julho de 1783, segundo

documentação encontrada no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul2, instruiu o Pe.

Prates para que estabelecesse a Real Feitoria, com o objetivo único de plantar o linho

destinado à produção do velame da marinha portuguesa. Neste documento, o mandatário

determinou que as instalações fossem executadas longe de estradas e vilarejos, a fim de não

2 Real Feitoria do Linho Cânhamo. Lata 300, maço único, AHRGS.

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servirem de abrigo para escravos e desertores e que, dentro do possível, se construíssem

moradas e armazéns sem muitos custos, a fim de se investir o mínimo possível nesta

atividade. As determinações eram de que a Real Feitoria, ao menos inicialmente, seria

tratada como uma experimentação, e não como uma empresa real, com finalidade de auto-

suficiência neste gênero agrícola. A designação do Pe. Prates deveu-se ao fato de o mesmo

ser conhecedor daquelas terras e de ter acompanhado o Sr. Gonçalves em seus

experimentos ainda em terras de Santa Catarina. O Pe. Prates foi escolhido pelo próprio

Vice-rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza. Na mesma correspondência, enviada a Martinho

de Mello e Castro, justifica a escolha pela

(...) circunstância de ter o professor pisado aquele terreno, conhecer as suas

diferentes estações e se achar com toda a instrução precisa para estabelecer

a nova Feitoria. (AHERGS, lata 300).

O projeto iniciado pelo Pe. Prates, como inspetor, seguia os interesses da corte

portuguesa. Em correspondência datada de 24 de maio de 1784, o Vice-rei, D. Luis de

Vasconcelos e Souza, explica que a Feitoria vai ao encontro dos

(...) reais interesses de Sua Majestade e que por isto os tem empregado

trabalhos com que tem principiado esta tão útil e importante obra, devem

ser tão continuados e altivos, que nelles se possa conseguir o desejado fruto

de sua maior duração. (AHERGS, lata 300).

A mão-de-obra utilizada no empreendimento se caracterizou pela força de trabalho

mista, pois como se pode verificar em diferentes fontes documentais existiam indígenas,

portugueses, além de alguns estrangeiros e escravos negros, empregados nos trabalhos da

Feitoria. As atividades descritas em documentação referiam-se não somente às lides

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agrícolas, mas, inclusive, às de ordem instrumental e industrial, destinando parte dos

serviços dos trabalhadores para se construir máquinas e implementos, escassos e

necessários à faina diária de trabalho. Por ordens do Vice-rei, foram enviados vinte casais

de escravos da Fazenda Real do Rio de Janeiro, a fim de serem utilizados na lavoura, no

trabalho de colheita e no preparo do linho, que era massado e enviado “em cabelo”.

Referente ao trabalho indígena existe, inclusive, referências documentais a pagamento de

salários em documento do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Por serem estes

indígenas disponibilizados pela Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos, devido à necessidade

do cumprimento da lei do diretório dos índios3 e, ainda, por não constar na documentação a

forma de pagamento, pode-se concluir que este fosse direcionado aos administradores do

aldeamento para, como determina o diretório, aplicarem como melhor for para “todos”.

A produção inicial da Feitoria fez com que o Vice-rei, D Luiz de Vasconcelos,

autorizasse a construção de edifícios mais duráveis, a fim de resistirem ao clima e aos

“impetuosos ventos” que acometiam a região. A localidade onde se encontrava a empresa

era composta de inúmeros banhados, morros e rios, assim como terreno arenoso. Pelas

vastas campinas existentes na localidade e pela proximidade com a Lagoa dos Patos e a

Serra dos Tapes, a empresa era vulnerável às mudanças bruscas de tempo, especialmente no

que se refere a frio, tempestade e ventos, sendo estes relatados continuamente pelos

feitores.

Com o falecimento do inspetor Pe. Prates, ocorrido em junho de 1784, o cargo de

Inspetor da Feitoria passou a Francisco Xavier da Cunha Pegado, que assumiu a empresa

em 20 de outubro de 1784. Sua gerência durou pouco tempo passando, em setembro de

3 Lei de 07 de junho de 1755.

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1787, a Antônio José Machado de Moraes Sarmento, que foi o responsável pela

transferência da Feitoria para o Faxinal do Courita, tarefa concluída em janeiro de 1789.

Entre o advento da instalação e a transferência do empreendimento, houve no comando

da Feitoria, apesar do tempo exíguo de duração no Rincão de Canguçu, três inspetores. A

sua existência foi contemporânea de dois governadores da província: José Marcelino de

Figueiredo e Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. O primeiro, sendo conhecedor

da importância da empresa, chegou a investir dinheiro próprio, buscando o sucesso na

instalação da mesma.

A transferência da Real Feitoria para o Faxinal do Courita, apesar de inúmeras

justificativas documentais, engloba em suas razões a de interesses econômicos por parte de

mandatários da província. Em documentação encontrada no Arquivo Histórico do Rio

Grande do Sul, podemos verificar diversos conflitos entre o Vice-rei D. Luiz de

Vasconcelos e o Coronel Rafael Pinto Bandeira, que havia sugerido a transferência para o

Faxinal do Courita. Também se pode verificar que a sua transferência não deveu-se ao fato

de pouca produção, já que esta a cada ano ultrapassava a anterior, informação verificada

inclusive em outras atividades executadas na Feitoria, tais como a criação de gado vacum e

cavalos (tabela 01).

A Real Feitoria buscava solucionar um problema que era constante na economia da

época, a dependência lusa perante a Inglaterra. Mas, ao mesmo tempo que enfrentava os

ditames da economia mundial, contrapunha-se aos interesses da elite local, militarizada e

administradora das leis e da ordem na região.

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CAPÍTULO II

Produção e reprodução historiográfica

A Real Feitoria do Linho Cânhamo, em especial a que se estabeleceu no Faxinal do

Courita, obteve na produção histórica bastante destaque. Nisto se diferencia do primeiro

estabelecimento, localizado no Rincão de Canguçu, que foi pioneiro no plantio do Linho

Cânhamo no estado. A razão da diferença da atenção dada entre as duas empresas se

fundamenta nos resultados que apresentaram, mas, também, porque a Feitoria do Faxinal

do Courita serviria, em 1824, para a instalação dos primeiros colonos alemães no Rio

Grande do Sul e a região passaria a ser conhecida como o berço da colonização alemã no

estado. Este fato foi importante para a história da empresa e não poderia ser negligenciado

no momento que se escreve sobre a mesma. Porém, em algumas obras, pode-se verificar

um certo diferencial no tratamento dado pelos escritores, alguns historiadores negligenciam

a informação de que as bases da colônia de São Leopoldo foram construídas pelo braço

escravo, pelo trabalho semi-servil indígena e pela administração portuguesa.

Várias publicações referentes à Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Rincão de

Canguçu, na maioria dedicadas à sua localização geográfica, se caracterizaram por um forte

bairrismo da parte de alguns pesquisadores que, buscando “levar” a empresa para a sua

cidade, procuraram fundamentação documental. Os que se dedicaram a estudar esta

temática são pesquisadores, historiadores ou ensaístas como alguns os chamam, que

procuraram uma maneira de “proteger a verdadeira história”.

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Antônio José Gonçalves Chaves e as suas “Memórias econômico-politicas”.

Charqueador, militar, político e, principalmente, segundo Saint-Hilaire, um homem

culto, o autor de “Memórias econômico-politicas sobre a administração pública do Brasil”

descreve o que ocorria além de sua percepção sobre a realidade na qual estava inserido.

Dedicou-se a escrever sobre as paisagens, a economia, a administração, as relações de

poder, a escravidão, o militarismo e demais temas referentes à sua realidade. A maior parte

de sua vida decorreu na cidade de Pelotas, grande centro charqueador e comercial da época.

Nesta obra, Gonçalves Chaves4 instrui os leitores com uma visão quase que

contemporânea dos fatos, pois a publicação da 1ª edição data de 1822. Desta maneira pode-

se considerar, apesar desta ser uma obra de memórias sobre o seu tempo, que o autor busca

estabelecer um vínculo extremo com a verdade de sua realidade temporal. Traz em suas

Memórias, uma exacerbada dedicação em documentar a eficiência do governo na maneira

de administrar a província, principalmente por parte da política Pombalina. Nestes termos,

o autor considera que

Sob o ministério do Marquês de Pombal, tempo em que se olhava para as

coisas grandes e de utilidade pública com a devida atenção, mandou-se criar

uma Feitoria de cânhamo nesta província e veio encarregado deste negócio

um tal Faxina. Foi escolhido o lugar em que é situada a fazenda de D.

Joaquina Marques, viúva do Capitão-mor Paulo Rodrigues Xavier Prates,

do que esta fazenda tira o nome de Feitoria. Rafael Pinto Bandeira, que

comandava então o Rio Grande, foi logo incomodado pelas requisições que

Faxina fazia de algumas coisas precisas para a Feitoria e tais violências lhe

fez que o bom Faxina teve por melhor fugir: largou tudo por mão e não

parou senão em Lisboa.

4 CHAVES, 1822, p. 110.

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Quanto aos empecilhos encontrados pela empresa, o autor destaca a maneira pela

qual as autoridades locais, em especial Rafael Pinto Bandeira, tratavam as solicitações dos

inspetores. Entre os empecilhos salienta a falta de envio de suprimentos, a negligência nos

pagamentos dos fornecedores e no repasse de capital para pagar o salário dos trabalhadores,

todos os impedimentos, segundo o autor, executados pelos governantes da província de São

Pedro.

Em toda a obra deste autor há preocupação em documentar a falta de zelo por parte

dos governantes, inclusive, explicando que com “um comandante no Brasil, como Rafael

Pinto, é bastante para não deixar prosperar alguma coisa: o padre desgostou-se e o Faxina

morreu sem que a cultura do cânhamo fizesse progressos” 5. Na mesma página que mostra a

negligência deste comandante, reitera os esforços do Vice-rei em estabelecer a empresa,

enviando soldados do Regimento de Bragança, remetendo livros para a escrituração da

receita da Feitoria e nomeando negociantes para suprir as necessidades da mesma. O autor

demonstra, nesta obra, a necessidade emergencial de se estabelecer novo rumo

administrativo, com maior zelo e dedicação por parte, principalmente, dos governantes.

Fernando Luis Osório e sua obra “A cidade de Pelotas”.

Natural da cidade de Pelotas, Fernando Luiz Osório, sociólogo, advogado e escritor,

dedicou-se à obra “A cidade de Pelotas” (1922) a fim de atender às festividades alusivas ao

primeiro centenário da independência do Brasil, tendo como objetivo principal de seu livro

mostrar a contribuição da cidade para com este fato.

5 CHAVES, 1822, p. 110.

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O autor trata de efemérides e indivíduos, geralmente destaques sociais e

pertencentes à oligarquia pecuarista e charqueadora da província. Afirma em sua obra que a

Ilha de Canguçu ficou conhecida como Ilha da Feitoria por razão desta empresa de

produção de linho cânhamo ter se estabelecido nesta localidade. Um dos erros encontrados

nesta obra se refere ao fundador do estabelecimento. O autor escreve que o responsável

pela fundação teria sido o Cap. Antônio José de Moraes Sarmento. Porém, segundo

documentação referente a esta empresa, consta como primeiro inspetor o Padre Francisco

Rodrigues Xavier Prates.

Mesmo com alguns equívocos referentes à Feitoria, esta obra é utilizada como fonte

para a localização geográfica, contribuindo para eternizar equívocos históricos que, por

razão de terem sido escritos por pesquisadores de renome, são tidos como verdades

inquestionáveis e base informativa e documental para outras obras.

João Simões Lopes Neto e sua obra “Apontamentos referentes à história de Pelotas e de

outros dois municípios da zona sul: São Lourenço e Canguçu”.

Filho de estancieiros, neto de um charqueador-visconde, João Simões Lopes Neto é

considerado um dos mais talentosos escritores brasileiros de todas as épocas. Natural de

Pelotas, o escritor descreve as paisagens da zona sul do estado com grande maestria. Apesar

de ter se dedicado com afinco às obras de ficção, o autor também utilizou-se da faina

histórica para descrever a sua região.

A obra “Apontamentos Referentes à História de Pelotas e de outros dois

Municípios da Zona Sul: São Lourenço e Canguçu”(1994), trabalha com a formação

histórica de três cidades da metade sul do estado do Rio Grande do Sul: Pelotas, Canguçu e

São Lourenço do Sul. Trata-se de uma história baseada em estatísticas e topônimos da

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região. Por ter sido escrita por um escritor de renome em nossa história, consta em várias

obras envolvendo a temática. Mas, a real contribuição desta obra se explica na informação

referente a pequenos verbetes relacionados à Feitoria. Trata, por exemplo, do topônimo

Canguçu, aplicando, em uma de suas interpretações, o de canguçu-ilhota à região referente

a terreno da costa oeste da Lagoa dos Patos6.

Também afirma que, por volta de 1800, existia na região sul da província 539

estancieiros, demonstrando a ocupação efetiva do território, algo que consta em diversas

obras referentes à localidade e que possui relação direta com a empresa7. Em sua obra,

dedicada quase que exclusivamente, à economia local, ao processo charqueador, o autor

justifica o abandono das atividades agrícolas devido à abundância de gado vacum existente

na localidade, assim como pelas constantes contendas com os castelhanos8.

Na mesma obra, informa que, neste período

Tudo arrastava-se monotonamente, cada família labutando para si,

ainda sem a preocupação do agregamento urbano e da união dos

esforços individuais fazendo a força e o bem comum9.

Não existia, segundo João Simões Lopes Neto, um interesse coletivo estabelecido,

nem por parte da população e, muito menos, por parte dos governantes.

Sebalt Rüdiger e a “Colonização e propriedade de terras no Rio Grande do Sul –

Século XVIII”

Historiador e professor, o autor, natural de Rio do Sul, Santa Catarina, dedicou-se a

escrever sobre a propriedade nas regiões da Campanha, inclusive da Argentina. Pesquisador

6 LOPES NETO, 1994, p. 116.

7 Ibid.p. 15

8 Ibid.

9 Ibid. p. 16.

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de colonização e economia, Sebalt Rüdiger descreve as relações de posse e poder no século

XVIII.

A obra “Colonização e propriedade de terras no Rio Grande do Sul – Século XVIII”

(1965), de Sebalt Rüdiger, que busca estabelecer os parâmetros de ocupação do estado no

século XVIII, analisa a Real Feitoria sob o ponto de vista administrativo e político. Busca

entender como em pleno período de expansão econômica, a coroa portuguesa se

direcionava ao setor primário, quase que obrigando os moradores da região a plantarem o

linho, o que causava desentendimentos e fazia com que os agricultores cozinhassem as

sementes para que estas não vingassem. Somente depois destes acontecimentos, é que o

governo português buscou implantar a Feitoria.

Descreve que

A Rainha e o governo supunham conseguir o cânhamo mediante uma

ordem, sem atender aos interesses dos agricultores que estavam,

evidentemente, orientados para as possibilidades de venda dos seus

produtos 10

.

Toma como determinante da “desgraça” do linho na localidade, a imposição, por

parte da administração colonial, do plantio deste. Reitera que, segundo suas impressões, o

governo entendia a região como um centro potencial agrícola, faltando somente

administradores dedicados a fomentar este objetivo. Direciona a sua base bibliográfica, em

especial referente à Feitoria, a Aurélio Porto em “O trabalho Alemão no RS”11

.

10

RÜDIGER, 1965, p, 35. 11

PORTO, 1934.

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Ângelo Pires Moreira e a obra “Pelotas na tarca do tempo”.

O autor da obra “Pelotas na tarca do Tempo. Primeiros tempos e freguesia” (1988),

Major Ângelo Pires Moreira, dedica capital próprio para descrever suas impressões sobre a

história de Pelotas. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas –

IHGPel, presente em inúmeros debates acerca da história da municipalidade, é uma figura

de notável saber e dedicação aos registros históricos.

“Primeiros tempos e freguesia” estabelece uma tentativa de se criar uma história

cronológica, baseada em vultos e fatos que ocorrem na região de Pelotas, desde a sua

origem. Esta obra é dotada de opiniões e, segundo o próprio autor, devaneios, assim como

dúvidas à cerca de definições e conceitos. Assim como Gonçalves Chaves, dedica

considerações a respeito da maneira do Vice-rei tratar o plantio do linho cânhamo no

Rincão de Canguçu.

Esta obra teve como objetivo demonstrar a localização geográfica do

estabelecimento na Ilha da Feitoria. Explica que, mesmo sem querer afirmar a verdade

referente à sua localização, defende a tese de sua instalação na Ilha da Feitoria, embasado

na obra de Fernando Osório e, principalmente, na existência do complexo arquitetônico da

Ilha da Feitoria. Aduz ao fato de ainda existir neste espaço “provas” como a senzala,

mangueiras e vestígios de armazéns que estariam sendo tragados pela Lagoa dos Patos 12

.

O pesquisador é usado como fonte de outros dois pesquisadores, Zênia de Leon e

Cláudio Moreira Bento.

12

MOREIRA, 1988, p. 32.

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A Feitoria no “Município de Canguçu – RS” de Cláudio Moreira Bento.

O tenente coronel Cláudio Moreira Bento é um dos pesquisadores que se dedica a

afirmar a localização definitiva da empresa lusitana. Vários são os escritos deste militar-

pesquisador no que se refere à empresa. Suas conclusões são publicadas em livros, em

artigos de jornal e apresentados em congressos de História em que participa. Dedica-se a

pesquisar, principalmente, fatos que envolvem sua terra natal, a cidade de Canguçu.

Uma das características básicas de suas obras é a utilização de livros de sua autoria

como fonte para explicar fatos, muitas vezes questionáveis, já que não possui respaldo em

fonte documental. Mas, infelizmente, esta é uma prática comum em se tratando da Real

Feitoria. Muitos pesquisadores que escreveram a sua história utilizaram fontes

bibliográficas que detinham informações confusas e, desta maneira, as perpetuam como

verdades absolutas.

Analisando a obra deste autor, identificamos como seu principal ponto, nos debates

propostos, a localização geográfica da empresa. No artigo intitulado “Real Feitoria do

Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu (1783-1789)”, publicado em jornal local, utiliza a

seguinte citação:

Do rincão do Canguçu se pode transportar tudo embarcado a Porto Alegre,

fazendo-se as conduções (transportes) do porto que serve a mesma Feitoria

(Real Feitoria) no arroio Correntes em pequenos barcos e canoas grandes

até a qualquer barco que receba os efeitos (produção), sementes,

escravatura (escravos e o mais que se deve mudar. Referido barco deverá

estar no canal por onde se atravessa quando da real Feitoria se conduz

alguma coisa para Rio Grande13

.

13

Jornal Diário Popular, 19 jul de 1987.

Page 19: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

19

A citação acima se refere, segundo o pesquisador, à carta enviada pelo Vice-rei D.

Luis de Vasconcelos ao “comandante e governador militar“ do Rio Grande do Sul, José

Ribeiro da Costa. Após analisar o documento se pode constatar que algumas informações

colocadas na sua citação, não constam nos documentos. Por exemplo, não existe referência

a transporte prévio a barco ancorado e aguardando suprimentos, estes dados serviriam para

justificar a localização na região de Canguçu Velho, na base da Serra dos Tapes, onde,

segundo suas interpretações, eram embarcados os suprimentos e sementes e transportados

pelo rio Correntes até a Lagoa Pequena e, posteriormente, a Lagoa dos Patos. Sua

afirmação é baseada em sua percepção e julgamento. Em vários artigos de sua autoria se

podem evidenciar afirmações como “a teoria que defendo”, “julgo que...”.

No encerramento do artigo acima referido, o pesquisador demonstra a qual fim se

destina a obra:

A presente demonstração responde à comunicação da Sra. Zênia Leon no 9º

Encontro de Micro História em Erechim , 1991, onde com recurso de um

vídeo apresentou a Fazenda Sotéia como sendo a sede da Real Feitoria do

Linho Cânhamo e a Ilha de Canguçu ou Feitoria com o Rincão de Canguçu

– 1783-1789. Ao presente estudo será anexado um dossiê que será

destinado exemplares aos IHGB, IHGRGS, IHGPEL e Academia

Canguçuense de História. Dossiê que documentará a história desta

controvérsia.

Várias outras afirmações baseadas em interpretações tomadas pela ânsia de provar a

localização geográfica figuram em suas obras. Diversos debates e embates foram travados

por este pesquisador com a pesquisadora Zênia de Leon, que buscava comprovar a

localização em Pelotas. O autor chega a determinar, mesmo sem análise de trabalho

arqueológico, a localização da sede da Feitoria, conforme se pode verificar em figura anexa

Page 20: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

20

(anexo 04). Esta luta bairrista de comprovação da localização geográfica acabou sendo o

centro de toda a discussão sobre a temática.

A “Real Feitoria de Pelotas” segundo Zênia de Leon.

Pesquisadora, professora, sócia do Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas –

IHGPel, autora de diversas obras sobre a cidade de Pelotas, especialmente no que se refere

aos casarões localizados na zona central da cidade, dedicou-se a descrever a história da vida

privada, em especial ao que se refere ao modus vivendis pelotense.

A obra “A Real Feitoria do Linho Cânhamo em Pelotas” (1994) trata quase que

sumariamente da localização da sede da Feitoria, mas com o claro intuito de provar que a

mesma se instalou na ilha da Feitoria e que os casarões lá estabelecidos são os mesmos

utilizados pela Feitoria, quando de seu funcionamento. Nesta obra consta um mapa que, de

forma duvidosa, aponta a existência de trapiche ou porto na região da atual Fazenda Sotéia,

desenhada “a bico de pena” como descreve a autora e que destoa do resto do desenho,

apresentando um traço diferenciado.

Esta pesquisadora é um dos autores que utiliza como base às obras de Fernando

Osório, quase que afirmando que a verdade sumária é estabelecida por este. Seu opositor de

idéias nesta temática é o Tenente Coronel Cláudio Moreira Bento que, continuamente, trava

batalhas através de artigos de jornais e obras bibliográficas para desbancar suas opiniões e

teses sobre a Feitoria.

A autora chegou a enviar uma solicitação de tombamento do conjunto arquitetônico

localizado na Ilha da Feitoria ao Conselho Estadual de Cultura, com o objetivo de

Page 21: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

21

estabelecer como verdadeira as suas interpretações referentes à localização da empresa

naquele local. O mesmo foi indeferido por falta de fundamentação histórica.

Aurélio Porto e a Feitoria no “O trabalho alemão no Rio Grande do Sul”.

Natural de Cachoeira do Sul, o historiador Aurélio Porto dedicou-se a escrever

sobre o trabalho alemão em 1934. Sua obra, entendida por muitos como um clássico da

historiografia gaúcha, muito contribuiu como base de obras posteriores. Sua análise se

refere ao trabalho do imigrante na região onde havia sido instalada a Real Feitoria do Linho

Cânhamo, no Faxinal do Courita, sobre a faina diária, dedicação ao trabalho e ao progresso

gerado por este.

O autor, quando descreve as atividades exercidas na Feitoria, busca estabelecer a

inferioridade do trabalho dos encarregados do plantio do linho em relação ao trabalho do

imigrante alemão, várias vezes tratado como “salvação da lavoura”, literalmente. Também

apresenta como razão dos problemas da Feitoria o fato de quase sempre esta não receber

retorno do governo no que se refere às suas necessidades básicas de funcionamento.

Segundo o autor, o engrandecimento do Rio Grande de São Pedro deveu-se ao

trabalho do imigrante alemão, em contraposição aos dispendiosos trabalhos referentes ao

fracasso do plantio do linho14

. O autor defende como localização da primeira Feitoria a

região do Rincão de Canguçu, na cidade de Pelotas, nas proximidades da Lagoa Pequena.

Descreve a promissora safra de sementes “apesar da esterilidade das terras” 15

. Não se sabe

com qual base determinou esta esterilidade porque em todos os documentos e relatórios

14

PORTO, 1934, p. 18. 15

Ibid. p. 13.

Page 22: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

22

encontrados jamais constou tal definição da área, em contrário, sempre se tratou a terra do

Rincão de Canguçu como a das mais férteis da província. O que o torna uníssono aos

demais autores é no que se refere ao trato dispensado pelas autoridades no que se refere aos

suprimentos e soldos da Feitoria 16

.

Existe nesta obra a declaração da existência de diversos maquinários para uso na

Feitoria de Canguçu, tais como gramadeira, engenhos e tasquinhas, feitos em Lisboa, que

apresentavam defeitos, mas não eram consertados pelos administradores e pelo governo da

província17

. Também trata da criação de novos edifícios e da ampliação das sementeiras

além do envio de linho, couro, sebo, da fabricação de queijos, e da salga de peixes, “em

quantidades apreciáveis”. A constatação de Aurélio Porto referente à produção de

manufaturas em território colonial demonstra o não cumprimento de alvará régio (Alvará

Régio de 5 de janeiro de 1785) da proibição de manufaturas no Brasil, confirmando a

independência da administração da Feitoria em relação às ordens da metrópole. Declara

também a presença de estrangeiros, índios, mulatos e negros, destinados as mais diversas

funções na Feitoria.

O importante em sua obra é a explicação das razões da desgraça da Feitoria,

diferente dos demais autores. Ele considera como principal razão à desorganização

existente na Feitoria e não a atribui, exclusivamente, ao governo da província. Relata o

trabalho escravo e os castigos a que estes eram submetidos, como o tronco, as algemas e o

açoite. Mesmo sem documentação disponível que fundamente as afirmações descritas em

sua obra, o autor relata inclusive a existência de intrigas e acusações entre os funcionários.

16

PORTO, 1934, p. 13. 17

Ibid., p. 14.

Page 23: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

23

Trata também da inventiva administração dos feitores, adindo a eles a construção de

diversas maquinarias utilizadas no plantio e beneficiamento do linho18

.

Como a obra analisada se refere ao trabalho do imigrante alemão no estado, o autor

trata com maior ênfase a fase de transferência da Feitoria do Rincão de Canguçu para o

Faxinal do Courita e as relações de trabalho existentes na nova Feitoria, localizada na

região da atual cidade de São Leopoldo.

Carlos de Souza Moraes e a ”Feitoria do Linho Cânhamo”.

O autor trabalha em sua obra, o contexto em que se encontra a Província do Rio

Grande de São Pedro, assim como as suas características como área de fronteira, relações

com a região do Rio da Prata e os conflitos que ocorrem com esta, o surgimento das

estâncias, as disputas pela posse da terra e a instalação e transferência da Real Feitoria do

Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu para o Faxinal do Courita.

A obra trata em específico sobre a transferência e a instalação da Real Feitoria no

Faxinal do Courita, estabelecendo algumas poucas ligações com a empresa da região do

Rincão de Canguçu. Nos momentos que se refere a esta dispõe sobre os materiais e pessoas

que lá se encontraram e se dirigiram à nova sede do estabelecimento. Apresenta como razão

do fracasso as mesmas utilizadas por outros autores, sendo a falta de resultados positivos

nas colheitas o principal causador da transferência. Registra em sua obra o envio de 109

cavalos e 7.291 cabeças de gado19

, demonstrando as proporções da empresa que se

transferiu para São Leopoldo. Como sua obra se direciona à ocupação da região do Faxinal

18

PORTO, 1934, p. 16. 19

MORAES, 1994, p. 28.

Page 24: A REAL FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO DO RINCÃO DE CANGUÇU (1783-1789): A PRODUÇÃO E A REPRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA.

24

do Courita, atual cidade de São Leopoldo, possui informações específicas a este local,

inclusive no que se refere à instalação dos inspetores, feitores, escravos e trabalhadores20

.

Além da animália, consta em sua obra o levantamento da escravaria que se

direcionou à nova localidade. Eram “18 casais de escravos de S. Majestade, 29 crianças,

filhos dos mesmos, 11 escravos de confisco, 27 escravos do mesmo”, além de “01 moleque

solteiro pião do campo, 2 feitores, e 1 soldado Dragão do Destacamento”21

. Esta

informação difere da encontrada na documentação do Arquivo Histórico do Rio Grande do

Sul (Tabela 01).

Trata ainda sobre a transferência da ferramentaria e as necessárias instalações para

se continuar na nova sede os trabalhos de plantio e beneficiamento do linho cânhamo. No

embate referente à localização exata da sede da Feitoria, assim como de suas sementeiras,

este autor declara que

A localização inicial da Feitoria do Linho Cânhamo no Rincão do

Canguçu é controvertida. Parece-nos, no entanto, que o historiador

Cláudio Moreira Bento, filho de Canguçu e que longamente tem

examinado a matéria, não só através da imprensa e como em

plaqueta, nos dá maior segurança em admitir que o estabelecimento

agrícola fora realmente instalado no Rincão de Canguçu, conhecido

como Canguçu-velho, “um amplo espaço entre os arroios Correntes e

Grande (ex-arroio das pedras), que abrange terras dos atuais

municípios de Pelotas e Canguçu.22

Mas, mesmo aludindo ao Coronel Bento a maior veracidade e acerto perante à

localização da sede, também direciona-se a registrar a necessidade de se implementar

pesquisa arqueológica para elucidar dúvidas ainda existentes na pesquisa da temática. O

20

MORAES, 1994, p. 30. 21

Ibid., p. 31. 22

Ibid., p.58 e 59

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25

que mais chama a atenção é a utilização de documentação descrita pelo autor como

“apócrifa” e que está disponível no arquivo histórico do Rio Grande do Sul, porém sem

datação. Numa delas há a descrição das razões da decadência da fazenda, relegando ao

inspetor e à escravaria a culpa desta23

. Numa de suas interpretações sobre a falência da

empresa afirma que

Tudo fracassara. E a culpa não advinha da terra, das administrações

infelizes, desse conjunto de circunstâncias apontadas sempre pelos

inspetores da Feitoria e, sim, do trabalho servil, sob a direção do

estado24

.

O que se pode observar, de forma geral, é que esta obra tende a analisar as razões da

transferência mas, tem como fim principal o estabelecimento desta na nova localidade, o

Faxinal do Courita.

Com a palavra, o Conselho Estadual de Cultura.

Em 1992, a pesquisadora Zênia de Leon encaminhou um pedido de tombamento do

complexo arquitetônico localizado na Ilha da Feitoria, considerado pela mesma como o

local onde estaria instalada a Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão de Canguçu. A

solicitação vinha baseada em bibliografia e documentos referentes àquela empresa25

. Em

reunião de 10 de março de 1993, o Conselho Estadual de Cultura (CEC), por votação

unânime dos presentes, indefere o pedido.

23

MORAES, 1994, p. 63. 24

Ibid., p. 70. 25

RIO GRANDE DO SUL. Conselho Estadual de Cultura. Processo 14/1992.

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26

No corpo do parecer emitido pelo CEC existe as declarações de votos e as

justificativas históricas baseadas em bibliografia diversa. O presidente da instituição,

através de análise de bibliografia do General João Borges Fortes, registra neste parecer a

tentativa de se expandir à cultura do linho além da empresa estatal, relegando ao poder

administrativo do estado as razões que fizeram esta iniciativa ser improdutiva. Também

trata da produção avultada de seis toneladas de linho, reiterando o que se documenta em

diversas correspondências entre o inspetor e o Vice-rei, assim como a presença de

manufatura na empresa, beneficiando o linho em loco. Trata também do Alvará Régio de 5

de janeiro de 1785, registrando que a proibição de manufaturas atingiria a Feitoria, pois só

seria permitido o envio de linho ainda não maçado, em bruto.

Neste parecer há a manutenção já disposta por outros autores no que se refere às

razões do malogro da instituição, ou seja, a administração falha do inspetor e a falta no

cumprimento dos pagamentos por parte da administração do estado. Também não difere no

que se refere ao ponto principal da discussão de várias obras escritas sobre a temática:

Afinal, em que local - precisamente – situava-se a Real Feitoria do

Linho Cânhamo antes de sua transferência?.

O presidente da instituição, além das fundamentações bibliográficas, trabalha a

definição de Rincão, segundo dicionários etimológicos e geográficos.

No requerimento de parecer, a solicitante, Sra. Zênia de Leon, junta documentos tais

como o histórico referente à temática, de sua autoria; Mapa da Ilha da Feitoria; Mapa do

município de Pelotas; Cópia de páginas de livros; Cópia de relatório da Capitania dos

Portos; Cópia de matricula do imóvel e declarações de diversas pessoas, pesquisadores e

historiadores.

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27

Há a declaração do Conselho que existem informações desencontradas na

solicitação. Declara inclusive que existe material “falsificado”, declarado pela solicitante

como de autoria de Moraes Sarmento, depois identificado como peça de outro documento,

que havia sido anexado de forma incorreta naquele.

Há a alegação, por parte da solicitante do parecer, que uma das razões do fracasso

da Feitoria teria sido o entorpecimento dos negros por mascarem as folhas do cânhamo.

O pesquisador Cláudio Moreira Bento, em contínuo embate referente à localização

da empresa, enviou documentação referente à Feitoria, na qual constam cópias de cartas de

outros pesquisadores, cópia de trabalhos referentes à temática, todos de sua autoria, num

deles determina que a sede teria sido no ponto mais alto do Rincão de Canguçu, e cópias de

artigos referentes à temática, além de cópia de “Planos de Terrenos”.

No relatório existe um histórico sobre a Real Feitoria, termos de medição e a

conclusão do relator determinando que,

De acordo com os elementos que constam no termo de medição, a

sede da Real Feitoria do Linho-Cânhamo do Rincão de Canguçu

localizou-se nas cercanias do sítio situado a uma distância

aproximada de dois a quatro quilômetros da confluência dos arroios

de Correntes e do Tigre, marcado no Plano de Alexandre Eloy

Portelli com os sinais de existência de uma sementeira de linho e da”

Ronda do Coronel “. Atualmente é a área em que se encontra a Vila

São José, ou suas adjacências, no município de Pelotas.

No parecer do conselheiro Itálico José Marcon, verifica-se uma asseveração

referente à profissão do historiador, declarando que,

Cumpre aqui, em síntese, fazer uma distinção entre Ensaísta e

Historiador. O primeiro, por via de regra, limita-se a ‘interpretar’,

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28

enquanto que o último, em sendo autêntico, ‘levanta’ as fontes

primárias, com assento nos documentos originais.

Esta interpretação do conselheiro vai ao encontro de outras referentes à profissão de

historiador, o que este não registra é que, além da requerente, outros tantos escritores que

tratam da temática também possuem profissão diversa da de historiador, relegando ao

estudo da temática um ensaio com fundamentação da mais variada, possibilitando a adoção

da “verdade” que mais favoreça seus interesses, quaisquer que sejam.

A conselheira Mariza Simon dos Santos, acompanhando o parecer com voto

favorável, sugere que se realize pesquisa arqueológica para elucidar dúvidas referentes à

localização da Feitoria, ampliando as bases teóricas da pesquisa, aquelas determinadas

pelas fontes primárias documentais e “oficiais”. Nesta justificativa de voto fica evidente,

mesmo por ser um colegiado responsável pela elucidação do questionamento específico da

localização da Feitoria, que a documentação utilizada e a bibliografia consultada

proporcionam mais dúvidas do que esclarecimentos.

Nesta mesma linha de pensamento, o conselheiro Hélio Moro Mariante, mesmo

aprovando o parecer e acompanhando o relator, determina que

... o juízo final só poderá ser dado quando se encontrar documentação

pertinente e perfeitamente fundamentada.

As justificativas de voto dos conselheiros, apesar de aprovarem o relatório contrário

ao tombamento, possibilitam a conclusão de que mesmo o objetivo final da pesquisa,

efetivada pelo relator, não possui subsídios suficientes para estabelecer um julgamento

baseado em evidências documentais ou bibliográficas. Neste parecer do Conselho Estadual

de Cultura consta que o relator esteve inclusive na Torre do Tombo em busca de

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29

informações, encontrando alguns documentos para sua fundamentação. Mas, em nenhum

momento, houve a instrução de se verificar a alteração do norte magnético da Terra para

aferição da localidade, ocasionando um possível erro geográfico de localização.

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30

CAPÍTULO III

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção bibliográfica em torno da temática em questão, em geral, se restringe a dois

aspectos: localização geográfica e descrição histórica. Renomados pesquisadores tentaram

debater as determinações documentais, direcionando suas pesquisas à decifração das razões

do péssimo desempenho da empresa lusitana.

Em alguns autores se pode observar a persistente indagação no que se refere à

localização exata da Feitoria, relegando aos estudos de fontes materiais, ou seja, prospecção

e análise arqueológica, a única forma de determinar definitivamente a exata localização da

empresa. Na sua maioria pesquisadores ensaístas, como define o Conselho Estadual de

Cultura, trataram de analisar esta temática, mas as suas buscas se concentraram

especificamente na análise espacial e relegaram a outros planos menos favorecidos o

entendimento das relações que esta envolvia em sua rotina diária da faina agrícola. A

presença de índios, negros e brancos, nas diversas formas de trabalho humano, seja escravo,

semi-escravo, tutorial ou livre, poderia ter sido melhor aproveitado, assim como, a presença

de trabalho assalariado por parte dos silvícolas. Também informações quanto à dedicação

dos escravos a suas roças particulares e sobre as relações entre a propriedade privada e a

estatal em um espaço limitado pelas relações escravistas e de exploração por parte da

metrópole, poderiam ter sido tratados com maior determinação. Também se pôde

evidenciar que alguns autores concluíram que muitas atividades, alheias ao plantio e

colheita do linho, eram executadas neste estabelecimento estatal, até mesmo com objetivo

industrial, como criação de máquinas e novos implementos ao trabalho agrícola, alguns

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31

destes com reconhecido consentimento dos governantes, mesmo contrário à legislação

vigente de manufaturas e indústrias.

As variadas obras, com suas inúmeras maneiras de descrever a história, numa

verdadeira babilônia historiográfica, apesar de se dedicarem à localização espacial daquele

estabelecimento agrícola, industrial e comercial, não obtiveram sucesso em suas

argumentações, documentadas ou não, para estabelecer um fim nesta questão geográfica.

Em nenhuma delas pôde-se observar, por exemplo, a utilização da variável magnética do

planeta quando do uso de coordenadas geográficas. Até mesmo o Conselho Estadual de

Cultura utilizou as determinações do agulhão de acordo com as informações registradas em

1795. A não-conversão para os moldes atuais do Norte magnético do planeta pode

possibilitar erros de coordenadas de até cinco quilômetros de extensão. Desta maneira, sem

a conversão, facilmente se pode localizar a sede da Real Feitoria do Linho Cânhamo, tanto

na base da Serra dos Tapes como nas margens ou dentro da Lagoa dos Patos.

Torna-se evidente que o estudo aprofundado desta empresa, em seus aspectos

administrativo, econômico, social e espacial ainda é uma lacuna não preenchida da forma

que esta deveria ter sido tratada. As varias determinantes documentais, especialmente as

cartas trocadas entre o Vice-rei, D. Luiz de Vasconcelos, e o Coronel Rafael Pinto

Bandeira, trazem em seu conteúdo informações que demonstram que esta empresa não foi,

como alguns se dedicam a documentar em suas obras, um devaneio tresloucado dos

administradores da colônia portuguesa. Tampouco esta empresa simplesmente se desfez

quando da chegada dos imigrantes alemães, como outros também afirmam. Também pode-

se verificar, através das mais variadas fontes bibliográficas, que a região espacial em

questão era conhecida por portugueses e espanhóis, o que se pode verificar em mapas e

cartas coreográficas da época e, até mesmo, anterior à existência da Feitoria, assim como se

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pode evidenciar a presença humana nestas vastas regiões do sul do estado, tidas como

“terra de ninguém” por muitos autores, apesar do povoamento oficial ter sido iniciado em

1737. Nos documentos arquivados no AHRS, referentes à transferência da empresa para o

Faxinal do Courita, atual cidade de São Leopoldo, constam vinte e cinco registros de

embarque de escravos em sumacas, patayos e bergantins, com destino à nova sede,

demonstrando que a população escrava no estabelecimento era de proporção considerável.

Nestes constam famílias, com diversas crianças “de peito”, demonstrando assim a

existência de núcleos familiares escravos, como disposto por Moraes (1994).

A Universidade Federal de Pelotas – UFPel, através do Instituto de Ciências Humanas -

ICH, vem estudando a Ilha da Feitoria, executando prospecções arqueológicas voltadas à

análise da presença guarani na área, devido principalmente a presença de rios e lagos da

região. Além de evidências da presença da tradição cerâmica e produção da indústria lítica

tupiguarani na região, foram encontrados objetos e materiais de produção européia, não

analisados pelo setor por não ser este o objeto da pesquisa, disponível para pesquisas

futuras.

Alguns centros universitários como UFPE, UFRGS, UFMG e USP, tem desenvolvido

pesquisas voltadas à arqueologia histórica, destoando da prática desta ciência voltada na

sua maioria ao estudo das populações primitivas do continente brasileiro. A Real Feitoria

do Linho Cânhamo, em especial a localizada no Rincão de Canguçu, continua a ser uma

incógnita da historiografia, em razão das poucas pesquisas desenvolvidas e da rara

documentação oficial.

Como informa André Prous (1992), não podemos esperar que as instituições

governamentais que destinam “verbas importantes para pagar pesquisas de ‘salvamento’

arqueológico a serem destruídas ou inundadas” como acontece nas construções de represas

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no Brasil, passem a dedicar atenção especial à arqueologia histórica. A necessidade de se

ampliar a temática arqueológica é proporcional ao avanço da especulação imobiliária em

direção às regiões detentoras de verdadeiros testemunhos materiais da história rio-

grandense e brasileira. Instituições como a Universidade de Santiago de Compostela, na

Espanha, desde a década de 80, do século XX, tem se utilizado da arqueologia, como

importante aliada à identificação, catalogação e preservação do patrimônio histórico-

cultural, trabalhando, além da pesquisa pré-histórica, os diversos setores de ocupação

humana daquela sociedade.

Além de análise documental, do que se dispõe no Arquivo Histórico do Rio Grande

do Sul, assim como na Torre do Tombo em Portugal, tornam-se imprescindível para

registrar o valor desta empresa estatal para o período colonial do Estado, a utilização da

arqueologia histórica como forma de complementar as fontes existentes e elucidar o

questionamento referente a sua localização geográfica.

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REIS, José Carlos. Da “história Global” à “história em migalhas”: o que se ganha, o que

se perde? IN Questões da teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Ed. Universidade

– UFRGS, 2000.

RÜDIGER, Sebalt. Colonização e propriedade de terras no Rio Grande do Sul – Século

XVIII. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1965.

ARTIGOS:

BENTO, Cláudio Moreira. Origens e evolução histórica de Pelotas até o advento do

“Diário Popular”, no ano de 1890 IN Jornal Diário Popular, Pelotas, sábado e domingo,

15 e 16/11/1980, 1º caderno, p. 03.

___________________. A Real Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu –

1783-1986. IN Jornal Diário Popular, Pelotas, domingo, 19 de julho de 1987, p. 20.

LEON, Zênia de. Real Feitoria do Linho Cânhamo IN Jornal Tribuna do Sul, Pelotas,

28/29 de setembro de 1991.

____________. O linho no Município IN Jornal Opinião, Pelotas, semana de 05/10/1991 a

11/10/1991.

REVISTAS

FILOSOFIA – Ciência e vida, Ano II, nº 18, Editora Escala, 2008.

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36

Real Feitoria do Linho Cânhamo: Íntegra do Parecer do Conselho Estadual de Cultura IN

Revista do IHGPEL, Pelotas, nº 3, dezembro de 1997, p.11.

Anais do Museu Histórico Nacional. Volume 01. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1940.

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS:

Documentos da Real Feitoria do Linho Cânhamo. Lata nº 300, maço único, Arquivo

Histórico do Estado do Rio Grande do Sul.

Processo nº 14/92 CEC - Parecer nº 18/CEC/93 – Súmula da Ata nº 63 – Sessão Ordinária

de 10 de março de 1993 - Conselho Estadual de Cultura – Secretaria de Cultura – Estado do

Rio Grande do Sul. Relator: Miguel Frederico do Espírito Santo.

ENDEREÇO ELETRÔNICO CONSULTADO:

Site da Biblioteca Nacional – www.bn.br/bndigital

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ANEXOS

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ANEXO I

Exemplar de linho cânhamo (Site da Biblioteca Nacional).

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ANEXO II

Etnias de escravos, Cabinda, Quiloa, Rebolla e Mina, em tela de Debret, presentes

na Feitoria (Site da Biblioteca Nacional).

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ANEXO III

Mapa da Capitania de São Pedro, de Taramanday ao Passo do Yacuy, usada nas

cartas geográficas que se fizeram na Demarcação da América Meridional (século XVIII),

executado por Manoel Vieyra Leão (Site da Biblioteca Nacional).

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ANEXO IV

As ruínas da Real Feitoria em Canguçu (BENTO 1983).

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ANEXO V

Mapa do Rio Grande do Sul, de 1763, demonstrando o reconhecimento do território

por parte de portugueses e espanhóis (GOLIN, 2002).

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ANEXO VI

D. Luiz de Vasconcelos e Souza (MHN, 1940).

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ANEXO VII

Pessoas empregadas 10

Cazaes de escravos 21

Filhos de escravos 04 Vindos do Rio de Janeiro

Filhos de escravos 17 Nasceram na Feitoria

Escravos solteiros 12

Nota: Fugirão escravo cazado em 31.12.1785, e um moleque solteiro.

Gado Vacum 1240

Bois mansos 46

Cavalos antigos 26

Bestas muares 18

Cavalos 21

Égoas 05

Besta 01

Colheita de semente de linho 50 alqueires

Colheita de linho 3 ¼ alqueires

Relatório da Feitoria em 23.01.1786 (lata 300, maço único, AHRS).