gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007) 9-40 ISSN:
0874-5498
A pura liberdade do poeta e o historiador
JACYNTHO LINS BRANDO Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Abstract: Lucian of Samosata's The Way to Write History,
considered to be the only historical "treatise"that has been handed
down by Antiquity, can actually be read as a pamphlet against the
Roman historians of the Parthian Wars. It thematizes the
relationship between poetry and history, not merely from a
stylistic or literary standpoint, but bearing in mind that the
appeal to any type of fiction (psedos) frustrates the expectation
that history might be fair, since it shuns away truth when it opts
for the praise of the powerful. Since history is related to
politics, in it the appeal to the fictional brings about pragmatic
consequences and therefore the historian cannot take advantage of
the unrestrained freedom given onto the poet. This article seeks to
analyse the concept of "pure freedom" ( ) which goes back to Plato
to determine the function that it plays on Lucian's thematization
on history.
Keywords: Lucian of Samosata; theory of history; history and
poetry; history and truth; history and politics; fair history; pure
freedom.
No escapa ao leitor de Luciano como o tema da adulao fornece a
chave principal para o entendimento do vis panfletrio de Como se
deve escrever a histria.1 Todavia, cumpre admitir que ele guarda
ntima
Artigo recebido em Novembro de 2006 e aprovado em Janeiro de
2007. 1 A apreciao do estatuto e da importncia de Como se deve
escrever a
histria divide os comentadores. J.W.H. Atkins, Literary
Criticism in Antiquity (London 1952) 338, nega que seja, em sentido
estrito, um tratado sobre a histria (treatise on history),
classificao que lhe recusada tambm por O. Schmitt, Bemerkungen zu
Lukians Schrift Wie man Geschichte schreiben muss: Klio 66, 2
(1984) 455, o qual todavia lembra que assim o considera Losiev. A
opinio de Moses I. Finley, Uso e abuso da histria (So Paulo 1989)
4, bastante negativa: a obra de Luciano, que pretende ser um ensaio
sistemtico sobre historiografia, constitui uma mistura de regras e
mximas que se tornaram lugares comuns na instruo retrica, no
passando de um trabalho inferior, superficial e essencialmente sem
valor, com o que parece concordar Luiz Costa Lima, Histria. Fico.
Literatura (So Paulo 2006) 98, ao concluir que as consideraes de
Luciano so pobres, importando apenas para mostrar que ele concebia
a retrica dever ter, no ofcio do historiador, um papel bastante
secundrio. Por sua vez, Barry Baldwin, Studies in Lucian (Toronto
1973) 87-88, assevera que, vivendo numa poca cheia de
historiadores, mas carente de teorizadores da histria, ele no
ministra mais que prescries convencionais, lembrando que Wilamowitz
no via em suas idias seno lugares comuns. Enfim, C. P. Jones,
Culture and Society in Lucian
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conexo com um segundo vetor essencial para a compreenso do
pensa-mento de Luciano, o qual diz respeito distino entre histria e
poesia. Com efeito, ele comea por afirmar que no estreito o istmo
que delimita e separa a histria do encmio ( ), mas h uma elevada
muralha entre eles e, como na msica, uma dupa escala entre uma e
outro ( ): que ao encomiasta ( ) apenas uma coisa interessa,
elogiar e agradar aquele que se elogia ( ), mesmo que, para atingir
esse objetivo, tenha de mentir ( ), enquanto, por seu turno, a
histria no admite nada de mentiroso ( ).2 Estabelecidas
(Cambridge 1986) 67, simplesmente pe Como se deve escrever a
histria na companhia dessas adulaes artificiais e indiretas, como
um indcio, ao lado de Imagens e Sobre as imagens, da associao de
Luciano com o Imperador Lcio Vero. Numa direo um pouco diversa,
Luciano Canfora, Teorie e tecnica della storiografia classica (Roma
1974) 14, situa Luciano entre os tericos da historiografia grega,
ao lado de Polbio, considerando o texto em questo um opsculo
metodolgico sobre a histria e observando ainda que, mais que um
tratado tcnico (...), trata-se de um libelo polmico contra Roma.
Todavia, ele considera-o um opsculo retrgrado, o que resulta
sobretudo da segunda parte, em que tudo se reduz elaborao
escolstica dos preceitos que se podem deduzir do promio
tucididiano, assumido como produto mais maduro da meditao
historiogrfica, quando, na verdade, Tucdides representaria um passo
atrs com relao a Herdoto (Id. 23). Do mesmo modo, Hartog incluiu-o
entre os textos sobre a histria reunidos em A histria de Homero a
Santo Agostinho, insistindo que se trata do nico tratado antigo
sobre a histria que atravessou os sculos e chegou at ns! (Franois
Hartog, A histria de Homero a Santo Agostinho (Belo Horizonte 2001)
233, tambm 9 ss) Por sua vez, Gert Avenarius, Lukians Schrift zur
Geschichtsschreibung (Meisenheim/Glan 1956), considerava Luciano no
original, embora acima do nvel de sua poca, enquanto Sommerbrodt e
Schmid ressaltam nele, como qualidades, justamente a origina-lidade
e o esprito tucididiano. Para terminar esse simples arrolamento de
pontos de vista, cumpre registrar que Graham Anderson, Arrian's
Anabasis Alexandri and Lucian's Historia, Historia 29, 1 (1980)
119, entende Como se deve escrever a histria como um tratado de
pleno direito (treatise), com o que concordam K.Korus, The Theory
of Humour in Lucian of Samosata, Eos 72 (1984) 305, ressaltando que
o tratado constitua um gnero literrio com objetivos estticos bem
definidos, e J.Schwartz, Biographie de Lucien de Samosate
(Bruxelles 1965) 20, que define o texto como uma sorte de manual do
perfeito historiador, obra nica em seu gnero em toda
Antigidade.
2 Hist. conscr. 7.
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A pura liberdade do poeta e o historiador 11
essas premissas, Luciano ento conclui que os historiadores que
critica, escrevendo como o fazem, parecem ignorar () que da poesia
e dos poemas umas so as intenes e que eles tm regras prprias,
enquanto as da histria so outras ( , ).3
O contraponto entre histria e poesia constitui um aspecto
deveras importante, pois a digresso a esse propsito impede que se
comece de imediato o catlogo dos vcios que o autor afirma ter
ouvido da boca dos historiadores na Jnia e na Acaia (o que se faz
apenas a partir do par-grafo 14). Com efeito, no incio do stimo
pargrafo, aps afirmar que no ser inoportuno recordar alguns [erros
que se cometem na histria], como exemplo do que assim j se encontra
escrito, ele se prope antes examinar aquilo em que mais erram os
historiadores, introduzindo o tema do encmio. Trata-se,
evidentemente, de uma questo derivada da relativa adulao, que
conduz o raciocnio do exame de um aspecto mais geral para o
problema especfico da distino entre gneros de discurso. o encmio
que, efetivamente, oferece a oportunidade para que se tracem as
fronteiras entre histria e poesia, pois s esta o admite, enquanto a
primeira no. Dizendo de outro modo: se o fato que levou Luciano a
compor Como se deve escrever a histria foi o desejo de de-nunciar a
adulao dos autores filo-romanos, a temtica do elogio se apre-senta
como fundamental, sendo ela que conduz reflexo sobre a poesia.
Retomemos o raciocnio. Em primeiro lugar, introduz-se uma
constatao factual: a maioria dos historiadores, descuidando-se de
narrar o que aconteceu ( ), demora-se em elogios () aos comandantes
e generais.4 De um lado, portanto, temos o que se entende como funo
do historiador: historiar o acontecido; de outro, por oposio, o que
o desvia disso: os elogios desmesurados. Entre esses dois extremos
que se instala o istmo, a muralha e a diferena de oitavas que
separam a histria do encmio, distncia que decorre do fato de que o
encomiasta pode recorrer mentira, ao falso e ao
3 Hist. conscr. 8. 4 Hist. conscr. 7.
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fictcio (ao ) para atingir seu objetivo (seu ), enquanto o
historiador no. Na seqncia, o que ento se constata que esses
histo-riadores parecem desconhecer () que a poesia e os poemas tm
propsitos diferentes e regras que lhe so prprias, os quais no se
confundem com os da histria. Assim, poesia e histria se separam
quanto aos propsitos () e s regras (), cabendo observar que,
enquanto com relao aos primeiros ambas se distinguem igualmente uma
da outra, no que diz respeito aos cnones a poesia os tm como
prprios (trata-se, com efeito, de ), a histria como outros. Assim
se esclarece por que a poesia, nesse contexto, exerce um papel
funcional: de fato, na diferena com os cnones desta que a histria
se define.
Isso leva a que se reconhea a poesia como o gnero de discurso em
que h liberdade pura e uma nica regra: o que parece ao poeta ( , ).
Definio que logo se esclarece, dando-se uma razo (o poeta inspirado
e possudo pelas Musas) e vrios exemplos (cavalos voadores, proezas
de Zeus, o elogio de Agammnon, todos tomados da Ilada). A concluso
a que se chega que, se a histria adota alguma adulao desse tipo,
que outra coisa se torna seno uma espcie de poesia em prosa ( ),
privada da grandiloqncia () daquela, mas exibindo o que lhe resta
de assombroso (), desnudo da mtrica e, por isso, mais assinalado?
Portanto, continua Luciano, um grande (ou melhor: enorme) defeito
se algum no sabe separar o que da histria daquilo que pertence
poesia, introduzindo na primeira os adornos da outra: o mito, o
encmio e os exageros que neles h.5 Como se v, a poesia , de fato, o
pano de fundo contra o qual se define o que deve ser a histria, por
uma espcie de reduo, de delimitao, ou, dito de outro modo, o cnon
da poesia o critrio que permite distingui-la da histria, uma vez
que, pela via negativa, esta no pode obedecer dxa do
historiador.6
5 Hist. concr. 8. 6 Com efeito, a tendncia a definir o que a
histria no contraponto com a
poesia atravessa toda reflexo antiga. Assim, alm das famosas
passagens de
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A pura liberdade do poeta e o historiador 13
Afirmei que se trata de uma delimitao, pois, se verdade que o
historiador deve ser livre ao ponto de no se deixar levar pelo
elogio dos poderosos, no goza da liberdade pura ( ) do poeta.
Cumpre assim indagar: o que essa liberdade e por que se diz
pura? Antes de mais nada, preciso ter em vista uma questo de ordem
textual, relativa leitura de nesse contexto. Com efeito, os
manuscritos trazem , que a lio preferida por alguns editores.7 A
correo para , adotada por parte dos fillogos aps o sculo XVIII,8
foi feita por Mose Du Soul (Solanus), que, todavia, no chegou a
publicar o texto, mas deixou anotaes de variantes s margens de um
exemplar da edio Juntina,9 as quais foram consideradas por J. F.
Reitz, por sua vez, na edio que publicou em Amsterdam, no ano de
1743.10 Cada uma das duas opes implica em alguma diferena de
sentido: a) , derivado de (poder, fora), significa, em uso
absoluto, sem fora,11 ou, num sentido moral, desregrado, imoderado,
licencioso;12 b) , que pro-
Tucdides, 1, 22, e de Aristteles, Potica 1451 a, afirma Polbio
2, 56, 11-12: Os fins da histria e da tragdia no so idnticos, mas
contrrios: nesta, preciso, atravs de discursos absolutamente crveis
( ), aturdir e fascinar os ouvintes do tempo presente ( ); naquela,
preciso, atravs de aes e discursos verdadeiros ( ), para todo o
tempo, instruir e convencer quem deseja aprender ( ). Isso porque,
no primeiro caso, prevalece o crvel ( ), ainda que se trate de
mentira (), visando iluso () dos espectadores; no segundo, o
verdadeiro (), visando ao proveito () dos que gostam de aprender
().
7 Como Jacobitz 1887; Homeyer 1965, Macleod 1980 (este ltimo,
mesmo adotando uma posio conservadora com relao ao texto
transmitido pelos manuscritos, como em geral o faz, anota, todavia,
no aparato crtico, que a lio proposta por Du Soul provavelmente a
correta, por retomar as frmulas platnicas de Resp. 562d e Leg.
723a).
8 Assim, Fritzchius 1860; Sommerbrodt 1893; Kilburn 1959. 9
Publicada em Veneza, em 1535, por Luc-Antoine Junte, com texto
aos
cuidados de Antonio Francini. 10 Cf. Jacques Bompaire,
Introduction gnrale: Lucien, Oeuvres, tome I
(Paris 1993) CXXVIII-CXXX. 11 Cf. , velhice dbil, Sfocles, dipo
em Colono 1236. 12 Cf. , lngua desregrada, Aristfanes, Rs 837.
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14 Jacyntho Lins Brando
cede de (misturar), tem o sentido de puro, no misturado,13 do
que se desdobra tambm a acepo de violento, excessivo.14
Feita essa observao, a questo seguinte diz respeito
possibi-lidade de que Luciano tivesse em vista uma liberdade pura
(e no desregrada), na contraposio do historiador com o poeta. Ora,
no Hermtimo (um dilogo dedicado crtica aos filsofos e s escolas de
filosofia), afirma-se que os hipocentauros, quimeras, grgonas e
outras figuras semelhantes no passam de algo que sonhos, poetas e
pintores, sendo livres ( ), modelam (), coisas que jamais existiram
nem podem existir.15 Em Sobre as imagens (em que Luciano defende
seus mtodos de composio contra quem o acusa de bajular a
destinatria de Imagens), diz-se que, segundo antigo provrbio, os
poetas e pintores no tm de prestar contas a ningum, do mesmo modo
que o panegirista, pois o elogio livre ( ).16 Em Dilogo com Hesodo,
o antigo vate declara que o maior bem ( ) dos poetas a liberdade e
o poder de criar ( ).17 Portanto, num sentido geral, ser livre, sem
outra adjetivao, prprio da poesia, ou melhor, do poeta, qualidade
que este compartilha com o panegirista, os pintores e os sonhos.
Deve-se observar, todavia, que apenas em Como se deve escrever a
histria a liberdade do poeta recebe uma definio mais exata,
provavelmente para diferenci-la da liberdade do historiador: ele no
apenas livre (como o historiador), mas goza de uma liberdade
pura.
Observe-se que a expresso parece bastante rara: alm de em Como
se deve escrever a histria (se sua restituio no
13 Cf. , vinho puro, Odissia XXIV, 73, tambm aplicado ao
vinho em Herdoto I, 207 e Xenofonte, Anbase 4, 5; uso
transportado por Plato para um plano metafrico em , a justia pura
em face da injutia pura, Repblica 545 a.
14 Cf. , clera violenta (ou pura clera), Alcidamas, apud
Aristteles, Retrica III, 3, 2; , desejo imoderado (ou puro desejo),
Sfocles, fr. 678.
15 Herm. 72. 16 Pro imag. 18. 17 Hes. 5.
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A pura liberdade do poeta e o historiador 15
passo citado correta, como creio), registra-se em duas passagens
de Plutarco, a propsito de um mesmo fato (e remetendo ao mesmo
passo da Repblica de Plato). Trata-se da liberdade que Efialto,
diminuindo o poder do Arepago, serviu aos cidados: Um desses foi,
como se diz, Efialto, que diminuiu o poder do Conselho do Arepago
e, conforme a expresso de Plato, serviu liberdade, em abundncia e
pura, aos cidados ( ).18 A passagem da Repblica a que se remete
inclui--se no exame das constituies, marcando a transio da
democracia para a tirania, quando uma cidade democrtica, sedenta de
liberdade ( ), tem em seu comando maus escanes ( ) e, alm do que se
deve, se embriaga com ela pura ( ) isto : com liberdade pura ento,
continua Scrates, se os que governam no so extremamente doces ( ) e
no lhe concedem muita liberdade ( ), ela [a cidade] os acusa e os
castiga como criminosos e oligarcas. Nesse contexto, finalmente,
foroso que a liberdade se estenda a tudo ( ).19 Como se v, se a
expresso no se encontra tal qual em Plato por um mero detalhe
sinttico a utilizao do pronome em lugar do substantivo ( = ) no h
dvida de que essa a fonte onde Plutarco, declaradamente, e, segundo
meu ponto de vista, tambm Luciano, ainda que de modo implcito,
buscaram o sintagma e a concepo de uma liberdade pura. Ora, as
referncias cidade que se embriaga (), aos escanes () e ao de servir
o vinho () garantem--nos que se trata de metfora que tem como ponto
de partida o vinho que se bebe puro () ou temperado com gua
().20
18 Plutarco, Vidas paralelas, Pricles 7. 19 Plato, Repblica
562c-e. No entendo por que Bally d, como sentido da
expresso platnica, ao lado de libert absolue, tambm o de
justice. A traduo de Chambry , sem dvida, mais correta: libert
pure.
20 Minha opo pela lio corrigida, , tem em vista esses seus usos
por Plutarco e Plato, no sentido de liberdade pura, liberdade sem
mistura (que permitiria tambm a leitura enquanto liberdade
imoderada, excessiva, entendimento que possibilita igualmente).
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16 Jacyntho Lins Brando
Em A potica do hipocentauro tomei a pura liberdade como o
principal parmetro atravs do qual Luciano esclarece os princpios de
seu trabalho como escritor, defendendo que, na oposio com a
liberdade regrada de filsofos, retores e historiadores, ao que ele
visa estabelecer um espao para seu discurso ficcional. Contudo,
ainda que reconhecendo a grande influncia de Plato em sua obra, eu
no havia ento identifi-cado a passagem da Repblica de onde ele
retirou essa concepo. Para a compreender sua utilizao em Como se
deve escrever a histria, sem dvida o contexto poltico presente
tanto em Plato, quanto na remisso de Plutarco parece significativo,
uma vez que, do historiador, se exige que tenha, antes de tudo,
inteligncia poltica e capacidade hermenutica ( ),21 bem como que
seja algum
a quem no falte nobreza para pensar e falar, que tenha viso
aguda, seja capaz de agir na esfera prtica ( ), mesmo se em
desvantagem, tenha a mente de um militar ( ), mas unida com a
poltica ( ), e experincia de comando ( ).22
Aexpresso vertida pelos diferentes tradutores assim: Gilbertus e
Sambucus, libertas nullius alterius arbitrio subiecta; Talbot, une
libert absolue; Jacintho de So Miguel, alli he sem termo a
liberdade; Manoel de Santo Antnio, summa liberdade; Custdio de
Oliveira, liberdade sem termo; Kilburn, liberty is absolute;
Homeyer, uneingeschrnke Freiheit; Botella, la libertad es
incontenible; Canfora, la libert sfrenata. Para minha opinio
concorre ainda o fato de que (uma s lei) tambm se encontra em
Plato, Leis 874b: (ento, esta nica lei, para ns, seja o senhor).
Vale lembrar que Luciano trabalha extensamente com reminiscncias de
vocbulos e expresses, sendo considervel o nmero de suas citaes,
remisses ou aluses a Plato, inferiores apenas s relativas a Homero
(cf. F. W. Householder, Literary quotation and allusion in Lucian
(Columbia 1941) 41, em nmeros brutos, somam-se 488 quotaes, aluses
ou reminiscncias de Homero no corpus lucianeum, seguidas de 76 de
Plato, a segunda cifra mais alta; os outros autores que apresentam
nmeros elevados so, pela ordem, Eurpides e Herdoto, com 50
ocorrncias, Hesodo e Tucdides, com 46; os restantes tm menos de 20
registros. Observe-se que Householder no leva em conta que a
expresso dependa de Plato.)
21 Hist. conscr. 34. 22 Hist. conscr. 37.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 17
A imagem que Luciano faz, portanto, do historiador no a de um
estudioso de gabinete, mas de um homem de ao, o que aproxima sua
pespectiva da de Polbio, que, tomando como mote um outro postulado
famoso da Repblica, escreveu:
Com efeito, Plato diz que os assuntos humanos s iro bem quando
os filsofos reinarem ou os reis filosofarem. Eu, de minha parte,
diria que os assuntos da histria s iro bem quando os homens de ao (
) se ocuparem de escrever a histria no incidentalmente, como hoje,
mas por julgarem que se trata do que h de mais necessrio e mais
belo para eles, consagrando-se a isso, sem distrao, enquanto durar
sua vida ou ento quando os que se ocupam em escrever considerarem
que a experincia tirada das prprias aes ( ) necessria para a
histria. Antes disso, no ter fim a ignorncia dos historiadores (
).23
Est em causa, assim, uma sorte de aliana entre escrita e
pragmtica, que garante a vinculao da histria com a poltica, a
contra-pelo da tendncia que tanto Polbio quanto Luciano parecem
considerar geralmente dominante, ou seja, a transformao do
historiador em mero escritor ou sua aproximao do poeta. No creio
que as reminiscncias platnicas, nos dois casos, sejam fortuitas.
Com efeito, um dos funda-mentos mais constantes da crtica de Plato
a poetas e retores encontra-se no fato de que escrevem e falam
sobre o que no conhecem. Assim, no podem dizer nada de verdadeiro
ou til. Ora, se o objeto da histria a poltica, domnio em que os
conflitos e a guerra desempenham um papel preponderante, necessrio
que o historiador no seja inexperto nessa esfera, pois essa a
garantia de que venha a compor, com o verdadeiro, a histria justa24
tanto no sentido de que trate com iseno as partes
23 Polbio 12, 28. Ver comentrios em Homeyer (in Lukian, Wie
man
Geschichte schreiben soll (Mnchen 1965) 240 e 243-244): Polbio
qualifica seu modo de escrever a histria como aquele que se
concentra na contenda poltica (1,2,8 ).
24 O conceito de histria justa orienta toda a composio de Como
se deve escrever a histria, conforme declara o prprio Luciano no
eplogo da obra (Hist. conscr. 63): Assim, preciso que tambm a
histria seja escrita com a verdade ( ), visando esperana futura (
), mais que com adulao ( ), visando ao prazer dos presentes elogios
(
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
18 Jacyntho Lins Brando
envolvidas (no contraponto com a adulao), quanto, do ponto de
vista da diferena entre os gneros de discurso, que seja conforme ao
que a ela convm (em oposio ao que conveniente poesia). Assim,
signifi-cativo que Xenofonte seja chamado, por Luciano, de
historiador justo, ( )25 e apenas ele merea essa designao o que
pode ser motivado exatamente pelo fato de que comps a Anbase tendo
participado, como protagonista, da expedio cuja histria narra, ou
seja, trata-se de um exemplo de historiador que tambm um , no
sentido polibiano.
Isso no implica, todavia, que o historiador no possa manter
re-laes com o poeta, mas apenas que dele se distingue, na medida em
que este pode usufruir de liberdade pura. A pergunta mais coerente
parece ser, portanto, por que o primeiro no goza tambm de pura
liberdade, embora deva ser livre, sendo esta ltima exigncia um dos
motivos que estruturam o pensamento de Luciano, por constituir o
contraponto adulao, sempre relacionada com uma atitude servil.26
Para ser mais exato e raciocinar a partir da metfora do vinho: o
que, na histria escrita como se deve, se mistura ao vinho que o
poeta naturalmente bebe (e serve) puro? Noutros termos: do mesmo
modo que o vinho temperado com gua no deixa de ser vinho, tambm a
liberdade do historiador, porque temperada, no deixar de ser
liberdade mas trata-se ento de uma liberdade qualificada, cuja
compreenso cumpre buscar.
Voltemos, portanto, ao uso platnico. No estudo das transfor-maes
por que passa a cidade aristocrtica, governada pelo rei filsofo, a
sucesso leva, de uma constituio timocrtica, em que o valor supremo
so as honras, organizao oligrquica, quando ao desejo de honra
substitui a busca de riquezas, e, finalmente, plis democrtica, cujo
maior bem a liberdade.27 Cada um desses regimes se perde pelo
desejo
). A tens o cnon () e o prumo () de uma histria justa ( ).
25 Hist. conscr. 39. 26 Cf. Hist. conscr. 37 e 41. 27 A
liberdade , com efeito, um dos traos mais caractersticos do
regime
democrtico, de acordo com as prprias fontes gregas. Jos Antnio
Dabdab Trabulsi,
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A pura liberdade do poeta e o historiador 19
insacivel do bem que lhe prprio, ou seja, trata-se de uma
corrupo provocada no por elementos externos, mas pelo descontrole
de tendn-cias inerentes prpria cidade que escolheu, para si, como
maior bem, as honras, as riquezas ou a liberdade. assim que o
desejo descontrolado de liberdade provoca a doena da cidade e da
alma democrtica, fazendo com que a liberdade pura se estenda a
todos e a tudo: os que se sub-metem aos governantes so tratados
como servis e sem valor, enquanto se louvam e se honram, na esfera
privada e pblica, os governantes que se assemelham a governados e
os governados que parecem governantes; a liberdade penetra tambm
nas casas das famlias, levando a que o pai se acostume a tratar os
filhos como iguais e a tem-los, na mesma medida em que estes no tm
pelo pai nem respeito nem temor; o meteco e o estrangeiro se tornam
iguais ao cidado; o mestre teme e bajula o aluno; os jovens se
emparelham aos velhos, disputando com eles em palavras e aes,
enquanto os velhos imitam os mais novos para no parecerem
aborrecidos e despticos; escravos no so menos livres que seus
compra-dores; estabelece-se isonomia entre homens e mulheres;
finalmente, at os animais, como ces e cavalos, assemelham-se a seus
donos na busca de liberdade.28 Toda essa pintura tem como objetivo
descrever o que ocorre com a cidade democrtica quando os
governantes a embriagam com liberdade pura: transbordante de
liberdade ( ), nela a insolncia chamada de boa educao; a anarquia,
de liberdade; o deboche, de magnificncia; a falta de vergonha, de
coragem.29 Como as caractersticas da cidade correspondem s das
almas dos cidados, tudo
Participation directe et dmocratie grecque (Besanon 2006) 40-73,
arrola-a, ao lado de outros, como o primeiro dos aspectos
conceituais da democracia grega, consti-tuindo a seguinte seqncia,
fartamente exemplificada em autores sobretudo do perodo clssico: a)
liberdade; b) isegoria; c) igualdade; d) correspondncia entre
poltica interior e poltica externa; e) desejo de dominao
considerado como um dado natural; f) a cidade no como um territrio,
mas o conjunto dos cidados; g) sociabilidade baseada na idia de que
todos os cidados compartilham de um destino coletivo; h) conscincia
da separao entre as esferas pblica e privada, com garantia de que,
na ltima, o cidado goze tambm de liberdade; i) vinculao necessria
entre vida coletiva e poltica com cultura e civilizao.
28 Resp. 562 c-563 d. 29 Resp. 560 e.
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20 Jacyntho Lins Brando
se aplica tambm a estas, quebrando-lhes a temperana que decorre
do justo equilbrio entre suas partes. Mais ainda, so esses
transbordamentos que conduzem ao ltimo dos regimes polticos, a
tirania, ou seja, a pura liberdade termina por levar maior das
servides.30
curioso que, no contexto de tais consideraes, Scrates faa uma
digresso para declarar, a propsito dos poetas trgicos, que eles no
sero acolhidos na cidade [reta nem nas que a ela se assemelham],
posto que hineiam a tirania, acrescentando como, percorrendo as
outras cidades, reunindo a multido e dando como garantia belas
vozes, fortes e insinuantes, impulsionam os regimes para a tirania
e a democracia, de modo que recebem salrios e so honrados,
principalmente, como verossmil, pelos tiranos e, em segundo lugar,
pelas democracias; porm, quanto mais se elevam, na direo dos
regimes superiores, mais sucumbe sua glria, como se, por falta de
ar, ela no pudesse avanar.31 Embora se trate de uma breve digresso,
logo interrompida pelo prprio Scrates (mas ento, disse eu, com isso
samos da argumentao em curso),32 o fato de que Plato insira tal
considerao nesse ponto do exame significativo, tanto para recordar
como sempre tem relevncia seu embate com a poesia, quanto pela
vinculao do sucesso e da prpria existncia da poesia trgica com os
regimes tirnico e democrtico. Se, por um lado, ele pode ter em
vista o elogio da tirania presente em versos trgicos33 e,
30 Cf. Resp. 569 b-c: como parece, isso seria j o que se
concorda em chamar
de tirania () e, como se diz, o povo (), fugindo da fumaa de sua
escravizao por homens livres, ter cado no fogo do despotismo dos
escravos, trocando a vestimenta de toda aquela liberdade inoportuna
( ) pela indumentria difcil e amarssima da escravizao por
escravos.
31 Resp. 568 b-d. 32 Resp. 568 d. 33 A remisso e a crtica a
Eurpides, o qual, segundo Scrates, teria decla-
rado que os tiranos se tornam sbios na convivncia com os sbios (
, verso que, na verdade, pertenceria ao jax lcrio de Sfocles); mas,
logo em seguida, recorda Adimanto que o mesmo Eurpides chamara a
tirania de digna dos deuses, remetendo, portanto, a Troianas
1168-1170, em que Hcuba lamenta: se pois morresses pela cidade
depois de ter usufrudo da juventude,/ do casamento e da tirania
digna dos deuses,/ terias sido feliz, se h felicidade em algo disso
(
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 21
por outro, os benefcios que historicamente foram concedidos
pelos tiranos aos festivais de teatro em Atenas, num sentido mais
geral e consi-derando o contexto que nos interessa, o que se parece
sugerir quanto o poeta trgico depende do transbordamento de
liberdade que faz com que a democracia termine em tirania. Entendo
que existam, neste caso, duas vinculaes: de um lado, com a multido
que o poeta domina e qual o tirano tem de agradar, valendo-se ento
do auxlio do prprio poeta; de outro, com a liberdade desgovernada
da cidade democrtica, que permite at mesmo o elogio da tirania.
Ora, essa liberdade que se apresenta como ausncia de governo ()
e coaduna com o desejo de liberdade da multido que parece permitir
a Luciano retomar a expresso platnica para distinguir o que da
poesia do que compete histria. Ganha assim em interesse o fato de
que Como se deve escrever a histria se abra com o episdio do
espet-culo de Abdera, em que a grandiloqncia do poeta contamina o
pblico reunido no teatro, provocando uma doena intelectual
comparvel em-briaguez de liberdade da cidade democrtica, doena que
evidentemente perturba no s as mentes como toda a plis e instaura
um estado, ainda que s temporrio, de anarquia mental e poltica.34
provvel que a
, , ). Poder-se-ia lembrar tambm a fala de Etocles, em Fencias
524-525: se pois necessrio cometer injustia,/ o mais belo comet-la
pela tirania ( , ). No ser preciso observar que Plato deixa de lado
no s o contexto em que esses elogios da tirania so feitos, como
tambm que o prprio Eurpides, em outras ocasies, a critica (como,
por exemplo, em seu Hracles). O que se condena, todavia, que alguma
vez a tenha elogiado (mesmo falando pela boca de personagens em
estado de aflio).
34 Hist. conscr. 1-2: Sobre os habitantes de Abdera, na poca em
Lismaco reinava, dizem ter-se abatido uma certa doena, nobre Flon,
que era assim: no comeo, todos, em massa, ficaram com febre, logo
desde o primeiro dia violenta e persistentemente alta; no stimo
dia, alguns punham muito sangue pelo nariz e outros eram atacados
por um suor abundante, ficando livres da febre. Mas uma doena
ridcula tomava conta de suas mentes, pois todos ficavam loucos com
a tragdia, recitavam versos jmbicos e gritavam alto.
Principalmente, cantavam a monodia da Andrmeda de Eurpides,
declamavam a fala de Perseu alternadamente e a cidade ficou cheia
de todos aqueles atores trgicos de uma semana, plidos e magros, que
clamavam e tu, dos deuses e dos homens tirano, Eros e outras coisas
mais, com voz potente, o que durou muito tempo, at que, chegando o
inverno e fazendo muito frio, pararam com essa lengalenga. Causa
disso me parece ter sido o ator trgico
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
22 Jacyntho Lins Brando
grandiloqncia da chusma de historiadores das guerras prticas
tambm vise a contaminar seus ouvintes em audies que tm muito de
espeta-cular, o que se poderia entender em dois sentidos: o
primeiro, movendo o pblico em favor dos vitoriosos romanos, por
meio dos elogios desme-didos; o segundo, pretendendo conquistar-lhe
a admirao, com a exibio de uma destreza potica que leva tais
historiadores intem-perana, a abusar de recursos que, admitidos na
poesia, so incompatveis com a histria. Acrescente-se que, assumindo
de modo tosco a liberdade pura que se concede ao poeta, adotam
eles, na verdade, uma atitude servil, quer em face dos poderosos,
quer com relao aos ouvintes. Ou seja: desprezam justamente a
liberdade que deles se requer e que no nem pode ser uma liberdade
pura, ilimitada e anrquica liberdade que revela ento fronteiras
bastante precisas, tanto no que diz respeito ao contexto em que a
histria se apresenta, quanto, em conseqncia, ao modo como se
escreve.
Com relao ao primeiro aspecto, o texto no poderia ser mais
contundente, pois a maioria dos historiadores de hoje em dia,
afirma-se, cuida de seu prprio interesse e da utilidade que possa
esperar da histria.35 Esse utilitarismo interesseiro dos que a
escrevem que pe a perder sua autntica utilidade: ela deve ser uma
aquisio para sempre, mais que uma pea de concurso, voltada para o
presente declara Luciano, autorizando-se em Tucdides de modo que,
se alguma vez,
Arquelau, ento famoso, que, no meio do vero, no maior calor,
representou para eles a Andrmeda, de modo que a maioria comeou a
ter febre sada do teatro e, levantando-se no dia seguinte,
escorregaram para o interior da tragdia: Andrmeda ficou grudada sua
memria durante muito tempo, enquanto Perseu, com a Medusa, voejava
em torno da mente de cada um. A fim de, como dizem, comparar isto
quilo, a doena de Abdera tambm agora sobreveio maioria das pessoas
cultas, fazendo-as no recitar tragdias (pois assim, com jambos
alheios, delirariam menos, no se deixando contaminar por coisas
medocres), mas, a partir do momento em que a presente situao se
instalou a guerra contra os brbaros, o desastre na Armnia e as
contnuas vitrias no h ningum que no escreva a histria. Mais ainda,
todos se nos tornaram Tucdides, Herdotos e Xenofontes e, como
parece, sem dvida era verdadeiro o dito de que a guerra pai de
tudo, j que ela fez brotar tantos historiadores com um s
assalto.
35 Hist. conscr. 13.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 23
de novo, acontecerem coisas semelhantes, se poder, diz ele,
consul-tando-se o que foi escrito antes, agir bem em relao s
circunstncias que se encontram diante de ns.36 Dito de outro modo:
o interesse de momento do historiador ope-se frontalmente utilidade
futura que deve ter a histria escrita no presente.
Assim, prescreve-se, antes de tudo mais, que ele seja livre de
esprito e no tema ningum, nem espere nada, a fim de que no se
iguale aos maus juzes que, por favor ou dio, julgam em vista da
re-compensa.37 Deve ele ser livre no para criar fices, mas para
dizer o que se passou. Se a liberdade pura que embriaga o poeta lhe
permite tudo no af de compor um discurso prazeroso, a liberdade
sbria do historiador visa a no impedi-lo de escrever com justeza.
Do ponto de vista de como a histria se deve escrever, tendo sempre
como pano de fundo a liber-dade pura do poeta, o que compete a ela
misturar, como a gua ao vinho, sem dvida o senso de sua utilidade.
Com efeito, afirma-se claramente:
quantos julgam dividir a histria em dois, o prazeroso e o til, e
por isso introduzem nela tambm o encmio como algo prazeroso e
agra-dvel para os ouvintes, vs o quanto se desviam do verdadeiro?
Em primeiro lugar, por utilizar uma falsa diviso, pois um s o
produto da histria e sua finalidade: o til o que apenas a partir do
verdadeiro se alcana.38
No se nega que a histria deva provocar tambm algum prazer, mas
pretende-se que o prazeroso acompanhe o til, como a beleza ao
atleta, e no o inverso uma perspectiva que no deixa de representar
uma sorte de conflao entre as posturas de Plato e Tucdides. Antes
de tudo, porque para ambos a poesia se encontra voltada para o
prazer e inteiramente regulada por ele, sendo por isso que, para o
primeiro, so justamente as passagens em que mais se percebe a
destreza de Homero que devem ser obliteradas, no por no serem
poticas e agradveis de ouvir para a maioria, mas porque quanto mais
poticas (), menos devem ser ouvidas por crianas e homens que
precisam ser
36 Hist. conscr. 42. 37 Hist. conscr. 38. 38 Hist. conscr.
9.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
24 Jacyntho Lins Brando
livres39 ponto de vista que se expressa tambm, a seu modo, na
afirmao do segundo de que no se deve dar crdito a Homero, pois,
sendo poeta, ele naturalmente embelezou [a guerra de Tria] para
engrandec-la.40 Se, de um lado, isso mostra como tanto antigo o
diferendo entre filosofia e poesia,41 quanto entre esta e a
histria, pela simples razo de que, gozando a poesia de precedncia
temporal, as duas outras, para instituir-se, tiveram de acertar
contas com ela, a fim de delimitar os respectivos espaos, por outro
lado percebe-se tambm que essa disputa revela que nem o filsofo (ao
estilo platnico) nem o historiador (tucididiano) se vem como
absolutos antpodas do poeta, o que seria uma soluo fcil. Em ltima
instncia, o que ambos pretendem substitu-lo (sobretudo a Homero)
como algum que tem algo a ensinar cidade (e por isso Plato e
Tucdides se movem no mesmo espao das questes que levanta a plis
ateniense, mesmo que o primeiro parea desconhecer, talvez
intencionalmente, o segundo).42 essa finalidade que faz tanto da
filosofia quanto da histria algo antes de tudo til, mas no til em
qualquer sentido, seno do ponto de vista poltico.
Ora, como vimos, Luciano afirma que a utilidade da histria
apenas a partir do verdadeiro se alcana ( , , ). Assim, o
verdadeiro poderia ser o elemento que, misturado liberdade pura do
poeta, delimitaria a liberdade temperada do historiador. De fato,
no se pretende abolir totalmente o prazeroso da histria, do mesmo
modo como Plato, na Repblica, no proscrevera da cidade reta toda e
qualquer poesia, mas determinara que, nela, ao lgos que deve seguir
a harmonia, do mesmo modo que msica que deve seguir a ginstica.
Tambm Tucdides no rejeita de todo os relatos fabulosos transmitidos
por poetas e loggrafos, que visavam apenas a engrandecer os fatos e
a torn-los
39 Plato, Resp. 387 b. 40 Tucdides I, 10. 41 Plato, Resp. 607 b.
42 Para essa perspectiva, ver Marie-Laurence Desclos, Aux marges
des
dialogues de Platon (Grenoble 2003).
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A pura liberdade do poeta e o historiador 25
mais atraentes para o auditrio, mas pesquisa neles alguma
verdade (que no pode ser comprovada), controlando a tradio recebida
atravs de uma certa metodologia.43 Em ambos os casos, como em
Luciano, trata-se de prover uma ordenao capaz de controlar a
anarquia que o poeta admite, fazendo com que, na histria,
quanto ao prazeroso, o melhor se acompanha aquele [o til], como
a beleza ao atleta. Todavia, se isso no acontece, nada impedir que
Nicstrato, filho de Isdoto, por ser nobre e mais valoroso que cada
um de seus adversrios, se torne um sucessor de Hracles, ainda que
fosse fessimo de aspecto e tivesse disputado com o belo Alceu de
Mileto (que, conforme dizem, era o amado de Nicstrato). Assim, a
histria, se alm do mais se ocupa de passagem com o prazeroso, pode
atrair muitos amantes, mas, at que tenha atingido sua finalidade
prpria digo: a publicao da verdade ( ) se preocupar pouco com a
beleza ().44
preciso refletir sobre a funo do verdadeiro e da publicao da
verdade, do ponto de vista da utilidade da histria. De fato, a
verdade tem um sentido instrumental para que se atinja uma histria
justa. No se pode, portanto, reduzir a histria ao verdadeiro, ainda
que uma histria justa seja verdadeira e no admita a menor das
mentiras. Mentir, com efeito, o que mais se destaca no rol de
ousadias permitidas ao poeta: os bons poetas so , isto , num
sentido positivo (e com ressonncia do uso homrico de ),
resolutssimos, cheios de coragem, ou, negativamente, audaciosos,
atrevidos, capazes de tudo. A crer-se no que se afirma no Hermtimo,
a v (audcia, atrevimento) do poeta no tem limites, desde que se lhe
d trela:
se um desses poetas atrevidos () disser que houve uma vez um
homem com trs cabeas e seis mos, e se tu, logo de incio, aceitares
a coisa por inrcia (), sem examinares a fundo se isso possvel ( ),
mas, pelo contrrio, lhe deres crdito (), ele poder, desde logo, ir
acrescentando tudo o mais que da resulte ( ): que o dito homem
tinha tambm seis olhos, seis orelhas, emitia simultaneamente
43 Tucdides I, 20-21. 44 Hist. conscr. 9.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
26 Jacyntho Lins Brando
trs sons de voz, comia com trs bocas, tinha trinta dedos,
diversamente de qualquer de ns, que tem dez em ambas as mos; e se
tivesse de ir guerra, trs das mos seguravam, respectivamente, um
escudo ligeiro, um escudo oval e um escudo redondo, enquanto, das
outras trs, uma brandia uma acha, outra arremessava uma lana, e
outra usava uma espada. E quem que depois duvidaria das suas
palavras ( )? Na verdade, elas esto conformes com o princpio ( ) e
a respeito deste que se impunha verificar (), desde logo, se havia
que aceit-lo e admiti-lo como vlido.45
Como se v, a idia principal (que no Hermtimo se aplica
filosofia) a de conseqncia (): dado um princpio (), tudo dele se
deduz.46 Assim, se um poeta, sendo livre, plasma () hipocentauros,
quimeras e grgonas, coisas que jamais existiram nem podem
existir,47 ento tudo ele pode, pois sua liberdade no tem mescla e o
mais ser conseqncia do princpio.
Observe-se que um termo raro, cujos usos ante-riores a Luciano
se reduzem a Flvio Josefo e Apiano, em ambos os casos com sentido
positivo (o de corajoso), no campo da poltica: Apiano, por exemplo,
referindo-se a Pirro e Cipio, afirma que no possvel encon-trar
pessoas mais corajosas que estes reis.48 No sculo segundo, a outra
ocorrncia, numa esfera teolgica e tambm com sentido positivo,
encon-tra-se em Irineu,49 enquanto Jlio Plux no mais que registra o
vocbulo,
45 Herm. 74. (Traduo de Custdio Magueijo) 46 Aristteles, Potica
1460 a, j reconhecia a funo desse princpio na
poesia: Foi principalmente Homero quem ensinou () os outros
[poetas] a dizer mentiras como se deve ( ): isso o que constitui o
paralogismo (). Pois julgam os homens que, uma vez que exista algo,
algo existe ou vem a existir, e, se o seguinte existe, tambm o
anterior existe ou vem a existir ( , , ). Nas Refutaes sofsticas V,
167 b, se d o seguinte exemplo de paralogismo: j que depois de ter
chovido a terra fica molhada, caso a terra esteja molhada, ento
conclumos que choveu. Mas isso pode ser falso.
47 Herm. 72. 48 Apiano 40, 1:
. As ocorrncias em Flvio Josefo encontram-se em Antigidades
judaicas 5, 118 e 6, 347.
49 Irineu 1, 7.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 27
sem maiores comentrios, dentre os derivados de -. Nesse
con-texto, as quatro ocorrncias em Luciano (alm de no Hermtimo,
tambm em Alexandre, Pseudologista e Como se deve escrever a
histria) so nu-mrica e qualitativamente significativas, com o
adjetivo sendo utilizado sempre num sentido pejorativo: Alexandre e
disso de-corre que tenha tudo ousado em busca de poder, dinheiro e
fama;50 por seu turno, a personagem que se ataca no Pseudologista
no que diz ( ), no que se assemelha, significativa-mente, ao
historiador Teopompo, uma vez que ambos incorrem em canhestros
atrevimentos verbais.51 J o prprio Luciano afirma, em Como se deve
escrever a histria, que por no ser que no escrever uma histria da
guerra dos romanos contra os partos, numa certa medida para no
correr o risco de sucumbir a falhas semelhantes s que percebe nos
outros historiadores, os quais, deduz-se, se distinguem por
serem-no em larga medida.52 Num certo sentido, portanto, Luciano
faz uma opo pela mediocridade, ou seja, escrevendo seu tratado quer
ele preservar uma postura comedida, do mesmo modo que acredita que
o
50 Alex. 8: Como era de se esperar de dois homens pssimos
(),
muito ousados () e muito dispostos a fazer o mal ( ), unidos
para um mesmo fim, facilmente compreenderam que a vida dos homens
governada por estes dois enormes tiranos, a esperana e o medo, e
que aquele que for capaz de usar cada um deles para o que lhe convm
enriquecer rapida-mente, pois viam que a ambos, ao que teme e ao
esperanoso, o conhecimento do futuro altamente necessrio e
almejado, e por isso Delfos foi rica e cantada no passado, assim
como Delos, Claro e Branquidas, j que os homens, por causa dos
tiranos que eu disse, a esperana e o medo, sempre indo e vindo aos
santurios, precisam saber de antemo o futuro e, por isso,
sacrificam hecatombes e consagram lingotes de ouro. Discutindo e
revirando esse assunto entre si, decidiram fundar um santurio
proftico e um orculo, pois, se isso lhes sasse bem, tinham esperana
de logo virem a ser ricos e prsperos _ o que lhes sucedeu mais do
que esperavam e se mostrou melhor do que suas primeiras
expectativas. (Trad. de Daniel Gomes Bretas)
51 Pseud. 29: Quem seria assim atrevido nas palavras ( ), a
ponto de, em vez de um punhal, pedir um tridente contra os trs
adlteros? Teompompo, que (...) dizia ter demolido ele prprio as
proeminentes cidades com um relato de trs pontas ( ) e, de novo,
ter batido com um tridente na Grcia e ser um Crbero nas palavras? (
)
52 Hist. conscr. 4.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
28 Jacyntho Lins Brando
historiador deve ser apenas mediano, na contraposio com a
ousadia do poeta.53
verdade que Luciano sabe usar da liberdade pura do poeta, como
se dissesse, maneira de Arquimedes: d-me um ponto de apoio e eu
le-vantarei o mundo. O pressuposto de Narrativas verdadeiras, sua
experi-ncia mais atrevida, efetivamente este: para no ser o nico a
no gozar da liberdade de contar estrias ( ) e j que no tinha nada
de verdadeiro para historiar ( ), para a mentira me voltei, muito
mais generosa que as outras, pois nisso sou verdadeiro: dizendo que
minto. Sendo assim, continua ele, escrevo pois sobre coisas que no
vi, nem experimentei, nem soube de outros, mais ainda, que nem
existem de todo ( ), nem, por princpio, podem vir a existir ( ).54
Posto esse princpio, o relato est autorizado a desdobrar-se em todo
tipo de ousadias: a viagem lua, seus habitantes que se alimentam de
fumaa, tm olhos desenroscveis e nascem de rvores de carne em forma
de pnis; a estada no interior da baleia, com sua populao e guerras;
a visita Ilha dos Bem-aventurados, a convivncia com poetas,
filsofos e heris mortos, especialmente as conversas com Homero
sobre seus poemas e assim por diante. Esse mesmo princpio que lhe
permite tambm compor dilogos dos mortos e dos deuses, fazer com que
Menipo narre suas viagens aos cus e ao Hades, pr a descrio das
vrias vidas de Pitgoras na boca de um galo que a derradeira
encarnao do filsofo. A alavanca que lhe permite assim mover o mundo
, sem dvida, o princpio da liberdade pura o qual, todavia, ele
utiliza de modo dife-rente do que em geral se faz, na medida em que
se dedica pardia dos antigos poetas, historiadores e filsofos, que
escreveram muitas coisas espantosas e fabulosas,55 ou seja, sua
ousadia no gratuita, mas tem
53 Esse , em geral, o ponto de vista de Fabienne Dumontet em La
thorie de
la mdiocrit chez Lucien de Samosate et sa fortune au XVIe sicle:
Emmanuel Naya et al., loge de la mdiocrit (Paris 2005) 121-134, que
leva em conta principalmente a recepo de Luciano por Rabelais.
54 V. H. I, 4. 55 V. H. I, 2.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 29
sempre uma inteno de segundo grau: Homero o modelo de psedos a
seguir e sobre o qual construir seja a estrutura fantstica, sejam
os detalhes da fico literria56 noutros termos, Homero o poeta por
excelncia e, assim, o contraponto da temperana que se espera do
historiador.
Esse princpio pardico importante tambm para que se com-preenda o
estatuto de Como se deve escrever a histria como obra paralela
talvez melhor: parasitria com relao histria (que Luciano se recusa
a escrever, por recusar igualmente, neste caso, ser atrevido).
Assim, do mesmo modo que no se poderia acus-lo de ser quando se
volta para o que no existe nem poderia existir (logo, para o
inverossmil), pois no o faz ingenuamente e tem sempre em vista,
como limite (e tempero), os textos que parodia, igualmente Como se
deve escrever a histria, composto em vista das obras sobre as
guerras prticas que circulam pelos sales da Acaia e da Jnia, tem
como hori-zonte um mundo de histrias e historiadores, presentes e
passados. Note--se bem a partilha: conforme Aristteles, a histria
se ocupa do que aconteceu ( ) e a poesia do que poderia acontecer (
);57 Luciano d um passo alm, em Das narrativas verdadeiras e outras
obras, tratando de coisas que no poderiam acontecer ( ). Na
partilha entre o verdadeiro, que cabe histria, e o verossmil, que
cabe poesia, a fico de Luciano busca o inve-rossmil, bastando que
lhe seja dado um princpio (uma v), o qual ele encontra justamente
nos relatos do Ulisses homrico aos fecios.58 No se trata
propriamente de situar a experincia odisseica no campo do
inve-rossmil, mas antes de afirmar que a ultrapassagem do limite do
veros-smil s se faz tendo-se como referncia as narrativas
verossmeis.59
56 Alberto Camerotto, Le metamorfosi della parola (Pisa-Roma
1998) 187. 57 Aristteles, Potica 1451 b. 58 V. H. 3. 59 Uma
detalhada abordagem de Narrativas verdadeiras foi feita por
Mara
del Carmen Cabrero, La ficcionalidad fantstica de las Narrativas
verdaderas de Luciano de Samsata (Baha Blanca 2004), o que
constitui o trabalho mais recente e completo a esse respeito.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
30 Jacyntho Lins Brando
dessa forma tambm que a verossimilhana do poeta fornece, no lado
oposto, o critrio e a medida da verdade da histria: comparar o
imperador romano a Aquiles e o rei persa a Tersites um mau
princpio, donde s pode decorrer que, com um nico grito, o
comandante romano Prisco tenha podido matar uma chusma de
inimigos.60 Se a liberdade que a verossimilhana confere permite que
o poeta embriague seus ouvintes, o passo seguinte, constitudo pelo
inverossmil, pe os recebedores sob uma absoluta tirania, pois
obriga a que abram mo de qualquer controle sobre o discurso. No
outro extremo, cabe tambm ao recebedor pelo menos queles que mais
se deve ter em conta um controle importante, que no deixa de levar
em considerao, por igual, a verossimilhana da narrativa, o que em
outro estudo chamei de uma sorte de limite mimtico
60 Cf. Hist. conscr. 14: Pois ento eu exporei tambm quanto me
recordo de
ter ouvido, h pouco, na Jnia, de certos historiadores e, por
Zeus! tambm na Acaia, ainda ontem, dos que narravam a mesma guerra.
Pelas Graas, que ningum duvide do que se dir, pois verdadeiro e eu
poderia jurar, se fosse usual acrescentar um juramento a um
tratado. Um deles comeou logo pelas Musas, invocando as deusas a
fim de que o ajudassem em seu escrito. Vs como esse um princpio
apro-priado, na medida para a histria e adequado a tal tipo de
discurso? Ento, avanando um pouco, comparava o nosso comandante com
Aquiles e o rei dos persas com Tersites, ignorando que esse seu
Aquiles se sairia melhor se matasse um Heitor em vez de um Tersites
e se, quando diante dele fugisse algum nobre, o perseguisse outro
muito melhor. Ento introduzia um encmio de si mesmo, para mostrar
como era digno de escrever aes assim brilhantes. J em curso,
elogiava sua ptria, Mileto, ajuntando que fazia isso melhor que
Homero, que para nada se recordara da ptria. Enfim, no final de seu
promio, prometia, em termos precisos e com clareza, engran-decer os
nossos e vencer ele prprio os brbaros, quanto lhe fosse possvel.
Tambm Hist. conscr. 20: Com efeito, pela falta de vigor para com as
coisas teis ou pela ignorncia do que preciso dizer que se voltam
para tais descries de lugares e cavernas e, quando se deparam com
feitos mltiplos e grandes, assemelham-se a um servial h pouco
enriquecido, por ter herdado a fortuna do patro: ele no sabe nem
como deve portar a vestimenta, nem como comer com bons modos, mas,
com todo nimo, tendo com freqncia diante de si aves, porcos e
lebres, empanturra-se de pur de legumes e carne defumada at
arrebentar de comer. Esse ento de que falei antes tambm descreve
ferimentos de todo incrveis e mortes estranhas, como a de algum
que, ferido no dedo do p, logo morreu, ou como, com um s grito de
Prisco, o general, pereceram vinte e sete inimigos. Mente ele ainda
com relao ao nmero de mortos, exagerando o que se encontra escrito
nas cartas dos comandantes. Assim, em Europo morreram setenta mil
duzentos e trinta e seis inimigos e, dentre os romanos, s dois,
havendo mais nove feridos. No sei como algum sensato pode agentar
uma coisa dessas!
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 31
prprio da histria, o qual acaba por constituir indcio de sua
verdade e cujo trao principal seria o senso de medida, de mediania,
o meio termo que, afinal, o que torna crvel o verdadeiro.61
Com efeito, Camerotto resume assim a partilha lucinica entre
poesia e histria:
poesia: histria:
ritmo prosa
linguagem potica linguagem tcnica
falso/incrvel verdadeiro
agradvel til
encanto/seduo racionalidade,
acrescentando ainda que toda forma de mxis [mistura] com a
poesia no interior do texto histrico no pode ser seno negativa e
suscita o rid-culo, ou melhor, uma reao que no aquela a que visa o
historiador.62 Essa postura coaduna com o senso agudo que Luciano
demonstra (e para o qual chamei a ateno em A potica do
hipocentauro) relativamente distino entre os vrios gneros de
discurso. Na verdade, no apenas esse senso das diferenas, como
tambm a teorizao sobre as mesmas mostram-se indispensveis para seu
prprio projeto literrio, cujo trao principal se encontra justamente
no exerccio de romper com as fronteiras de gnero tradicionais,
mesclando prosa e verso (na linha da menipia), o srio e o cmico (no
que se chamava de ), o alto e o baixo, etc.
Seria todavia necessrio admitir tambm, o que seria mais digno de
ser aqui destacado, que ele processa ainda a uma mescla entre o
agra-dvel e o til, como no prlogo de Das narrativas verdadeiras
fica
61 Aristteles, Potica 1460 a, afirma que, na poesia, preciso
preferir o
impossvel verossmil mais que o impossvel incrvel ( ). Ou seja, o
verossmil (o que poderia acontecer) prevalece sempre tanto sobre o
inverossmil (o que no poderia acontecer), quanto sobre o verdadeiro
(o que aconteceu).
62 Camerotto, Op. cit., 131.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
32 Jacyntho Lins Brando
explicitado: o livro tem como finalidade o descanso das leituras
srias, algo indispensvel para o intelectual tanto quanto a pausa
nos exerccios o para o atleta, de modo que o homem culto encontrar
em seu escrito no apenas o riso cmico, mas tambm achados que no so
desprovidos de musas e, por acrscimo, se referem de modo cifrado a
outros textos dos antigos poetas, historiadores e filsofos. Num
certo sentido, portanto, o leitor que se diverte e descansa no
deixa de dar seqncia a sua ilus-trao, sobretudo se for, como parece
que Luciano deseja, algum novo poeta, historiador ou filsofo, em
suma, uma pessoa cultivada (um -). O jogo entre os gneros assume
assim um papel importante e essas narrativas (supostamente)
verdadeiras, no s de modo implcito, mas explicitamente,
diferentemente do que geralmente acontece, a ele se referem. Alm de
todas as marcas de verossimilhana com que Luciano povoa seu espao
inverossmil, como medidas exatas, contagem de dias e descries
criteriosas, a par da preocupao em expressar o receio de que, com
relao s coisas mais incrveis, o leitor pense que est mentindo, em
algumas passagens ele no se furta a corrigir Homero, que descurara
de ser to exato quanto os historiadores: ao tratar, por exemplo, da
Cidade dos Sonhos, observa que, antes de tudo, quero falar da
cidade, j que nenhum outro escreveu sobre ela, e o nico que dela se
lembrou, Homero, no muito exatamente a descreveu ( ).63 Portanto,
tratar um tema da poesia com o rigor da histria, reescrever
(ironicamente) Homero na clave de Tucdides.
Ora, esse senso agudo da distino entre os gneros uma marca forte
em toda a produo de Luciano e permite-lhe tanto enveredar pela
explorao das formas mistas, quanto teorizar sobre as puras. Seu
esforo na distino entre histria e poesia no deixa de ser algo
semelhante ao pretendido por Plato, que, com a exposio das cinco
constituies que se sucedem, visa a surpreender a justia pura e a
pura injustia, separando o que se apresenta normalmente
mesclado:
63 V. H. II, 32.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 33
Portanto, se as cidades so cinco, tambm as disposies das almas
dos indivduos seriam cinco. (...) J percorremos aquele que
semelhante aristocracia, o qual dizemos ser tanto bom, quanto
justo. (...) Ento, porventura no ser preciso percorrer o que vem
depois disso, os que so piores? o amante das vitrias e das honras,
conforme a constituio lacedemnica, em seguida o oligrquico, tambm o
democrtico e o tirnico, a fim de que, vendo o mais injusto, o
oponhamos ao mais justo e alcance seu fim nossa pesquisa sobre como
a justia pura ( ) em face da injustia pura ( ) age com relao
felicidade do que a tem e da sua infelicidade, a fim de que,
persuadidos por Trasmaco, persigamos a injustia, ou, pelo discurso
que antes se mostrou, a justia?64
nesse mesmo espao mental que acredito que Luciano se move e nele
que tem sentido tomar a liberdade pura como o trao mais desta-cado
da poesia. Assim, ao esquema de Camerotto seria necessrio
acres-centar pelo menos mais uma oposio entre a liberdade pura do
poeta e a liberdade temperada do historiador donde, acredito, tudo
mais decorre. Dizendo de outro modo, os vrios recursos, em
diferentes gneros, produzem efeitos diferentes, o principal deles
sendo isto: o fictcio, importante trunfo para que a poesia atinja
seus objetivos, na histria converte-se em mera adulao, enquanto o
verdadeiro, por sua vez, implica em iseno, logo, em justia.
Portanto, o positivo, num caso, revela-se negativo, no outro, o que
nos permitiria propor um novo quadro de equivalncias:
poesia/encmio: histria: fictcio ()
x adulao ()
x verdadeiro () justo ()
O que pretendo sublinhar so relaes cruzadas, para que se explore
o esquema de variados modos. De incio, no sentido vertical,
encontramos duas sries de oposies: a) no campo da poesia (e do
encmio), possvel recorrer tanto ao verdadeiro quanto ao fictcio,
ambos sendo desprovidos de seu valor tico em vista da liberdade
pura do
64 Plato, Resp. 545 a-b.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
34 Jacyntho Lins Brando
poeta: assim, Homero, embora poeta, verdadeiro com relao ao que
narra sobre Aquiles (segundo crem alguns), pois no teria razo de
ser movido pelo desejo de adul-lo, j que escreve depois da morte de
seu heri, mas nem por isso se torna historiador (ainda que, com
relao a isso, sirva de modelo para este);65 b) a distino
equivalente, no campo da histria, faz-se entre a adulao e o justo,
no permitindo a liberdade limitada do historiador que ele se valha
da primeira, pois com isso no se tornar poeta e deve estar
inteiramente voltado para a composio de uma histria justa. Mas no
tudo: explorando as equivalncias em sentido horizontal, verificamos
que: a) o fictcio, de que a poesia pode lanar mo em nome dos
efeitos estticos, na histria equivale adulao, atitude eticamente
condenvel; b) por seu lado, o verdadeiro, possvel poesia, na
histria corresponde ao justo, pois no s verdade, de uma forma
idealizada, que ela visa, mas a essa verdade pragmtica (e, no campo
das representaes, mimtica), que d a cada parte aquilo que lhe cabe.
Finalmente, em termos das relaes transversais, o fictcio se ope ao
justo do mesmo modo que o verdadeiro adulao. Por isso a conside-rao
da poesia funcional para que se saiba o que deve ser a histria e
como ela, em geral, se escreve: deveria escrever-se com o
verdadeiro, para ser justa, mas geralmente se escreve com o fictcio
(que, no campo da tica, no passa de falsidade e mentira), porque
assume objetivos e registro encomisticos. A mescla de outras
caractersticas, na linha do apontado por Camerotto, entendo que
disso decorre, pois cada esfera conta com intenes, recursos e
efeitos que lhe so prprios. Na poesia, respectivamente, o agradvel,
a linguagem metrificada e conotativa, visando seduo do ouvinte; na
histria, o til, a prosa denotativa, com apelo inteligncia (o que eu
creio que se diria melhor como o carter educativo que a histria tem
com relao aos acontecimentos futuros).
Com efeito, o que mais costuma chamar a ateno da crtica
(sobretudo da parte de alguns dos historiadores modernos, como
Finley,66 mas tambm de teorizadores da literatura, de que Lima
serve de
65 Cf. Hist. conscr. 40. 66 Finley, Op. cit., 4.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 35
exemplo)67 a importncia que Luciano atribui forma, levando a que
se reduza Como se deve escrever a histria a um tratado de retrica,
sem importncia para a historiografia. Essa posio decorre de uma m
com-preenso da historiografia antiga, a qual no se separa de outros
gneros de discurso como uma disciplina parte, em que o estilo seja
algo de importncia secundria, integrando ela, pelo contrrio, esse
amplo espectro da produo em prosa em que se situam tambm a oratria
poltica, jurdica e epidtica, a sofstica, a filosofia, os relatos de
viagem, a paradoxografia, o romance e todas as formas de
logografia. Ressalta, em geral, o quanto histria e retrica jamais
deixaram de cultivar relaes estreitas desde a origem: desde os
tempos de Tucdides pontua Norden os historiadores eram de formao
retrica e, vice-versa, os retores, a partir de Iscrates, se
compraziam em tratar de temas histricos.68 Isso explicaria, em
parte, a importncia que os discursos assumem nos relatos um
elemento to indispensvel que seu tratamento merece, da parte de
Tucdides, o famoso esclarecimento de ordem metodolgica:
De quanto foi dito em discursos () por cada um, a ponto de
entrar em guerra ou j estando nela, era difcil recordar a exitado
() de cada palavra, tanto para mim, quando eu prprio as escutei,
quanto para os que me informavam a partir de alguma outra fonte.
Como me parecia (ejdovkoun) que cada um teria falado o que devia
sobre a situao do momento ( ), atendo-me o mais prximo possvel ao
sentido geral do que foi verdadeiramente dito (tw'n ajlhqw'"
lecqevntwn), assim que tudo se dir. Quanto aos feitos realizados na
guerra, decidi escrever no recolhendo informaes junto de qualquer
um, nem como me pareciam ser, mas os que eu prprio presenciei,
tendo ainda checado cada um deles, com a maior exatido possvel,
junto de outros.69
Essa declarao atende tanto s exigncias de explicitao do m-todo,
como prprio do historiador (o que o distingue do poeta), quanto
67 Lima, Op. cit., 96-98. 68 Eduard Norden, La prosa artstica
griega de los orgenes a la Edad
Augustea (Mxico 2000) 114; inmeros e instrutivos exemplos se
encontram ainda nas pp. 107-134.
69 Tucdides I, 22.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
36 Jacyntho Lins Brando
vai ao encontro das expectativas de seu pblico: se a ausncia do
fabuloso () pode parecer desagradvel, o interesse em examinar com
clareza ( ) o que aconteceu garante a utilidade () da obra. Assim,
recusa-se um certo tipo de composio, a pea para um concurso, a ser
ouvida de momento ( ), em nome de uma aquisio para sempre ( ).70 No
se trata, contudo, de negar que haja um estilo prprio da histria, o
qual recobre tanto a narrao dos feitos, quanto a apresentao dos
discursos pelo menos se ela se escreve como se deve. A regra
principal est no que Norden denomina o princpio da uniformidade,
que leva a que os historiadores reproduzam tanto os discursos,
quanto os docu-mentos e as cartas, com suas prprias palavras e no
tais quais:71 o mesmo princpio da uniformidade continua ele que
proibia que o escritor antigo entretecesse, sem mais razes, em seu
texto, citaes de versos, vedando-se ainda que se valesse de citaes
sem um objetivo particular ou que fossem demasiado extensas e,
enfim, que se inse-rissem notas ao texto, que so uma inveno de
nossos sculos carentes de estilo.72
No caberia, portanto, pretender que Luciano se tenha interessado
apenas pelos aspectos retricos da histria, o que equivaleria a
dizer por sua forma, sem cuidar do contedo. A obra no se entende
como
70 Tucdides I, 22. 71 Norden, op. cit., 117-118, em que salienta
como isso se pde avaliar bem
quando veio luz a inscrio com o discurso de iure honorum Gallis
dando de Cludio, o que tornou possvel confront-lo com o texto de
Tcito; talvez foi ainda mais instrutivo o achado daquele fragmento
do tratado entre Atenas e Argos-Mantinia-lis: Tucdides incorporou-o
textualmente no seu quinto livro, mas este, como os outros dois
livros que apresentam documentos oficiais desse tipo, no foi
reelaborado estilisticamente por ele. J Willamowitz havia chamado a
ateno para o fato de que Tucdides nunca transmite, nas partes
reelaboradas, o material documental com as palavras originais, mas
transporta-o para seu prprio estilo (apud Id., 118, nota 18).
72 Id., 119-120, que continua (p. 121): Este princpio mais ou
menos vlido no somente para a historiografia, como tambm para toda
obra de arte literria, razo pela qual, sem dvida alguma, cometem
uma injustia contra Plato os que crem que reproduziu o mito de
Protgoras e o Erotiks de Lsias : de nenhuma maneira teria ocorrido
tal coisa a um leitor antigo dos bons tempos.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 37
dividida entre forma versus contedo, mas ambos os aspectos
caminham pari passu, correspondendo a determinados contedos
determinadas formas, o que equivale a dizer que ambos tm importncia
na compo-sio.73 Entendo que a relevncia desse princpio se encontra
menos numa sorte de conveno baseada em princpios estticos que na
necessidade de que o leitor possa reconhecer as marcas do gnero que
se lhe apresenta. Trata-se, assim, de convenes que tm uma funo
social e visam a garantir (ou controlar) a recepo da obra. Vale
insistir: Luciano tem uma conscincia acuradssima dessas distines,
provavelmente porque, em sua produo, adota como princpio
programtico o romper com elas, criando em especial o dilogo cmico,
que soma comdia a filosofia, por ele prprio equiparado a um
hipocentauro, um ser hbrido cuja harmonia e inteireza depende de
como quem o representa logra proceder passagem do diferente ao
diferente.74
Entre a histria e o encmio, como vimos, h uma diferena de
oitavas, do mesmo modo que histria e poesia diferem quanto s
inten-es e os cnones. Isso no significa que tudo que retrico e
potico no possa ter lugar na histria, mas deve adequar-se aos
princpios que a regem e que no so os mesmos que movem oradores e
poetas. Trata-se, pois, de uma questo de dosagem, pois,
admitindo-se que os gneros se possam definir teoricamente, na
prtica todos se apresentam mais ou menos mesclados e cultivam
relaes mtuas. A questo est em como
73 Nosso conhecimento das diferentes correntes tericas e crticas
antigas
quanto a esses temas ganharam muito com o conhecimento da obra
de Filodemo, em especial Sobre os poemas, de que o primeiro livro
conservou uma espcie de reviso de bibliografia: h tanto aqueles que
defendem que o valor da poesia est na forma (com destaque para as
doutrinas dos chamados eufonistas), quanto os que argu-mentam que a
dinoia (ou seja, o pensamento, a argumentao ou, se quisermos, o
contedo) deve ter o primeiro lugar. No se duvida, entretanto, que o
trabalho com a linguagem, capaz de produzir efeitos agradveis no
recebedor, seja prprio da poesia (cf. Philodemus, On poems, Book
one, Edited with introduction, translation and commentary by
Richard Janko (Oxford 2003)).
74 Tratei extensamente desse aspecto da teoria literria de
Luciano em A potica do hipocentauro (Belo Horizonte 2001) p. 73-88,
captulo IV, O hipo-centauro de Zuxis. Ver tambm Camerotto, op.
cit., 75-140, cap. II, Mixis e procedimenti parodici.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
38 Jacyntho Lins Brando
no ultrapassar os limites da convenincia, a ponto de fazer com
que a histria perca sua funo, com a dissoluo de seus cnones.
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
A pura liberdade do poeta e o historiador 39
* * * * * * * * *
Resumo: Como se deve escrever a histria de Luciano de Samsata,
considerado o nico tratado sobre a histria que nos foi legado pela
Antigidade, constitui, na verdade, um panfleto contra os
historiadores romanos das Guerras Prticas. Nele, a relao entre
poesia e histria tematizada, no todavia de uma perspectiva
mera-mente estilstica ou literria, mas tendo em vista que o apelo a
qualquer tipo de fico (psedos) frustra a expectativa de que a
histria seja justa, fazendo-a abandonar o verdadeiro para incorrer
em reles adulao dos poderosos. porque a histria est relacionada com
a poltica que, nela, o apelo ao ficcional tem conseqncias
pragmticas, no gozando o historiador, portanto, da liberdade pura
que se concede ao poeta. Este artigo analisa o conceito de
liberdade pura ( ), que remonta a Plato, para determinar a funo que
exerce na teorizao de Luciano sobre a histria..
Palavras-chave: Luciano de Samsata; Teoria da histria; Histria e
poesia; Histria e verdade; Histria e poltica; Histria justa; Pura
liberdade.
Resumen: La obra Cmo debe escribirse la historia de Luciano de
Samsata, considerado el nico tratado de historia que nos leg la
Antigedad, no es en verdad ms que un panfleto contra los
historiadores romanos de las Guerras contra los Partos. En ella se
tematiza la relacin entre poesa e historia, pero no desde una
perspectiva meramente estilstica o literaria, sino teniendo en
consideracin que el recurso a cualquier tipo de ficcin (psedos)
frustra la expectativa de que la historia sea justa, obligndola a
abandonar lo verdadero para incurrir en burda adulacin de los
poderosos. La relacin de la historia con la poltica es lo que
justifica el hecho de que el recurso a lo ficticio tenga en ella
consecuencias pragmticas, sin permitir, as pues, que el historiador
disfrute de la libertad pura que se concede al poeta. Este artculo
analiza el concepto de libertad pura ( ), que se remonta a Platn,
para determinar la funcin que desempea en la teorizacin de Luciano
sobre la historia.
Palabras clave: Luciano de Samsata; Teora de la historia;
Historia y poesa; Historia y verdad; Historia y poltica; Historia
justa; Pura libertad.
Rsum: Comment il faut crire l'histoire de Lucien de Samosate,
reconnu comme le seul trait sur lhistoire qui nous ait t lgu par
lAntiquit, est, en vrit, un pamphlet contre les historiens romains
des Guerres Partiques. Nous y trouvons thmatise la relation entre
posie et histoire, non seulement sous une perspective stylistique
ou littraire, mais en prenant aussi en compte que lappel tout type
de fiction (psedos) anantit tout effort de vouloir rendre lhistoire
juste, la poussant
gora. Estudos Clssicos em Debate 9 (2007)
40 Jacyntho Lins Brando
abandonner le vrai pour se laisser aller de banales adulations
des puissants. Lhistoire se trouvant lie la politique, lappel au
fictionnel se revt de consquences pragmatiques, lhistorien ne
jouissant donc pas de la libert pure qui se trouve accorde au pote.
Cet article analyse le concept de libert pure ( ), qui remonte
Platon, pour dterminer la fonction quil exerce sur lhistoire dans
la thorisation de Lucien.
Mots-cl: Lucien de Samosate; Thorie de lhistoire; Histoire et
posie; Histoire et vrit; Histoire et politique; Histoire juste;
Pure libert.
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