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2013 vol. III nº 010 pág. 000-000 A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTER- NACIONAIS Valério Nepomuceno Graduado em Ciências Contábeis pela UDF/Brasília Especializado em Administração Financeira, pelo ICAT/UDF e em Auditoria, pela Fundação Getúlio Vargas Membro da Academia Brasileira de Ciências Contábeis Faz parte do Conselho Editorial de Periódicos no Brasil e no Exterior Publicou o livro “Teoria da Contabilidade: uma abordagem histórico-cultural”
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A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTERNACIONAIS

Feb 08, 2023

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Page 1: A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTERNACIONAIS

2013 vol. III nº 010 pág. 000-000

A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTER-NACIONAIS

Valério NepomucenoGraduado em Ciências Contábeis pela UDF/Brasília

Especializado em Administração Financeira, pelo ICAT/UDF e em Auditoria, pela Fundação Getúlio Vargas

Membro da Academia Brasileira de Ciências ContábeisFaz parte do Conselho Editorial de Periódicos no Brasil e no Exterior

Publicou o livro “Teoria da Contabilidade: uma abordagem histórico-cultural”

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Ficha TécnicaTítuloRevista Portuguesa de Contabilidade

DirectorHernâni Olímpio Carqueja

SubdirectorBruno Miranda Alves Pereira

EditorGinocar Produções, Lda.NIPC: 501 736 026

Sede de RedacçãoRua Eng.º Ferreira Dias, 370 - 1.ºApartado 8012 • 4100-246 Porto

Telf.: 22 339 40 30 Fax: 22 339 40 39

www.revistadecontabilidade.comencomendas@revistadecontabilidade.com

PropriedadeGinocar Produções, Lda.

Execução Gráfica/Impressãowww.Ginocar.pt

Rua Eng.º Ferreira Dias, 370 - 1.º Apartado 8012 • 4100-246 Porto

Tiragem2000 Exemplares

Periodicidade Trimestral

JUNHO/2013

ERC 126037ISSN 2182-2042DEP. LEGAL 327583/11

A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTERNA-CIONAIS

ÍNDICEResumo _________________________________________________________________ 3

1_Introdução _____________________________________________________________ 4

2_Referencial teórico_______________________________________________________ 5

4_Metodologia ___________________________________________________________ 19

5_Resultados e considerações finais ________________________________________ 20

Referências Bibliográficas _________________________________________________ 22

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A POLITIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS INTERNA-CIONAIS

A definição das normas não é uma questão exclusivamente técnica ou teórica, mas de processo político.

[David Solomons, The politicization of accounting. Journal of Accountancy, vol. 146, nº 5, 65. 1978]

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo selecionar os elementos históricos que sustentam a conclusão de que as normas internacionais de contabilidade estão imersas nas ações políticas daqueles diretamente envolvidos nos melhores resultados financeiros de suas entidades. Isso ocorre por meio da manipulação de normas contábeis baixadas por organizações de classe de contabilidade. O trabalho foi realizado com base na literatura contábil disponível, inclusive em outras publicações, como jornais, revistas, internet, etc. O resultado alcançado é que as normas internacionais de contabilidade sofrem um forte movimento de lobistas para atender às necessidades pessoais (sejam eles investidores, credores, gerentes).

Palavras-chave: lobby; normas; contabilidade internacional; IASB; FASB.

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1_INTRODUÇÃO

O propósito do presente trabalho é verificar se as normas internacionais de contabilidade sofrem a ação de lobistas que têm seus interesses em jogo, e de que maneira essa ação é empreendida. Na medida em que as normas internacionais de contabilidade são fundadas nos mesmos princípios daquelas norte-americanas, não é diferente também a ação dos lobbies. Os lobistas são de toda ordem, desde administradores, investidores, credores, representantes políticas e até mesmo, organismos de representação supranacionais, que agem sempre em interesse particular, ou grupos minoritários poderosos.

As normas internacionais de contabilidade são elaboradas por meio de processos de preparação, elaboração e consolidação, que podem levar mais de ano. Um dos momentos desse processo, em que todos podem participar com sugestões e críticas, é denominado de due process (roteiro, ou rito processual). Mas, quando o assunto é a interferência incisiva no processo de elaboração das normas, seja por autoridades políticas ou por representantes de corporações, não há momento para essa interferência e ela ocorre ao arrepio das normas.

Essa politização das normas contábeis internacionais é consequência, em grande medida, da globalização econômica, que tenta, sem sucesso, a uniformização das regras contábeis para todos os países. Há mais de dez anos, por exemplo, já se implantou as normas internacionais na zona do euro, e o que se constata é que não houve qualquer harmonização ou uniformização das informações contábeis que resultasse em maior consistência dos resultados.

O presente trabalho explora, qualitativamente, as manifestações de pesquisadores contábeis que expressam suas posições sobre a tentativa de uniformização da contabilidade. O que se constatou, no levantamento bibliográfico, é que há inúmeros artigos, pesquisadores, acadêmicos manifestando suas incompreensões acerca dos rumos das normas internacionais. Um ponto parece ser comum entre todos: a uniformização contábil beira à impossibilidade.

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2_REFERENCIAL TEÓRICO

Falando perante o National Press Club, o presidente do FASB, Robert Herz, denunciou recentemente a politização da contabilidade. Ele declarou: “o público investidor espera e merece informações financeiras transparentes e imparciais”. Herz também apontou corretamente que “interesses especiais podem minar a utilidade dos relatórios financeiros, defendendo métodos e divulgações inferiores” (jul/2009) [Trecho citado pelo articulista J. Eduard Ketz]. E é exatamente isso que tem ocorrido com a contabilidade em escala mundial: a politização de seus conceitos. Não há conceito contábil que não sofra a ação dos lobbies; ou seja, os conceitos são gestados consensualmente e alterados, particularmente, para atender os interesses de alguns poucos. O prof. David Albrecht (2010, internet, sem página) salienta que:

“Recentemente, os presidentes atual (Mary L. Schapiro) e passados (Roderick M. Hills, Harvey L. Pitt, e David S. Ruder), da Securities and Exchange Commission (SEC) e os presidentes atuais do FASB (Robert Herz) e do IASB (David Tweedie) ressaltaram publicamente que o processo de definição de padrão de contabilidade pode e deve ser isolado da pressão de grupos de interesse especiais e da intromissão de instituições governamentais”.

Mas, não é isso que se tem visto. E o presente trabalho tem por propósito registrar as constantes interferências dos lobbies nos processos de elaboração das normas contábeis internacionais. Há quem estabeleça, entretanto, premissas científicas exatamente ao contrário do que pensam essas autoridades. Por exemplo, o artigo publicado por CARMO e outros (2011:3) relata que:

“Pesquisas realizadas por Watts (1977) e Watts e Zimmerman (1978) buscaram discutir o processo de lobby coorporativo na elaboração de normas contábeis emitidas pelo FASB, por meio do uso de um referencial baseado na teoria econômica, com ênfase na teoria da agência, explicando que o processo de normatização contábil é produto do mercado e de processos políticos onde indivíduos e grupos interagem buscando maximizar a sua própria utilidade [...] De maneira complementar, Fogarty, Hussein e Ketz (1994), após analisarem o processo de elaboração de normas pelo FASB, admitem que, ao assumir que tal processo é político se reconhece que existem diferentes interesses conflitantes entre as partes envolvidas e que estes interesses terão algum impacto na norma a ser elaborada”.

O processo de politização das normas contábeis internacionais é todo estruturado no modelo de contabilidade normativa dos EUA e que ainda está em ebulição. Os norte-americanos passaram todo o século XX estruturando uma contabilidade baseada na lógica dos conceitos, operando exatamente ao contrário da Europa, que, por tradição, sempre desenvolveu a contabilidade estruturada nas contas (nas partidas dobradas).

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Como esses conceitos normativos necessitavam de “vestes” representativas, mais democráticas. Então, eles desenvolveram regras concensualistas, denominadas de due process (ritos procedimentais, ou simplesmente, roteiros). Esses roteiros permitem que pessoas deem suas opiniões sobre as minutas (Exposure Draft) emitidas sobre uma determinada norma contábil. São esses ritos litúrgicos, ou procedimentais, que permitem, na divulgação das minutas, a abertura para o jogo político institucionalizado, ou seja, a participação dos lobbies.

2.1_O QUE É LOBBY CONTÁBIL (OU CORPORATIVO)?

É a ação política, direta ou indireta, de pessoas, ou grupo de pessoas, junto aos organismos de normatização contábil com o propósito de alterar as regras contábeis em seu favor. Desde a década de oitenta a ideia de que certos grupos lobistas têm um papel importante na mudança da contabilidade tem sido difundida como lobbying corporativo e tem sido amplamente pesquisado (Zülch e Hoffmann, 2010:2). No Brasil e em muitos outros países o lobbing político não é permitido. Mas, em se tratando de normas contábeis, os pronunciamentos feitos pelo CPC, permitem, após a publicação do projeto de minuta (exposure draft), a participação de outras pessoas para opinarem sobre determinado pronunciamento. É a interferência (participação) da “opinião pública” na elaboração da norma contábil. O roteiro (due process), tratado no capítulo anterior, é a formalização da participação de partes interessadas, enquanto lobby, no processo de elaboração da norma contábil.

É necessário esclarecer que, na história da ciência da Contabilidade, não houve lobby para se construir seus conceitos. Eles sempre foram edificados como em qualquer outra ciência: pela discussão científica, pela consolidação, sedimentação do conhecimento doutrinário. A estrutura do Balanço Patrimonial, por exemplo, foi consolidada ao longo da história, não foi obra de um pesquisador só ou de um órgão de classe contábil, ou mesmo da intromissão de lobistas que buscassem os seus interesses particulares. O lobby é consequência dessa nova forma de fazer contabilidade globalizada, por meio de manuais recheados de conceitos artificiais, iniciado nos anos 80.

2.2_QUEM FAZ O LOBBY JUNTO AOS ÓRGÃOS NORMATIZA-DORES CONTÁBEIS?

Há diversas entidades e organizações que praticam lobby junto aos órgãos normatizadores (internacionais ou não), sempre com o propósito de “ajeitar” as normas contábeis em seu favor visando, geralmente, melhor aparência dos seus resultados econômicos. De acordo com Saemann (1999) apud YU, 2006:17 as partes interessadas

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(lobistas) podem ser divididas em três categorias. É possível acrescentar uma quarta: 1) as empresas que preparam as suas demonstrações contábeis; 2) os usuários da informação (investidores, bancos, credores); 3) as corporações de auditoria; 4) as organizações (nacionais e supranacionais). Essas partes interessadas, no caso norte-americano, em particular, sempre se fazem representar por pessoas ou empresas lobistas, junto aos organismos de classe contábil, ou em outro local (Congresso Nacional), onde houver interesses contábeis em jogo.

2.2.1_EMPRESAS PREPARADORAS DAS DEMONSTRAÇÕES CONTÁBEIS

As empresas, sobretudo as megacorporações, se valem da influência política e do poder que têm para determinarem suas necessidades contábeis. Um dos exemplos dessas interferências é retratado pelo prof. Stephen Zeff (2002: 44):

“Exatamente na primeira reunião (inaugural) do IASB com seu Conselho Consultivo para Normas (SAC), em julho de 2001, foi relatado que uma grande empresa suíça, mais tarde revelou ser a Novartis, tinha escrito a Sir David Tweedie, presidente do IASB, alegando considerar a mudança do IFRS para US GAAP, desde que o IASB não mudasse seu padrão que exigia a amortização do ágio com mais de 20 anos. Foi dito que a Novartis estava preocupada em ser colocada em desvantagem estratégica se o IASB não adotasse um padrão sobre o ágio que convergisse com aquele do FASB (SFAS 142)”.

Esse comportamento intrusivo, considerado pelos defensores da Teoria da Agência como necessário e importante no aperfeiçoamento das normas, tem trazido dificuldades de se constatar a eficácia da própria norma contábil. Essa é a conclusão do trabalho de Kort (2011:6), em sua dissertação de mestrado:

“Este estudo mostra que as empresas que são questionadas por normatizadores para comentar sobre um determinado padrão, não comentam no interesse público, mas em seu próprio interesse. Portanto, os comentários recebidos pelos organismos de normalização não incluem apenas o feedback objetivo, mas também uma série de auto-interesses, o que torna difícil estimar o quão bom um novo padrão realmente o é” (grifei).

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2.2.2_OS USUÁRIOS DA INFORMAÇÃO (INVESTIDORES, BANCOS, CREDORES)

Os investidores, bancos, credores, e outras partes interessadas na informação divulgada pela empresa também procuram interferir no processo de elaboração das normas contábeis em busca de favorecimentos. É o caso, por exemplo, da interferência da FEI — Financial Executives International contra a posição do IASB acerca do IAS 2 — Stock option accounting (pagamento baseado em ações), que definia essa modalidade de pagamento mensurável pelo valor justo (fair value) e lançada como despesa no resultado do exercício. Os investidores, obviamente, não estavam de acordo com essa norma do IASB porque isso implicaria a redução no resultado, podendo trazer consequências para os executivos das empresas que poderiam ter um fluxo de caixa mais reduzido. Zeff (2002: 44-45) faz o seguinte registro sobre o mesmo assunto:

“Um artigo, publicado no Wall Street Journal (2001), apontava as conseqüências nefastas para o IASB, se ele fosse mais longe com a contabilidade por opções de ações do que já tinha ido o FASB. Eu suspeito que a ideia do artigo fora plantada pela FEI a fim de difundir a intenção do IASB. A FEI novamente mirou o IASB quando soube da tentativa de decisão do Conselho, na sua reunião de setembro, de mensurar as opções de ações pelo valor justo e reconhecer a correspondente despesa na demonstração do resultado. Em um comunicado à imprensa, emitido em 21 de setembro, a FEI denunciou esta decisão provisória. Os diretores financeiros de três grandes empresas dos EUA, incluindo a Pfizer, Inc., cujo presidente e diretor executivo atua no Conselho de Curadores do IASB, foram citados no comunicado como se opondo à iniciativa do IASB sobre este assunto. Phil Ameen, o controlador da General Electric Company, ameaçou alengando que “a tentativa de decisão, se sustentada, seria o pressagio de uma erosão rápida da participação societária e do apoio ao IASB. Ele acrescentou, as normas contábeis nacionais tornar-se-ão as normas globais, com pouca concorrência do IASB. O documento da FEI estabeleceu, “reconhecimento de despesa só pode levar a uma maior divergência internacional e a um passo para trás, significativo para o futuro das normas globais de contabilidade (para o comunicado de imprensa da FEI, consulte http://www.fei.org; também ver Hinchman 2001; Livingston, 2001) [...] O Congresso entrou em cena. Em 12 de outubro de 2001, o presidente do Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados foi apontado pelo New York Times estar “carregando água no balaio” para a FEI quando ele escreveu recentemente uma carta ao presidente da SEC sobre as conseqüências adversas da proposta do IASB sobre a contabilização de opções de ações (Morgenson 2001). O deputado federal enviou cartas semelhantes ao presidente do FASB e ao presidente do IASB (cartas de

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12 de Outubro do deputado Michael G. Oxley para Harvey L. Pitt, Jenkins Edmund, e A. Paul Volcker)”.

No Brasil, não temos tradição de lobby como instrumento de regulação das ações dos organismos, em favor próprio. E isso pode fazer diferença em se tratando de normas contábeis, visto que tais interferências nem sempre podem alcançar a requerida transparência junto à sociedade.

Por exemplo, nos EUA há a organização Center for Responsive Politics, que é uma entidade sem fins lucrativos, não partidária, com sede em Washington, que rastreia os efeitos do dinheiro e do lobbying sobre as eleições e políticas públicas. Para tanto, a instituição mantém uma grande base de dados sobre todas as informações que envolvam as empresas lobistas, por exemplo, informações sobre as Big Four (particularmente quanto cada uma gastou com lobbies, quais as empresas de lobby estão associadas a elas, os processos de interferência no Congresso, no PCAOB, no FASB e em outras organizações). Basta acessar o sítio: http://www.opensecrets.org/lobby/.

2.2.3_AS CORPORAÇÕES DE AUDITORIA: AS BIG FOUR

Não tem sido diferente com as corporações de auditoria quando o assunto é o interesse pessoal, ou interesse de seus clientes (megacorporações). As Big Four, denominação dada às quatro grandes corporações de auditoria (E&Y, KPMG, Deloitte e PWC), têm um poder de interferência muito grande nas megaempresas, nos organismos de classe contábil e até mesmo nas organizações supranacionais, como IOSCO, FMI, Banco Mundial, além de outras. O prof. Shyam Sunder (2011:11), destaca pontos relevantes sobre a ativa participação das quatro grandes corporações de auditoria na defesa dos padrões contábeis do IASB:

“Há uma década e meia vê-se um esforço conjunto na promoção e venda da IFRS para investidores, reguladores, empresas, professores e público em geral, em muitas partes do mundo. O IASB tem um óbvio interesse em promover a aceitação da IFRS. Quatro grandes empresas de auditoria [Big Four] e suas redes internacionais parecem ter feito uma decisão política para promover uma situação de monopólio do IFRS, e usaram seus recursos consideráveis para esse fim (Harris 2008).

Essas empresas repetem, textualmente, a linguagem utilizada pelo IASB (por exemplo, um único conjunto de alta qualidade, normas baseadas em princípios para promover a comparabilidade em todo o mundo), sem darem razões específicas para tomarem esta posição no domínio político. Sugere-se que as grandes firmas de auditoria têm visto os padrões internacionais como uma estratégia para tomar uma fatia maior do mercado

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de auditoria de empresas pequenas e locais [...] Funcionários públicos em muitos países, ansiosos para atrair o investimento de capital estrangeiro para o seu desenvolvimento, foram levados a acreditar que a adoção da IFRS iria ajudá-los. Consequentemente, muitos têm ou pretendem adotar a IFRS. Na medida em que as dificuldades de tradução e de implementação de IFRS estão sujeitas às variáveis ambientais locais, resta saber se as reivindicações de sua adoção podem ser significativamente traduzidas em relatórios financeiros mais comparáveis entre as nações e os continentes. Como em outros aspectos de nossas vidas, o efeito-manada é uma abordagem questionável para se decidir se deve ou não adotar o IFRS”.

Todas essas corporações de auditoria mantêm inúmeras empresas de lobby para desenvolver atividades lobistas no mundo todo. Elas gastam pequenas fortunas para manter os seus interesses e convencer da importância da IFRS. Essas empresas têm um poder de persuasão enorme junto aos seus clientes e isso desequilibra a noção de razoabilidade da aplicação internacional da IFRS.

Os repórteres da Agência Reuters, David Ingram e Dena Aubin, em artigo publicado em 13/03/2012, afirmam que:

“As maiores empresas de auditoria do mundo, conhecidas como Big Four, injetaram mais dinheiro do que nunca em lobbies e campanhas políticas nos EUA como forma de enfrentar os novos desafios de seus normatizadores [contábeis] e do Congresso. Deloitte, Ernst & Young, KPMG e PricewaterhouseCoopers, no ano passado [2011], gastaram um total de US $ 9,4 milhões com lobistas em casa e fora, de acordo com uma análise da Reuters em relatórios divulgados pelo Congresso. Isso é mais do que em qualquer outro ano, desde 2002, ano da queda da Arthur Andersen, ex-auditora da Enron, quando os dominantes do setor cairam de cinco para quatro [...] Uma parcela significativa dos esforços lobistas das Big Four é no sentido de tentar influenciar o Public Company Accounting Oversight Board, ou PCAOB [conselho criado pela SOX para supervisionar as empresas de auditoria]. Esse conselho de supervisão, de quase uma década de idade, está debatendo mudanças regulatórias que podem ter implicações importantes para a empresa de auditoria”.

A articulista Jane Mayer (2002) também faz registros dessas ações lobistas das Big Five junto ao Congresso norte-americano, num momento de crise:

“As ações judiciais de acionistas contra as empresas de auditoria proliferaram. Em resposta, as Big Five e seus associados comerciais se uniram numa força política. Segundo o Center for Responsive Politics, entre 1989 e 2001, as empresas de auditoria repassaram quase 39 milhões de dólares em

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contribuições políticas. As contribuições foram bipartidárias, chegando a mais da metade dos membros atuais da Câmara e 94 dos cem senadores”.

Era um momento difícil para as empresas de auditoria porque o escândalo da Enron/Arthur Andersen eclodira na mídia internacional provocando uma onda de dúvidas quanto à eficácia das normas emitidas pelos norte-americanos.

É importante destacar que o lobby político é regulamentado nos Estados Unidos e, como já afirmamos, as ações dos lobistas são cercadas de uma razoável transparência. No entanto, o lobby contábil junto aos organismos contábeis, como o FASB, AICPA, não possui regulamentação, exceto, nos casos de interferência pessoais quando da publicação de Minutas (ED — Exposure Draft) em que é permitido aos contadores emitirem suas opiniões sobre as normas, mas, como já vimos, nem sempre são aceitas pelos normatizadores.

2.2.4_ORGANIZAÇÕES NACIONAIS E SUPRANACIONAIS

Também atuam em defesa dos interesses estritamente particulares as organizações nacionais e supranacionais, como é o caso do IOSCO (organismo internacional que congrega todas as CVMs de vários países), do Banco Mundial, FMI, Comissão Europeia e muitas outras. Há casos em que organizações nacionais interferem na elaboração de normas contábeis internancionais, como tem sido o caso do FASB que tem ajustados os seus interesses políticos junto ao IASB.

Um dos casos recentes e mais marcantes foi o da interferência da Comissão Europeia no IASB quando ocorreu a crise do subprime, forçando este órgão a alterar a norma contábil para ajudar os bancos da Europa.

O poder de interferência dessas organizações na elaboração e/ou mudança das regras contábeis é proporcional ao interesse em jogo dessas entidades. Por exemplo, a Comissão Europeia pode interferir nas normas contábeis internacionais no sentido de beneficiar todos os bancos da Europa, o que pode provocar grande repercussão na economia mundial (como foi o caso da crise das hipotecas); ou pode ser apenas uma disputa interna (nacional) para a imposição de uma determinada regra com alcance específico e restrito, por exemplo, a opção pela adoção de determinado critério de avaliação de estoque (PEPS, UEPS, ou Média Ponderada).

Todas essas interferências buscam acomodar problemas de ordem contábil, com o propósito claro de melhorar o desempenho ou o resultado de determinada entidade. Estamos vivenciando a era da contabilidade adaptativa (mimética).

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2.4_O IMPRESSIONANTE LOBBY DA COMISSÃO EUROPEIA JUNTO AO IASB: CRISE DO SUBPRIME.

2.4.1_ELEMENTOS DA CRISE DO SUBPRIME

A crise do subprime, também conhecida por crise das hipotecas, foi fruto, inicialmente, da ganância dos investidores imobiliários norte-americanos, e de outros setores financeiros, que passaram a negociar os papeis das hipotecas por taxas de juros cada vez mais altas. Esses papeis caíram nas mãos dos grandes bancos norte-americanos, particularmente, daqueles de investimentos (Lehman Brothers, J. P. Morgan, Bear Sterns, Morgan Stanley e Godman Sachs), que sofisticaram as operações criando certos instrumentos de manutenção dos ganhos, lastreados em securitizações impossíveis de serem sustentadas. Ou seja, os grandes bancos associaram às hipotecas os instrumentos financeiros, denominados de derivativos (hedge funds e outros), que foram negociados no mercado financeiro.

O prof. Cláudio Gontijo, da FACE/UFMG (2008:22/31), num análise bastante consistente da crise hipotecária, faz as seguintes constatações:

“Essa euforia do mercado era sustentada pela “farra de crédito hipotecário e suas securities (MBS, CDO, lastreadas em empréstimos de recuperação duvidosa)”, num período em que “os fundos de investimentos, os hedge funds e os bancos ergueram verdadeiras pirâmides de derivativos de crédito, disseminando os riscos em âmbito mundial” [...] No caso dos derivativos hipotecários, muitas vezes o seguro era fornecido pela própria instituição originadora, de forma que, efetivamente, parte do risco “aterrissou de volta nos bancos”, ou por outras instituições, através, inclusive, de opções de compra e de outros derivativos [...] Quando o mercado habitacional entrou em crise, o rápido aumento da inadimplência dos mutuários do segmento subprime provocou a desvalorização dos derivativos, impactando tanto os bancos que não haviam conseguido desová-los através de SPVs quanto as instituições financeiras que tinham segurado os derivativos hipotecários”.

O periódico Marriot Alumini Magazine (2010:14), da Marriot School Management, relata que:

“De julho até setembro de 2008, os bancos e outros investidores ao redor do mundo tiveram imensas perdas com papéis. Essas perdas reduziriam o capital dos bancos e ameaçaria colocar vários deles violando as suas exigências regulatórias de capital. Você pode imaginar porque os bancos estavam desnorteados com a contabilidade de marcação a mercado. (Embora ninguém tivesse reclamado sobre a contabilidade de marcação a mercado quando o mercado estava em alta)”.

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Quando houve a contaminação dos derivativos (hipotecários, cambiais, e outros), e com os valores dos contratos bancários despencando em queda livre por causa da abrupta desvalorização, a preocupação dos bancos naquele momento era: como contabilizar esses derivativos, uma vez que eles foram registrados na contabilidade pela regra do fair value — marcação a mercado —, se o próprio mercado tinha feito esses contratos se transformarem praticamente em pó, por causa da desvalorização?

O desespero dos banqueiros — que aplicaram a regra de marcação a mercado (fair value) enquanto tudo indicava posições de valorização — é porque, por princípio de coerência, a mesma regra teria que ser aplicada ao contrário, na desvalorização, ou seja, a marcação a mercado para baixo. Isso os obrigaria a registrar enormes prejuízos contábeis. Aplicar a regra contábil enquanto os papeis estão em alta é cômodo, mas aplicar a mesma regra contábil quando as coisas se inverteram e os papeis passaram a se desvalorizarem violentamente, era inadmissível. Então, a alternativa foi mudar a regra contábil. Simples assim.

É nesse momento que a ação lobista da Comissão Europeia se apresenta para proteger os bancos europeus de uma crise financeira, provavelmente, sem precedentes na história. Pelo menos essa era a alegação. Na verdade, rigorosamente, isso não pode ser chamado de lobby, mas de interferência direta mesma; foi uma intimidação, uma pressão direta no IASB.

Vejamos um trecho de um documento apresentado à Comissão Europeia, pelo comissário europeu, Charlie McCreevy (outubro/2008) sobre as urgentes medidas a serem tomadas pelo IASB:

“Presidente, Srs. Deputados, deixe-me começar as minhas observações acerca da situação dos mercados financeiros. Estamos em uma mais grave crise de que se tem memória. O que começou como uma crise do sub-prime já passou muito além disso para abraçar toda a economia. Temores sobre a capacidade de se levantar financiamentos estão criando, na verdade, a maior falta de confiança entre todos os agentes econômicos. A menos que haja um descongelamento rápido de empréstimos estamos diante de uma espiral descendente contínua com evidente impacto sobre a atividade econômica. Liberar empréstimo é a prioridade número um neste momento [...]

Além disso, estamos solicitando urgentemente mudanças nas nossas regras de contabilidade para assegurar que os Bancos da UE possam se beneficiar da mesma flexibilidade que é oferecida aos bancos nos EUA. Ou seja, isso vai proporcionar a opção de bancos individuais, se eles quizerem, passar os ativos de sua carteira de negociação para seus livros. Esta é uma medida de comitologia, que eu espero que o Parlamento seja capaz de dar o seu acordo como uma questão de urgência. Enquanto isso, eu espero que os supervisores nacionais apliquem já estas novas disposições, para que

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os bancos, se assim desejarem, possam aproveitar esta nova possibilidade para os resultados do terceiro trimestre. Além disso, há o concentimento do IASB, acerca do esclarecimento da SEC dos EUA, da utilização da contabilidade de valor justo quando não há informação ativa no mercado. Isso é também altamente relevante para os bancos que devem utilizá-la nos relatórios do terceiro trimestre”. (grifei).

A pressão do Parlamento Europeu e de outras autoridades, como o presidente da França, Nicolas Sarcosy, foi imediata. Eles, repetidamente, manifestavam suas preocupações com a pró-ciclicidade que a contabilidade de valor justo (faire value) poderia introduzir e pediram para alinhar as normas contábeis dos bancos europeus com aquelas que se aplicavam aos seus concorrentes americanos, para os quais uma opção de reclassificação semelhante já existia sob a SFAS 115,2. Mas, por outro lado, havia aqueles, como o primeiro-ministro da Inglaterra, Gordon Brown, que manifestavam suas insatisfações, salientando que os valores justos simplesmente refletiam a realidade econômica atual, e estavam sendo ignorados (Bischop et al., 2010:1).

Os professores Bernard Colasse, da Universidade de Paris, e Alain Burlaud (2010: Introduction), ao contestarem a legitimidade do IASB, enquanto órgão normatizador internacional, também observam que:

“Embora as normas internacionais de contabilidade não tenham causado a crise, mas é possível admitir que elas a tenham acelerado, mais ainda, amplificado, em particular, por causa de sua retroalimentação. Isso explica porque, em outubro de 2008, o normatizador internacional se vê, fortemente, pressionado pela União Europeia e pelo Grupo dos Oito (G8) que pediram urgentemente a alteração de seus padrões IAS 39 "Instrumentos Financeiros" e IFRS 7 "Apresentação de Instrumentos Financeiros". A intervenção das organizações políticas é ainda mais notável quando a Norma Internacional de Contabilidade parecia ter sido definitivamente restrita aos peritos do IASC/IASB, organizações responsáveis pelas normas internacionais”.

O professor Stephen Zeff (2012:827) nos dá notícia de que o problema com a IAS 39 era antigo, ou seja, quando o IASB reeditou a IAS 39, em 2003, proveniente do IASC, houve reações dos grandes bancos e da França. O presidente francês, Jacques Chirac, se manifestou acerca de tal norma do IASB alegando que ela seria nociva à estabilidade da economia europeia. Também o Banco Central Europeu manifestou preocupações quanto à adoção da IAS 39. Parece que as autoridades europeias anteviam as consequências nefastas da aplicação do conceito de valor justo (fair value).

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2.4.2_IAS 39 ANTES DA RECLASSIFICAÇÃO

As normas contábeis que tratavam do reconhecimento e mensuração dos instrumentos financeiros (derivativos) eram a IAS 39 e a IFRS 7. Como vimos, desde o início, essas normas foram fortemente contestadas por várias autoridades, além das megacorporações bancárias, dentre elas o Banco Alemão.

O professor Patrick Bosch (2012:6), da Universidade de Freiburg, Suíça, revela que antes da alteração da IAS 39 e IFRS 7, em outubro de 2008 [IASB (2008)], as opções de reclassificação eram muito limitadas. Uma entidade só poderia reclassificar seus instrumentos financeiros da categoria AFS (Available For Sale) para a categoria HTM (Held to Maturty), sem enfrentar sanções. Além disso, as entidades poderiam reclassificar também os instrumentos financeiros da categoria HTM para a AFS, mas enfrentariam sanções se reclassificasse não mais do que uma quantidade insignificante. A intenção do IASB, por trás dessas opções muito limitadas de reclassificação, era restringir a manipulação de ganhos. Bosch (2012:7) afirma ainda que “os políticos, preocupados com o efeito pró-cíclico da contabilidade de valor justo, no clímax da crise financeira, pressionaram o IASB para relaxar reclassificação das regras contábeis”.

Se muito antes da crise hipotecária as autoridades europeias já não se acertavam com a IAS 39, imaginem quando a crise eclodiu, desvalorizando exatamente aqueles papeis que eram corrigidos pela marcação a mercado.

É importante lembrar que alterar uma norma contábil, pelo due process (roteiro) do IASB, levaria mais de ano. Mas, as autoridades políticas e corporativas tinham pressa, era para alterar tudo em apenas alguns dias.

Num periódico publicado pela Marriot School Management, da Brigham Young University (2010:14), os articulistas afirmam que o presidente do IASB, Sir David Tweedie fez as seguintes afirmações sobre a reclassificação da IAS 39:

“Tweedie disse que o IASB tinha três dias para revisar a IFRS. Três dias? As exigências do rito processual tanto do IASB quanto de sua contraparte o FASB, tipicamente resulta em proposta de normas contábeis sendo circuladas e discutidas por anos. Entretanto, Tweedie disse que sem uma mudança imediata na regra, a EU [União Europeia] isolaria o IASB e alteraria, unilateralmente, as regras contábeis para as companhias em seus países de origem. Relatam que Tweedie ficou resignado; entretanto, ele sucumbiu às pressões da União Europeia e apressou-se para mudar a contabilidade”.

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2.4.3_A RECLASSIFICAÇÃO DA IAS 39, PELO IASB

Com tanta pressão política sobre o IASB, a reclassificação ocorreu no dia 18 de outubro de 2008. Portanto, tudo saiu como exigiam as autoridades e as corporações de bancos.

A IAS 39 foi alterada, ampliando-se as possibilidades de mudança das categorias, permitindo, então, os derivativos saírem da condição de ativo circulante (ou seja, “disponível à venda” — e nessa condição o seu registro teria que levar em conta a marcação a mercado) para ativo não-circulante (ou seja, “mantidos até o vencimento”, que seriam corrigidos pelos custos, não pela marcação a mercado).

O periódico Marriot Alumini Magazine (2010:14) relata ainda os oportunismos permitidos aos banqueiros para que eles não tivessem que registrar enormes prejuízos contábeis:

“Na elaboração da revisão apressada de suas regras, alguém do IASB (ninguém está dizendo quem) permitiu que os bancos europeus voltassem o relógio para 1º de Julho de 2008 e, com o benefício da volta, designassem alguns investimentos para serem contabilizados usando marcação a mercado (provavelmente os investimentos que sabiam que havia subido no terceiro trimestre) e alguns investimentos a serem reclassificados como "mantidos até o vencimento" no valor existente em 1º de Julho (provavelmente os investimentos que conheciam que teriam descido no terceiro trimestre). Muito inteligente”.

Impressionante! A reclassificação, portanto, teve um papel mais amplo do que se imaginava, promovendo benesses aos mais endinheirados da Europa, os bancos. Mas, como a situação era de pânico e receio de que, como no caso da quebra do Lehman Brothers, se a crise contaminasse fortemente o setor financeiro toda a economia europeia estaria em perigo. Salvam-se os bancos e, mais uma vez, colocam em xeque a Contabilidade e os seus “conceitos normativos”.

2.4.4_AS CONSEQUÊNCIAS DA RECLASSIFICAÇÃO DA IAS 39

Novamente, o periódico Marriot Alumini Magazine (2010:15) registra ainda como a reclassificação do IAS 39 alterou profundamente o resultado líquido do Banco Alemão:

“Alguns bancos europeus, como o BNP Paribas, rapidamente se afastaram dessa manipulação descarada. Por outro lado, o Deutsche Bank [Banco Alemão] graciosamente usou a prestação retroativo para transformar uma perda em lucro. Sem as reclassificações retroativos, o Banco Alemão teria relatado uma perda antes de impostos de €732.000.000 para o terceiro trimestre. Com as reclassificações, o relatório do Banco Alemão registrou

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um lucro antes de impostos de €93 milhões, que foi, orgulhosamente, saudado em seu terceiro trimestre”.

Por outro lado, o prof. Jannis Bischof e outros (2010b:3), em seus trabalhos de pesquisa, chegaram à conclusão de que:

“Usando uma amostra abrangente e global de 302 relatórios de bancos, em IFRS, verificamos que mais de um terço escolheram usar a opção de reclassificação, aumentando assim os lucros agregados [consolidados] em 22,7 bilhões de Euros e os lucros específicos da firma [controladora] em 44% em média (ver também CESR, 2009)”.

Os pesquisadores acima ainda observam que Bancos fizeram amplo uso da oportunidade de renunciar às baixas contábeis de substanciais ativos financeiros cujos preços de mercado haviam caído substancialmente, ou que se tornaram ilíquidos durante 2008. Por exemplo, o Banco Alemão foi capaz de aumentar o seu lucro líquido, em 2008, em 3,2 bilhões de Euros por meio de reclassificação de ativos ilíquidos com valores contábeis registrados pelo valor de 23,6 bilhões de Euros (p. 1-2).

Portanto, a tentativa de se fazer uma convergência das normas contábeis internacionais, por meio de um órgão concensualista e de representação duvidosa e ilegítima, como afirmou Bernard Colasse e Alain Burland (2010), parece combinar com aquilo que declararam a profa. de contabilidade, Stella Fearnley, da Bournemouth University e seu colega prof. Shyam Sunder, da Yale School of Management, em matéria veicula no Financial Times (03/06/2012):

“Normas comuns, como moeda comum, podem parecer uma boa idéia, principalmente às empresas internacionais, reguladores e empresas de auditoria. Mas, o que temos? Um conselho que emite as normas que podem induzir lucros falsos nos relatórios e afogar os usuários em situações de complexidade; que não aceitou a responsabilidade pelas conseqüências de seus padrões disfuncionais, e não tem mecanismos eficazes para a correção oportuna dos defeitos [...] Normas de contabilidade interagem com as leis, com os códigos comerciais, e com as normas sociais em diferentes países de diferentes maneiras. O IASB tem empurrado a sua agenda para frente sem se responsabilizar pelas consequências. O desastre de alguns bancos, esgotando seu capital por meio do pagamento de bônus e dividendos a partir de lucros falsos, obtidos em IFRS defeituoso, é um bom exemplo [...] Por isso, apelamos à SEC para não prosseguir com as IFRSs nos EUA [...] Sugerimos que o G20 abandone o seu suporte de padrões de contabilidade globais. Em vez disso, eles poderiam recomendar que os relatórios contábeis refletissem a essência econômica dos negócios, com base em julgamentos profissionais e fundados no princípio da prudência, e reconhecessem que as

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normas contábeis baseadas nas anglo-americanas não são necessariamente apropriadas para o mundo inteiro” (Financial Times, 03/06/2012).

As conclusões do prof. Ray Ball (2006: abstract/34), da University of Chicago, não são muito diferentes quando afirma que:

“Eu prevejo problemas com o fascínio atual do IASB (e o FASB) com a "contabilidade de valor justo". Uma preocupação é que haverá inevitavelmente diferenças substanciais entre os países na implementação do IFRS, que agora correm o risco de serem escondidas por um verniz de uniformidade. A noção de que padrões uniformes só irão produzir relatórios financeiros uniformes parece ingênuo. Além disso, eu antevejo várias preocupações em longo prazo. O tempo dirá” (abstract).

“As forças condutoras do Experimento de contabilidade global são insuficientes paragarantir o seu sucesso continuado. Ele é obrigado a enfrentar grandes desafios nos próximos anos. Dois fatores principais estão por trás disso: a falta de legitimidade e de responsabilidade do IASB, e a dificuldade de garantir implementação consistente dos IFRSs em todos os países”.

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4_METODOLOGIA

Esta pesquisa caracteriza-se como bibliográfica, na medida em que analisa livros, artigos publicados em periódicos especializados em contabilidade, jornais especializados, além de publicações na internet. Utilizou-se o método descritivo, com a abordagem qualitativa. As pesquisas bibliográficas foram direcionadas para os assuntos relacionados à politização das normas contábeis internacionais, levando-se em consideração as manifestações críticas apresentadas pelos pesquisadores, acadêmicos, autoridades do meio contábil, além de outras. O resultado alcançado pela pesquisa foi que o processo de politização das normas contábeis internacionais se dá por meio de lobbies desenvolvidos nos seios das entidades elaboradoras das normas, como é o caso do IASB.

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5_RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os lobbies são os instrumentos por meio dos quais as corporações, as empresas de auditoria (as big Four), as organizações supranacionais, interferem na elaboração da norma contábil para acomodarem seus interesses particulares. As normas contábeis deixaram de ser algo construído dentro dos limites das ciências para se transformarem em processos decisórios, consensualistas, de interesses meramente políticos.

Em alguns casos, como foi visto, não se trata mesmo de lobby, mas de pressão, de intimidação de órgãos e de pessoas para alterar a norma com o propósito deliberado de mentir os resultados econômicos das empresas. É o que Michel Capron (2005:116) denomina de “impossível verdade contábil”:

"Não pode existir "verdade contábil", porque a representação fornecida por um sistema de contabilidade depende de princípios, normas, convenções, regras sucetíveis de infinitas combinações e, principalmente, são modificadas para atender às necessidades das partes interessadas, à vontade política, às necessidades da evolução econômica ou da inventividade da contabilidade."

As corporações e organizações de toda ordem não se limitam a interferir no processo de elaboração da norma contábil somente no momento previsto para isso, quando é estabelecido prazo para apresentação de críticas e sugestões (cerca de 120 dias), mas, em qualquer momento que for necessário para fazer lobby para buscar os seus interesses particulares.

O jogo político no cenário econômico-contábil norte-americano e agora também no cenário internacional é abertamente ostensivo, com posições marcadamente direcionadoras dos interesses pessoais.

As posições contundentes e muito importantes de Bernard Colasse, de Alain Burlaund, de Stella Fearnley, de Shyam Sunder, de Ray Ball e de Christopher Nobes, e tantos outros dedicados professores e pesquisadores da Contabilidade, de diferentes universidades, dão a medida da preocupação com a excessiva politização e das normas contábeis internacionais.

E Christopher Nobes (2006, abstract), da University of London, diz que “o uso obrigatório do IFRS para as demonstrações consolidadas das sociedades na UE e em outros lugares, e a convergência do IFRS com os USGAAP, podem implicar o fim da ‘contabilidade internacional’ como um importante campo de estudo”. Se levarmos em consideração o conceito de Contabilidade Internacional, como sendo o ramo da contabilidade que trata das diferenças culturais da contabilidade entre as nações, a afirmação do prof. Nobes está perfeitamente correta. Afinal, o propósito dos padrões internacionais é eliminar, por completo, as diferenças culturais. No entanto, Nobes também entende que há motivos e oportunidades para as diferentes práticas internacionais existirem dentro do IFRS.

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Alguns dos motivos originais das diferenças internacionais de contabilidade podem ainda ser eficazes no contexto do IFRS, embora de maneiras diferentes. De alguma maneira, as diferenças subsistirão, mesmo havendo IFRS.

A tentativa de se fazer das normas contábeis internacionais um novo “esperanto” (Fearnley, Sunder, 2006) é algo que beira à impossibilidade.

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