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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia Campus I Salvador - BA 1 A POÉTICA DO FEMININO NA LITERATURA VALENCIANA: CONSIDERAÇÕES SOBRE “SER MULHER” NOS POEMAS DE CELESTE MARTINEZ E ROSÂNGELA GÓES José Ricardo da Hora Vidal 1 O presente trabalho pretende analisar criticamente nos poemas de Celeste Martinez e Rosângela Góes na perspectiva da escrita feminina, segundo as discussões teóricas de Nelly Richards, Zilda de Oliveira Freitas, Lúcia Castello Branco, Cecil Jeanine Albert Zinani e Nelson de Oliveira. Procura-se mostrar com estes poemas da literatura valenciana que a escrita feminina se caracteriza como uma poética do feminino, ou seja, um modo próprio e transgressor de criação lítero-artística. Palavras chaves: escrita feminina, poética do feminino, literatura valenciana. Literatura Valenciana e Participação Feminina A cidade de Valença, localizada na região do Baixo Sul da Bahia, vive desde os meados da primeira década do século XXI um surto de produção literária. Em contraste com os anos anteriores, em que a vida literária se restringia ao lançamento esporádico de um livro ou de algum evento festivo (normalmente organizado por alguma escola da cidade), Atualmente ocorre uma produção regular de vários livros nos campos da ficção, da poesia, do teatro, da memorialística, da historiografia e do ensaio, escritos por vários autores. Além disso, existe um ambiente de produção, circulação e difusão literária, a ser observado no movimento jovem da "Ocupação Cultural" (com seus saraus performáticos realizados regulamente), o fortalecimento do jornal Valença Agora, que desde o princípio abriu espaços para a publicação de textos literários e a criação da Academia Valenciana de Educadores, Letras e Artes. O marco desta "Supernova Valenciana", deste período fecundo de produção literária, está a publicação da antologia "Valenciando: antologia de escritores valencianos" em 2005, organizada por Araken Vaz Galvão, e que reúne a produção em prosa e versos de oito escritores de Valença (alguns inéditos em livros até então), dentre homens e mulheres. No rastro deste livro, seguiram-se a publicação de mais três antologias (uma das quais com autores jovens ligado à Ocupação Cultural 1 Especialista em Estudos Lingüísticos e Literários pela UFBA. Licenciado em Letras Estrangeiras Modernas (Inglês) pela UNEB - campus 01. Professor de Língua Inglesa no Colégio Estadual Hermínio Manuel de Jesus (distrito do Bonfim / Valença / BA). Membro da Academia Valenciana de Educadores, Letras e Artes. E-mail: [email protected]. Blogue: www.bardocelta.blogspot.com.
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A POÉTICA DO FEMININO NA LITERATURA VALENCIANA ...©tica-do... · Assim, se dentro do espaço doméstico, particular, a mulher teria reservado um tipo de discurso próprio, o mesmo

Feb 13, 2019

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES

15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I

Salvador - BA

1

A POÉTICA DO FEMININO NA LITERATURA VALENCIANA:

CONSIDERAÇÕES SOBRE “SER MULHER” NOS POEMAS

DE CELESTE MARTINEZ E ROSÂNGELA GÓES

José Ricardo da Hora Vidal1

O presente trabalho pretende analisar criticamente nos poemas de Celeste Martinez e

Rosângela Góes na perspectiva da escrita feminina, segundo as discussões teóricas de Nelly

Richards, Zilda de Oliveira Freitas, Lúcia Castello Branco, Cecil Jeanine Albert Zinani e Nelson de

Oliveira. Procura-se mostrar com estes poemas da literatura valenciana que a escrita feminina se

caracteriza como uma poética do feminino, ou seja, um modo próprio e transgressor de criação

lítero-artística. Palavras chaves: escrita feminina, poética do feminino, literatura valenciana.

Literatura Valenciana e Participação Feminina

A cidade de Valença, localizada na região do Baixo Sul da Bahia, vive desde os meados da

primeira década do século XXI um surto de produção literária. Em contraste com os anos

anteriores, em que a vida literária se restringia ao lançamento esporádico de um livro ou de algum

evento festivo (normalmente organizado por alguma escola da cidade), Atualmente ocorre uma

produção regular de vários livros nos campos da ficção, da poesia, do teatro, da memorialística, da

historiografia e do ensaio, escritos por vários autores. Além disso, existe um ambiente de produção,

circulação e difusão literária, a ser observado no movimento jovem da "Ocupação Cultural" (com

seus saraus performáticos realizados regulamente), o fortalecimento do jornal Valença Agora, que

desde o princípio abriu espaços para a publicação de textos literários e a criação da Academia

Valenciana de Educadores, Letras e Artes.

O marco desta "Supernova Valenciana", deste período fecundo de produção literária, está a

publicação da antologia "Valenciando: antologia de escritores valencianos" em 2005, organizada

por Araken Vaz Galvão, e que reúne a produção em prosa e versos de oito escritores de Valença

(alguns inéditos em livros até então), dentre homens e mulheres. No rastro deste livro, seguiram-se

a publicação de mais três antologias (uma das quais com autores jovens ligado à Ocupação Cultural

1 Especialista em Estudos Lingüísticos e Literários pela UFBA. Licenciado em Letras Estrangeiras Modernas

(Inglês) pela UNEB - campus 01. Professor de Língua Inglesa no Colégio Estadual Hermínio Manuel de Jesus (distrito

do Bonfim / Valença / BA). Membro da Academia Valenciana de Educadores, Letras e Artes. E-mail:

[email protected]. Blogue: www.bardocelta.blogspot.com.

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e pertencentes a uma geração posterior dos escritores de "Valenciando"), além da publicação de

livros solos de outros autores 2.

Na "Supernova Valenciana", observa-se a participação das várias mulheres escritoras, como

Macária Andrade, poetisa, cronista, oradora e professora - autora da letra do Hino de Valença e

autora de dois livros de poesia e prosa; Amália Grimaldi, poetisa, artista plástica e odontóloga -

colunista no Valença Agora e autora de três livros de poesia; Rosângela Góes , escritora e

professora - autora de um volume de poesia; Maria do Perpétuo Socorro, Maria Raimunda, poetisas

e professoras - participantes da antologia "Rio de Letras"; e Celeste Martinez, escritora e artista

plástica - participantes das antologias "Valenciando" e "Rio de Letras". Logicamente, diante da

presença de tantas mulheres na hodierna cena literária valenciana, não é de se estranhar que a

reflexão sobre o "ser mulher" não deixa-se de aparecer nos textos.

Esta reflexão se dará não num processo de autoria masculina, do "ser mulher" como objeto

da observação masculina; mas na situação ativa da autoria feminina, em que a própria mulher se

questiona e dialoga consigo mesma sobre a sua própria condição como ser ontológico. Este diálogo

acabam evidenciando um aspecto sobre o que seria a escrita feminina, que não se apresentaria não

como um mero "gênero literário" (como a "ficção científica"), com regras predefinidas a acomodar

esta produção; mas se apresentação enquanto uma "poética", como um processo maior de modo

particular de criação artística - como observa Nelson de Oliveira em seu ensaio "Literatura feminina

ou poética feminina?", publicado na revista eletrônica Cronópios.

Para entender como acontece este processo de poética do feminino na literatura valenciana,

foram escolhidos dois poemas ("todas as mulheres fogem", de Celeste Martinez e, "Profissão

Mulher", de Rosângela Góes), que problematiza, já nos títulos dos textos, a condição feminina. Em

todos eles, as autoras poetizam criticamente sobre o que "ser mulher", não mais como no protótipo

2 Após a antologia "Valenciando", foram publicados as antologias "Rio de Letras", "Trívio" e "Novos

Valencianos", foram publicados três volumes de crônicas de Moacir Saraiva, três livros de Amália Rodrigues, dois

volumes de memórias de Gentil Paraíso Martins Filho, o livro de poesia de Rosângela Góes, o segundo volume de

poesia de Mustafá Rosemberg, um livro de crônica de Macária Andrade, o livro de contos de Alfredo Gonçalves de

Lima Filho, o livro de conto e um livro de ensaios de Araken Vaz Galvão. Acrescenta-se a publicação da segunda

edição do livro de Edgar Otacílio sobre a história local.

Antes do "Valenciando", foram publicados dois livros de Araken Vaz Galvão (um romance e um sobre

História da Valença), um livro de poesia de Mustafá Rosemberg, um livro misto de poesia e prosa de Macária Andrade,

dois livros de Otávio Mota e um livro de poesia Ricardo Vidal, além de dois livros de historiografia valenciana (um

escrito por Edgar Otacílio e outro de Augusto Moutinho) e uma brochura reunindo alguns dos artigos, crônicas e

poesias publicados até então no jornal Valença Agora,. Com exceção dos livros de Otávio Mota (lançados nos anos 80

do século XX), os demais livros foram publicados entre 1999 e 2005.

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da "Amélia dona-de-casa-e-rainha-do-lar", mas como um ser pleno dentro de uma sociedade, que

rasura as antigas formas de dominação patriarcalista.

Escrita feminina: gênero ou poética?

Para entender melhor o ponto a ser discutido, se faz necessário, primeiro, compreender o que

a escrita feminina. Ao contrário do pode pensar o senso comum, a "escrita" tem gênero e este não se

confunde com o gênero do autor. Conforme lembra Zilda de Oliveria Freitas, no seu ensaio sobre

autoria feminina, "Na sociedade ocidental (…) a dicotomia sexual é uma vivência inconfundível do

fazer, do prazer, do saber, enfim, do ser3". Isso irá se refletir na no modo de produção literária, na

medida como homens e mulheres se relacionam com o mundo através da língua.

Sendo a língua um dos elementos da socialização do ser humano, ela não mostrará "neutra",

acima dos processos de dominação; Pelo contrário, ela se estabele como um meio da expressão /

dominação do gênero masculino sobre o gênero feminino. Robin Lakoff, no seu texto "Linguagem e

lugar da mulher" analisa este fato, quando fala que:

(…) As mulheres experimentam a discriminação linguistica de duas maneiras: no

modo como são ensinadas a usar a linguagem e no modo como o uso geral as trata;

Ambas tendem (…) a relegar as mulheres a certas funções subservientes: aquelas

de objeto sexual, ou serviçal, e, portanto, certos itens lexicais têm significados

quando aplicados aos homens e ouros às mulheres, constituindo uma diferença que

não pode ser prevista, exceto com referência aos diferentes papeis que os sexos

desempenham na sociedade4

Como exemplo desta dualidade de significado apresentado por Lakoff está no uso corrente,

em língua portuguesa, das palavras "vagabundo" e "cachorro". O uso do feminino desses dois

vocábulos para descrever uma mulher sempre tende a ser mais ofensivo e negativo do que o seu

correspondente masculino o é para os homens, uma vez que não só a rebaixa como ser social

(imprestável, improdutivo, desprezível) como a sua própria feminilidade, como alguém promíscua

sexualmente e realçando sua condição de objeto sexual do homem, abaixo mais ainda da já inferior

situação que as demais mulheres já possuem na sociedade machista. Esse uso da língua como um

meio de dominação entre gêneros vai se aprofundando na formação da identidade de cada

3 Zilda de Oliveira Freitas. Literatura de Autoria Feminina. in SILVIA LUCIA FERREIRA e ENILDA

ROSENDO DO NASCIMENTO. Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002, p. 116. 4 Robin Lakoff. Linguagem e Lugar da Mulher in ANA CRISTINA OSTERMANN e BEATRIZ FONTANA.

Liguagen. Gênero. sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola, 2010, p. 14.

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indivíduo. Não apenas por já criar um modus operandi da línguas distinto entre homens e mulher,

enquadrando que fala de trivialidades ou quem fala de assuntos sérios e assim alijando das tomadas

de decisões um ou outro gênero, como imagina Lakoff, Mais além disso, há quase que um

apagamento da diferença, de um outro gênero na língua quando um gênero é usado como a forma

universal de se referir à realidade. Como bem observa Nelly Richards, “O neutro da língua, sua

aparente indiferença às diferenças, camufla o operativo de ter universalizado, à força, as marcas do

masculino, para convertê-lo, assim, em representante absoluto do gênero humano5”. Esta

discriminação do gênero feminino, que passaria a ser visto como um 'mero caso particular' do

gênero masculino, 'legítimo' representante da totalidade dos seres humanos acaba implicando nos de

como os discursos são feitos dentros dos espaços sociais. Assim, se dentro do espaço doméstico,

particular, a mulher teria reservado um tipo de discurso próprio, o mesmo na se não no espaço

público, local da tomadas das principais decisões sociais e por isso mesmo demarcado como reino

do discurso masculino. Se no espaço doméstico existe a possibilidade de uma linguagem mais

polida e sem lugar para explosições emocionais (que Lakoff atribui como uma das característica da

fala feminina que a sociedade espera); no espaço público, esta fala feminina não terá vez, pois nao

será forte o suficiente nos momentos de disputas que ocorrem nestes espaço. Diante das explosões

emocionais que doravante possa ocorrer, a fala feminina, que ninca foi treinada oara isso, fenece e

cede lugar ao discurso masculino, a muito treinado nesta lide, o que leva a afirmação de Cecil

Jeanine Albert Zinani, que essa afirma que: "(…) a voz da mulher sempre foi silenciada, o que

impediu desenvolver uuma linguagem própria"6. É a esta situação que Robin Lakoff fala em

"bilinguismo" nas mulheres (em que, tendo que dominar um 'dialeto feminino' duso privado e um

'dialeto neutro1 de uso público, acaba sem ter certeza plena de estar usando a norma certa na

ocasião correta) e que Zilda de O. Freitas aponta como o dilema das escritoras, entre “(…) utilizar o

discurso masculino é pôr em risco sua feminilidade. Não utilizá-lo é expor-se ao rídiculo, ao falar

em público” 7. Assim, a mulher escritora já se encontra numa situação de transgressão, de não só ser

apropriar de um instrumento masculino criado para os propósitos masculinos como inscrever o

corpo e a diferença feminina na língua e no texto.

5 NELLY RICHARD. Intervenções críticas: Arte, Cultura, Gênero e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2002, p. 131. 6 Cecil Jeanine Albert Zinani. Identidade e Subjetividade. in CECIL JEANININE ALBERT ZINANI Literatura

e Gênero: A construção da identidade feminina. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006, p. 25. 7 Zilda de Oliveira Freitas. Literatura de Autoria Feminina. in SILVIA LUCIA FERREIRA e ENILDA

ROSENDO DO NASCIMENTO. Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002, p. 118.

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Diante do fato de existe a diferença entre uma fala feminina para uma fala masculina, sobre

a questão compreender como elas irão se mostrar dentro da literatura. Estando da mulher

enquadrada dentro do supergurpo das minorias, enfrenta já o problema que estas literatura possuem:

as definições comumente apresentadas são grosseiras e deselegantes, que dificultam um debate.

Uma definição corrente de Literatura Feminina limita-se a circunscrevê-la no ambiento do

gênero de autor, ou seja, aquela escrita por mulheres. E, como resquícios da diferenciação de

ocupação dos espaços sociais (como pode se depreender das observações Robin Lakoff e Zilda de

oliveria Freita) esse modelo de definição preconizaria as seguintes características: discurso

confessional sobre os fatos e os fenômenos da vida privada, sobre da rotina doméstica, sobre o

relacionamento com os homens em geral e com a família em particular. A literatura de autoria

feminina, assim colocada, apresenta, segundo Nelson de Oliveira, um caráter restritivo que NÃO

abarca toda a questão. O "feminino" é uma categoria mais ampla dentro da escrita criativa, que

chega até a ser independente do próprio sexo do autor. Esta definição mostra uma “chave

monossexuada” para o feminino, que restringia o potencial transimbólico da criação, como fluxo de

identidade e sentido. Em última análise, transforma a liteatura feminina num gênero literario

fechado similar à ficção científica ou literatura policial, com seus clichês pré-estabelicidos e

padrões rígidos a serem esperados. No caso da literatura valenciana, a não-aplicabilidade desta

definição fica patente quando se observa uma diversidade de expressão e nuances temáticas e que

estão anos-luz de se restringer ao discurso confessional sobre a vida privada. A escrita de Macária

Andrade é bem diferente da escritas das conterrâneas Celeste Martinez e Rosângela Góes, quando a

universalidade da primeira está mais próximo das temáticas tradicionais da escrita "masculina"

enquanto as últimas mostram-se mais críticas quando a condição feminina. E mesmo entre estas

duas, ao expressar de forma contundente a condição feminina em seus versos, o fazem expressando

modos diversos entre si. Se em Rosângela Góes há a preocupação de descontruir a lógica masculina

no plano do sentido, rearranjando o discurso na ótica feminina; Celeste Martinez radicalizar a lógica

masculina na ordem da expressão, remexendo nos vocábulos para rasurar o discurso na direção

feminina.

Diante da fabilidade da definição anterior que Nelson de Oliveria8 apresenta uma definição

mais ampla: Literatura Feminina seria uma "poética", ou seja, um modo de criação de literária

8 NELSON DE OLIVERIA. Literatura feminina ou poética feminina? Site Cronópios

<http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1836>. Acesso em: 10 de março de 2013, às 21h37.

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aberto para expressão individual do autor. Seria como uma feminização da própria escrita, que

mesmo não sendo exclusivamente restrita da mulher, mantém sempre uma certa relação com ser

mulher. Esta escrita se traduziria como uma poética da transgressão ao discurso masculino

dominante, apresentando-se como sua antítese dialética, ou pelo menos um meio de escape à

dominância falocêntrica da língua. Em consonância ao proposto por Nelly Richard, que ver na

feminização da escrita " uma erótica do signo" a extravasar o marco/retenção da significação

masculina com seus excedentes rebeldes (corpo, gozo, heterogeneidade, libido, multiplicidade),

desregulando a tese do discurso masculino9, Nelson de Oliveira: compreende a literatura feminina

como é a escrita do gozo, dos mistérios, da fantasia exacerbada, do mergulho no inconsciente, dos

segredos e das confissões, da loucura, construída frequentemente em torno do silêncio. É a escrita

dionisíaca e noturna que se choca com o apolíneo e ensolarado racionalismo masculino10. Lúcia

Castello Branco apresenta como outras características da escrita feminina a procura de "fazer do

signo a própria coisa e não uma reprentação da coisa"11. E como complemento as estas

características, Cecil Jeanine Albert Zinani acrescenta que:

A linguagem centrada na perspectiva da mulher se caracteriza-se por estabelecer

um código que instaura um processo enunciativo de carater subversivo não só em

termos de vocabulário como também de uma sintaxe específica que possa

desconstruir o discurso masculino e estabelecer a diferença entre os sexos. (…) As

estratégias utilizadas podem remeter para o significado original das palavras,

revisar a constituição de vocábulos, especialmente através dos prefixos,

reconceituar as metáforas utilizadas, recuperar as elipses. A leitura marginal

concretiza-se, portanto, através de desvios que possibilitarão a percepção do Outro

e a própria constituição desse Outro emergente em sujeito de um novo discurso. Ao

se preocupar com a revelação da escrita feminina através das lacunas do texto, de

certa forma, a autora recupera o princípio de que essa escrita revela-se através da

história silenciada produzida pelo texto subjacente.12

A literatura feminina está no plano da poética porque não apresenta fórmulas definidas para

amoldar o texto dentro de plano preconcebido, pois ela busca sempre extrapolar todas as bordas, ir

além dos limites. Antes, trabalha no próprio plano do signo para atingir a essência do texto,

rasurando uma ordem prévia do discurso dominante "masculino" para desvelar uma outra

9 NELLY RICHARD. Intervenções críticas: Arte, Cultura, Gênero e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2002, p. 133. 10

NELSON DE OLIVERIA. Literatura feminina ou poética feminina? Site Cronópios

<http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1836>. Acesso em: 10 de março de 2013, às 21h37. 11

LÚCIA CASTELLO BRANCO. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991 (?), p. 21. 12

Cecil Jeanine Albert Zinani. Identidade e Subjetividade. in CECIL JEANININE ALBERT ZINANI

Literatura e Gênero: A construção da identidade feminina. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006, p. 35-36.

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perspectiva transgressora, a do olhar da mulher. Por ser mais um tom (na acepção cromática e

musical do termo) 13 transgressor do não-fálico (sem ser necessariamente oposta e simetricamente

ao fálico) do que um simples gênero fechado que a literatura feminina não se restringe ao sexo do

autor, pois ele ultrapassa, intersecciona e tangencia o autor para levá-lo a uma outra lógica de

criação literária, de excessos e deslocamentos, que pode ser ao mesmo tempo prolixo e lacunar.

Para exemplificar este modelo da literatura feminina como um tipo de poética, serão

analisados três poemas de suas poetisas valencianas.

“Profissão Mulher”: A poética do feminino em Rosângela Góes14

O poema de Rosângela Góes escolhido para análise dentro da perspecitva da literatura

feminina com uma poética são "Profissão Mulher"15

, publicado inicialmente na antologia

"Valenciando" e posteriormente aparecendo no livro "Coração na Boca", da autora. Neste poema

reverbera um pouco do eco da famosa citação de Simone de Beauvoir. A mulher não se constitui

por um determinisno biológico, mas numa "profissão", um constructo social que faz e refaz a cada

dia, dentro de um caleidoscópio.

No dois primeiros versos do poema, a poetisa enumera algumas das profissões / arquétipos

clássicos relacionadas com mulher dentro da sociedade patriarcal: "Lavadeira, costureira,parideira /

atriz, imperatriz meretriz". No primeiro verso surge o arquétipo da figura maternal, ligado a

ambiente simples e domético e com pouco ou nenhum retorno financeiro. São as mulheres que

lavam e costuram para fora, profissões que as mulheres da classes populares normalmente tinha

como (única) forma de sustento (permitida). Na terceira profissão, "parideira", Rosangela toca na

ferida, ao rasurar a figura clássica da dona-de-casa. Longe da ser a decantada rainha do lar, a esposa

é apresentada numa condição subalterna de fábrica de filhos para a sociedade, com sua sexualidade

restringindo-se a função biológica da reprodução, sem desejos ou fantasias próprias. Em três

substantivos polissílabos derivados de verbos, fica o retrado da mulher do povo, destinada a ser uma

legião de serviçais submissa da sociedade, a ganhar muito pouco ou nada com seu trabalho pesado.

13

LÚCIA CASTELLO BRANCO. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991 (?), p. 76. 14

Rosângela Góes de Queiroz Figueiredo nasceu em Valença em 1951, é escritora, professora e política, formada

em Letras Vernáculas. Participou das antologias "Valenciando" e "Rio de Letras", além ter publicado seu livro

"Coração na Boca". Também foi a idealizadora das antologias "Quase Escritores" e "Coração de Estudante", reunindo

os textos dos alunos do Educandário Paulo Freire (colégio do qual foi diretora e proprietária). Foi Secretária Municipal

de Educação e Secretária Municipal de Cultura e Turismo e duas vezes candidata a vice-prefeita de Valença. É membro

das academias Valenciana de Educadores, Letras e Artes (AVELA) e de Letras do Recôncavo (ALER). 15

O poema citado no Apêndice 01, ao final do artigo.

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Em contraposição a mulher ordinária descrita no primeiro, o segundo verso mostra três

"rupturas possíveis" do destino de santa esposa, mãe doce e dona-de-casa: a mulher artista, a mulher

governante e a mulher "prostituta". É interessante salientar, de imediato, na relação que se

estabelece entre as duas primeiras profissões "boas" com a terceira profissão, "ruim". Vivendo por

um triz, a atriz e a imperatriz estabelecem entre se uma dupla relação dialética curiosa. Se, por um

lado, parece indicar a advertência para que a mulher nunca rompa com a ordem natural do universo

(machista), ao mostrar que a mulher que assume uma posição de relevo na sociedade (seja pela

cultura, seja pela política) se equipara a uma decaída, prostituindo sua sacrossanta condição de

esposa; por outro lado reconhece-se implicitamente que o verdadeiro poder da mulher está na sua

sexualidade, no seu poder de sedução. A meretriz no final do verso, ombreia com o Trono e com o

Palco, indicando onde está o calcanhar de Aquiles da sociedade machista. A prostituta 'impera' com

o poder de sedução de seu corpo e faz cair a máscara da "ordem natural machista" da realidade, ao

fazer eco as antigas hetairas e cortesãs (como Frinéia), cuja beleza e educação as faziam

companheiras de artistas, filósofos e políticos. Esta redação remete ao que Cecil Zinani considera

sobre escrita feminina, de reconceituar as metáforas e recompor as elipses dos textos, estabelecendo

um processo enunciativo que subverte o léxico ao recontituir o sentido original das palavras através

de seus afixos, como está presente no primeiro versos dos poema: LAVAdeira, COSTUReira,

PARIdeira, as ações domésticas associadas as mulheres de classes sociais mais humildes.

Diante desta suas possibilidades apresentadas nos dois primeiros versos, a poetisa começa o

terceiro verso dialogando com a "Mulher" (na forma de vocativo), indicando outra possibilidade

que a 'sociedade' não aventara: ter por destino o melhor do céu e da terra. E no primeiro verso da

segunda estrofe inicia-se com uma pergunta provocativa: És rainha?", questionando explicitamente

o reinado do lar. Este questionamento no plano discursivo continua, quando a autora fala "Dize-o

tu a ti mesma / se esse trono vale a pena", para logo depois contrapor a mulher a alternativa da:

"se o queres, se o preferes à delícia

de ser e descobrir nos próprios passos

o rastro do fracasso ou do universo

se tens na tua voz o teu cometa, ou teu algoz16

É neste ponto do poema que se apresenta a questão principal proposta pela poetisa: cabe a mulher a

responsabilidade sua vida, ser ela o sujeito, e não um objeto. Este protagonismo em relação a vida, de ser

mulher, implica que a mesma assuma uma postura séria, 'profissional', diante de sua existência. Cabe a

16

ROSANGELA GÓES DE FIGUEIREDO. Coração na Boca. Salvador: Secretaria da Cultura e

Turismo/EGBA, 2006, p. 21.

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mulher, e não mais ninguém descobrir se sua "voz" (com todo o simbolismo que esta palavra possue) irá

elevar a mulher ao sucesso, como um cometa; ou ser sua própria algoz a decidir peremptoriamente qual

nincho a mulher ocupar na vida e na sociedade.

O terceiro parágrafo remete aos possibilidades que a mulher tem para construir sua vida ("Escolhe o

caminho, há tantos… / já os divisastes ou escolheste?"). Está claro no texto que qualquer que seja escolha

pela mulher, ela nãos erá imune aos perigos, mas mesmo assim a poetisa insiste para a mulher que mesmo

com os percalços é importante perseverar na escolha, pois ela mostrará que a mulher "verdadeira" por detrás

das convenções sociais é ainda maior e, no entanto, estava abafada. Rosângela Góes, com estes versos

finais ("(…) saber por si mesma / a mulher que havia e melhor não se sabia"), reconstituissem

através lacunas presentes na língua as histórias silenciadas das mulheres citado, fazendo que cada

signo seja a própria coisa dentro do texto, não uma mera representação, um simulacro convencional

da realidade.

Em Rosângela Góes, a poética do feminino se faz dentro do plano do sentidos. Ao

questionar as arquétipos que a sociedade criou para enquadrar a mulher ("parideira", "meretriz",

"rainha"), ela aponta as multiplas possibilidades além deste quadro, uma mulher-sujeito, que saiba

exercer com dignidade e consciência sua profissão de mulher.

“Todas as mulheres são universos”: A poética do feminino em Celeste Martinez17

Em contrapartida, o poema de Celeste Martinez, "Todas as mulheres fogem18

", ganha força

pela sua carga expressiva, com um uso radical das possibilidades dionisíacas da língua. Publicado

na antologia "Valenciando", o poema se apresenta graficamente todo como alinhado ao centro

(enquanto o "Profissão Mulher" segue uma diagramação mais tradicional, justificado à escquerda).

Sem um título formal, a autora o poema com um verso de forma marcante e declarativa:

"Todas as mulheres fogem". O poema prossegue com uma linguagem eivada de fantasia

exarcebada, apontado sempre para o tropos "Todas as mulheres", estabelecendo antíteses e

metáforas sobre a condição feminina, como nos versos:

(…)

Todas pensam o "eu" livre

17

Celeste Maria de Queiroz Martinez nasceu em Valença em 1963, é escritora e artista plástica, formada em

Pedagogia e especialista em Planejamento e Prática do Ensino Superior. Participou das antologias "Valenciando" e "Rio

de Letras". Foi a roteirista do vídeo-documentário "Valença: Cidade Desejo" e é produtora e apresentadora do programa

radiofônico "Alacazum - Palavras para Entreter". 18

O poema citado no Apêndice 02, ao final do artigo.

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mas todas têm útero.

Todas têm mães e são madres

(…)

Todas as mulheres são pares.

Todas estão feridas e aguardam a chance do grito,

do canto,

do riso.

mas todas voltam para o quarto e por três estações ficam

preenchidas

(…)19

Nesta sequência se percebe a dualidade ("todas as mulheres são pares") que reina na figura

feminina: a individualidades de ser elas, que lutam com garra ("todas estão feridas") pela chegada

da oportunidade ("a chance do grito, / do canto, / do riso") com de se realizar como pessoa ; mas por

terem "úteros" que estarão preenchidos durante três estações, as mulheres também se apresentam

carregando uma outra vida, uma outra individualidade dentro de si e que depende desta mulher,

fazendo que ela também se "desindividualize". Esta referência a maternidade conecta-se a antiga

visão de que a geração da vida humana dentro da barriga da mulher é algo "mágico", similar a

fertilidade da Terra Mãe Gaia.

O aspecto da dualidade que reside a figura feminina, segundo Celeste Martinez, pode ser

visto em mais pares de versos:

(…)

Todas são estátuas da liberdade

E calabouços de amor.

(…)

Todas as mulheres mentem

E falam verdades. (…)

20

A primeira antinominia "liberdade / calabouço" se apresenta na configuração interessante:

no superior se faz alusão a um dos mais conhecido ícones modernos que é Estátua da Liberdade de

Nova York, como representação de um dos mais altos ideais contemporâneos. E a figura da mulher

com encarnação ou das mais altas aspirações, como no quadro de Delacroix, "A liberdade

conduzindo os povos", em que uma jovem mulher é quem conduz o povo inssurreto para vitória

sobre as barricadas; ou como a própria personificação da pátria, como nas figuras de "Britânnia",

19

Celeste Martinez. (Todas as mulheres fogem). in ARAKÉN VAZ GALVÃO. Valenciando: Antologia de

Escritores de valença. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2005, p. 23. 20

Celeste Martinez. (Todas as mulheres fogem). in ARAKÉN VAZ GALVÃO. Valenciando: Antologia de

Escritores de valença. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2005, p. 23.

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para o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte; "Marianne" para França republicana;

"Rodina-Mat" (Pátria Mãe) para União Soviética; e "Adelita" para o México revolucinário, dentre

outras21. Se por um lado é a liberdade, no outro é a prisão, mas a prisão decorrente do amor, criando

um aparente oximoro de combinar um sentimento positivo do Amor com a idéia negativa do

cárcere. Se a mulher é o símbolo da liberdade, ela também pode ser a causa da prisão, segundo a

poetisa.

A outra antinomia que Celeste Martinez apresenta é sobre relação verdade e mentira. Da

mesma forma que Capitu, a de "olhos de cigana, óbliqua e dissimulada", a famosa personagem

machadiana que representam a perfídia e a mentira é do sexo feminino, há o contraponto clássico da

Pitonísa, a sacerdotisa de Apolo que, em seu transe, transmite a verdade.

Os jogos símbolicos que a autora usa para expressar a condição feminina são mais

eloquentes estão nos versos:

(…)

Só mulheres gozam

Só fêmeas parem

Só esposas são obedientes

Só amantes são eternas

Só VÊNUS amor

Só HELENA guerra.

Só CIRCE veneno

Só MEDUSA tormento. (…)

22

Ao dissecar as diversas personas femininas possíveis, como a "mulher" que atinge o

orgasmo, a "fêmea" responsável pela maternidade, a "esposa" enquadrada nas convenções sociais, a

"amante" como um ideal sentimental que esteve/está/estará presente no imaginário humano; Celeste

Martinez passa para os grandes jogos símbolicos da mitologia em sentindo descrescente no retrato

do feminino, ao relacionar a eterna identidade entre a deidade "Vênus" e o sentimento do Amor

(humano, terreno), a semi-deusa23 "Helena" como a causa da Guerra de Tróia (e por extensão, de

21

Para mais esclarecimentos, ver WIKIPEDIA. Personificação nacional Site Wikipedia

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Personificação_nacional>. Acesso em: 16 de abril de 2013, às 11h08. 22

Celeste Martinez. (Todas as mulheres fogem). in ARAKÉN VAZ GALVÃO. Valenciando: Antologia de

Escritores de valença. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2005, p. 24-25. 23

Conforme pode ser atestado em mitólogos como Edith Hamilton (Mitologia), Thomas Bulfinch (Mitologia

Geral), Pierre Commelin (Mitologia Grega e Romana), Renè Menard (Mitologia Greco-Romana), Philip Wilkison

(Myths & Legends).

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todos os conflitos); a feiticeira "Circe" com o conhecimento de filtros e poções e por fim, no

monstro feminino da Medusa, que provoca o sofrimento da vítima ao petrificá-lo.

Esses exemplos reforçam o que Nelson de Oliveira considerar ser um dos aspectos da

literatura feminina como a escrita dos mistérios, do mergulho no insconscente e nos segredos. Outro

aspecto que marca literatura feminina está, segundo Cecil Jeanine Albert Zinani na subversão da

processo enunciativo tanto do nível léxico como na sintaxe. Esses aspectos podem ser notados mais

claramente nos versos:

(…)

(Todas) PECAM

PADECEM

(São) SUBVERSIVAS

SUBMERSAS

SUBALTERNAS (mulheres). (…)

24

O uso dos parênteses e das letras em caixa alta pela autora abrem as possibilidades de

leitura, ao permitir que o leitor recombine ao seu modo os sintagmas presentes, fugindo da

tradicional organização linear do texto. Isso abre lacunas para que as entrelinhas respirem e assim

permita que os subtextos fiquem mais evidentes diante do leitor. Assim, ao lado da leitura

tradicional desses versos na ordem: "(Todas) PECAM / PADECEM / (São) SUBVERSIVAS /

SUBMERSAS / SUBALTERNAS (mulheres)", há a possibilidade de separar as palavras dos

parênteses "(Todas) (São) (mulheres)", para indicar que elas "PECAM", "PADECEM" e são "

SUBVERSIVAS / SUBMERSAS / SUBALTERNAS". Ou ainda, que "(Todas) (São) (mulheres)"

que PECAM, "(Todas) (São) (mulheres)" que PADECEM, "(Todas) (São) (mulheres)

SUBVERSIVAS, "(Todas) (São) (mulheres)" SUBMERSAS, "(Todas) (São) (mulheres)"

SUBALTERNAS.

Todas as mulheres de Celeste Martinez, enfim, são múltiplas e presentes, fracas e fortes para

parirem homens e mulheres e assim, amarem homens e mulheres emulheres…

24

Celeste Martinez. (Todas as mulheres fogem). in ARAKÉN VAZ GALVÃO. Valenciando: Antologia de

Escritores de valença. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2005, p. 24.

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Ubri et Orbi

O brilho da explosão dessa Supernova literária em Valença ainda está forte para ofuscar a

visão de seus observadores. No bojo da publicação de tantos livros, fica humanamente impossível

separar o joio do trigo e afirmar qual desses escritores realmente está destinado a imortalidade. Uma

visão panorâmica mais confiável sobre essa cena literária talvez seja possível quando uma segunda

geração de escritores valencianos tiverem maturidade acadêmica e artística suficiente para herdarem

este legado. Contudo, dentre as diversas flores que estão desabrochando, alguns frutos futuros já são

possíveis de ser entrevistos. Esta literatura não se restringe a ficar nas boas margens do rio Una e

alguns destes escritores estão se destacando nos cenários regional e estadual na Bahia de todos os

santos e orixás. Haverá alguém que conquistará a projeção nacional? Talvez isso possa aconecer,

diante da qualidade do que se está sendo produzido por lá. Vá saber qual alquimia literária resultará

esta mistura de dendê, cravo, cacau e camarão…

Para o campos dos estudos literários voltados a gênero e sexualidade, os resultados são mais

palpáveis. As escritoras valencianas estão na linha de frente desta explosão literária, trazendo a

sensibilidades da filhas de Eva para as letras locais. Deste modo, abri-se uma nova seara de estudos

críticos, com escritoras cujas as obras ainda não tiveram a devida atenção crítica. Uma futura

pesquisa de autoria feminina dentro das obras dessas autoras se faz necessário para que se possa

melhor avaliar as já certas qualidades e possíveis os defeitos que estes escritos possam ter. E quiça,

a luz desta fortuna crítica mais consolidada, novas escritoras valencianas possam surgir a levar

adiante este legado que hora se apresenta para os leitores e as leitoras - inclusive numa erótica

feminina genuinamente valenciana.

Mas, antes de encerrar esta análise, uma última observação necessária: Como esta pesquisa

visava analisar duas autoras locais, alguém poderá estranhar a falta de cor local. Para alguém mais

acostumada com as terras do rio Una, sentirá falta de referências ao Amparo, ao Guaibim, à serra do

Abiá, ao dendê, aos mariscos e ao cravo. Antes, no poema de Celeste Martinez, encontra-se

referências a mitologia clássica da Europa mediterrânea, o que poderia colocá-la como um poema

produzido em qualquer lugar nas termas de Roma, nas esquinas de Seattle, nos bazares de Bagdad

ou nas ruas de Hanói. Bem, talvez mostre que as mulheres valencianas estão conectadas com os

sentimentos da demais mulheres do Globo e por isso escrevem das margens do rio Una para o

Mundo…

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Referências

BULFINCH, Thomas. Mitologia geral: A idade da fábula. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962. (Coleção

Descoberta do mundo, vol. 21).

CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991. (coleção

Primeiros Passos v. 251)

FIGUEIREDO, Rosângela Góes de Queiroz. Coração na Boca. Salvador: Secretaria de Cultura e

Turismo, EGBA, 2006. (Coleção Apoio)

FREITAS, Zilda Oliveira de. A literatura de autoria feminina. In: FERREIRA, Silvia Lucia e

NASCIMENTO, Enilda Rosendo de (org). Imagens da mulher na cultura contemporânea.

Salvador: NEIM/UFBA, 2002. Coleção Bahianas v.7, pp 115-123.

HAMILTON, Edith. Mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LAKOFF, Robin. Linguagem e lugar da mulher. In: FONTANA, Beatriz e OSTERMANN, Ana

Cristina (org). Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola

Editorial, 2010. Coleção Lingua[guem] v.37, pp 13-30.

MARTINEZ, Celeste. Todas as mulheres fogem. In: Vários Autores. Valenciando: antologia de

escritores de Valença. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, EGBA, 2005. (Coleção Apoio).

Pags. 23-25.

RICHARDS, Nelly. Diferença sexual, gênero e crítica feminista. In: RICHARDS, Nelly.

Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Série

Humanitas v. 81), pp 125-172.

SAMUEL, Rogel. A crítica feminista. In: SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 5ª ed.

Petrópolis: Vozes, 2010. pp 184-191.

ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Identidade e Subjetividade. In: ZINANI, Cecil Jeanine Albert.

Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul: Educs, 2006, pp 19-48.

WILKINSON, Philip. Myths & legends. An illustrated guide to their origins and meanings.

Londres, Delhi: Dorling Kindersley, 2009.

OLIVEIRA, Nelson de. Literatura feminina ou poética feminina? Cronópios, Disponível em:

<http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1836>. Acesso em: 10 de março de 2013, às

21h37.

ALACAZUM palavras pra entreter Disponível em: < http://alacazum.blogspot.com.br>. Acesso em:

20 de abrilde 2013, às 10h22.

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APÊNDICE 01: Profissão mulher,

de Rosângela de Góes Figueiredo

Lavadeira, costureira, parideira,

Atriz, imperatriz ou meretriz

Mulher, é teu destino ser melhor

o céu que te recorta em tanto azul

o chão que te ensina o caminhar

És rainha? Dize-o tu a ti mesma

se esse trono vale a pena

se o queres, se o preferes à delícia

de ser e descobrir nos próprios passos

o rastro do fracasso ou do universo

se tens na tua voz o teu cometa, ou teu algoz

Escolhe o caminho, há tantos...

já o divisaste ou escolheste?

Há riscos e percalços, desvios e cansaços.

Falsos ou reais, é preciso percorrê-los

e conhecê-los...

E conhecendo-os, saber por si mesma

a mulher que havia e melhor não se sabia.

APÊNDICE 02: (Todas as mulheres fogem),

de Celeste Martinez

Todas as mulheres fogem

Ameaçadas entram na jaula.

Apagam a luz da realidade e rezam

Cantam hinos de misericórdia

Rogam milagres

Abortam paixões sonolentas

E sangram homens.

Todas pensam o “EU” livre

Mas todas têm úteros.

Todas têm mães e são madres

Face da mesma face

Todas as mulheres são pares.

Todas estão feridas

E aguardam a chance do grito

Do canto

Do riso

Mas todas voltam para o quarto

E por três estações ficam preenchidas.

Todas são estátuas da liberdade

E calabouços de amor.

Todas as mulheres vestem luto

Todas choram

Fingem o gozo

Matam o macho

E fazem aborto.

Todas as mulheres mentem

E falam verdades.

Todas são cruéis quando traídas

Quando iludidas

Quando menosprezadas.

Todas as mulheres matam

Um dia

Uma vida

Um amor

Uma chance

Um segundo de paixão.

E todas as mulheres envelhecem

Perdem o sabor

Ficam estéreis

Ressecadas e frias.

Todas as mulheres morrem

Por um fio – FILHO

Por uma ponte – HOMEM

E todas ressuscitam quando querem

Mas só algumas são virgens

Mártires.

Todas as mulheres são universos

Em terra

Em água

Em si

No talvez

Na certeza

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Em sonho.

(Todas) PECAM

PADECEM

(São) SUBVERSIVAS

SUBMERSAS

SUBALTERNAS (mulheres)

Mas só algumas são damas

Rainhas

Esfinges

Um jogo.

Mulheres são

Mulheres vão

Mulheres não – COMEÇO.

Só mulheres gozam

Só fêmeas parem

Só esposas são obedientes

Só amantes são eternas

Só VÊNUS amor

Só HELENA guerra.

Só CIRCE veneno

Só MEDUSA tormento

Só mulheres parem HOMENS

E mulheres amam HOMENS

E mulheres

E mulheres...

E mulheres....

.