1 A outrafesta negra1 Paulo Dias Na crnica histrica brasileira
da Colnia e do Imprio, as danas de terreiro dos escravos negros,
designadas batuques, so qualificados via de regra como diverso
desonesta , sobretudo pelos representantes do poder poltico-
admistrativo e religioso, manifestando-se o temor de que se
tratassem de rituais pagos e atuassem como fermento de desordem
social e revoltas . No plo oposto colocam-se os festejos pblicos
dos Reis Congos (congadas), considerados diverso honesta para os
escravos e incentivados pelos senhores. Tratam-se de dois aspectos
complementares da festa negra no Brasil: no terreiro, a celebrao
intra-comunitria, recndita, noturna, onde se reforam, sem grande
interferncia ou participao do branco, os valores de pertencimento a
uma matriz cultural e religiosa africana; na rua, a festa
extra-comunitria, em que o negro, atravs das danas de cortejo,
busca inserir-se nas festividades dos brancos e ganhar certa
visibilidade social, mediante a adoo de valores religiosos e morais
da classe dominante. Os batuques de terreiro, que hoje se espalham
pelo Brasil sob diferentes formas e estilos, mantm em certa medida
muitas das funes sociais que assumiam no passado, destacando-se a
da crnica donegro parao negro , manifestada pela via de uma potica
metafrica. Na longa durao da Histria inscreve-se igualmente a
marginalizao dessas manifestaes afro-descendentes de terreiro,
nutrida de um lado pelo preconceito de setores hegemnicos da
sociedade branca e suas instituies, e, de outro, pelo resguardo que
as prprias comunidades impoem a suas prticas, visando a manuteno de
cdigos de compreenso interna ao grupo e a preservao de segredos de
ordem religiosa. Nossa proposta , aps breve anlise de alguns textos
documentais, examinar estruturas recorrentes em trs batuques
tradicionais da regio Sudeste - o Jongo, o Batuque de Umbigada e o
Candombe - levantadas ao longo de oito anos de convvio com
comunidades negras do Sudeste. Constantes que permitem vislumbrar
essas diferentes
1ArtigopublicadonacoletneaFesta:CulturaeSociabilidadenaAmricaPortuguesa,org.deIris
Kantor e Istvn Jancs FFLCH/USP. So Paulo, Hucitec/Edusp, 2001. 2
modalidades musicais-coreogrficas como partes de um continuum de
expresses artsticas banto-descendentes, ampliando os conceitos
formulados pelo antroplogo e foclorista Edison Carneiro acerca de
um complexo nacional dos sambas. Batuques X Congadas na Crnica
Colonial Na crnica dos sculos XVI e XVII,somuitos raras as aluses s
manifestaes culturais dos negros, ao passo que no epistolrio jesuta
abundam as descries de danas e msica dos ndios. Tal desequilbrio
est associado, evidentemente, aointeresse dos padres da Companhia
de Jesus em conhecer as culturas autctones em seu esforo de
converso dos gentios pela via da contrafao. Aos negros, a catequese
no dedicou tanto interesse, deixando a salvao de suas almas por
conta da corvia a que foram submetidos no Novo Mundo.A viso europia
da msica dos africanos, como se observa na documentao do perodo
[scs XVI-XVII], era bem mais depreciativa que a viso da msica
indgena brasileira , diz Castagna citando o italiano Diogini de
Carli (1687)2. Viso que parece reproduzir-se em relao a uma parte
das msicas-danas dos negros no Brasil, nas referncias que, a partir
do sculo XVIII, tornam-se mais freqentes. Chamadas genericamente de
batuques, as festas noturnas de terreiro dos escravos negros no
Brasil quase sempre foram objeto de descries caricatas e
depreciativas por parte dos autores coloniais. Talvez o primeiro
relato de uma dessas danas coletivas seja a do holands Zacharias
Wagener, escrivo de Maurcio de Nassau, que no sculo XVII registrou
a cena em desenho e por escrito. Sob o ttulo Dana de negros
descreve como um grupo de escravos de Pernambuco incansavelmente
danam, com os mais variados saltos e contorses...e da maneira mais
desencontrada...tomando uma bebida feita de 2Castagna, 1991, p.547.
Ao final do sculo XIX, ainda lemos: [...]a puta roncando seus
roncos monstruosos [...] tomando [os danarinos] ares invocadores e
posies indecorosas, em que a voluptuosidade discute com a insolncia
as honras da primazia.Ladislau Batalha, 1890 apud Tinhoro,
p.48.Como j disse, os cantares que acompanham estas danas lascivas
so sempre imorais e at mesmo obscenos, histrias de amores descritos
com a mais repelente e impudica nudez. Alfredo Sarmento, apud
Tinhoro, p. 49. 3 acar chamada Grape. E nesta atividade se sujam
tanto de poeira, que s vezes nem se reconhecem uns aos outros. 3
Bahia, 1655 . O diplomata portugus D. Francisco Manuel de Melo,
perturbado em seu estudo por bayles de Brbaros, e registra o fato
nos versos de um soneto :
Mortosdamesmamorteodiaeovento/amorteestavaparaestarsezuda/Que desta
negra gente em festa ruda/Endoudece o lascivo movimento. 4 A
associao da dana negra ao consumo de lcool, desordem e ao
sensualismo j aparecem nesses primeiros relatos, ressaltando a
barbrie e o primitivismo de seus atores. Colecionando atitudes
dignas de reprovao nas manifestaes dos negros,tidas como
atentatrias aos cdigos morais de uma sociedade que se queria
europia e crist, a cronica colonial contribui com subsdios
ideolgicos manuteno do sistema escravista centrado na mo-de-obra
africana.O termo desonesto torna-se qualificativo obrigatrio para
as expresses culturais de carter mais reservado dos escravos. A
participao de mestios e brancos pobres nos eventos musiciasdos
negros das zonas urbanas, a partir do sculo XVIII, torna-se motivo
de crescente preocupao por parte das autoridades policiais, que
passam a proibi-las, temendo as desordens motivadas pela dana a que
chamam batuque, que se no pode exercitar sem o concurso de bebidas
e mulheres prostitudas.5 A festa negra de terreiro, mal iluminada
na noite escura e ao abrigo dos olhares dos brancos, muito deve ter
desorientado os autores que, de longe, procuravam descrev-la.
Tratava-se de diverso ou devoo ? Aquilo que aparentemente mais
transtorno causava s autoridades eclesisticas era o fato de essas
funes poderem constituir ritos religiosos pagos. O poeta Gregrio de
Matos trata os Calundus como danas em que Satans anda metido
(Preceito I). Expresses como supersticiosas danas(Minas 3 Tinhoro,
1988, pp. 29-30. 4 Tinhoro, 1988, p. 31. 5 Edital de Caetano Miguel
de Moura, juiz ordinrio do Arraial de Minas do Paracatu, 1763. Apud
Tinhoro, 1988, pp. 40-41. 4 Gerais, 1734) e diablico folguedo
(Bahia, 1735) referem-se, igualmente, prtica do Calundu, manifestao
que segundo Ramos Tinhoro insere-se na esfera religiosa6 O relato
mais exemplar da demonizao do Calundu o de Nuno Marques Pereira
(1652?-1733?), que figura em sua obra Compndio Narrativo do
Peregrino da Amrica. Viajando pelo Recncavo no final do sculo XVII,
o moralista baiano pousa na casa de um proprietrio rural e durante
a noite ouve os sons do calund, com to horrendo alarido, que se me
representou a confuso do Inferno. Espanta-se ao saber que para o
seu anfitrio, no h cousa mais sonora, para dormir com sossego, e
orepreende por permitir aos seus negros que usem de semelhantes
ritos, e abusos to indecentes, e com tais estrondos, que parece que
nos quer o Demonio mandar tocar triunfo ao som detes infernais
instrumentos. Em seguida, manda buscar os instrumentos dos escravos
e os faz queimar em uma grande
fogueira:Alifoimeumaiorreparo,porverohorrendofedor,egrandesestouros,que
davamostabaques,botijas,canzsecastanhetasepsdecabras;comumfumo
tonegro,quenohaviaquemsuportasse:eestandoatentoodiaclaro,se
fechoulogocomumaneblinatoescura,quepareciaseavizinhavaanoite.Pormeu,queficavatudodaDivinaMagestade,lherezeioCredo;e
imediatamente com uma fresca virao tudo se desfez. 7 O que mais
interessa aqui no a truculncia fantasiosa do relato, prpria aos
pregadores ortodoxos, porm o descompasso entre a posio desse
representante da ideologia oficial da colnia e a do proprietrio dos
escravos, que fazia ouvidos moucos aos alaridos na senzala. Os
patres no s embalavam seu sono com os sons distantes dos negros,
como tambm no raro presenciavam a festa de perto. A falta de opes
de lazer para a elite branca da zona rural aproximava-a
naturalmente das funes dos escravos, na qualidade de espectadores
participantes. Essa comunho escandalizou alguns viajantes, como o
botnico Freire Alemo, que em 1859 deparou-se com a seguinte cena,
num batuque em Pacatuba, Cear: As senhoras chegavam muitas vezes
para a roda, assim como os homens, e assistiam com prazer as danas
lbricas dos pretos, e os saltos 6 Tinhoro, 1988. 7 Tinhoro, 1988.
pp. 37-38. 5 grotescos dos negros.8 Lembremos que danas como o lund
e o baiano, em voga nos sales a partir do sculo XIX, originaram-se
dos batuques de escravos. D.Jos da Cunha Gr Atade, governador de
Pernambuco entre 1768-69, distingue dois tipos de batuques dos
negros, os de cunho religioso, que devem ser proibidos - aquelles
que os Pretos da Costa da Mina fazem as escondidas, ou em Cazas ou
Roas, com uma Preta Mestra com Altar de dolos -, e aqueles
destinados ao lazer, que ainda que no sejam os mais inocentes so
como os Fandangos de Castella e as fofas de Portugal.Seguindo seu
parecer, o ministro Martinho de Melo manda proibir, por decreto
rgio, as danas supersticiosas e gentlicas (1700). As outras danas
deveriam ser toleradas, mesmo que contrrias aos bons costumes, com
o fim de evitar-se com este menor mal outros males maiores.9 No
sculo XIX, quando a iminncia de rebelies escravas aterrorizava
proprietrios por todo o pas, assistem-se a sucessivas atitudes de
proibio e tolerncia desse mal menor por parte das autoridades. Nas
fazendas de Vassouras, RJ, as reunies de cativos para a dana do
Caxamb preocupavam os patres. Os regulamentos municipais de 1831
e1838, sob a presso dos fazendeiros, procuraram coibir os encontros
de danas e candombl, temendo que os negros organizassem sociedades
ocultas, aparentemente religiosas, mas sempre perigosas pela
facilidade com que algum negro inteligente poderia utiliz-las para
fins sinistros. No entanto, os prprios fazendeiros reconheciam que
cruel e irracional privar o homem que labuta de manh noite de
certas distraes. 10 Em relao aos folguedos associados s Irmandades
negras e instituio dos Reis do Congo, o discurso dos cronistas
sensivelmente mais brando; surgem expresses de benevolncia e mesmo
de admirao. Encontramos desde o sculo XV notcias sobre Confrarias
de negros do Rosrio, de So Benedito e Santa Ifignia 11 e, a partir
do XVI, 8 Edson Carneiro, 1974. 9 Tinhoro 1988, pp. 43-44. 10
Stein, 1985, pp 243-244. 11 Reproduzindoos estamentos scio-raciais
da poca, instituiram-se na Colnia confrarias separadas para
brancos, negros e pardos. As Irmandades dos Homens Pretos eram
associaes de carter beneficente que congregavam escravos ou forros;
suas principais atividades eram cuidar dos enterros e financiar,
atravs de quotizaes, a alforria de seus membros, alm de ocupar-se
da construo de templos. Scarano, 1976. 6 sobre a participao dos
membros destas em festas pblicas, desfilando junto aos seus Reis
Congos em squitos danantes. O jesuta Antnio Pires (1552) no poupa
elogios organizao dos escravos Minas em sua confraria do Rosrio em
Pernambuco: Ando tam bem ordenados que h para louvar Deus Nosso
Senhor. Muyta aventagem fazem os da terra aos de Guin. Na procisso
do Domingo de Quaresma, enquanto os brancosse no podio meter em
ordem, sempre falando, os escravos da Irmandade hio em tanta ordem
e tanto concerto huns traz outros com as mos sempre alevantadas,
dizendo todos: Ora pro nobis, que fazio grande devao aos brancos,
em tanto que os juzes lhe do em rosto com os cravos 12.O
posicionamento favorvel realizao das festas de Reinado entre os
escravos, e a importncia do apoio financeiro dos senhores reforada
nesta recomendao de Antonil (1711): Negar-lhes totalmente os seus
folguedos, que so o nico alvio de seu cativeiro,
quer-losdesconsoladosemelanclicos,depoucavidaesade.Portanto,no lhes
estranhem os senhores o criarem seus reis, cantos e bailes por
algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e alegrarem-se
inocentemente tarde depois
deteremfeitopelamanhsuasfestasdeNossaSenhoradoRosrio,deSo
Beneditoedooragodacapeladoengenho,semgastodosescravos,acudindoo
senhor com sua liberalidade...13 As festas em torno dos Reis Congos
mostram-se, desde o incio, duplamente fecundas. Para os brancos,
estar patrocinando a festa negra significava, alm de um meio de
dissipar disposies revoltosas dos escravos, a oportunidade de
ostentar publicamente seus negros cristianizados 14 e bem vestidos,
reforando assim seu statusperante a 12 Castagna, 1991, p. 35. 13
Antonil, 1963. Apud FERRETTI, 1995, p. 30. 14 Uma das estratgias
usadas na catequese dos africanos foi a sobreposio da gesta de
Carlos Magno e os Doze pares de Frana (Cristos X Mouros), s gestas
africanas representadas diante dos soberanos negros, narrando
embaixadas e combates entre dinastas da Africa. Ainda hoje em
Congadas Dramticas como a de Ilhabela e a de So Sebastio o Rei de
Congo aparece como representante da Cristandade (referncia provvel
ao Muemba Nzinga, Rei do Congo cristianizado em 1512 como Afonso
I), enquanto o 7 sociedade local15 .Ademais, como bem se sabe, o
Rei de Congo era utilizado como intendente junto escravaria que lhe
devia obedincia. Na outra mo de direo, as Irmandades constituiam a
nica via de insero dos negros na sociedade colonial, e as festas
pblicas, oportunidade de ganharem alguma visibilidade social e
gozarem de momentos fugazes de brilho e glria. E atravs desta
brecha podiam expressar reverncia sua nobreza ancestral perdida
atrs do oceano, recompondo simbolicamente em terras da dispora os
elos de linhagem rompidos com o cativeiro. Os Batuques atuais :
algumas hipteses sobre sua formao Os eventos que a crnica histrica
trata genericamente de batuquesso formas originrias de prticas que
na atualidade dividem-se, grosso modo, em duas categorias
diferenciadas: de um lado os Candombls, grupos organizados de culto
afrobrasileiro (religio), e de outro os Batuques ou Sambas de
Terreiro (tradio). Conforme se ver adiante, ambas desfrutam de
atores sociais comuns. Os dois grandes blocos tnico-culturais em
que se distingue a massa de africanos para c deportados com o
trfico conheceram condies bastante diferentes de fixao terra,
trabalho e cont(r)atos sociais com a cultura hegemnica. Os bantos
pertencentes a vrias etnias do Congo, Angola e Moambique moveram,
desde o sculo XVII, os engenhos de acar do Nordeste, no XVIII
extrairam ouro e diamantes das Minas Gerais e no XIX plantaram e
colheram no Sudeste o to apreciado caf. O trfico de sudaneses 16
provenientes dos territrios hoje ocupados pela Nigria e pelo Benim,
aqui alcunhadas de jjes e nags, intensificou-se ao final do sculo
XVIII , destinando-os aos trabalhos domsticos nas capitais do
Nordeste e, em menor nmero, nas grandes cidades do Rio Grande do
Sul. Em suma, enquanto os bantos constituem desde o primeiro sculo
o embaixador de Luanda (provavelmente associado irredutvel Rainha
Ginga Mbandi de Angola e Matamba), o infiel que ao final da guerra
se faz batizar. Entre os doze fidalgos que combatem do lado do Rei
de Congo esto Oliveiros e Roldo. 15. ...as festas pblicas
constituem momentos privilegiados de exibio de poder e reforo da
segmentao social. Kantor, 1996, p. 109. 16 Etnias ew-fone iorub 8
grosso da mo-de-obra pesada na zona rural, os sudaneses tm uma
vivncia mais urbana, suprindo a necessidade de servios variados
surgida com o crescimento das cidades. O trabalho como domsticos e
negros de ganho permitia aos escravos das grandes cidades -
especialmente Salvador, Recife, So Lus do Maranho, Rio de Janeiro e
Porto Alegre - circularem livremente pelas ruas. Havia, portanto, a
possibilidade de se reunirem segundo as etnias, ainda que fosse s
escondidas, para a prtica de sua religio tradicional em que os
iniciados recebem e manifestam as divindades 17 durante o transe
mstico. Esses encontros constituem a forma germinal das comunidades
de culto hoje conhecidas como Candombls18 , cujo panteo, mitologia
e organizao ritual deve-se preponderantemente civilizao jje-nag,
contando com aportes de todas as demais etnias ou naes africanas e
autctones. O modelo de culto jeje-nag, embora hegemnico enquanto
expresso religiosa dos descendentes de africanos, ao se fundir a
outras modalidades religiosas africanas e amerndias gerou formas de
culto sincrticas como os Candombls de Caboclo, os Catimbs, a
Macumba e, mais recentemente, a Umbanda. Enquanto os escravos das
reas urbanas contavam com a possibilidade de se reunir, seja nas
casas ou roas para a prtica de sua religio tradicional, seja nas
Irmandades Leigas do Rosrio e So Benedito, onde se desenvolve o
Catolicismo afrobrasileiro do Congado e do Reinado, a situao da
massa escrava vivendo nas unidades rurais de produo era bem
diferente. Nos engenhos, fazendas e garimpos distantes das
cidades,a rearticulao cultural das naes era impossvel, dada a
mistura de etnias nas senzalas, o relativo isolamento em que viviam
e a fiscalizao severa exercida por intendentes e feitores.Para o
trabalhador rural escravo, de origem banto em sua grande maioria,
as manifestaes culturais designadas pela crnica do perodo colonial
como batuques, calundsou sambasrepresentavam o esperado momento da
reunio . Se a situao inicial era de enfrentamento de indivduos
pertencentes a etnias tradicionalmente rivais 17 Orixs (nag);
Voduns (Jje) e Inkisses (Congo-Angola) . 18 Candombl (BA), Xang
(PE), Tambor de Mina (MA), Batuque (RS), 9 (por exemplo, congos e
moambiques), o desenvolvimento de uma conscincia de classe entre os
cativos , aliado impossibilidade de cada etnia realizar a sua festa
devido ao nmero insuficiente de pessoas, foram fatores que tornaram
esses encontros propcios ao congraamento multitnico e, portanto,
multicultural. De maneira geral, pouco se sabia acerca do teor de
tais encontros poca da Colnia e mesmo do Imprio, no obstante alguns
representantes do poder poltico e religioso manifestarem, conforme
vimos anteriormente, a preocupao em se distinguir o que era rito
daquilo que seria mera diverso dos negros. lcito supor que, em
muitos casos, esses batuques permitissem reunir atividades
religiosas e profanas num nico evento, fato que certamente no foi
percebido pelos seus observadores brancos. Evidentemente, a
capacidade de apreenso destes, lastreada por uma estrutura mental
cartesiana, nunca poderia vislumbrar as manifestaes do sagrado e do
profano seno como eventos estanques. Passavam eles muito ao largo
do conceito africano da continuidade entre os planos fsico e
espiritual. Trabalhos como o de Placide Tempels e Alexis Kagame19.
mostram que povos bantu como os Ba-luba percebem o mundo como uma
teia de foras em interao, foras de diferentes tipos e intensidades
que tendem ao equilbrio. Num universo sacralizado, qualquer ao do
homem ganha carter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua
fora vital com as demais energias do cosmo. E convivem em continuum
o mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisvel, dos
ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivncia do sagrado total e
quotidiana, ela no exclui as emoes humanas, o prazer e a alegria :
a f com festaque tanto intrigava os cronistas. Ademais,
contingncias peculiares escravido rural contribuam para que devoo e
diversoentre escravos tendessem naturalmente a se articular num
evento nico. Estando eles sob a mira constante dos feitores das
fazendas e sendo proibida qualquer forma de reunio fora das horas
de folga permitidas, parece lgico que se concentrasse no momento
festivo do batuque toda a vivncia social que lhes era negada no
dia-a-dia de trabalho rduo. Realizados nos sbados noite, em vsperas
de dias santos ou marcando o final das colheitas, essas reunies de
cativos deviam, portanto, 10 condensar diferentes atividades
sociais, mediadas, como ocorre na Africa tradicional, pela via
artstica do canto, da dana e do tambor. Traos de uma pluralidade de
situaes comunicativas manifestam-se ainda hoje na potica do Jongo
do Vale do Paraba e do Candombe mineiro, cujo repertrio divide-se
em categorias funcionalmente definidas - crnica social, louvao
religiosa, desafio, etc. Edison Carneiro foi o primeiro autor a
tentar uma abordagem classificatria das danas herdeiras do Batuque
Congo-Angols, agrupando-as num grande complexo nacional dos Sambas
de Umbigada 20. A umbigada ou a meno desse gesto, caracterstico de
danas de ldica amorosa banto-africanas (por vezes associadas s
cerimnias de noivado, o lembamento), seria o trao de unio entre
essas manifestaes geograficamente dispersas- Carneiro menciona 30
diferentes danas, em 11 Estados brasileiros.No obstante as
especificidades regionais, as manifestaes afrobrasileiras de
terreiro - o Jongoou Caxambdo Vale do Paraba e ES, o Batuquedo
Oeste Paulista, oCandombemineiro, a Sussagoiana, o Zambpotiguar, o
Samba-de-aboiode SE, o Tambor-de-crioulamaranhense, o
Carimbparaense, os diversosBatuquesdo Amap, entre outros -
compartilham de importantes caractersticas comuns (algumas delas
presentes em outras categorias da msica afrobrasileira), alm da
presena concreta ou sugerida da umbigada citada pelo autor baiano.
No plano musical, os tambores feitos em troncos de rvore ocados ou
em tanoaria com uma s pele fixada por pregos ou cravos, afinados a
fogo, ou a reinterpretao ritmico-timbristica destes em instrumentos
de modelo europeu; a afinao da voz pelo tambor; o estilo vocal em
que se alternam frases curtas entre solo e coro (responso curto),
ou em que o coro repete um refro fixo, enquanto o solista evolui
com certa liberdade. No plano literrio, o canto improvisado em
forma de desafio; a presena de uma linguagem fortemente metafrica;
os temas de crnica histrica e social da comunidade. No plano da
dana, as formaes coreogrficas em roda valorizando a performance
individual ou de um par ao centro. Muitos dos padres citados tambm
so observveis em danas similares da Amrica Latina e do 19 Tempels,
1949; Kagame, 1956. 20 Carneiro, 1974 11 Caribe tais como o Tambor
de Yuca cubano ou o Bell da Martinica, delineando uma continuidade
de influncias banto-africanas nas Amricas Negras21 Tambm recorrente
nos batuques o fato de se situarem, muitas vezes, num contexto
liminar sagrado/profano 22.. Em outras palavras, a atitude
religiosa permeia organicamente a festa aparentemente profana, e
manifesta-se no respeito aos tambores, ancestrais e outras
entidades espirituais (atualmente, tambm as do Candombl e da
Umbanda), bem como nas demandas poticas de carter mgico travadas
entre os paticipantes. Os batuques ou sambas de terreiro, cuja
existncia em muitos casos anterior formao dos candombls
Congo-Angola, podem ter agregado elementos de antigas formas
religiosas banto no Brasil. Nas linhas que se seguem, fecharemos o
foco sobre trs batuques regio Sudeste do Brasil - Jongo , Batuque
de Umbigada e Candombe-, pondo em relevo algumas de suas estruturas
recorrentes. Antes, porm, faamos uma breve decrio de cada dana. O
Jongo uma dana de roda, em alguns casos com par solista ao centro.
Seus instrumentos so o tamb (tambor maior) e o candongueiro (tambor
menor) e a inguaia (chocalho de cesto). Os pontos ou melodias do
Jongo falam do cotidiano da comunidade (visaria) ou propoem
desafios, atravs de enigmas a serem decifrados (demandaou
goromenta). A linguagem sempre metafrica. O estilo do canto
responsorial (alternando solo-coro). Nossa pesquisa registrou
jongos nas cidades de Guaratinguet, Taubat, So Lus do Paraitinga,
Lagoinha, Cunha e Piquete, todas no Vale do Paraba paulista, e em
vrias cidades do RJ. O Jongo danado atualmente por ocasio do Treze
de Maio ou de algumas festas do Catolicismo popular, destacando-se
as Juninas e a do Divino Esprito Santo.No Candombe mineiro, o
prprio cantador que dana diante dos trs tambores sagrados em forma
de pilo (santana, santaninha e chama), balanando o guai (chocalho)
e exprimindo corporalmente o contedo do seu ponto, rodeado pelos
demais participantes que respondem ao seu canto em magnficas
texturas corais. O Candombe associa-se atualmente ao catolicismo
negro de confraria, sendo danado dentro das 21 Bastide, 1969. 12
capelas das Irmandades do Rosrio ou no terreiro destas. considerado
"o pai do congado", seu fundamento mtico, e caracteriza-se pela
invocao a divindades banto (Calunga, Zambi), aos antepassados e aos
santos catlicos. O Candombe est bastante prximo do Jongo no que se
refere temtica, metaforizao e ao estilo musical dos pontos cantados
(responso curto). Registramos Candombes nas cidades de Contagem,
Belo Horizonte (bairros de Jatob e Pedro Leopoldo), Ribeiro das
Neves (bairro de Justinpolis), Fidalgo, Mocambeiro, Lagoa da Prata,
Jaboticatubas, todas na regio de Belo Horizonte. O Candombe danado
em festas de padroeiros, como Santana e Nossa Senhora do Rosrio,
como rito propiciatrio ou para marcar passagens de grande
sacralidade, como os levantamentos e descimentos de mastro.O
Batuque uma dana em que os participantes se defrontam em duas
linhas, uma de homens outra de mulheres. O ponto culminante da
coreografia a umbigada trocada entre o batuqueiro e a
batuqueira,segundo alguns autores um gesto de mmica sexual ; o
Batuque poderia ter sido uma antiga dana de fertilidade, associada
talvez ao "lembamento", cerimonia de noivado angolana descrita pelo
cronista Ladislau Batalha. Seus instrumentos so o tamb (solista),
enorme tambor de tronco sobre o qual se senta o executante, que
tira dele uma grande variedade de timbres, e o quinjengue
(acompanhamento), tambor em forma de clice semelhante aos
instrumentos do candombe. As modas, melodias do batuque, falam do
cotidiano da comunidade, de temas amorosos ou picantes, ou
associados resistncia e ao protesto social e poltico. O Batuque
atualmente danado por um nico grupo , com mdia etria de sessenta
anos. Tradicionalmente danado nas comemoraes do 13 de Maio, na
Festa de So Benedito e no Sbado de Aleluia. Para a sua realizao
preciso unir os danadores remanescentes de quatro cidades : Tiet,
Capivar, Piracicaba e Campinas.. Comunidades do Tambor O Tambor um
ser animado.Tchrman, tambor falante, um ser animado, isto , um ser
que 22 Foi justamente essa ambigidade de intenes que levou o
turista aprendiz Mario de Andrade a alinhar o Tambor de Crioula do
Maranho entre as Danas de Feitiaria. 13 possui princpio de vida; o
tambor tambm esprito" 23 Na Africa tradicional, tambor um vnculo a
unir os homens entre si e estes s divindades. Ponto focal das
comunidades e suas foras, arauto de soberanos e Orixs, ele prprio
de essncia divina. Tambor junta a fora vital dos trs reinos da
natureza: a do animal que lhe d o couro com a do vegetal que lhe
fornece a madeira com a dos minerais metlicos que fixam tudo no
lugar: um ser de energia plena Entre os grupos afro-descendentes do
Sudeste, como os que praticam o Jongo e o Candombe, um ndice da
importncia que assumem os tambores tradicionais a utilizao do termo
ingoma(do banto ngoma, tambor) para se referir tanto aos
instrumentos quanto ao evento musical e coreogrfico que estes
acompanham ou ao prprio grupo ou comunidade dos danantes, extenso
semntica, alis, corrente entre as culturas da Africa banto. Os
herdeiros dessas tradies consideram-se, pois, comunidades do
tambor. Os velhos e pesados tambores de tronco escavado, com suas
formas e nomes exticos (Ngom, Damb, Damb , Candongueiro,
Quinjengue, Mulemba) a so venerados como as insignias mais
fundamentais da ancestralidade africana, uma espcie de lastro
sagrado a ancorar a comunidade ao terreiro de seus avs. Os tamb
vioso considerados como entes dotados de vida e sede das almas dos
antepassados:
OtamborrealmenteuminstrumentomuitorespeitadonoJongo.Porqueele
recebeumnome,tambmsignificacomosefosseumOrixpragente ali.Ento
eletemquesersaravado24,eletemqueserrespeitado,eletemqueser
cumprimentado na roda de jongo, porque ele um respeito. Sem o tamb
o Jongo
nosai.[...]otambquefala.Eagentetransmitetudooquepodeatravsdo som
pra eles l. uma mensagem25. 23 Noangoran Bouah, 1981, p. 142. 24Eu
saravo o tamb grande/eu saravo o candongueiro/tambm vou
saravando/quem cantou aqui primeiro. Esse o ponto de louvao
tiradodiante dos tambores tamb e candongueiro pelo jongueiro Jos
Carlos Santos, de Guaratinguet, quando acaba de chegar ingoma (roda
de dana). Guaratinguet, 1993. 25 Jos Antonio Marcondes Filho, o
Totonho. Guaratinguet, 1999. 14 Para os praticantes do Candombe de
Minas Gerais, os trs tambores utilizados na dana so madeira santa,
pois seu surgimento liga-se ao mito fundante de Nossa Senhora do
Rosrio. Diz a lenda que, nos tempos da escravido, Nossa Senhora do
Rosrio apareceu no mar. Os brancos se juntaram na praia para tentar
atra-la: construiram rica capela, chamaram padre, coral e banda de
msica. Tudo com muita pompa. Ela nem se mexeu com as rezas dos
brancos. A os escravos pediram licena aos patres para tentar tirar
a Santa da gua; eles fabricaram rsticos tambores de tronco escavado
cobertos com folhas de inhame e foram para a beira do mar tocar e
danar para ela. Foi ento que Nossa Senhora saiu das guas e veio
sentar-se no tambor maior, o Santana, como se fora um andor. Por
isso, o Candombe se inicia assim : tamburete sagrado/licena au. Nas
comunidades candombeiras, os tambores em forma de pilo repousam em
altares nas capelas das Irmandades ou em quartos ao abrigo dos
olhares, e periodicamente so iluminados por velas e recebem
oferendas de bebida26.Um ch preparado com um fragmento da madeira
desses instrumentos dotado de grande poder de cura, segundo alguns
depoimentos. Do mesmo modo, os maus tratos a um instrumento sagrado
pode acarretar desgraa.
Aatribuiodenomesaostamboresemalgumascomunidadesindicaseustatus de
seres dotados de vida. Alm da denominao genrica pela qual so
chamados (tamb,
candongueiro,etc.)ostamboresrecebemnomesdebatismo,mormenteosmaiores,que
fazemamarcaodadana:PresenteePassado,SeteLguas,D-r-mi,etc. 27.
Emumnicocasopornsobservado,osprpriostamborestinhamformahumana.Na
cidadefluminensedeSantaIsabeldoRioPretofomosencontrar,ciosamenteguardados
pela jongueira Dona Nininha, um par de tambores de Caxamb
esculpidos de maneira a
representaraspernaseacinturadeumhomem.Quandopercutidos,estesinstrumentos
26 Diz o Sr. Zez, Capito-mor da Irmandade do Rosrio de Justinpolis:
[o tambor] tem que s iluminado, ele tem que s tratado u! Igual a
gente. mema coisa da gente. Ele tem que s tratado. Tem modo de
iluminado, a cumida e tudo, a bebida e tudo, iluminado. Tem que t
u. Porque eles uma madera...mais, acumpanhante deles tem os
esprito. Que t sempre ali. T sempre por ali.Jos Messias (Zez), Belo
Horizonte, 1996. 27 A associao dos tambores maiores com a me, comum
na Africa, tambm tradio em algumas Comunidades do Tambor do
Sudeste. Em Guaratinguet, por exemplo, o tamb recebe o nome "Minha
Me S" . Nos candombes mineiros, o tambor grave chama-se "Santana" -
segundo a lenda, o tambor sobre 15
parecemformarumscorpocomostocadores,seobservadosdefrente.Otambor
antropomorfo ou zoomorfo bastante comum na Africa banto, morfologia
que refora o vnculo do membranofone com a categoria dos seres
animados. Entre os vrios mitos que evidenciam a fora mstica dos
tambores, h um particularmente interessante, narrado por Jair de
Siqueira, da comunidade negra de Mato do Tio, em Jaboticatubas- MG.
Trata-se de uma verso paralela e simetricamente oposta que se l no
relato do moralista baiano Nuno Marques Pereira acerca da queima
dos tambores do Calund, apresentada no incio deste trabalho. Dada a
importncia deste texto oral, julgamos oportuno transcrev-lo na
ntegra, nas palavras do prprio Jair:
"OBaraunoeraumfazendeiro.Elenumgostavadosnego,no.Quandofoi trat a
liberdade, os nego num tinha mais outra coisa pra faz, a eles foi
pro mato ecortmadeiraefezoinstrumentodeCandombe.E,foilpaportadoBaro
brincoCandombedeles.Elefoi,pegemandfazumafogueiraepsos
instrumentodosnegotudonofogo.Quemosinstrumentodonegoeentrpra dentro
de casa que ele num queria v nem a fumaa do instrumento dos nego.
A, a fumaa foi, emborc pa casa a dentro e foi dento do quarto
dele.[...] Vai, aquela fumaa quemano a vista dele, que ele num
tinha sossego pra nada. s o ardume da fumaa dos instrumento que ele
quem. A, ele foi, mand cham o padre pra cunfess ele. E, o padre
foi, ele cont o padre o que que que ele tinha feito. O
padrefoifal:Ctemquemandfazotrosinstrumentopradessesnego. Porque,
enquanto oc num fiz, oc tem esse ardume. Ele fal: No! Se f isso,
ento, eu mando faz. A, mand faz otro terno de instrumento. Mand faz
otro ternode instrumentoprosnego,matboi,matporco,pscachaalno
terrero
posnegoadiverti.Assimqueelefezosinstrumentoeosnegofoiadivertil,a
que o nego vio cant. Cant esse candombe: "E, Barauno /, Baro na
palma de pont/ , Barauno/ , Baro na palma de pont/ , Baro na palma
de ponta o qual Nossa Senhora sentou-se; Santana a genitora de
Maria Jos, representando, portanto, a idia de "me. 16
machado/BaroUnou"A,afumaasumiu.Issodosnegomemo.Dos africano. 28 Os
donos de ingoma ia dono de ingoma/licena au29 Entre os povos
bantos, os antepassados, embora no mais participando do mundo
sensvel, mantm grande influncia sobre os descendentes vivos na
medida em que os conhecimentos que detm sobre as foras vitais podem
servir para reforar a vida do homem na terra. No esto "mortos", no
sentido que damos palavra, porm manifestam-se constantemente entre
os viventes, aconselhando-os em suas decises fundamentais, sendo,
ademais, os elos que os ligam ao Preexistente30 Em terras da
dispora, o culto aos ancestrais familiares trazido da Africa31
teria forosamente de sofrer transformaes, dado o desmantelamento
das famlias. Rompidos os laos de sangue, restam os de solidariedade
entre indivduos sob o jugo comum da escravido, e os ancestres
familiares africanos cedem lugar aos mortos ilustres das prprias
comunidades cativas. O culto banto aos antepassados sobreviveria no
Brasil nos batuques e canjers, sendo posteriormente absorvidas pela
Macumba e pela Umbanda como adorao coletiva a entidades espirituais
de carter mais genrico, os Pretos Velhos32 . 28 Jair de Siqueira,
Mato do Tio, Jaboticatubas-MG, 1995.Em cada um dos relatos, a
presena do elemento narrativo fumaa serve a projetos de polaridade
oposta, na tenso dialtica negros X brancos : em Nuno Marques, o
fumo espesso indcio inequvoco da presena do demnio, cujo exorcismo
levado a cabo pela leitura do Credo; na fala de Jair a fumaa
torna-se anjo vingador de Deus, que se ergue contra a injustia
cometida pelo Baro - fato ratificado pelo prprio padre - e o
exorcismo feito mediante a entoao de um ponto de Candombe. 29 Ponto
de Candombe. Comunidade dos Arturos, Contagem-MG, 1992. 30 Tempels,
1949. 31 O culto nag aos ancestrais - Egungun -tem pouca expresso
no Brasil, se comparado ao culto aos Orixs, sobrevivendoem alguns
templos baianos como o Il Agboula, da Ilha de Itaparica. 32 A linha
de Preto Velho corresponde a um dos pantees da Umbanda. Tambm a
linha de Caboclo, vinda atravs dos Candombls Angola, incorpora uma
reinterpretao brasileira do ancestral africano, uma vez que o ndio
o habitante primevo das Amricas. 17 A reverncia s almas
presentifica-se de vrias formas nos batuques tradicionais do
Sudeste. No Jongo valeparaibano, a categoria de pontos que recebe o
nome mico de louvaodestina-se sobretudo a homenagear jongueiros
falecidos: Eu sinto saudades/de quem se foi/sarav Canrio
Zumba/nAruanda. 33. As libaes dos tambores com cachaa destinam-se
especialmente a apascentar os espritos presentes roda: Ento ali tem
o Rei Congo, o Rei de Monjongo...O povo de Angola [...] Ento o
esprito suga ali, bebe, ajuda, dana, protege e faz o que a gente
quer34. TambmnaaberturadoCandombemineiro,deve-sepedirlicenaeforaaos
donosdeingoma,osancestraisquelegaramatradio.Eaprpriadanasefaz
homenagem, a insistncia em no esquecer o passado, atualizando-o em
gesto, palavra e msica. Diz o Sr. Zez , Capito-mr da Irmandade do
Rosrio de Justinpolis, MG, que s ns s, num somo ningum. Tem que t a
espiritualidade que t sempre acumpanhano
agente.Agentecantaospontotudo,maispidinoasforamai.Comoespritual,que
trabaia junto com a gente... "
Fala-seaosancestraiscomoelesfalavam,eemconformidadecomosseus
dizeres. Os pontos de Jongo e Candombe que homenageiam essas
entidades so cantados em um patoisritual caracterstico, a
meia-lngua ou gungunado dos Pretos Velhos, com
pronnciaesintaxedoportugusalteradase,porvezes,palavrasoufrasesemdialetos
banto.Nosetratadetranse,masdeumammeseexpressiva,defundamental
importnciaparaseasseguraraproximidadecomoancestral.Noplanodaexpresso
corporal,elasemanifestaaoadotarocandombeiroumaposturaarqueada,nomomento
em que canta e dana seu ponto. Desloca-se lentamente, s vezes com a
mo apoiada s costas, por vezes mancando, como o "nego cambeta"
maltratado pela escravido 35. 33 Nesse ponto cantado por Dona Z, de
Guaratinguet-SP, so lembrados, a cada repetio, os nomes de
jongueiros mortos que pertenceram comunidade do Tamandar. "Primero,
lembr deles, n ? Tem que pedi fora pra eles ali...Se comea o jongo
sem faz uma obrigao pode acontec uma desavena muito grande..."Maria
Jos Martins (D Z), Guaratinguet-SP, 1993. 34 Totonho,
Guaratinguet-SP, 1999. 35 Nesse momento , diversas atividades dos
escravos so representadas pela mmica corporal, a qual reduplica a
semntica verbal do ponto : peneirar ouro ("penera ouro em
p/penerinha"), serpentear pelo cho como uma cobra ("eu s fio da
cobra verde/neto da cobra cor") ou coar-se, antigo gesto de alerta
chegada do branco ("que me coa aqui/ carrapato"). 18
AsentidadesespirituaisdaUmbanda,religioprofessadaporboapartedos
danantesdebatuquesdeterreironoSudeste,marcampresenaatualmenteentreos
pontos de louvao do Jongo e do Candombe. Interessante notar que a
mesma Umbanda
quesenutriudeelementosmticoserituaisbantospresentesnosJongoseCandombes,
como o culto aos antepassados, agora realimenta o repertrio cantado
nessas danas com
asentidadesdoseupanteo.Assim,nosjongoscomoodoTamandar,convivem
ancestresfamiliares-almasdeparentesfalecidos,citadosnominalmenteemcantigas
comoaacimatranscrita-eancestraiscoletivoscomoosPretosVelhosdaUmbanda,
alm das demais entidades do panteo, como os Orixs, Exs, Crianas,
Baianos...
FoinaBeiradoMar/queeuvi/Ogumguerrear/elejuroubandeira/eletocou
clarim/com seu exrcito todo/ele lutou por mim. 36 Os carreiros e
tropeiros constituem uma categoria de entidades cuja proteo
particularmente invocada, tanto no Jongo quanto no Candombe.
Representam as almas dos escravos que tangiam tropas, tendo
portanto uma mobilidade espacial muito maior que os trabalhadores
do eito. Eram eles que, junto com as mercadorias, faziam circular
as idias, notcias e articulaes entre os escravos. Considerados
grandes cantadores e perigosos feiticeiros, tidos como os mestres
incontestes do desafio mgico-potico da demanda, gozam por isso da
predileo dos jongueiros mais experientes: Vamo rez/pra arma do bom
carrero/Que l vai subindo o morro/sem guia, sem candiero37
Jongueiros e candombeiros so capazes de perceber a presena das
almas durante a realizao da dana. Alguns afirmam ter aprendido os
pontos que cantam na roda inspirados por espritos de velhos
jongueiros. No entanto, bastante raro que ocorram transes de
possesso; o local prprio e legtimo para isso so as giras do
centrode Umbanda. Os prprios lderes das comunidades, geralmente
tambm chefes de culto da 36 Ponto de Jongo do Tamandar,
Guaratinguet--SP, 1993. 37 Ponto de Candombe de Mocambeiro-MG,
1996. 19 Umbanda ou da Quimbanda, encarregam-se de coibir eventuais
manifestaes pblicas de espiritualidade nas rodas de jongo, conforme
j presenciamos mais de uma vez 38 Artes do Camaleo... "Os escravo
num podia comunic com ningum, eles num tinha liberdade, n? Ento,
quando eles entrava na senzala que eles iam particip um co outro.
Ento, no meio eles faziam a roda de Jongo e, ali, cada um cantava o
Jongo falando o que queria fal, mas sobre...pela cano. Da, um
entendia o que tinha que s feito. As vezes o que se pass no dia, o
que ia acontec. Ento, um j avisava o outro. E, era por meio de
ponto de Jongo que era comunicado as coisa" 39
Noperodoescravista,oespaodeliberdadequesecriavacomadanano terreiro
representava o momento privilegiado para a comunicao interna da
comunidade cativa, veiculando-se todo tipo de mensagens,
articulaes, crticas e reinvindicaes por meio da crnica cantada.
Surge, assim, uma linguagem potica metafrica muito peculiar,
quetirapartido,justamente,dapercepodequeaculturahegemnicaconsideravaos
negrosincapazesdemaioresrefinamentosdeexpresso.Metaforizaododiscurso
verbal,pelaelaboraodeumalinguagemdbiaconstrudacomimagenssimples,
tomadas realidade imediata - a natureza, os animais e plantas, o
trabalho na roa - cuja
decifraoerarestritacomunidadequefestejavasobosolhoseouvidosatentosdos
intendentes.Oumesmodosbrancosqueseaproximavamdarodacomintenesde
fruio. Ao passo que algumas danas de escravos, como os lunds,
ganham os sales da
casagrande,doladodeforacontinuaasedesenvolverumapoticadecompreenso
38 No Rio de Janeiro mantm-se a ligao entre Jongo e Umbanda no
plano ritual. A pesquisadora Marianna Monteiro esteve presente a um
Caxamb realizado reservadamente num terreiro de Umbanda da zona
rural fluminense, onde era a prpria Preta Velha quem danava,
incorporada no Pai de Santo. Segundo ouvimos, a entidade pedia que
a cada ano se batesse um caxamb em sua homenagem ( dana de Preto
Velho). Em Minas Gerais, fomos informados em vrias ocasies sobre
sesses secretas de Candombe, em que ocorrem incorporaes pelos
Pretos Velhos; elas tm sido absolutamente interditas a qualquer
pesquisador. 39 D Z .Guaratinguet-SP, 1993. 20
internaaogrupo,queaindahojeseatualizanosobscurospontosdoCandombeedo
Jongo. "Que tanto pau no mato embava coron" 40
Obrancomando("coron")novalemaisqueumpaupodrepordentro,
("embava"),emborahajatantagenteboanestemundo,madeiradelei(tantopauno
mato)41.Emsualiteralidade,estesversosparecemsimplrios,inofensivos.A
metaforizao ocorre tambm no plano do discurso corporal, nos
movimentos de danas
comooCandombe.Eemoutroslugares,opqueaparentementefolgavanocanavial
podia, no momento certo, desferir o golpe mortal: a Capoeira jogo,
luta, dana. Ante a aproximao do branco, a festa negra poderia mudar
da gua para o vinho, com a mais perfeita naturalidade. Na potica
das senzalas, o termo camaleodesigna o
negroescravoqueaprendeuausarorecursodemudardeatitudes,colorindo-se
conforme o contexto42. Napontefunda/cambaleo/jacarqumecum/masele no
come no43. difcil para o jacar (o branco), maior e mais aparelhado
para a luta, vencer o pequeno e esperto camaleo (o negro), mestre
nas artimanhas da dissimulao. E dissimular tem sido, desde os
primeiros tempos, a arte necessria do afrobrasileiro. O fino mister
de dizer sem falar, a lrica figurada, justamente uma das linhas de
fora maiores dos batuques afro-sudestinos 44.. 40 Caxamb de Me
Nininha, Santa Isabel do Rio Preto-RJ, 1998. 41 Ribeiro, 1960. 42
Gomes & Pereira, 1988, p. 228. 43 Caxamb de Me Nininha, Santa
Isabel do Rio Preto-RJ, 1998. 44 No entanto, so pouqussimos os
estudiosos que se debruaram condignamente sobre o assunto; citemos
Maria de Lourdes Borges Ribeiro para o Jongo e Nbia Gomes &
Edmilson Pereira para o Candombe. Os 21 Outra caracterstica
marcante na potica afrobrasileira dos batuques- alis presente em
toda arte africana - a essencialidade. O ponto, unidade
meldico-potica do Jongo e do Candombe constituda por dois versos,
um cantado pelo solista e outro pelo coro, pauta-se pela economia
de meios expressivos, pela forma curta e pelo sentido concentrado.
Esses traos aproximam o ponto da mxima, do provrbio, forma
expressiva que to bem traduz o pensamento africano tradicional,
sntese de uma reflexo sobre um mundo estvel e hierarquicamente
ordenado. O hbito de se exprimir atravs de locues proverbiais, caro
aos velhos guardies das tradies orais na Africa, teria
provavelmente influenciado, em terras de exlio, a poesia dos
terreiros e senzalas. Naturalmente, as novas condies de vida impoem
sentidos diferentes para os pontos, mas sobrevive a idia bsica da
formulao sinttica e conotada. Fora de palavra "Palavra. S palavra.
No precisa de mais nada. " Histria do Chico Mandu, jongueiro de
Cunha .45 Nas celebraes noturnas de terreiro , os bons cantadores
rivalizam entre si e se enfrentam em justas poticas que se
prolongam at o amanhecer, com a derrota de um deles. Desafios em
que a habilidade artstica dos cantadores pode significar poder de
sortilgio, manifestando a fora mgica da palavra proferida to
respeitada entre os africanos. Segundo o historiador maliense
Hamadou Hampat-B, para o africano tradicional a palavra dotada da
capacidade de construir e destruir, uma vez que pode visualmente
toscos batuques de terreiro, recnditos em sua maneira de ser e
narrar, deixam de atrair os pesquisadores. Os folcloristas comentam
a medolia pobre e repetitiva, porm sempre se esquivam de uma anlise
mais aprofundada da linguagem potica. O prprio Mrio de Andrade,
literato que era, poucas linhas dedicou, por exemplo, ao jongo de
seu Estado natal, votando o seu lan para o esplendor dos folguedos
nordestinos. Atitude que at hoje faz escola entre artistas e
intelectuais. 45 Ribeiro, 1960, p. 55. 22 colocar em atividade
foras que se encontram latentes na natureza, assim sendo, por
excelncia, "o agente ativo da magia africana" 46.. A crena no poder
encantatrio da fala corrente nas comunidades do tambor do Sudeste
brasileiro. Reza um mito largamente difundido entre jongueiros e
candombeiros que pela fora de seus pontos os cantadores de
antigamente eram capazes de fazer crescer uma bananeira no terreiro
durante a noite de dana, e ao raiar do dia todos aqueles que
estivessem na roda j tinham banana madura para comer. Segundo nos
contam os mais velhos, estes mesmos conhecedores confrontavam-se na
perigosa demanda, porfia ou goromenta, desafio cantado envolvendo
dois ou mais contendores. Da astcia com as palavras, aliada ao
poder de concentrao do jongueiro, depende a fora encantatria do
ponto, capaz de amarrar o outro. So muitos os causosnarrando esses
duelos. E o que est em disputa , sempre, o prestgio dos
cantadores-feiticeiros no interior do grupo: Existe certo tipo de
jongueiro, que ele vem realmente pra disput a posio dele.
Queelevemdemintenomesmo.PrarealmenteamarroJongoatravsdo ponto
cantado, e derrub o jongueiro do bairro, que j conhecido. Ento, ele
qu t o nome dele, ele qu faz o nome dele. Ele j chega mal
intencionado, j chega preparado, no s na cantoria, com pontos
perigosos, cheios de segredo [...]Aonde acontece da demanda
realmente fic perigosa, ali na roda de Jongo. Quem sofre as vezes
so o pessoal que t em volta, que no t totalmente defeso sobre
aquilo ali, no tem defesa suficiente...47 A goromenta (corruptela
de argumento), enigmtica ao extremo, resultou de um desenvolvimento
cabal da linguagem crptica utilizada para a comunicao cantada nos
batuques de terreiro. Os melhores pontos so aqueles mais
incompreensveis e sintticos. O jongueiro formula maliciosamente uma
dessas charadas e a lana roda, esperando que algum se apresente
para a "desatar" : 46 Hampat B, 1982, p. 186. 47 Totonho,
Guaratinguet-SP, 1999. 23
"Noaltodaquelemorro/Tombtombtomb/Mamequebrpescoo/Cabea fic no ar"48
Se no fr bem sucedido, o jongueiro que se prope a decifrar um ponto
como este pode ficar amarrado: permanece paralisado junto fogueira,
e no dia seguinte no se lembra do que lhe sucedeu. Se o ponto fr
muito pesado, e o jongueiro estiver de corpo aberto49, pode
acontecer coisa pior, terminando inclusive em morte. Entre os
candombeiros de Minas, as histrias de amarrao tambm so correntes:
"...Naportadaigreja,nolevantamentodabandeiradeSoBenedito.Aelesto
cantanoldeporfiacontraosotros epapai,coitado,papainum mexiacomesse
negciodemacumba.Ih,maiselegostavadocandombetamm.Entrlno
Candombe.Cantumcandombe.A,aJacinta...porquepapaicantavaum
candombe...ele num tinha mardade, n ? Ele cant um candombe l, a
Jacinta foi e entr no Candombe e cant : ', sapo caiu na lama/lama
di patin/ caiu, caiu/caiu
numlevantamais'.Quandoopovorespondeupapaiarri..Papaiarriefoi
levantado por mo dos otro. A que entr Tio Jvi cant candombe e bot
papai a
prumo......[papai]levanteencostnolugardenovo.Elenemficsabenoque
tinha cado50. A sabedoria do jongueiro, do candombeiro reside ,
entre outros misteres, em dominar um grande nmero de termos e
expresses com valor conotativo legados pela tradio oral - por
exemplo, cada uma das partes do carro de boi e seu sentido oculto.
48 Ponto de Z Carlos, Guaratinguet-SP, 1994. O desatedeste ponto :
Marinheiro no embarques/Que no mar est ventando/Olha a foia do
coqueiro/Como t balanciando". Os versos aludem a uma situao que faz
parte do quotidiano rural do jongueiro: o vento derrubou (tomb tomb
tomb) um palmito (o pescoo) no meio do mato, o qual ficou pendurado
palmeira (mame) por um pequeno pedao de fibra, e a copa ficou
solta, balanando no ar (cabea fic no ar). O desate refere-se
indiretamente situao, sendo mencionados apenas a folhagem do
coqueiro balanando e o vento no mar, ndices suficientes para
mostrar que o marinheiro(jongueiro) decifrou o ponto. 49 Dentro da
concepo metafsica banto-africana das foras em interao, mais um
indivduo se encontra reforado, isto , detendo uma fora vital
naturalmente crescida ou estando protegido por objetos mgicos, mais
ele se encontra apto a fazer frente a energias antagnicas que lhe
podem ser endereadas, por exemplo, atravs do feitio. Tempels, 1949.
24 Porque, conforme explica mestre Joviano, de So Lus do
Paraitinga, o Jongo tambm uma tioria, sabe? O Jongo tamm uma
escola, e tioria. 51 Totonho, de Guaratinguet, assim define os
quesitos necessrios para se sair bem numa roda de Jongo:
Obomjongueiro,elevemdaexperinciadele,doconhecimentodoafro,da
rapidezdeleselivrdooutrojongueiro,dospontosquevemafetandoele.E
tambm, dele desat aquele ponto que vem em cima dele, e ele se sa
muito bem [...]Todos jongueiros so mirongueiros. Eles se preparam
muito pra cant o jongo;
sabecomochegapraabriojongo,etemquesabcomosa,praviemborapra casa.
Tem que sab essas artimanha. D-se o nome de cumba , isto ,
feiticeiro, ao jongueiro conhecedor. Nos dias de hoje, os ltimos
velhos cumbapreferem carregar para o tmulo o sentido oculto dos
pontos antigos e a fina arte de encade-los, pois j no encontram
herdeiros interessados ou altura de seus conhecimentos. Desse modo,
tem-se perdido o fundamento de muitos pontos de jongo52
Para os jovens de hoje, importa mais a diverso, o prazer da
percusso, da dana, do encontro. Embora a demanda ou goromenta
esteja se tornando cada vez mais rara nos terreiros, ainda
permanece viva nas Comunidades do Tambor a crena no misterioso
poder dos versos capazes de despertar foras desconhecidas. Se
porventura se instala uma demanda, ainda que entre amigos, muitas
pessoas se afastam da roda, e logo os desafiantes so apartados.
Conforme diz o Nico, jongueiro de Piquete : ... tem segredo, gente.
Tem gronga, tem mironga". Mistrio que ainda ronda a festa nos
terreiros. O branco no vem c 50 Jair de Siqueira, Comunidade negra
de Mata do Tio, Jaboticatubas-MG, 1995. 51 Na Africa profunda, mais
um indivduo conhece as palavras da tradio, tanto maior ser sua fora
e seu domnio sobre as demais foras do cosmos. Hampat-B, 1982 52
galo rosa/tenha d do meu penar/suas penas so douradas/tenho medo de
molhar na ingoma. O jongueiro Nico, de Piquete, assim manifesta sua
relutncia (tenha d do meu penar) em usar da nobre herana ( as penas
douradas) que recebeu do pai (o galo rosa, antigo rei do jongo em
Piquete) nas rodas 25 s fio da cobra verde/neto da cobra
coral53
Graas s artimanhas prprias ao camaleo, a festa no terreiro
garantia uma relativa privacidade comunidade escrava, configurando
contexto propcio ao fortalecimento dos valores de identidade - o
querer ser negro, manter-se negro dentro de uma sociedade dominada
pelos brancos. Essa festa ntima opunha-se, em intenes, s festas
pblicas onde se produziam as danas de cortejo afro-catlicas
(congadas), nas quais o negro buscava incluir-se na sociedade
branca, tendo para isso que abraar certos valores da cultura
hegemnica. A festa do batuque enquanto espao onde negro quem manda
celebrada at hoje no cancioneiro do candombe, na modalidade
denominada samba de sanzala: Semba criola/que o branco no vem c/se
ele vier/pau vai lev Em festa de preto/branco l no vai/se ele chega
no entra/se ele entra no sai54 O autoritarismo ou o paternalismo
patronal do branco devem ficar do lado de fora da festa do preto,
conforme nos comunicam os versos acima. Em seu quintal, o negro
basta ao negro. E a dana ancestral representa o manancial de
historicidade que irriga a construo de uma identidade
afrobrasileira. No terreiro onde danaram seus avs, o negro agente
de sua histria e senhor de uma cultura prpria e peculiar. Uma
temtica principal dos batuques de terreiro , ainda hoje, a crnica
social.
ocasodasmodalidadespoticasditasdevisariaoubizarria,praticadasnosJongose
Candombes,assimcomodasmodasdeBatuquedeUmbigadadoOestepaulista.Suas
canes tecem comentrios srios ou jocosos acerca de eventos presentes
e passados das comunidades, bem como de seus personagens conhecidos
de todos. Reafirmam-se assim de jongo atuais (na ingoma). Pois teme
no encontrar interlocutores que possam entender essa arte em toda a
sua sutileza (tenho medo de molhar). Nico, Piquete-SP, 1996. 53
Candombe dos Arturos, Contagem-MG, 1992. 54 Joo Lopes, Candombe da
Irmandade do Rosrio de Jatob, Belo Horizonte-MG, 1993. 26
valoresmorais,ticosereligiosos,inserindo-seacrnicacantadanosmecanismosde
controle social do grupo.
Sendoobatuqueumterritriolivreondeoindivduofalacomunidadeeda
comunidade, seus pontos e modas tm sido desde sempre o veculo ideal
da crtica social
epoltica.OsBatuquesdeUmbigadadascidadesdeTiet,PiracicabaeCapivari
realizam-seatualmenteemclubesousalesparoquiaisdenegros(assimcomoos
bailes
black),criando-seportantoumaatmosferapropciaaolibeloanti-racista.Obailenegro
intra-muros,privado,contribuiparatrazeralinguagempoticadasmodasaumplano
menosconotativo.Oinconformismocomadesigualdadesocialquereservaaonegroa
posiohistricadetrabalhadorsubalternoealienado,massacradopelafainadiria,
explode nesta moda de Dad de Piracicaba:
Trabalh,euno,euno/trabalho,notenhonada/stenhocalonamo/omeu patro
ficou rico/e nis fiquemo na mo
Otemadadiscriminaoracialabordadocomfrequncia.OjongueiroGilde
Piquete-SP,serve-sedaimagemdoburrodecarga,antigametforadonegroutilizada
pelas comunidades do tambor do Sudeste, para mostrar com fina
ironia que o preconceito racial como um dogma ensinado desde cedo s
crianas: Minha me me ps na escola/pra aprend o ABC/a professora
ensin/que o burro no sabe l55. De maneira menos velada, a
batuqueira capivariense Anecide Toledo denuncia o racismo em sua
cidade natal atravs de uma moda. Foi cantada aps o seu filho ter
sido discriminado ao procurar emprego como pedreiro numa obra,
sendo-lhe atribudo um salrio inferior ao do amigo branco que o
acompanhava: 55 A cada repetio da frase do coro (o burro no sabe l)
Gil acrescenta : eu quero burro deputado/eu quero burro estadual/eu
quero burro federal/ eu quero burro em toda parte. Gil, Piquete-SP,
1996. 27 Nasci em Capivari/gosto muito da minha terra/So Joo que me
perdoe/do que eu vou falar qui/precisa acab o racismo/dentro de
Capivari Outra moda clebre de Anecide comenta a precria condio
social dos negros em sua regio, que segundo ela parece pior
atualmente do que nos tempos da escravido, quando pelo menos eles
tinham garantidas a alimentao e a moradia. Foi cantada durante o
Batuque do 13 de maio em Piracicaba: Se Lus Gama fosse vivo/ele
chorava com muita razo/porque foi ele que votou pra liberdade/mas
tem negro na cidade/que inda chora a escravido. O orgulho da raa
objeto dos belos versos da mesma Anecide, a grande dama do Batuque
de Capivari: Namoro com uma moa/no branca, no feia/leno branco na
cabea/uma argola na oreia/ meia-noite brinco dela relampeia A
namorada bela , e nem por isso precisa ser buscada entre as
brancas, como fazem alguns afro-descendentes visando adquirir
status social. Vestida maneira de sua gente , a moa carrega a fora
espiritual das iabsafricanas, expressa na belssima imagem do brinco
que relampeia meia-noite, hora grande. O desafio constitui a forma
suprema de afirmao do poder do negro, numa inverso simblica da
correlao de foras: desde os tempos da escravido, desprovido de bens
materiais, ele foi capaz de triunfar sobre seus supostos
dominadores pela fora da espiritualidade e da arte. Foi assim que
Nossa Senhora do Rosrio saiu das guas atrada pela fora dos tambores
dos escravos, aps as vs tentativas dos brancos: 28 Por isso que ns
bate o Candome, brincano, igual desafio. Porque o branco desafia o
negro e parece que ele ganha. Mas ganha c os nego vio. Igual com
Nossa Senhora...quem ganh ? Candome um desafio, uma brincadeira de
gente forte, que pe ponto lembrano os passado.56 No universo do
sagrado, o controle sobre as foras espirituais coloca os
afro-descendentes em posio de vantagem. Pois a cada dia se comprova
que a cincia dos dominadores, grande dogma e escudo do mundo
civilizado, possue inmeros desvos que os tornam vulnerveis: Branco
sabe l e escrev/s no sabe do dia de morr57 Nas comunidades do
tambor, so recorrentes os relatos sobre escravos que conseguem se
impor sobre os patres atravs de seus conhecimentos tradicionais, no
obstante serem analfabetos. No intervalo de um batuque em Tiet, em
vsperas da festa de So Benedito, foi cantada a seguinte carreira
58lembrando as faanhas de um africano que se tornou famoso na
regio: Bomba:"Vlembrdaqueletempo/dotempodaescravido/queonegono
sabia l/ e s sofria judiao /e trabaiava sol a sol/ inda apanhava do
patro " Teotnio:"Mai'nomeiodenegoburro/tinhaumnegoqueerabo/osinh
compr o nego/ eu v cont que aflio /e Joozinho vendeu pra Pedro/e
vendeu por dois tosto/quando cheg no caminho/olhe l que confuso/ele
pediu o nome dohome/homenegestribo,dissequeno/meunome,meunome
fogo/vd resposta a sinh/veja, o seu nome fogo/ c vai perd sua
direo/eu s gua que apaga fogo/ onde que o nego priso / eu s gua que
apaga fogo/ eu no s nego 56 Sr. Geraldo Arthur Camilo, da
Comunidade dos Arturos, Contagem, MG. Gomes & Pereira, 1988,
pp. 220-221. 57 Catop de Milho Verde, em Serro-MG, 1997. 58 As duas
modalidades poticas do Batuque de Umbigada do Oeste paulista so a
moda , cano, e a carreira, desafio travado entre batuqueiros
enquanto esperam o reaquecimento dos tambores junto fogueira. 29
turro/eseocbatnimim/suamulhchorasemrazo/porqueonegrinhoera decente/
e era burro inteligente de nao " Eis como o escravo responde ao
senhor : se maltratado, era capaz de transferir a
dordocastigoqueelesofriaamarradoaotroncoparaocorpodasinh,nacasagrande.
Pois ele era "burro inteligente de nao", ou seja, escravo ("burro")
africano ("de nao")
conhecedor("inteligente")dasmirongas,mistriosqueregemasforasdanaturezaEle
no declara seu nome, segredo : ao mesmo tempo fogo e "gua que apaga
fogo", ou
seja,selequempodedesmancharoquefaz.Portanto,oseunovoproprietrios
ganharia em trat-lo bem. A moa branca : Preceito X Preconceito
[...] dana a que chamam batuque[...] se no pode exercitar sem o
concurso de bebidas e mulheresprostitudas59
Na dcada de trinta, aparecem, no livro do tombo [da Irmandade de
S. Benedito] diversas referncias a abusos que alguns reis [congos]
cometiam em suas festas, permitindo o consumo exagerado de bebidas
alcolicas e a presena de jongos60. Quem primeiro me informou acerca
dos usos rituais da cachaa no Jongo foi Dona Z, jongueira
sexagenria do Tamandar : Passa pinga no tamb, que o dever. D pinga
no foguera. Depois, chega l, sarava l e, todo mundo vai l, sarav o
tambur e depois comea o Jongo". Freqentando posteriormente outras
comunidades do tambor, notei que as ablues dos intrumentos com
cachaa so uma constante em todas elas : uns 59 Edital de Caetano
Miguel de Moura, juiz ordinrio do Arraial de Minas do Paracatu,
1763. Tinhoro, 1988. 60 Murade, 1993, p. 6. 30 dizem que para o
couro abrir a voz, outros, para acalmar as almas que se encontram
ao p do instrumento: A pinga que se passa no tamb, j faz parte
realmente, porque a gente t dando pinga no pro couro, mas para o
esprito que t ali(Totonho, Guaratinguet,1999). Os tocadores ungem
tambm as mos com a bebida, e servem-se de um gole. Estabelece-se
assim, atravs da cachaa ritualizada, a comunho entre tocador, seu
instrumento e os antepassados. Entre os danadores do Candombe
mineiro, quase todos eles congadeiros ligados s Irmandades do
Rosrio, o uso ritual da pinga j est expresso no mito fundante da
sada de Nossa Senhora do Rosrio das guas do mar : "...e tornaram
[os negros] bat com os tambor deles, a tir ela [NS do Rosrio]
praforadomar.Entotirela,enomeiodelestinhaumpretoviocambeta.
Cambetaqudizumapessoa...Essesnegoantigo,quevoficandovioe
entortandotudo.Entotinhaumcambetalatrs,eeleficsemjeito...Queria
agrad ela, mais num tinha com qu agrad. Naquele tempo, o agrado
melh que
tinha,queelescarregavam,eraumapinguinha.Numacabacinha.Entoeles,o
neguinhoandavac'umacabacinhazinhaamarradadecip,ofereceupraNossa
Senhora. Ela fal : 'No, eu num tomo... Mais guarda, que servir de
remdio pra vocsmesmo.'Entonstemo...Nscarregamosdentrodeumchifre.Tl
dentro. Num sai sem ele de jeito nenhum. Porque isso a envm de
tradio e ns no podemo dex a tradio no...61 A importncia ritual da
pinga tal que h uma categoria funcional de pontos de Jongo e de
Candombe especialmente dedicada bebida, cantados no momento em que
a cabacinha passa de mo em mo, para o golo coletivo do remedinho.
Alguns exemplos: Bombeiro da bomba/me d um copo dgua/que a sede me
tomba. (Jongo de Santa Isabel do Rio Preto, RJ); A cachaa moa
branca/filha de homem trigueiro/quem tomar amor por ela/nunca mais
junta dinheiro(Candombe de Justinpolis-MG); Que abelha to brava/que
mel to doce (Candombe de Mocambeiro, MG). 61 Capito Zez, Irmandade
do Rosrio de Justinpolis, Ribeiro das Neves-MG, 1996. 31 A garrafa
mantida junto aos tambores e dela se servem todos, no se aceitando
bebida vinda de fora. Pois so vrios os relatos dos efeitos nefastos
da pinga temperada - com palavras, rezas - que por vezes circula na
roda oferecida por gente de ms intenes. No ano de 1993, fui a Cunha
pela poca de So Pedro procura do Jongo, que s conhecia atravs dos
escritos de folcloristas como Alceu Maynard de Arajo. Inexperiente
que era, dirigi-me a um Museu Municipal, onde fui informado que a
dana no mais existia na cidade. Diante da minha insistncia, o
responsvel pelo lugar disse que, sim, havia um bando de
cachaceiros, mas o que faziam era um barulho, no o verdadeiro
Jongo. Inspirado pela palavra cachaceiros, entrei no boteco mais
antigo que encontrei, nas proximidades do Mercado Municipal, e l
comentou-se sobre a realizao de um Jongo naquela mesma noite na
Vrzea do Gouveia. A funo durou at quase o amanhecer, e deixou-me
perplexo pela multido de participantes, pelo grande nmero de
jongueiros que improvisavam seus pontos na roda e, tambm , pelo
hermetismo de suas cantorias... Um Jongo em plena vitalidade,
negado aos visitantes pelas vias oficiais de informao, sendo seus
protagonistas reduzidos a cachaceiros! Bebida havia, claro, como em
toda festa que se preze. E mais quilmetros de poesia e sculos
histria na boca daqueles matutos. Perseguindo outros batuques do
Sudeste, aquele modelo de aproximao passava a exibir algumas
constncias : ou as manifestaes que eu buscava eram absolutamente
desconhecidas, no s dos organismos pblicos de cultura quanto da
prpria populao das cidades ou ento esforos eram feitos em me
dissuadir da empreitada, sob a alegao de que o grupo que eu
procurava se encontrava merc do alcoolismo. Percebi mais tarde que
a inteno era escamotear, esconder dos visitantes as tradies
musicais e coreogrficas da populao negra da cidade que transitam
fora da esfera do socialmente aceito - samba, pagode - ou daquilo
que conta eventualmente com o beneplcito da igreja catlica -
congadas, folias. Interessa, pois, s classes mdias brancas catlicas
(e, atualmente, tambm as evanglicas) do interior, em nome da boa
imagem de suas cidades, que os batuques permaneam enguetados nos
morros, nas baixadas e periferias favelizadas, longe dos olhos e
ouvidos dos forasteiros. Para isso tem contribuido decisivamente a
averso histrica da igreja catlica, sob cuja esfera de influncia 32
colocam-se as instncias mantenedoras da ordem pblica, aos batuques
de terreiro, tidos como focos de paganismo, desordem e abusos
morais de toda ordem. No Ensaio Opinio e Classes Sociais em Tiet,
Antnio Cndido analisa o impacto causado pela realizao de um Batuque
de Umbigada na cidade de Tiet em 1943, organizado especialmente
pela Prefeitura local para uma comisso da Cadeira de Sociologia da
USP composta pelo Prof. Roger Bastide e seus alunos, entre os quais
o autor. Sendo a primeira vez que esta dana dos negros tinha lugar
em pleno centro da cidade, com anuncia e mesmo com a presena das
autoridades e de grande nmero de moradores, o evento suscitou
diferentes comentrios de acordo com a camada social entrevistada.
Os resultados mostram que o maior opositor realizao do Batuque foi
o vigrio local; segundo ele as danas de negro estavam caindo no
esquecimento e a curiosidade mals dos pesquisadores poderia
despertar a sua vitalidade adormecida, acrescentando que um batuque
discreto, de pretos adultos sem alarde, fora da cidade, apenas para
o grupo de pesquisadores, no teria sido malfico nem lhe despertaria
reprovao. Tambm entre a classe mdia em asceno foi grande o ndice de
rejeio; a aristocracia rural mostrou-se indiferente, e os maiores
incentivadores do evento foram as classes baixas e os intelectuais.
Sacralizada nas comunidades do tambor e respeitada por ter sido o
nico lenitivo que ajudou o povo negro a suportar a brutalidade do
escravismo, a cachaa tem servido ao longo dos sculos s classes
dominantes brancas como uma das principais provas de acusao contra
as danas afro-descendentes de terreiro, a justificar o exerccio da
excluso social racista; vejam-se as citaes em epgrafe e outros
excertos da crnica reproduzidos no incio deste ensaio. O mais
perverso que os prprios acusadores se encarregaram historicamente
de fornecer a bebida aos negros, na inteno de alici-los. E at hoje
a moa branca tem sido a companheira, na falta de outras e melhores
amizades, dos milhes de brasileiros que se encontram privados de
condies dignas de existncia. Porm dela se fazem usos e abusos : na
boca de preto remdio, na boca de branco veneno... Um ponto sem
desate 33 A dana veio da roa mas hoje acontece, nos dias dos santos
juninos, numa quina de terreno encostada na Via Dutra, no perifrico
bairro do Tamandar, em Guaratinguet-SP. A festa atrai uma pequena
multido. Mas nem sempre foi assim. Nos seus tempos de menina,
lembra-se a Dona Z, mulheres e crianas no podiam participar do
Jongo, por causa dos duelos de jongueiros cumba, feiticeiros da
palavra. Eles se derrubavam uns aos outros com a fora mstica de
seus pontos. Na face tosca das palavras que os cativos de outrora
dissimulavam mensagens, louvavam ancestrais e endereavam demandas
encantatrias. Na roda do jongo, eles diziam o que tinha de ser
dito, pela cano. A vida desses camponeses negros mudou, claro, com
a vinda para a cidade. Mudou, mas no em essncia : passados de
escravos a empregados rurais, so hoje proletrios e subproletrios da
rica Guaratinguet. Uma vida dedicada ao trabalho, e ainda sem
direito s benesses da modernidade. Uma histria de marginalizao. Mas
as cozinheiras, os vigias, os biscateiros, um batalho de
desempregados, chegam para danar, durante um ms por ano, a dana que
lhes d nome e endereo: cidados-jongueiros do Tamandar, filhos e
netos de jongueiros. Mulheres e crianas inclusive: como dizem, o
Jongo hoje um clube. Esses mesmos jongueiros que batem cabea para
os seus Guias nas giras de sexta-feira noite, e no Carnaval, so os
bambas do Bloco da Raa e das duas Escolas de Samba do bairro. Samba
e Umbanda, expresses negras que brotaram do tronco ancestral do
Jongo e hoje realimentam sua potica. E no terreiro em que danaram
seus avs, os jongueiros do Tamandar vm celebrar a continuidade
histrica de que so protagonistas. O Jongo do Tamandar veio chegando
de terreiro em terreiro, ao longo da estrada que leva da roa
cidade, sempre desapropriado pela especulao imobiliria.Veio vindo e
parou s margens da grande rodovia. Parou, porque do lado de l da
Dutra, no centro de Guaratinguet, o nico espao que se abre hoje
para o Jongo, danado h mais de um sculo pela comunidade, so os
trinta minutos regulamentares nas Comemoraes do Treze de Maio -
junto com Capoeira, Rap e Pagode. Assistido por uma dzia de
pessoas.Agora os jongueiros do Tamandar parecem estar realmente em
apuros, pois acabam de perder o terreninho em que faziam sua festa
anual, doado pela Prefeitura a um particular - no obstante as
promessas de palanque de criar naquele local a Praa do 34 Jongo. O
terreiro foi murado e seus portes trancados a cadeado, e l j
despontam as fundaes de uma construo. Mestre Totonho, esperto,
divisou um terreiro l em cima do barranco, bom para a dana. Mas e
as tias velhinhas, como vo fazer para caminhar at l ?Esta a histria
do Jongo e de todos os batuques hoje perdidos nas favelas e
periferias urbanas. Histria dos banidos da Histria. E dos velhos
cumbas que se vo pra Aruanda sem revelar o desate do seu ponto.
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