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MONTAGEM Vincent Pinel O CAMPO-CONTRACAMPO A “linha dos olhos” Para filmar dois personagens Y e Z conversando frente à frente, a técnica primitiva consistia em registrar duas imagens observadas do mesmo ponto ou segundo dois eixos paralelos e próximos [ângulos 1 e 1A] perpendiculares à linha imaginária juntando seus olhos [y-z] (e perpendiculares ao cenário). Y e Z, completamente separados, são então vistos de perfil e parecem mudar pelas bordas laterais da imagem. Convém, nesse caso, escrever CAMPO CONTRA CAMPO, sendo contra entendido como próximo e não como oposto. Mas, esses dois ângulos não valorizam nem os olhos nem os olhares. Para valorizá-los, basta tomar um ângulo suficiente com relação à linha imaginária y-z para enquadrar Y de ¾ de perfil, o que permite colocar Z apenas em parte (deixando-o aparecer de costas, eventualmente em uma zona desfocada) [ângulo 2]. Como se trata de registrar dois campos opostos, parece a priori lógico colocar a câmera no oposto sobre o mesmo eixo, então a 180º, para ter Z de ¾ de perfil e Y em apenas uma parte [ângulo 2A]. No entanto, a sucessão 2-2A desvia o espectador: Y e Z parecem não se olharem, mas olharem na mesma direção (os olhares não se cruzam e os planos “raccordent” mal). Ao colocar a câmera simetricamente no ângulo 2, do mesmo lado da linha imaginária y-z [ângulo 2B], nós obtemos uma sucessão de imagens 2-2B que responde ao efeito desejado de CONTRACAMPO. Esta “regra” da linha imaginária a qual não se pode romper é aplicável a todos os raccords de direção. No caso de um contracampo mostrando dois carros, um perseguindo o outro, deve-se evitar ultrapassar a linha imaginária que separa os dois veículos sob a pena de gerar uma confusão em seu sentido de deslocamento. Então, importa, em uma filmagem, se guiar pelas direções registradas nas imagens que se seguem e não apenas na topografia do lugar onde se filma.
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A Montagem - Vincent Pinel

Dec 10, 2015

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CleliaMello

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Page 1: A Montagem - Vincent Pinel

MONTAGEM

Vincent Pinel

O CAMPO-CONTRACAMPO A “linha dos olhos”

Para filmar dois personagens Y e Z conversando frente à frente, a técnica primitiva consistia em registrar duas imagens observadas do mesmo ponto ou segundo dois eixos paralelos e próximos [ângulos 1 e 1A] perpendiculares à linha imaginária juntando seus olhos [y-z] (e perpendiculares ao cenário). Y e Z, completamente separados, são então vistos de perfil e parecem mudar pelas bordas laterais da imagem. Convém, nesse caso, escrever CAMPO CONTRA CAMPO, sendo contra entendido como próximo e não como oposto. Mas, esses dois ângulos não valorizam nem os olhos nem os olhares. Para valorizá-los, basta tomar um ângulo suficiente com relação à linha imaginária y-z para enquadrar Y de ¾ de perfil, o que permite colocar Z apenas em parte (deixando-o aparecer de costas, eventualmente em uma zona desfocada) [ângulo 2]. Como se trata de registrar dois campos opostos, parece a priori lógico colocar a câmera no oposto sobre o mesmo eixo, então a 180º, para ter Z de ¾ de perfil e Y em apenas uma parte [ângulo 2A]. No entanto, a sucessão 2-2A desvia o espectador: Y e Z parecem não se olharem, mas olharem na mesma direção (os olhares não se cruzam e os planos “raccordent” mal). Ao colocar a câmera simetricamente no ângulo 2, do mesmo lado da linha imaginária y-z [ângulo 2B], nós obtemos uma sucessão de imagens 2-2B que responde ao efeito desejado de CONTRACAMPO. Esta “regra” da linha imaginária a qual não se pode romper é aplicável a todos os raccords de direção. No caso de um contracampo mostrando dois carros, um perseguindo o outro, deve-se evitar ultrapassar a linha imaginária que separa os dois veículos sob a pena de gerar uma confusão em seu sentido de deslocamento. Então, importa, em uma filmagem, se guiar pelas direções registradas nas imagens que se seguem e não apenas na topografia do lugar onde se filma.

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EXEMPLOS:

La dixième symphonie (1918) de Abel Gance, com Emmy Lynn e Jean Toulot.

Campo-contra-campo a 180º

Campo-contracampo conforme a “regra” Interlúdio (1946) de Alfred Hitchcock, com Cary Grant e Ingrid Bergman.

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O “EFEITO K” A mecânica da montagem

Sem dúvida, com o auxílio de seu aluno Vsevolod Pudovkin, Lev Kulechov empreendeu, por volta de 1921, a sua mais célebre experiência de montagem. É conhecida sob diversos nomes: “experiência Mosjukine” (do nome do intérprete que participou involuntariamente), “efeito Kulechov” ou, ainda, “efeito K”.1 Tal experiência concernia sobre o trabalho do ator e foi notadamente inspirada pelo taylorismo, curiosamente muito admirado naquela época na União Soviética. Kulechov tomou emprestado de um filme três primeiros planos do célebre ator russo Mosjukine, planos neutros nos quais não exprimia nenhum sentimento. Ele justapôs cada um desses primeiros planos idênticos ao plano de um prato de sopa, o plano de um caixão onde repousava uma mulher morta e o plano de uma garotinha brincando. O público admirou o desempenho de Mosjukine que sabia muito bem representar, alternadamente, a fome, a tristeza e a ternura.

As próprias condições da experimentação apresentam obscuridades: assim, pode-se se interrogar sobre o modo pelo qual Kulechov assegurava a separação das diferentes expressões. Alguns teóricos até mesmo contestaram ou negaram a realidade da experiência. Mas, o essencial não é isso. Experimentado ou não, o efeito K chama a atenção para a função criadora da montagem: a simples colagem de duas imagens permite que surjam uma ligação ou um sentido ausentes nas imagens elementares. E mesmo se as variações de expressão do rosto de Mosjukine não fossem tão evidentes como se diz, é provável que a junção dos planos estabelecesse uma CIRCULAÇÃO DO OLHAR de um ao outro, que ela assegurasse a união entre quem olha e quem (ou o que) é olhado. Nós temos aí um dos efeitos essenciais da montagem. Entretanto, o agenciamento dos planos apresenta uma bizarrice que nenhum analista parece ter levantado: o estimulado é posto ANTES do estimulante. A experiência teria sido menos sutil, mais mecânica, se os primeiros planos de Mosjukine fossem postos APÓS as imagens com as quais eles eram confrontados. Na configuração descrita por Pudovkin, o efeito K implica uma contaminação retrospectiva da percepção da representação. Tudo acontece como se o olhar do espectador substituísse aquele de Mosjukine desaparecido da tela e que esse olhar insuflasse a posteriori suas próprias emoções sobre o rosto do ator.

Ivan Mosjukine em L’Angoissante aventure (1920) de Yakov Protazanov. O ator gozou de uma popularidade extraordinária nos anos 1910 e 20.

1 Ver “L’effet Koulechov”, Iris, Paris, volume 4, nº1, 1º semestre, 1986.

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A MONTAGEM SEGUNDO PUDOVKIN O espectador ativo

Em A técnica do filme2 (1926), Vsevolod Pudovkin precisa as pesquisas efetuadas, no tempo do mudo, pelos cineastas soviéticos. Nós oferecemos aqui uma transcrição esquematizada:

A cena, em lugar de ser filmada em sua globalidade sob a forma do quadro (tableau) é fragmentada em várias tomadas favorecendo os planos aproximados (é a DECUPAGEM). As tomadas são efetuadas sob diferentes ângulos e a diferentes distâncias cobrindo todo o espaço, sem respeitar a “quarta parede” própria ao quadro (tableau) (estes são os PLANOS). A colagem dos planos sucessivos reconstitui a cena; ele cria um espaço, uma temporalidade e um ritmo (é a MONTAGEM). O conteúdo de cada plano é deliberadamente simplificado, centrado, de modo a melhorar sua leitura e cada plano é reduzido à sua duração necessária (é a ECONOMIA DOS PLANOS).

A câmera observa a cena sob diferentes ângulos e a diferentes distâncias como se um observador móvel e invisível já tivesse olhado a cena para o espectador (o OBSERVADOR ATIVO).

O olhar do espectador acompanha os pontos de vista sucessivos da decupagem. Assim, encarregado e dirigido pelo realizador, o olhar do espectador é conduzido à reconstruir a cena (a DIREÇÃO DO ESPECTADOR).

A sucessão dos planos cria uma continuidade espacial, temporal, narrativa e

expressiva (a MISE EN PLACE DO UNIVERSO FICCIONAL DO FILME, o que nós diríamos hoje de a DIEGESE).

O conteúdo dos planos, sua duração e sua sucessão determinam o movimento da

cena (a CRIAÇÃO DE UM RITMO). As imagens colocadas juntas reagem e engendram noções novas (a CRIAÇÃO DE UM SENTIDO, DE UMA EMOÇÃO, DE UMA IDEIA).

Tradução: Fabián Núñez PINEL, V. Le montage: l’espace et le temps du film. Paris: Cahiers du

Cinéma/CNDP, 2001. pp. 66-67, 70-71, 74-75.

2 PUDOVKIN, V. Kinoregiseur i kinomaterial. Moscou: Kinopetchat, 1926.