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A Monarquia entre Republicanos OU Sobre o
elemento monrquico na ideia de Constituio
Mista
Dr. Tiago Losso Ncleo de Estudos do Pensamento
Poltico/Departamento de Sociologia e Cincia Poltica/Programa de
Ps-graduao em Sociologia Poltica
(Universidade Federal de Santa Catarina)
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Resumo
A teoria poltica contempornea tem sido alimentada de maneira
crescente por formulaes aliceradas no iderio republicano. Tericos
atuais tm sustentado que esta tradio de pensamento encontra sua
gnese nas noes polticas e morais correntes durante o sculo final da
Repblica romana. Paralelamente insistncia dos republicanos sobre a
existncia de uma noo de liberdade tipicamente republicana, a Teoria
da Constituio Mista amplamente aceita como um elemento da inovao
promovida pelos latinos no mbito da reflexo poltica. Neste aspecto,
geralmente ressaltado o equilbrio obtido entre os elementos
aristocrticos e democrticos, dedicando-se, no entanto, pouca ateno
ao papel do elemento monrquico na teoria. Minha inteno realizar uma
avaliao dos trs primeiros livros da Histria de Roma, de Lvio, e dos
dois primeiros livros do Tratado da Repblica de Ccero, investigando
a importncia da monarquia e do princpio constitucional monrquico
nos seus respectivos argumentos. Defendo que importncia da etapa
inicial da histria da cidade e deste elemento para a ideia de
Constituio Mista pode estar sendo subestimado pelos autores
contemporneos, implicando numa viso empobrecida de elementos
fundamentais da tradio republicana de pensamento poltico.
Introduo
Nos ltimos trinta anos houve um retorno ao estudo dos temas
relacionados ao republicanismo no mbito da Teoria Poltica. Em
grande medida,
este retorno deve-se aos trabalhos do filsofo poltico Philip
Pettit e do
historiador das ideias polticas Quentin Skinner, eixos de um
debate acalorado
sobre o conceito de liberdade no mbito da teoria poltica
contempornea.
Ambos advogam existir uma noo de liberdade que no seria
adequadamente
compreendida como negativa ou positiva, por conter ambos os
elementos, sendo,
portanto, percebida e apresentada em termos de no-dominao.
(Pettit, 1999; Skinner, 2002) Esta noo, localizvel nos escritos de
autores associados ao
republicanismo, estaria no mago das noes polticas e morais
compartilhadas
pelos romanos durante a repblica, teria sido preservada no
Digesto, sendo
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retomada pelos pensadores da poltica durante o Renascimento e
princpios da
modernidade, marcando por fim toda uma srie de autores modernos
at o seu
ocaso, em princpios do sculo XIX, de acordo com a genealogia
proposta por
Philip Pettit (1999).
A antiga Roma sob a Repblica tida como o marco inicial da tradio
de
pensamento poltico associado ao republicanismo, tanto em termos
institucionais
quanto intelectuais. A ideia de uma constituio mista ponto
fundamental para
a teorizao anunciada por Polbio, cristalizada em De Re Publica1
por Marco
Tlio Cicero e mobilizada em Ab Urbe Condita2 por Tito Lvio. No
entanto, pode
ser objetado que o acesso ao pretenso pensamento republicano
clssico no vem
sendo feito de maneira adequada. A definio mesmo dos elementos
(e sua
importncia) que comporiam a tradio foco de discusso. Tome-se o
caso do
Digesto.
Uma primeira distino deve ser a que o Digesto no pode ser
considerado equivalente ao pensamento republicano clssico, pelo
menos no
tocante idia de liberdade (Wirszubski, 1968; Maddox, 2002).
Mesmo que o
Digesto componha o pensamento republicano clssico, o apenas em
termos
jurdicos. Logo, tom-lo como fonte simplificar uma expresso
intelectual
complexa, no restrita a argumentos jurdicos. Se o Digesto no
parte
integrante do pensamento republicano clssico, deve ser lido como
expresso de
outro momento histrico e intelectual.
Alm dos termos para definir a tradio republicana, tem-se na
variedade de autores que formariam o ponto inicial do
republicanismo um
desafio de interpretao. Entre Salstio, Ccero e Lvio possvel no
somente
encontrar perspectivas distintas sobre pontos importantes da
teoria poltica
republicana (p. ex. o papel conferido ao povo na conduo do
governo), como
tambm vises desconcertantes ao leitor contemporneo.
O papel da monarquia na cidade e do elemento monrquico na ideia
de
constituio mista constituem-se numa chave para demonstrar a
existncia de
desafios inerentes ao estudo dos antigos autores romanos.
Tome-se o caso de 1 Salvo quando indicado, todas as citaes de De Re
Publica sero de CICERO. (2008), Tratado da Repblica. (Traduo,
introduo e notas de Francisco de Oliveira) Portugal: Crculo de
Leitores e Tema e Debates. 2 Salvo quando indicado, todas as citaes
de Ab Urbe Condita (AUC) sero de LIVIO, Tito. (1989) Histria de
Roma, Vol I. (Traduo: Paulo Matos Peixoto) So Paulo: Paumape.
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Salstio, mobilizado por Skinner e Pettit para advogar a noo
republicana de
liberdade. Podem ser dirigidas objees a interpretao de Quentin
Skinner
sobre a perspectiva de Salstio acerca da liberdade civil, como
faz Walker ao
afirmar que poderia ser localizada em escritos de Salstio a
sugesto de que os
cidados de Roma experienciaram algum nvel de liberdade mesmo
durante a
Monarquia, e seriam vtimas de uma tirania sob Sula. (Walker,
2006) Os autores
contemporneos estariam a tratar de uma leitura dos antigos feita
pelos
modernos, e no dos antigos em si. (Walker, 2006)
A caracterizao de ideias republicanas como visceralmente
inimigas da
monarquia um elemento tipicamente moderno que acaba sendo
decalcado nos
escritos dos antigos, gerando inclusive a relutncia em enquadrar
Montesquieu
na pretensa tradio republicana, em grande medida devido a sua
evidente
simpatia por regimes monrquicos. (Douglass, 2012) Defendo que
isto ignora
uma noo compartilhada pelos romanos sobre as qualidades do
perodo
monrquico, e os desdobramentos possveis para se pensar o papel
do princpio
monrquico nas teorias sobre liberdade e formas de governo. E,
relacionado a
este papel relevante do elemento monrquico, deve ser considerado
que a
expulso dos reis de Roma no marca seno um lento processo de
montagem
institucional que conferir constituio de Roma as caractersticas
louvadas por
Polbio e aceitas como definidoras mesmo do que significa um
governo livre entre
os autores romanos antigos.
Utilizar o termo constituio em referncia realidade da Roma
antiga
uma escolha passvel de crtica.3 Segundo Straumann, perfeitamente
razovel
pensar em uma constituio romana desde que o conceito seja
compreendido
como um conjunto de normas mais enraizadas [entrenched] que
outras logo com menos possibilidade de alterao - e com influncia
significativa no governo
das instituies atravs das quais o poder exercido. (Straumann,
2011:284)
Sendo este ordenamento significativo tanto do ponto de vista
intelectual quanto
institucional, interpretar adequadamente seus contornos
relevante para uma
efetiva compreenso dos debates sobre liberdade na teoria
poltica
3 O estgio desta discusso pode ser conferido em Straumann,
2011.
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contempornea.4 Quentin Skinner um caso exemplar, com sua
insistncia em
localizar na Roma antiga a principal influncia das formulaes da
tradio
neorromana de princpios da modernidade, que lega um corolrio
terico que
define liberdade em termos de no-dominao.
Ao acompanhar os debates intelectuais de princpios da
modernidade,
Skinner alega obter teoria poltica secretada de seus estudos
histricos,
fornecendo aos contemporneos um universo de referncias mais
largo para
considerar seus dilemas polticos particulares. Ao localizar a
gnese da tradio
republicana na antiga Roma, no entanto, Skinner parece ignorar a
dinmica de
elementos chave da tradio que pretende historiar. Um ponto que
une estes
crticos uma possvel incompreenso de Skinner sobre elementos
fundamentais
da realidade poltica e intelectual de Roma nos estertores da
repblica. Traos
constitucionais da Roma republicana so elencados no sentido de
questionar a
efetiva relao entre as formulaes republicanas, moderna e
contempornea, e a
realidade que pretensamente a teria gestado.5 (Ando, 2010;
Kapust, 2004;
Maddox, 2002; Walker, 2006)
Este acesso a escritos do passado requer alguns cuidados. De
maneira
geral, tem-se a exigncia de recuperar o dito no passado em seus
prprios
termos. A anacronia desfoca o escrito analisado, e tanto sua
compreenso quanto
sua mobilizao para solucionar dilemas contemporneos ficam
comprometidas.
No caso especfico da tradio republicana de pensamento poltico,
deve ser
acrescentado outro complicador. Sendo uma tradio6 composta de
diversas
camadas, cultivada ao longo de sculos, abrem-se eventuais
distncias entre a
narrativa mestra da tradio e os fatos histricos, bem como entre
as narrativas
(concorrentes e concordantes) no seio da prpria tradio. Em relao
primeira
distncia, assumo que meu interesse principal com a narrativa que
os romanos
4 Um argumento pormenorizado defendendo este tipo de preocupao
est em Kapust, 2004:379-380. 5 Em relao teoria contempornea, o
argumento exemplarmente exposto no trecho seguinte: If virtue is
linked to republican liberty, and if republican liberty may be
compatible with the existence of orders or groups that are
paternalistic and tend to disempower the citizenry while leaving
them free, then I think we would do well to rethink the way we
describe republican liberty, and ask if it is a shield or a sword.
I suggest that we would do well in asking this question given that
what we see in the earliest history of republicanism seems to be
quite different from what contemporary advocates of normative
republicanism would urge liberals to consider. (Kapust, 2004:401) 6
Sobre o conceito de tradio que utilizo, cf. Bevir, 2000.
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escreveram sobre si prprios.7 Estou interessado nos contornos da
ideologia
elaborada pelos romanos antigos, e no em sua acurcia, pois foi o
cultivo desta
ideologia que constituiu a tradio republicana de reflexo
poltica. Tradio esta
que no desconfiou, a exemplo dos antigos romanos, da pertinncia
e dos termos
da histria de Roma. Para lidar com a segunda distncia acima
apontada, vou
cotejar as duas narrativas aqui analisadas, buscando estabelecer
o significado das
distines relevantes para a conformao de uma espcie de narrativa
bsica da
compreenso dos antigos romanos sobre o significado de seu
mundo.
Deixando agora de lado as implicaes do retorno aos antigos
autores
latinos para teoria poltica contempornea, pretendo explorar
elementos da
constituio mista nos escritos clssicos do republicanismo atravs
da leitura e
interpretao dos trs primeiros livros de Ab Urbe Condita de Tito
Lvio e dos
dois primeiros livros de De Re Publica, de Marco Tlio Cicero.
Justifico o esforo
ressaltando a repercusso que ambos os autores na tradio
intelectual ocidental,
e sua lgica contribuio para a reflexo poltica moderna e
contempornea. O
exemplo evidente desta reverberao Maquiavel e sua leitura de
Lvio. Alm da
importncia enquanto autores tornados clssicos, aponto as
qualidades
intrnsecas aos seus escritos, que a despeito de apresentarem
respostas para
dilemas polticos particulares, so bons retratos de um panorama
intelectual
considerado relevante pela crtica contempornea, quando empenhada
em
enfrentar seus prprios dilemas.
Em sua Histria, Lvio trata de um perodo rico da formao de
Roma:
da chegada de Enias no reino de Latino at a publicao da Lei das
XII Tbuas,
passando pelo crescimento durante a monarquia, a expulso dos
reis, a criao
dos Tribunos da Plebe, o envio da legao Hlade e a instituio
dos
Decnviros. Ccero apresenta suas consideraes sobre a coisa pblica
em De Re
Publica, num tratado em forma de dilogo que emula Plato. Os dois
primeiros
livros de seu tratado foram escritos antes da definio do formato
definitivo,
sendo onde localiza-se a parte mais rica do arrazoado de Cipio
Emiliano
Africano, quando so apresentados os principais elementos dos
aspectos morais 7 Mesmo a hipercrtica do sculo XIX, que defendia
existir grande divergncia entre os registros mitolgicos dos antigos
romanos e sua verdadeira histria esto hoje em refluxo. Recentes
descobertas arqueolgicas indicam, por exemplo, que a ocupao
permanente das colinas de Roma deu-se no sculo VIII a.C., datao
consoante com a dos registros literrios antigos. Sobre este ponto,
cf. PEREIRA, 2002:20.
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e polticos pretensamente caractersticos das ideias correntes na
Roma dos anos
finais da Repblica, em especial as consideraes sobre os
diferentes tipos de
constituio e a originalidade da constituio de Roma.
Acredito ser possvel apresentar evidncias textuais que
justifiquem
alegar que o tipo de governo elogiado por estes dois autores
romanos era
considerado produto dos primeiros trs sculos da histria da
cidade, atravs do
estabelecimento de instituies que canalizaram tenses polticas
entre
diferentes setores sociais, permitindo um equilbrio poltico
virtuoso e garantidor
da liberdade civil. Em suma, uma Constituio especfica. E, ainda,
que o
princpio constitucional monrquico fundamental nesta
engenharia
republicana, num equilbrio perfeito com os princpios
aristocrtico e
democrtico.
A Escolha de Cipio
A gnese e oscilao da relevncia de uma tradio nomeada
modernamente como republicana podem ser acompanhadas na trajetria
no s
das letras latinas no mundo ocidental, como tambm na circulao
dos escritos
de Marco Tlio Ccero, o autor paradigmtico da pretensa tradio
republicana
de reflexo sobre a poltica.
Seu tratado sobre a coisa pblica (De Re Publica) surge aps
seu
afastamento da vida pblica, com o Primeiro Triunvirato. Cicero
pretende
compor uma nova Repblica, inspirado em seu amado Plato.
(Introduo in: Cicero, 1928a:2) A escrita comea em 54, mesmo que a
datao possa ser recuada
at o seu Consulado (63) ou mesmo antes. (Idem, nota 2).
Evidncias seguras
indicam, no entanto, que De Re Publica circulava em Roma em 51.
(idem, p. 3)
No apenas De Re Publica, mas toda uma srie de escritos polticos
ser
composta por Ccero neste perodo, estando entre eles De Legibus e
De Officiis.
(Wood, 1991:61)
Tratado da Repblica e Dos Deveres so peas centrais do
pensamento
poltico e social de Ccero, tendo ainda a peculiaridade de serem
os nicos do
gnero escritos nos estertores da Repblica e mesmo uns dos
primeiros escritos
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em latim a versar especialmente sobre poltica. (Wood, 1991:63)
Se Ccero o
autor que inaugura a tradio republicana de reflexo sobre a
poltica, De Re
Publica sua obra fundamental. No entanto, s foi lida pelos
autores modernos
que viveram depois de 1820, quando sua parte fundamental foi
descoberta na
Biblioteca do Vaticano. (Wood, 1991:64; Introduo in:
Cicero,1928a:9; Pereira,
2002:153) At ento, apenas o sexto livro do tratado, Sonho de
Cipio era
conhecido pelos modernos.
O dilogo tem lugar durante as frias latinas de 129, e o estilo
uma
referncia evidente Repblica de Plato. O prefcio do prprio Ccero
introduz
uma srie de personagens do Crculo dos Cipies8, sendo o principal
interlocutor
Cipio Emiliano Africano, neto adotivo do Africano vitorioso em
Zama, o
arqutipo ciceroniano do melhor romano. General que conquista seu
cognome,
ntimo do conhecimento grego, instrudo por Polbio, por suas
palavras que
Ccero apresentar seu tratado sobre a coisa pblica.
O grego Polbio fundamental para a elaborao da idias polticas
de
Cicero, propondo premissas que sero acatadas no somente por
Ccero, mas por
toda sua gerao. Um ponto a caracterizao da poltica republicana
original de
Roma como produto das vicissitudes da cidade imersa na dinmica
do
Mediterrneo Antigo, e no como uma teorizao elaborada
posteriormente.
(Ballot, 2010:486) O tutor de Cipio Emiliano credita ainda o
sucesso da
expanso romana ao equilbrio obtido pela sua constituio, fruto de
uma
mistura entre os princpios monrquico, aristocrtico e democrtico.
(Idem, 487-
489) A esta caracterizao da constituio romana segue-se o
estabelecimento do
carter tpico de um romano, exemplificado na figura de seu
pupilo, o segundo
Cipio Africano: bravura aliada moderao, justia e racionalidade.
(Idem: 499)
Ao escolher Cipio Emiliano Africano como o principal
interlocutor de seu
dilogo sobre a coisa pblica, Ccero est mobilizando Polbio, dele
extraindo
parte do substrato necessrio para a elaborao de seus
argumentos.
Em De Re Publica, Cipio instado por Llio a discorrer sobre as
artes
teis ao governo da cidade. Llio afirma que assim deseja por ser
melhor contar
com as impresses de um estadista importante do que com qualquer
outro, e
tambm por ter Cipio conversado sobre tais assuntos com Pancio
na
8 Sobre este crculo, cf. Pereira, 2002:58-62.
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companhia de Polbio, apresentando a constituio de seus
antepassados como a
melhor entre todas. (Tratado da Repblica, 1.34) Cipio aceita o
convite,
esclarecendo que deve ser ouvido como algum que apesar de no
ser
completamente ignorante sobre as ideias gregas, nem disposto a
dar-lhes sempre
preferncia, mas como um romano antes de tudo, instrudo mais pela
experincia
e pelas lies domsticas que pelos livros. (Tratado da Repblica,
1.36)
Cipio inicia seus comentrios precisando o tema que ser abordado:
a
coisa pblica: Portanto, res publica Coisa Pblica a res populi
Coisa do Povo. E povo no um qualquer ajuntamento de homens
congregado de qualquer maneira, mas o ajuntamento de uma multido
associada por consenso
jurdico e por uma comunidade de interesses. (Tratado da
Repblica, 1.39)9, definio que ser repetida em trecho subsequente.
(Tratado da Repblica, 1.41)
Qualquer comunidade assentada nestes termos, prossegue, pode ser
governada
por um homem, por alguns ou por muitos, nomeando cada um dos
tipos governo
respectivamente como monarquia, aristocracia ou democracia. Cada
uma destas
opes parece no mnimo aceitvel, sendo que cada um pode ser ainda
superior
aos demais, mas todos possuem condies de manter um governo
estvel.
(Tratado da Repblica, 1.42) Desde que em suas formas normais,
pois cada um
engendra perigos ao governo, principalmente quando em suas
manifestaes
degeneradas. (Tratado da Repblica, 1.44) Ento, Llio interrompe
Cipio,
perguntado: Contudo, se no te causa incmodo, destas trs formas
de constituio, gostaria de saber qual julgas a melhor. (Tratado da
Repblica, 1.46) A interpretao da resposta de Cipio ajudar a
compreender o papel que
cabe monarquia na ideia de Constituio Mista conforme descrita e
prescrita
por Cicero.
A resposta inicia-se com a considerao de que cada tipo de
governo
emerge do carter de quem governa, e que apenas onde o povo
governa existe
liberdade. Cipio sequer considera, por evidente, a liberdade sob
a monarquia. Se
o povo no pode aspirar a ocupar magistraturas e participar
ativamente do
9 Transcrevo uma nota feita pelo tradutor, explicando o uso de
termos em itlico, seguidos de possveis tradues: Considerando a
dificuldade de traduzir certas noes e conceitos, a existncia de
discusses etimolgicas que s se compreendem na prpria lngua de
origem, e a possvel pouca familiaridade de alguns leitores com
estas circunstncias, por vezes conservei o termo latino seguido da
possvel traduo entre vrgulas altas, como optimates aristocratas,
patres pais, patrcios, senadores. (Tratado da Repblica, Notas
Prvias, p. 09)
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governo, no h liberdade para o conjunto de cidados.
Considerando-se que
linhas antes Cipio estabelece que se a liberdade no for a mesma
para todos no
pode ser assim nomeada, o povo afastado do governo da coisa
pblica
compromete a liberdade da comunidade. (Tratado da Repblica,
1.48) Segue-se
um arrazoado defendendo a participao popular na conduo do
governo,
impedindo inclusive que cidados ricos ocupem proeminncia na
tarefa,
novamente comprometendo a liberdade de todos. Sendo toda
comunidade
poltica fundada na lei, as garantias legais devem ser iguais a
todos. Mesmo que
seja impossvel equalizar capacidades individuais ou riqueza, os
direitos legais
devem ser iguais entre cidados de uma mesma comunidade poltica:
O que , de facto, uma cidade seno uma sociedade de direito de
cidados (...). (Tratado da Repblica, 1.49)
Os captulos seguintes seguem sem a resposta, preferindo
Cipio
prosseguir com consideraes sobre convenientes e inconvenientes
de cada tipo
de governo. Quando referindo-se ao princpio monrquico, Cipio
distingue
claramente o bom e o degenerado governo de um. O princpio de
sua
considerao apontar o equivoco do uso do termo rei para nomear
governantes
que antes mereceriam ser nomeados tiranos. (Tratado da Repblica,
1.50) O
captulo 51 comea equiparando uma comunidade que escolhe seus
governantes
ao acaso um barco cujo leme est com uma passageiro sorteado.
Quando,
ento, a comunidade escolhe no os seus melhores para o governo,
mas os mais
ricos ou de ilustre nascimento, desconsiderando as virtudes,
tm-se um governo
corrompido. O arremate do argumento claro: (...) no existe
espcie de constituio mais disforme do que aquela em que os mais
ricos so considerados
os melhores. (Tratado da Repblica, 1.51) Impaciente com a demora
da escolha de Cipio, Llio faz nova
interrupo, insistindo: Afinal, Cipio, qual desses trs tipos,
mais recomendas?. (Tratado da Repblica, 1.54) Alertando que no
aprova nenhuma delas em separado, preferindo um governo que tenha a
participao de todas,
Cipio responde:
Com justeza perguntas desses trs tipos, qual mais recomendo,
pois que, separadamente, por si mesmo, no recomendo nenhum deles. A
cada um anteponho um outro que seja a fuso de todos eles. Mas se
tivesse de dar minha recomendao a um s, e simples, recomendaria o
rgio .... designado neste passo, ocorre o nome quase
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paternal de rei, por este se ocupar dos seus cidados como se
fossem filhos e os conservar com mais afecto do que .... sendo
protegidos pela diligncia de um nico varo, excelente e superior.
(Tratado da Repblica, 1.54)10
Na sequncia, Cipio apresenta os argumentos de pretensos
defensores
do governo de alguns e do governo de muitos, compelindo Llio a
afirmar que a
no soluo deste ponto implicaria na impossibilidade de prosseguir
a discusso.
Cipio ento principia novo argumento. (Tratado da Repblica, 1.55)
O primeiro
passo: reconhecido que os deuses possuem reis e so governados
por um s,
incutindo nos homens a ideia da excelncia da monarquia. (Tratado
da
Repblica, 1.56) O testemunho disso seria a existncia de reis em
Roma num
perodo no muito recuado da histria: Se, pois, homens prudentes e
nem sequer muito antigos decidiram ter reis, ento estou a usar
testemunhas nem
muito antigas, nem desumanas, nem selvagens. (Tratado da
Repblica, 1.58) A defesa da monarquia coroada, ento, com duas
questes propostas por Cipio a
Llio: no justo sujeitar desejos e paixes ao governo unitrio da
razo? Se
assim o no que diz respeito a alma do homem, no seria diferente
nas
comunidades polticas. Alm disso, a quantas pessoas Llio confiava
a ordenao
de seus negcios particulares e o cuidado da sua casa em Roma?
Com a resposta
de Llio indicando que apenas um o fazia, Cipio retruca: Porque
que tu, afinal, no concordas que tambm num Estado mesmssimo domnio
de um s, desde que justo, o melhor (Tratado da Repblica, 1.61)
Cipio prossegue estabelecendo o primado de um nico comando de
governo, louvando reis justos
como os governantes perfeitos. (Tratado da Repblica, 1.63)
Retomando a defesa
de seu tipo preferido de governo, Cipio passa ento a considerar
as comoes
pblicas que costuma agitar comunidades polticas, mesmo sendo
possibilidade
remota em sua constituio preferida. (Tratado da Repblica,
1.65)
Um rei pode ser sucedido por um tirano, e a melhor das formas
de
governo se torna a pior. A cidade, ento, pode ser tomada pelos
grandes ou pela
multido, desde que mantenha o juzo sereno. Ou a multido pode
depor, exilar
ou matar magistrados justos e virtuosos, instalando a licena:
(...) os nimos dos cidados acabam por tornar-se de tal modo altivos
e susceptveis que, ao mnimo
10 As letras entre sinal de ngulo indicam tentativa de
reconstituio do texto; os quatro pontos indicam lacuna no texto
original. (Tratado da Repblica, Notas Prvias, p. 09)
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uso da fora pelo poder, se irritam e no o conseguem suportar. Da
comearem
tambm a ignorar as leis, para ficarem absolutamente sem senhor
algum. (Tratado da Repblica, 1.67)11 O argumento apoiado no livro
VIII dA Repblica
de Plato encerra-se narrando ento o caminho que engendra o
tirano. (Tratado
da Repblica, 1.68)
Em seguida, descreve as diversas mudanas de governo pelas quais
uma
comunidade poltica pode passar, agora claramente inspirado em
raciocnio
disponvel na Histria de Polbio: Assim, como se fosse uma bola,
tiram a forma da constituio uns dos outros os tiranos aos reis, e
queles os cidados de primeira ou os povos, a estes as faces ou os
tiranos , e jamais se mantm por muito tempo a mesma forma de
constituio (Tratado da Repblica, 1.68) Repetindo que a monarquia
seu tipo de governo simples preferido, Cipio
afirma claramente que um governo que surja da mistura de cada
uma das formas
primrias indiscutivelmente a melhor das formas conhecidas.12 A
mistura
superior, desde que mantenha elementos das formas simples,
inclusive da
monarquia: De facto, parece bem que exista na constituio algo
superior e real, que haja algo concedido e atribudo autoridade dos
cidados de primeira, que
haja algumas coisas reservadas deciso e vontade da multido
(Tratado da Repblica, 1.69) Esta constituio seria a herdada pelos
romanos de seus
antepassados. Cipio ento afirma que vai provar sua afirmao
tomando Roma
como exemplo, tema do livro seguinte do tratado de Ccero.
Sendo a constituio de Roma produto de sucessivas geraes de
cidados, e para bem conhecer o assunto sobre o qual trata agora
(a excelncia da
constituio romana), Cipio volta sua ateno para a histria da
cidade.
(Tratado da Repblica, 2.3)13 Aps louvar a escolha do lugar,
Cipio apresenta a
construo da comunidade poltica, chamando a ateno para o fato de
Rmulo 11 Trata-se, segundo Cipio, de um trecho de Plato. Comparar
com: Ora, vs o resultado de todos esses abusos acumulados?
Concebes, efetivamente, que tornam a alma dos cidados de tal modo
assustadia que, menor aparncia de coao, estes se indignam e se
revoltam? E chegam por fim, bem sabes, a no mais se preocupar com
leis escritas ou no escritas, a fim de no ter absolutamente nenhum
senhor. (Plato, A Repblica, 564e) 12 Sendo assim, dos trs primeiros
tipos, em meu entender, o prefervel de longe o rgio; mas ao rgio
ser prefervel um que seja equilibrado e temperado com as trs
primeiras formas de constituio. Tratado da Repblica, 1.69) 13
Trecho em que o autor latino indica o contraste com as letras
gregas: Mais facilmente, porm, eu satisfarei o nosso propsito
[discorrer sobre a boa constituio] se vos mostrar o nosso Estado a
nascer, a crescer, adulto e j firme e robusto, do que se criar um
para mim, como Scrates e Plato. (Tratado da Repblica, 2.3)
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ter escolhido os pais para com eles governar, dispondo de sua
autoridade e
conselhos, alm de respeitar os auspcios oferecidos pelos augures
(Tratado da
Repblica, 2.14)14 arrematando que: Com tal, antes de tudo, Rmulo
viu e decidiu o mesmo que Licurgo pouco antes tinha visto em
Esparta: que as cidades
seriam melhor governadas e regidas sob o comando de um s e sob
um poder
rgio se, fora dessa dominao, fosse associada a autoridade de
algo ptimo
(sc. aristocrtico) (Tratado da Repblica, 2.15)15 Aps lanar os
pilares da comunidade poltica romana, Rmulo morre (Tratado da
Repblica, 2.20) e os
patrcios tentam ento governar. O povo, no entanto, saudoso de
seu rei, exige
outro. (Tratado da Repblica, 2.23) Cipio passa, ento, a
considerar a sabedoria
dos antigos romanos, que notaram ser periclitante confiar na
prognie como
justificativa para ocupar o trono, resolvendo ento eleg-lo,
dando preferncia a
virtude e sabedoria na escolha dos reis. (Tratado da Repblica,
2.24) Ao
enumerar os feitos de cada um dos reis que sucedem Rmulo, Cicero
esta
colaborando para o estabelecimento de uma narrativa mestra sobra
a histria de
Roma, que est tambm exposta na Histria de Lvio. Ao longo de
diversos reis e
geraes de romanos foi estabelecida a melhor de todas as
constituies. Llio
lembra Cato ao concordar com Cipio: Torna-se agora mais claro
aquele ditto de Cato: que a constituio do nosso Estado no foi obra
de um s tempo ou de um s homem. , de facto, evidente quo grande se
torna o acrscimo de
coisas boas e teis, por cada rei. (Tratado da Repblica, 2.37) Ao
narrar a sucesso de reis, Cipio indica as contribuies de cada um
para a construo de
Roma, e finalmente chega ao rei que tornou a palavra odiosa aos
romanos:
Tarqunio, o Soberbo.
14 Aqui, deve ser indicada uma discrepncia cronolgica entre a
histria de Cicero e aquela escrita por Lvio, no tocante ao
estabelecimento deste conselho rgio. Ccero indica que o conselho
foi escolhido por Rmulo e Tcio (rei Sabino que divide o trono com
Rmulo aps a celebrao da paz entre os povos, em litgio desde o rapto
das jovens sabinas pelos romanos), ao passo que em Lvio a criao do
conselho um dos primeiros atos de Rmulo ao fundar a cidade, antes,
portanto, do rapto da sabinas e da partilha do trono entre Rmulo e
Tcio (como ser explorado em trecho seguinte deste artigo). A
divergncia cronolgica no abala meu argumento, j que o papel de
contrapeso do conselho equivalente nas duas narrativas. Sobre o
rapto da sabinas e os eventos relacionados, cf. PEREIRA,
2002:28-29. 15 O uso do termo em parnteses explicado pelo tradutor:
Para diminuir o nmero de notas, em certos casos inseri no corpo da
traduo alguma explicitao, que coloquei entre parnteses curvos, como
nem Quinto (sc. Fbio) Mximo. (Tratado da Repblica, Notas Prvias, p.
09)
-
Um nico rei foi capaz de transformar a melhor das constituies na
pior
entre todas, tornando a palavra rei odiosa entre os romanos.16 E
sua expulso
marca o incio da construo da comunidade poltica livre que Roma
ser. As
instituies que formaro a res publica romana foram lanadas
durante a
monarquia, e agora sem reis, a cidade precisar finalizar o
processo. Aps a
expulso dos Tarqunios, prossegue Cipio: Portanto, nesta altura,
o senado manteve o Estado na seguinte situao: num povo livre,
poucas coisas eram
geridas atravs do povo, e a grande maioria era gerida pela
autoridade e de
acordo com as prticas e costumes do senado; e os cnsules
detinham um poder
somente anual, rgio por sua prpria natureza e por direito.
(Tratado da Repblica, 2.56)
Note-se que o poder real mantido aps a expulso dos reis de Roma.
A
comunidade livre ser ento mantida e incrementada, ao longo de um
perodo
formativo que vai at a publicao da Lei das XII Tbuas. A
constituio louvada
por Ccero atravs da exposio de Cipio no foi, portanto, produto
de um gnio
legislador ou estabelecida de supeto. Lanada as suas bases
durante a
monarquia, a repblica romana ser produto da histria da cidade.
Uma histria
narrada em detalhes por Tito Lvio, dcadas depois do aparecimento
dA Repblica de Ccero. para a Histria de Lvio que agora me volto,
tentando
relacionar suas impresses com aquelas expressas por Ccero,
tentando
estabelecer um quadro satisfatrio de referncias para aquilatar a
importncia do
princpio monrquico na constituio mista nos escritos dos antigos
romanos.
A Construo de uma Comunidade Poltica Livre
Sabe-se menos sobre a vida de Tito Lvio do que o conhecido
sobre
Ccero. Nascido em 59 em Patavium (a moderna Pdua), Lvio parece
ter
crescido numa famlia aristocrata em uma das mais importantes
cidades da Itlia
de seu tempo, tornada uma municipalidade de Roma em 49. Sua
histria de 16 Passados, pois, esses duzentos e quarenta anos de
realeza, at um pouco mais com os interregnos, e expulso Tarqunio, o
povo Romano ficou com tanto dio ao nome de rei como com saudade
ficara de Rmulo depois do seu bito, ou melhor, da sua partida. E
tal como no pudera, ento, passar sem rei, assim tambm, expulso
Tarqunio, no podia ouvir o nome de rei. (Tratado da Repblica,
2.52)
-
Roma, Ab Urbe Condita (AUC) clebre por pelo menos dois motivos.
Ocupa um
lugar de destaque na lista dos escritos fundamentais do
pensamento poltico
republicano e foi base para a elaborao da obra de teoria poltica
de mais flego
escrita por Nicolau Maquiavel. A escrita do livro comeou
provavelmente em 27
A.C., e dos 142 livros escritos sobreviveram para consulta dos
contemporneos
apenas alguns. De forma completa os livros 1-10, 21-30 e 41-45.
Os demais foram
conservados apenas em forma de resumos preparados
posteriormente. Apenas
um dos 142 livros est irremediavelmente perdido.17 Meu interesse
aqui
investigar os trs primeiros livros de sua histria. Pretendo
inclu-los numa
tradio de pensamento tpica do Mediterrneo antigo,
especificamente quela
da qual faz parte Ccero e constituiria um pensamento romano
republicano. Isto
pode ser notado na narrativa mestra que orienta a compreenso de
ambos os
autores sobre o significado de Roma, sua excelncia e dinmica de
crescimento. A
mesma narrativa localizvel no Livro II do tratado de Cicero
sobre a coisa pblica
esmiuada por Lvio. A construo da repblica romana entre a fundao
da
cidade e a Lei das XII Tbuas, descrita por Cipio, retomada por
um
historiador.
A formao da cidade encaixada por Lvio na dinmica histrica do
Mediterrneo antigo. Rmulo, fundador de Roma e pai de todos os
romanos, era
descendente de Enas, que aps a fuga de Tria chega ao reino de
Latino e casa
com sua filha. Geraes adiante, gmeos da linhagem direta de Enas
so
abandonados morte pelo tio av que destrona o legtimo rei. Salvos
por uma
loba, so ento criados de forma simples, tornando-se ambos
vigorosos homens.
Em dado momento, devolvem o trono ao av e decidem fundar uma
nova cidade,
j que lideravam uma j razovel quantidade de homens espalhados
pelos
campos no entorno de Alba.
Aps assassinar o irmo, Rmulo apodera-se sozinho do poder da
nova
cidade e torna-se rei. Seguem-se ento mais seis reis, at a
expulso dos
Tarqunios e o estabelecimento de uma magistratura para
substituir o rei. O
primeiro livro da histria de Lvio apresenta um enredo aceito
entre os romanos
de seu tempo como a mais pura expresso da verdade, mesmo que com
algumas 17 Sobre dados biogrficos do autor e data do incio da
composio da obra, ver Introduo in: Livy, 1919. Sobre os livros
conservados e perdidos, ver Introduction in: Livy, 1919; Introduo
in: Lvio, 1989; Introduo in: Lvio, 2008.
-
variaes. (Pereira, 2002:17-18) Ao acompanhar os detalhes da Roma
sob a
monarquia entendo ser possvel aquilatar a importncia da
monarquia no
argumento de Lvio, tanto enquanto um regime que agregou
inicialmente a
cidade, quanto em termos de princpio fundamental para o
estabelecimento e
funcionamento da constituio mista. Os primeiros atos de Rmulo so
um
indcio disto.
Assim que assume o comando da recm-fundada cidade, Rmulo
realiza
rituais religiosos e em seguida inicia a construo da comunidade
poltica:
Depois de ter realizado as cerimnias religiosas de acordo com o
rito [de Hercules], Rmulo reuniu em assemblia aquele povo que s
poderia vir a ser
uma nao por liames jurdicos, e lhe deu leis. (AUC, 1.8). Aps o
estabelecimento das leis, Rmulo trata de torn-las sagradas aos
olhos da massa
que formaria uma cidade: Compreendendo que, para torn-las
sagradas perante aqueles homens rudes, ele prprio deveria
inspirar-lhes respeito pelas insgnias
de sua autoridade, entre outros distintivos fez-se acompanhar
por doze lictores. (AUC, 1.8)
Em seguida, convencendo a multido de que uma nova raa ali
brotaria,
tornou a cidade refgio de livres e escravos vindos de povos
vizinhos, dotando-a
de seu primeiro contingente populacional. Por ltimo, criou um
conselho,
escolhendo cem cidados para ocup-lo, dando-lhe o nome de patres.
(AUC, 1.8)
Elementos considerados necessrios para constituir a comunidade
livre que
caracterizaria a forma de governo tipicamente romana, logo
republicana, foram
assim criados. A comunidade poltica foi estabelecida por leis,
que adiante sero
o esteio da liberdade. Foram conferidos signos para identificao
da populao
com a comunidade e respeito ao rei, preservados depois na
instituio do
consulado. E um conselho constitudo, colaborando com o rei no
governo.
Ao envolver-se na guerra com os Sabinos, resultado do rapto de
suas
mulheres, tm-se uma nova sequncia de acontecimentos que devem
ser aqui
considerados.18 Quando a paz celebrada com os sabinos seu rei,
Tcio, divide o
poder com Rmulo. Da os romanos passarem a chamar-se quirites, e
tambm a
criao de uma nova instituio poltica: a diviso da cidade em trs
tribus por
18 Sobre o rapto das Sabinas, ver AUC, 1.9.
-
sua vez divididas cada uma em dez curias. (AUC, 1.13) Este um
dos primeiros
sinais das constantes reformulaes de graus e distines entre os
romanos.
Ao longo dos prximos dois sculos de sua histria sero feitos
arranjos
institucionais criando e reformando as magistraturas da cidade,
e o papel dos reis
relevante neste processo. A repblica sua obra tambm. Seja nas
aes
virtuosas dos bons reis, que instituram prticas ou normas que
posteriormente
seriam incorporadas cidade livre; ou nas prticas tirnicas de
alguns, em
especial ao comportamento dos Tarqunios que finalmente encejaram
sua
expulso e tornaram o ttulo de rei odioso aos romanos. Ele nunca
mais ser
usado. Nem mesmo quando um Imprio sucede a Repblica.
Os sete reis de Roma enfeixam as boas e ms caractersticas do
governo
de um s. Vou explorar os significados de trs eventos, alm da j
referida
circunstncia da fundao da cidade: o estabelecimento da
civilidade promovido
por Numa Pomlio (716-673 a.C.); o primeiro rei a no contar com o
sufrgio para
ocupar o trono, Srvio Tlio (578-535 a.C.), ao mesmo tempo
promotor de
reformas polticas fundamentais; e o reinado de Tarqunio que, alm
de
exemplificar a tirania no pensamento poltico romano, criou as
circunstncias
que permitiram a extino da monarquia em Roma.
Ao morrer Rmulo pranteado pela juventude romana, que aps
momentos de medo passa a sald-lo como deus e pai da cidade,
confirmada
adiante pela sua apario a Prculo Jlio, anunciando sua vontade de
Roma se
transformasse na capital do mundo. (AUC, 1.16) Ao ter que
escolher um novo rei
criou-se um impasse entre os romanos de origem sabina e aqueles
mais antigos.
Apesar desta divergncia, todos queriam novo rei, pois (...)
ainda no haviam provado o doce gosto da liberdade. (AUC, 1.17) A
questo foi resolvida quando o governo foi compartilhado atravs dos
senadores. Foram divididos em dez
decrias, sendo que cada uma indicaria um representante para
governar durante
cinco dias, quando ento novo indicado ocuparia o trono. O
arranjo criou o termo
interregno, e comeou a descontentar a plebe, que agora alegava
ter cem
senhores ao invs de um: [a plebe] Parecia disposta a no tolerar
mais que um rei, e um rei escolhido por ela. (idem) O Senado
aquiesce, reservando-se o direito de referendar a escolha popular.
O povo, satisfeito com a situao, confere
ao Senado o direito da escolha. (idem) A escolha de Numa Pomplio
autorizada
-
pela sua reconhecida justia e religiosidade vence a resistncia
dos romanos mais
antigos, e um sabino reinar em Roma.
Do ponto de vista poltico, Numa Pomplio cria e organiza o
calendrio
da cidade, organiza o territrio e delimita propriedades. (AUC,
1:19-21) Do ponto
de vista religioso, constri templos e dota a cidade de uma srie
de ritos.
Estabelece, como digo acima, critrios de civilidade que elevam
os romanos entre
os povos respeitveis da regio. (AUC, 1.21) Ao suceder Rmulo e
caracterizar eu
governo como pacfico e cultivador de valores elevados, Numa
Pomplio confere
aos romanos um carter intrinsecamente valoroso, que adiante ser
expresso no
elogio constante entre os escritores da gerao de Ccero e Lvio do
mos
maiorum, o costume dos antepassados.19 Sculos depois, neste
quadro
referencial prprio que os escritores romanos cultivaro as
influncias
intelectuais vindas da Hlade.
Desde a instituio das tribos e crias Roma uma monarquia em que
o
rei no exerce as prerrogativas de governo sem a participao dos
patrcios. No
entanto, o primeiro rei a conquistar trono sem eleies promover
reformas que
modificaro de forma relevante a dinmica poltica de Roma. Criado
no palcio
real, Srvio Tlio sucede Tarqunio Prisco atravs de um ardil de
Tanaquil,
esposa do rei.20 Filho de servos, sem ligao com a famlia do rei,
ser a distino
no campo de batalha que granjear a autoridade suficiente para
pretender
realizar (...) a mais considervel das obras realizadas em tempo
de paz. Assim como Numa foi o fundador de nossas instituies
religiosas, a posteridade atribui
a Srvio a diviso da sociedade em classes, que distingue os
diversos graus de
dignidade e fortuna. (AUC, 1.42) As reformas seriam feitas sobre
o censo, onde patrcios e plebeus contribuiriam para o errio de
acordo com suas rendas, tendo
uma respectiva participao no governo, atravs das novas tribos
divididas em
cinco classes e 193 centrias. (AUC, 1.42-43) O estabelecimento
de uma
participao censitria no governo da cidade rompe com o privilgio
da antiga
nobreza. Esta nova organizao materializa-se numa nova assembleia
popular, os
comitia curiata, formada por patrcios e plebeus. (Petit,
2003:39) A monarquia
19 Sobre o significado de mos maiorum, ver Pereira, 2002:
357-361. No tratado sobre a velhice, de Ccero, Cato a encarnao
destes costumes. Ver Cicero, 1997. 20 Sobre as circunstncias da
criao de Srvio Tlio, ver AUC, 1.39; para as circunstncias de seu
acesso ao trono ver AUC, 1.41)
-
romana estende alguma dose de cidadania a todos os indivduos sob
seu governo,
capacitando a plebe ao envolvimento com os cargos pblicos,
situao inexistente
antes da reforma.21 (Petit, 2003:37)
O sucessor de Srvio Tlio teria tambm um papel relevante a
cumprir
na histria de Roma. Tornando o ttulo de rei odioso entre os
romanos atravs de
um governo tirnico, Tarqunio, o soberbo,22 estar diretamente
implicado no
fim da monarquia em Roma. Assumindo o trono atravs de crimes,
Tarqunio
estabelecendo a tirania na cidade: manda assassinar senadores
que haviam
apoiado Srvio Tlio, cerca-se de guarda-costas, reinava sem o
sufrgio do povo e
sem aprovao dos senadores, torna-se nico juiz em condenaes
pena
mxima, confisca bens, diminui o nmero de senadores e no os
consulta para
assuntos de governo. (AUC, 1.49)
Seu ato tirnico final foi condescender com o filho que viola
Lucrcia, a
mais virtuosa das romanas.23 O crime seria ento o pretexto para
a expulso dos
reis de Roma, numa revolta aristocrtica liderada por Lcio Jnio
Bruto que,
com o punhal utilizado por Lucrcia para cometer suicdio depois
da infmia nas
mos, exclama: Por este sangue to puro antes de ser manchado pelo
crime do prncipe, eu juro e vos tomo como testemunhas, deuses, que
hei de expulsar
Lcio Tarqunio Soberbo, ele, sua criminosa esposa e toda sua
descendncia, pelo
ferro, pelo fogo, por todos os meios que estiverem em meu poder.
Nem eles nem
outro qualquer h de reinar em Roma. (AUC, 1.59) A cidade tomada
pelo tumulto quando a notcia do estupro se espalha. O povo
amotina-se contra a
violncia do prncipe, e jovens aristocratas apiam Bruto, Lucrcio
e Valrio.
Duzentos e quarenta e quatro anos depois da sua fundao Roma
libertada, e
dois magistrados so eleitos para ocupar o lugar do rei, Lcio
Jnio Bruto e Lcio
Tarqunio Colatino.24
21 Mesmo apontado para direes polticas e institucionais que
caracterizariam as evidentes limitaes das prerrogativas da plebe,
mesmo com a instituio dos Tribunos da Plebe: For Livy, the tribunes
are initially a sort of shield, a largely protective weapon not a
sword, a primarily offensive weapon. It is quite possible for the
plebs to be free with only a shield to protect them, and not to
have proactive power. (Kapust, 2004:393) 22 Cognominado Soberbo por
ter negado sepultura ao sogro, Srvio Tlio, alegando que Rmulo tambm
no havia sido enterrado. (AUC, 1.41) 23 Sobre a caracterizao de
Lucrcia, ver AUC, I: 57. 24 AUC, I:59-60. Lvio comete uma anacronia
ao nomear consules os dois novos magistrados. Eles seriam assim
nomeados depois dos Decnviros. De incio foram nomeados pretores.
Cf. Livy, 1919:208, nota 1.
-
Inicia-se ento novo perodo da histria de Roma. A monarquia
derrubada e o governo livre que vir em seguida se sustentar em
grande medida
nas instituies criadas durante o perodo monrquico. A liberdade
dos romanos
comeou a ser esboada durante o governo dos reis. Os termos
utilizados por
Lvio para descrever a mudana de regime poltico em Roma uma
evidncia
textual desta assertiva.
Lvio inicia o segundo livro de sua histria anunciando que
abordar a
nova liberdade experimentada pelo povo romano, suas conquistas
em tempo de
paz e guerra, os magistrados eleitos anualmente e leis mais
dotadas de mais
autoridade que homens. Uma liberdade ainda mais apreciada em
virtude da
tirania instalada pelo ltimo rei. (AUC, 2.1) Acrescentando que
(...) pois seus
antecessores haviam reinado de tal modo que a posteridade
merecidamente os considerou a
todos fundadores da cidade, ou, pelo menos, de certos bairros
criados para abrigar a multido
sempre crescente, que era atrada pelos reis. (AUC, 2.1) Na
sequncia, Lvio credita ainda
monarquia um papel aglutinador para a cidade nascente, afirmando
que teria
sido prejudicial aos romanos experimentar uma liberdade
prematura. Foi
necessria a conteno das agitaes entre um povo rude, obtida pelas
insgnias
da realeza. A comunidade poderia ter sido destruda se no tivesse
contado com
governos calmos e moderados de seus reis, permitindo que Roma
chegasse
maturidade e pudesse ento suportar o doce fruto da liberdade.
(AUC: 2:1) Lvio relaciona liberdade com a expulso dos reis desde o
livro anterior,
mas apresenta uma explicao precisa para esta caracterizao num
trecho que
apesar de longo merece aqui ser apresentado integralmente:
Alm do mais, se a origem da liberdade se h de fixar nessa poca,
foi antes porque a durao do mandato consular se limitou a um ano e
no porque se restringiu sob qualquer aspecto o poder real. Os
primeiros cnsules mantiveram todos os direitos e todas as insgnias
da realeza. Apenas procurou-se evitar que ambos os cnsules
dispusessem dos faces as mesmo tempo, para no parecerem duas vezes
mais temveis. (AUC, 2.1)
Bruto o primeiro a empunhar os fasces. Aproveitando-se do
entusiasmo popular pela recente liberdade, obriga todos os
romanos a jurarem
jamais aceitar reis em Roma novamente. (AUC: 2:1) Esta promessa
faz com que
todos os tarqunios sejam expulsos de Roma, quando Tarqunio
Colatino passa a
empunhar os fasces e torna-se suspeito de querer ocupar um trono
em Roma
novamente. (AUC: 2:2) O povo romano considerava uma ameaa a
nova
-
liberdade a permanncia de tarqunios na cidade, e ainda mais com
um deles
ocupando a principal magistratura.
A criao de duas magistraturas eleitas anualmente para ocupar o
papel
dos reis apenas o primeiro ato para dotar a cidade de
magistraturas que
pudessem equilibrar o governo entre diferentes setores sociais.
A plebe ter a sua
magistratura, e adiante ter o direito de ocupar qualquer uma
outra, inclusive o
consulado. A criao dos tribunos da plebe um caso
paradigmtico.
A priso e escravido por dvidas foi o princpio de uma agitao
popular
que consumiu Roma durante anos. A plebe alegava ser oprimida em
sua prpria
ptria, quando era obrigada a lutar pela liberdade fora dela. A
situao acaba
desembocando numa revolta motivada pela situao abjeta em que um
cidado
que havia lutado pela cidade se encontrava. (AUC, 2.23) As
dissenses entre
plebe e o governo da cidade acirram-se com as constantes
tergiversaes de
patrcios e cnsules em conferir direitos e proteo ao povo. (AUC,
2.27) Uma
conspirao popular leva o conflito ao Senado, onde duas opinies
sobre como
enquadrar a plebe na dinmica do governo se batem pelo
estabelecimento da
linha de ao da cidade em relao ao problema. (AUC, 2.29) Quando a
plebe
retira-se da cidade parece o fim da comunidade poltica fundada
sculos antes.
Roma deixada sem proteo contra o inimigo que avizinhava-se. A
plebe
deixara a defesa da cidade com os patrcios, arvorados em
senhores nicos de
Roma. (AUC, 2.33) Para reconciliar plebeus e patrcios e permitir
a continuidade
da comunidade poltica so ento criados os tribunis plebis, dois
magistrados
inviolveis que no poderiam ser escolhidos entre patrcios. Seu
carter
sacrossanto os capacitaria a proteger a plebe contra opresso de
cnsules e
senadores. (AUC, 2.33)
A criao dos tribunos da plebe passo fundamental para o
estabelecimento de um governo misto, formado de maneira
equilibrada por
princpios constitucionais monrquicos, aristocrticos e
democrticos. Para que o
tipo de governo que ser louvado por republicanos esteja
completamente
formado, resta que as leis sejam devidamente estabelecidas e
conhecidas por
toda a populao. Este papel que caber Lei das XII tbuas.
As tenses entre patrcios e plebeus acaba exasperando toda a
cidade. O
aumento das prerrogativas da plebe incomoda o patriciado,
obrigado agora a
-
partilhar as decises e acusando tribunos de provocar as
prerrogativas de
cnsules e senadores. Uma reao que pretende o retorno da dinmica
poltica
anterior ao estabelecimento dos tribunos da plebe lida com uma
populao no
disposta a ser novamente escravizada, situao que seria
engendrada pela sua
no participao no governo. A situao chega ao ponto de patrcios e
plebeus
acordarem a redao de uma nova lei. (AUC, 3.31) A plebe prope
ento a
indicao de uma comisso mista encarregada de definir os termos de
uma nova
legislao, capaz de atender aos interesses dos dois lados,
assegurando assim
liberdade a todos. A proposta de agrado ao patriciado, que no
entanto objeta
que a elaborao da legislao ficasse a cargo de patrcios. Como
ambos os lados
concordaram com a necessidade de uma legislao, apesar de
discordar em como
redigi-la, foi enviada uma legao a Atenas para consultar as leis
de Slon e
estudar as diferentes instituies, costumes e leis das cidades
gregas. (AUC, 3.31)
Com o retorno dos legados, abre-se a discusso de como
proceder
redao das leis. Nomeiam-se ento decnviros, encarregados de
redigir as leis,
sendo que apenas patrcios participaro da tarefa, sendo
interditada a ab-rogao
de parte da legislao antiga que era de interesse plebeu. (AUC,
3.33) Assim,
trezentos e dois anos aps a fundao, Roma passa por nova mudana
de
governo. Assim como o poder havia passado dos reis aos cnsules,
ele agora era
passado dos cnsules aos decnviros. Cada um revezava-se na
administrao da
justia, e a harmonia e equidade com que compartilharam das
prerrogativas
permitiu a elaborao de dez tbuas com a legislao que refunda
Roma.
Redigida com consultas plebe, a lei das dez tbuas foi
considerada perfeita e
aprovada pelas assembleias da cidade, constituindo-se, segundo
Lvio, na fonte
de todo o direito pblico e privado dos romanos.25 (AUC, 3.34) O
acrscimo de
duas novas tbuas o enredo de mais um avano da tirania, brotando
da
concentrao de prerrogativas de governo em mos de poucos.
pio Cludio, sendo popular entre a plebe, havia sido
escolhido
presidente dos decnviros (idem), mas viu no pretexto de elaborar
mais duas
tbuas a possibilidade de reduzir a cidade nova servido. Novos
decnviros
foram eleitos num processo eleitoral maculado, gerando uma
representao
25 A crtica moderna endossa a viso de Lvio, acrescentando que a
lei parece ter sido uma consagrao de antigos costumes, a partir de
ento dotados de nova fora. (Petit, 2003:45)
-
menos respeitvel que a do ano anterior. (AUC, 3.35) pio
tornou-se lder de um
grupo de cidados que aspirava estabelecer um governo arbitrrio
em Roma. Os
decnviros passaram a comportar-se como dez reis, aterrorizando
patrcios e
plebeus. Logo as arbitrariedades recaram exclusivamente sobre os
plebeus.
Corria em Roma o boato de que os decnviros conspiravam para
estabelecer uma
tirania perene na cidade. (AUC, 3.36) Os senadores nada fizeram
para conter a
sanha tirnica dos decnviros, pois os odiavam tanto quanto plebe,
que
culpavam por ter tal desejo de liberdade que arrastara a cidade
ao tumulto e ao
controle decenverial. Apesar das duas tbuas terem sido
adicionadas as dez
primeiras, no se falava em eleio. Alm disso, a juventude patrcia
fazia o papel
que antes coube plebe: protegia os decnviros, que avanaram sobre
os bens e
dignidade da plebe com a anuncia do patriciado. (AUC, 3:38)
Numa espcie de repetio dos eventos que levaram derrubada da
monarquia e ao estabelecimento dos tribunos da plebe o desaguar
desta
situao. pio Cludio comete o mesmo crime que Sexto Tarqunio:
viola uma
romana virtuosa. (AUC, 3.44) Uma correia de acontecimentos leva
a um novo
abandono da cidade pela plebe, ultrajada novamente pela
arrogncia e opresso
dos patrcios. (AUC, 3.52) Novamente, legados so enviados plebe,
que exige o
retorno das garantias e dos acordos feitos para sua liberdade. O
Senado acata o
pleito, os decnviros pedem demisso e so realizadas eleies para
novos
tribunos da plebe. (AUC, 3.54) Em seguida so nomeados novos
cnsules (AUC,
3.55), as doze tbuas so apresentadas ao povo e os decnviros so
julgados.
(AUC, 3.56-57)
As tenses entre patrcios e plebeus no cessa com estes eventos,
mas
deste ponto em diante sero sempre canalizadas por uma srie de
magistraturas
e instituies aliceradas em princpios constitucionais
monrquicos,
aristocrticos e democrticos. A engenharia
poltico-institucional
convencionalmente nomeada constituio mista estava montada e
funcionar
com poucas e irrelevantes modificaes at o fim da Repblica. A
comunidade
livre romana estava alicerada em decises tomadas durante as
circunstncias da
fundao e formao da cidade. A res publica foi um produto da
histria dos
romanos.
-
Consideraes Finais
A teoria poltica contempornea demonstra atualmente um
interesse
renovado nos escritos vinculados tradio republicana de
pensamento poltico.
Entre as fontes para esta consulta, um conjunto de escritores
romanos do
perodo final da Repblica e incio do Principado constitui parte
relevante, sendo
considerados clssicos da tradio. Ccero e Tito Lvio esto entre os
mais
importantes clssicos do pensamento republicano.
Apresentei objees ao modo como a teoria poltica contempornea
acessa os clssicos. Sustento que este acesso est criando uma
viso tipicamente
contempornea sobre os significados dos escritos dos antigos
romanos, e pouco
dizendo sobre os significados que os prprios autores poderiam
ter atribudo aos
seus escritos. Parte desta incompreenso herdada da crtica
moderna, que criou
o republicanismo antes decalcando nos escrito antigos suas
prprias idias e
formulaes, do que os tomando em seus prprios termos. O
anti-monarquismo
exemplar neste aspecto.
Modernamente o termo repblica tornou-se equivalente de um
regime
poltico no monrquico. E somente isso. Uma palavra vazia, perto
da variedade
de sentidos que lhe foram atribudas tanto pelos antigos romanos
quanto pelos
homens do incio da modernidade. A consulta aos dois primeiros
livros do
tratado de Ccero sobre a coisa pblica e aos trs primeiros livros
da histria de
Lvio indica e exemplifica perfeitamente que mesmo o nico
significado definidor
do republicanismo moderno pode no encontrar amparo nos escritos
romanos
antigos.
A monarquia em ambos os autores no apenas elemento
constituinte
das ideias polticas tpicas dos romanos, mas fundamental. A
monarquia foi um
fator agregador inicial do povo romano, que no poderia
aproveitar adiante a
liberdade sem a criao prvia deste amlgama. Os reis de Roma foram
sempre
considerados pais da cidade, responsveis pela construo da
comunidade. Com
sua expulso de Roma so mantidas suas prerrogativas,
materializadas na
criao de uma magistratura eleita anualmente para represent-los.
Com a
criao de uma magistratura para representar os plebeus, somada ao
j existente
Senado, Roma estabelece uma dinmica de equilbrio institucional
que gera um
-
regime tpico de governo. Cada uma das formas puras de governo
ter
participao na conduo da poltica em Roma. Isto constituir o
princpio da
criao mxima dos romanos em termos de pensamento poltico: a
Constituio
Mista.
Caso realmente exista uma tradio republicana de pensamento
poltico,
ela produto de diversas geraes intelectuais, esparramadas por
dois milnios
de histria. Se pretendermos nos nutrir das respostas dadas por
outros homens
sobre outros problemas para solucionar nossos prprios dilemas,
convm tentar
compreender da melhor maneira possvel o dito no passado. Se
nos
contentarmos em decalcar nossas prprias ideias em escritos do
passado no
seremos capazes de compreend-los. Logo, incapazes de torn-los
teis s nossas
comunidades polticas.
-
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