Minhas pesquisas para a prova A modernidade filosófica: Habermas contra Hegel Em O discurso filosófico da modernidade, Jürgen Habermas elege Hegel como o filósofo paradigmático da modernidade. Kant, considerado tradicionalmente, desde a interpretação hegeliana, como o nome central da modernidade filosófica, é relegado, assim, à condição de mero precursor: Kant exprime o mundo moderno em uma construção intelectual. Isso significa, porém, apenas que os traços essenciais da época refletem-se na filosofia kantiana como em um espelho, sem que Kant tenha compreendido a modernidade enquanto tal. É somente de um ponto de vista retrospectivo que Hegel pode entender a filosofia de Kant como uma autoexposição da modernidade (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 30). Para alterar a hierarquia tradicional, Habermas elabora uma nova concepção de modernidade. Para tanto, partindo da diferenciação sociológica entre modernidade e modernização, procura restabelecer o vínculo, ausente nas teorias correntes da modernização, entre modernidade e racionalidade. Destaca, assim, as relações internas entre o conceito de modernidade e a maneira como esta compreende a si mesma, inserindo-a no horizonte cultural do racionalismo ocidental. Segundo Habermas, a modernidade só se percebe como uma época histórica quando, ignorando o modelo das épocas exemplares do passado, adquire consciência da necessidade de extrair de si mesma suas normas. Uma vez redefinida a modernidade a partir da questão de sua autofundação, a ênfase recai sobre o seguinte ponto: como pode a modernidade fundar-
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Minhas pesquisas para a prova
A modernidade filosófica: Habermas contra Hegel
Em O discurso filosófico da modernidade, Jürgen Habermas elege Hegel como o filósofo paradigmático da modernidade. Kant, considerado tradicionalmente, desde a interpretação hegeliana, como o nome central da modernidade filosófica, é relegado, assim, à condição de mero precursor:
Kant exprime o mundo moderno em uma construção intelectual. Isso significa, porém, apenas que os traços essenciais da época refletem-se na filosofia kantiana como em um espelho, sem que Kant tenha compreendido a modernidade enquanto tal. É somente de um ponto de vista retrospectivo que Hegel pode entender a filosofia de Kant como uma autoexposição da modernidade (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 30).
Para alterar a hierarquia tradicional, Habermas elabora uma nova concepção de modernidade. Para tanto, partindo da diferenciação sociológica entre modernidade e modernização, procura restabelecer o vínculo, ausente nas teorias correntes da modernização, entre modernidade e racionalidade. Destaca, assim, as relações internas entre o conceito de modernidade e a maneira como esta compreende a si mesma, inserindo-a no horizonte cultural do racionalismo ocidental.
Segundo Habermas, a modernidade só se percebe como uma época histórica quando, ignorando o modelo das épocas exemplares do passado, adquire consciência da necessidade de extrair de si mesma suas normas. Uma vez redefinida a modernidade a partir da questão de sua autofundação, a ênfase recai sobre o seguinte ponto: como pode a modernidade fundar-se, posto que, para tanto, ela só dispõe de seus próprios meios, só pode remeter-se a ela mesma?
Nesse novo contexto, no padrão determinado pela autoreflexão da modernidade, a filosofia de Kant ocupa um modesto segundo plano. Com o redimensionamento da questão, toda a primazia cabe a Hegel; este teria sido o primeiro filósofo a desenvolver com clareza tal conceito de modernidade:
Hegel é o primeiro a alçar em problema filosófico o processo de ruptura da modernidade com os preceitos normativos (Normsuggestionen) do
passado, que a contornam. Certamente, a filosofia dos tempos modernos, da escolástica tardia até Kant, no quadro de uma crítica da tradição que integra as experiências da Reforma e da Renascença e também reage aos inícios da moderna ciência da natureza, já exprime a ideia que a modernidade tem de si mesma. Mas é somente no final do século XVIII que o problema de autocertificação (Selbstvergewisserung) da modernidade toma uma forma tão aguda que Hegel pode perceber essa questão enquanto problema filosófico, e mesmo fazer dela o problema fundamental de sua filosofia (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 26). [1]
No entanto, nessa reconstrução da ideia que a modernidade fazia de si mesma, Habermas reconhece, nos trechos dedicados à filosofia hegeliana, que o próprio Hegel localiza a essência do mundo moderno em Kant. Aquilo que Hegel considera como o princípio dos novos tempos teria sido extraído de uma análise da filosofia moderna, mais propriamente, da subjetividade abstrata do cogito ergo sum de Descartes e da figura da autoconsciência delineada por Kant. [2]
Convém, portanto, no exame das implicações dessa nova interpretação da problemática da modernidade, crucial para o esclarecimento do projeto filosófico de Habermas, confrontá-la com a leitura, hoje clássica, que Hegel fez dessa questão.
Hegel emprega modernidade, na acepção histórica, para designar uma época – os tempos modernos – marcada por acontecimentos decisivos como a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Porém, ele não se limita apenas a uma caracterização determinada por eventos históricos; preocupado em estabelecer todo o sistema das condições de vida, descortina o princípio desses novos tempos numa figura filosófica: a subjetividade. Assim, para Hegel, na modernidade tanto a vida religiosa, o Estado e a sociedade, como a ciência, a moral e a arte são modificados, enquanto manifestações, a partir do princípio da subjetividade. [3]
Em suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel estabelece, para essa disciplina, uma tripla tarefa: (a) salientar o vínculo entre os sistemas filosóficos e o elemento histórico; (b) superar a concepção que articula os sistemas de modo fortuito, organizando-os em uma sucessão necessária; (d) demonstrar a efetividade da proposição que afirma a razão como uma potência unificadora, mostrando que todas as filosofias representam aspectos necessários de um mesmo princípio. [4]
Um dos propósitos de Hegel consiste em demonstrar que na filosofia, à semelhança da lei de Lavoisier, nada se perde, que todos os princípios se conservam, que os sistemas filosóficos produzem conceitualmente a reconciliação que o espírito absoluto almeja entre a finitude e o eterno. [5] Ao considerar a história da filosofia como um momento do movimento unitário da ideia, Hegel destaca na filosofia moderna principalmente a tematização e compreensão da unidade de pensamento e ser. Nesse sentido ele a reelabora como uma construção destinada a captar aquilo que seria o mais recôndito, isto é, o Conceito [6]:
O produto dos tempos modernos é captar essa ideia enquanto espírito, como a ideia que se sabe (sich wissende Idee). Para prosseguir da ideia que sabe para o saber-se da ideia (Sichwissen der Idee), pertencendo a uma oposição infinita, a ideia alcançou a consciência de sua absoluta cisão (Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 458).
A época moderna é marcada, portanto, por uma cisão entre o transitório e o eterno. Nela, a inteligência desperta para o finito, busca uma conciliação com o presente; o mundo passa, então, a ser julgado segundo seus próprios critérios, adotando a razão como árbitro. Desse modo, a subjetividade torna-se o princípio e a autoconsciência, o ponto de vista dos novos tempos. No entanto, ao tomar a reflexão como fundamento, instalando como princípio o pensamento que parte de si mesmo, a modernidade gera, por meio da contraposição entre pensar e ser, um incessante conflito entre o finito e o infinito. [7]
Descartes estabeleceu a certeza como a unidade de pensamento e ser, porém, será com Kant que o pensamento adquire plena consciência da subjetividade. Assim, segundo Hegel, no quadro geral de um progressivo reconhecimento da liberdade, a filosofia kantiana, corresponde teoricamente à Aufklärung e pode, então, ser propriamente definida como uma filosofia da subjetividade. [8]
Para Habermas, entretanto, Hegel não conseguiu resolver a questão que a modernidade se coloca, ou seja, discernir em si mesma suas próprias garantias. Atribui seu erro à tentativa de resolver o conflito entre o atual e o intemporal, tal como abordado pela modernidade filosófica, dentro dos limites de uma filosofia do sujeito. Hegel teria redefinido a razão a partir da pressuposição de um absoluto, de modo a torná-la capaz, enquanto saber absoluto, de unificar a cisão provocada na modernidade pelo
princípio da subjetividade, mas, assim, não escapa das aporias de uma dialética da razão. [9]
Essa censura a Hegel, no entanto, desvenda a intenção de Habermas. Para ele, a tarefa consiste em desenvolver uma nova concepção de modernidade que, atenta ao fracasso da solução hegeliana, não mais esteja assentada sobre o princípio da subjetividade. Nessa direção, elabora as premissas de uma razão comunicacional, de uma teoria da intersubjetividade que imagina apta a superar o paradigma da filosofia da consciência. [10]
Não parece descabido, portanto, concluir que a controvérsia sobre o lugar da filosofia kantiana na modernidade não pode ser dissociado das divergências insuperáveis acerca das determinações do próprio conceito de modernidade. Quando Habermas nega ao princípio da subjetividade e à estrutura da autoconsciência a capacidade de satisfazer a necessidade, da modernidade, de orientações normativas, o faz, a partir de outra definição de modernidade. Assim, se a principal contribuição de Kant, a compreensão da estrutura da subjetividade, deixa de ser – na ótica de Habermas – marco divisório dos tempos modernos, como estabelecera Hegel, é porque se pensa os tempos modernos, em outro perfil, privilegiando o movimento de busca de seus fundamentos. [11]
Isso não significa que Habermas relegue Kant completamente. O que ele releva, no entanto, são aspectos outrora desvalorizados como a concepção kantiana de uma razão mitigada. O mérito de Kant teria sido, então, de não ter experimentado como cisões as diferenciações que cindiram a razão, assim como, as articulações formais que intervém na cultura e na divisão em esferas. Ao substituir o conceito substancial de razão, por uma concepção onde a razão possui uma unidade apenas formal, Kant teria permitido a cada domínio, a cada esfera estabelecer fundamentos próprios.
[1] Cf. também Habermas, op. cit., p. 13 e 57. Para Habermas, a importância de Hegel advém não só de ser o primeiro filósofo a tomar consciência do problema da modernidade, mas principalmente porque é a partir da solução dada por sua filosofia a essa questão que podemos situar os seus sucessores. Ampliando o escopo e reatualizando a classificação de Löwith entre velhos hegelianos, jovens hegelianos e neohegelianos (Cf. Löwith, Von Kant zu Nietzsche, p. 65-152) a divisão habermasiana entre
jovens hegelianos, neo-conservadores e jovens conservadores abrange desde a imediata posteridade a Hegel até a filosofia contemporânea. Para uma tipologia baseada nos mesmos pressuposto e, no entanto, distinta, cf. Habermas, Modernidade versus pós-modernidade, p. 90-1.
[2] Cf. Habermas, op. cit., p. 29.
[3] Cf. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, parágrafo 124.
Habermas distingue, no termo subjetividade, quatro conotações: “[...] (a) individualismo: no mundo moderno as individualidades (peculiaridades)(Eigentumlichkeit) infinitamente particulares podem fazer valer suas pretensões; (b) direito à crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que cada um deve reconhecer lhe apareça como algo justificado; (c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos querer estar de acordo com aquilo que fazemos; (d) finalmente, a própria filosofia idealista:Hegel considera como o produto dos tempos modernos que a filosofia atinja o saber de si da ideia” (Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne, p. 27).
[4] Cf. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 461.
[5] Hegel pensa a filosofia nos termos de uma consumação. A meta da construção hegeliana do movimento dialético do espírito como algo imerso no elemento da história é o saber absoluto. Assim, no mundo moderno, o princípio da subjetividade penetra na realidade e a reconciliação adquire a sua efetividade enquanto espírito. No entanto, quando o espírito alcança seu pleno ser e saber, isto é, a autoconsciência, consuma a sua história (cf. Löwith, op. cit., p. 52-58).
[6] Cf. Hegel, op. cit., p. 69, 266-7 e 314.
[7] Para Hegel, as filosofias da reflexão separam o infinito do finito e tornam inconcebível a sua unidade. O infinito por ela proposto, na realidade, é algo finito, pois o que se erige em absoluto é apenas a reflexão ou o entendimento (cf. Hyppolite, Introdução à filosofia da história de Hegel, p. 68-70. Hegel resolve a oposição abstrata entre finito e infinito com a criação de um sujeito absoluto, isto é, pela “[...] auto-relação absoluta de um sujeito que acede de sua substância à autoconsciência, portando em si tanto a unidade como a diferença do finito e do infinito” (Habermas, op. cit., p. 46).
[8] A filosofia kantiana é, portanto, para Hegel, um ponto fundamental na sua visada do conjunto da modernidade. Desse modo, não causará espanto que Hegel defina o interesse da filosofia moderna em termos bastante próximos aos do “giro copernicano”: “[...] o interesse principal, por isso, não é tanto pensar os objetos em sua verdade, mas sim pensar a própria unidade entre o pensar e a compreensão dos objetos, unidade esta que é o tornar-se consciente (Bewusstwerden) de um pressuposto objeto” (Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, p. 63).
[9] Sobre as aporias da solução hegeliana cf. Habermas, op. cit., p. 33-58. A aporia central, detectada por Habermas, é a seguinte: ao fundar a sua posição sobre o conceito de saber absoluto, Hegel se vê forçado a abdicar, em sua definição de modernidade, da própria possibilidade de uma crítica da modernidade, logo, de uma crítica da atualidade (Id., ibidem, p. 55-57).
[10] Cf. Habermas, p. 344-445; para a ultrapassagem da filosofia do sujeito cf. especialmente as pp. 361-2, 432-3 e 444-5.
[11] Habermas não descarta completamente a subjetividade. O que ele visa, mais propriamente, é uma reapropriação e transformação do conceito reflexivo de razão desenvolvido pela filosofia do sujeito (cf. Habermas, op. cit., p. 42).
O conceito hegeliano de modernidade, segundo Habermas
Fichamento do capítulo II: O Conceito hegeliano de modernidade e Excurso sobre as cartas de Schiller acerca da educação estética do homem. (Habermas, Jürgen O Discurso Filosófico da Modernidade, Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2002, trad.: Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento)*
I
[absoluto, crítica da positividade e religião popular]
Hegel, ao buscar implodir a filosofia da subjetividade nas diferentes formas que se apresenta nas filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, não procede, segundo Habermas, de modo inteiramente imanente. Ao contrário, leva em conta seu diagnóstico de época do Iluminismo, única razão que o autoriza a pressupor um absoluto, que dá a razão o estatuto de poder de unificação. A época do Iluminismo elevou o entendimento à razão, pondo algo finito como absoluto. O infinito da filosofia da reflexão opõe-se a um finito, a própria oposição denunciando a finitude do conjunto e o "declínio" dessa pretensa razão.
Habermas acusa Hegel de pressupor o que deveria mostrar, isto é, uma razão capaz de unificar as oposições (portanto, mais que um entendimento absolutizado). Habermas conclui que a pressuposição do absoluto diz mais respeito às experiências históricas que Hegel vivenciou do que a argumentos filosóficos.
Do ponto de vista histórico, Hegel e seus amigos de seminário eram partidários dos movimentos pela liberdade, o que os levou a polemizarem com o teólogo protestante Storr. Eram alinhados filosoficamente com a doutrina moral kantiana e politicamente com a Revolução Francesa. O regulamento do seminário, a teologia de Storr, os quais o Estado oferecia proteção, eram os móbiles da postura crítica de Hegel e seus amigos, crítica que assumiu a princípio a forma moderada de um retorno a um cristianismo primitivo reformador, que visava a introdução da moralidade na religiosidade da nação.
Hegel dará o nome de "positivismo da eticidade" ao conjunto do objeto de sua crítica: religião positiva é aquela que se funda na autoridade e não dá valor moral à ação humana, aquela que dá ênfase na obra em oposição à ação moral, positiva é uma esperança de recompensa no além e uma separação entre religião pública e privada.
Partindo da noção kantiana de religião como "o poder de aplicar e validar os direitos que a razão concedeu", Hegel pensará uma religião – em polêmica com a ortodoxia representada por Storr, mas também com a religião racional exemplificada por Lessing – que penetre nos costumes do povo, nas instituições, no Estado e na sociedade, a religião enquanto um elemento da vida pública. A isso dará o nome de religião popular, não puramente racional porque também dirigida à imaginação, coração e sensibilidade.
Hegel também se dedicará, com uma crítica análoga, à questão política de sua época. A cisão e a ossificação da positividade são denunciadas; o poder político tornou-se um estranho e o Estado não passa de uma engrenagem cujas leis são incapazes de captar a vivacidade atual.
Essas razões históricas servem ao argumento de Habermas segundo o qual a razão em Hegel é um poder a priori que fragmenta e reunifica as relações da vida. A querela entre ortodoxia e religião racional ilustra a positividade gerada pelo princípio de subjetividade e que, no entanto, leva a necessidade objetiva de sua superação. A tarefa de Hegel, para autocertificar a Modernidade, é mostrar como a positividade é superada justamente pelo princípio que a originou.
II
[comunidade ética intersubjetiva e novo rumo à fundamentação da modernidade]
Hegel considera a subjetividade como um princípio de dominação, através da estrutura de auto-relação, que acaba por fazer do sujeito objeto de si mesmo. Mesmo na moral kantiana permanece um resquício
de positividade, notável através da estranheza do universal que se impõe com violência à sensibilidade.
Hegel aponta como alternativa à positividade uma razão reconciliadora com vistas a eliminar a positividade. O "poder de unificação" dessa razão é experimentado no castigo como destino. Hegel pensa um estado social no qual todos os membros têm seus direitos garantidos e necessidades satisfeitas sem ferir os demais interesses. O criminoso que perturba tais relações éticas deve sentir como necessidade histórica do destino o poder contrário da vida que aniquilou, reconhecendo nessa aniquilação a falta de sua própria vida, na causalidade do destino a implosão da totalidade ética. Da experiência de negatividade da cisão se espera que surja a nostalgia da vida perdida, fazendo os demais membros reconhecerem também a falta de sua própria natureza. Assim, ambos os lados perceberão a "abstração" de suas vidas e restaurarão o "fundamento de sua existência".
Em oposição às leis abstratas da moral e da legalidade, Hegel propõe uma "culpa concreta" que tem origem na divisão de uma totalidade ética pressuposta. Nesse contexto, o destino não pode ser compreendido a partir do princípio de subjetividade. É a perturbação de um mundo de relações intersubjetivas que produz, por alienação desse mundo, a relação sujeito-objeto. Alienação é, portanto, o afastamento da vida em comum. A repressão, desse modo, ocorre a partir da descontinuidade das relações éticas fundadas na intersubjetividade, e não pela submissão de um sujeito que passa a ser objeto.
Habermas acusa Hegel, no entanto, de falhar no seu intuito na medida em que a "reconciliação" é promovida por um princípio outro que não o da subjetividade (isto é, a intersubjetividade das relações do entendimento). Assim, o princípio que engendrou o positivo não é o mesmo que o supera e a autofundamentação da modernidade falha. Uma das razões dessa falha diz respeito ao fato de Hegel ter como modelo de totalidade ética a polis grega e o cristianismo primitivo, algo estranho à Modernidade.
O poder unificador operado pela intersubjetividade aparece, à época, codificado com os nomes de "vida" e "amor". Esse poder se estabelece através da mediação comunicativa. A comunidade fundada a partir daí é um lócus onde o sujeito se reconhece uno com o outro, mas também permanece si mesmo. O isolamento dos sujeitos perturba a comunicação,
que é restabelecida de modo imanente como télos. Habermas nota que se abriu uma senda de uma teoria da comunicação fundada no conceito de reflexão da razão da filosofia do sujeito. Porém Hegel não seguiu esse caminho, optando pela ideia de religião popular, cuja impossibilidade está ligada a seu parentesco – indissolúvel, e não meramente ilustrativo – com comunidades históricas.
A Modernidade, contudo, por meio da reflexão que elevou a época à consciência de si, não mais podia buscar no passado modelos exemplares. Isso, somado aos estudos de economia política de Hegel, os quais o levaram a reconhecer as relações capitalistas como uma realidade singular, obrigaram-no a pensar outro modo de reconciliação que leve em conta essas novidades. Hegel, rompendo com os modelos de sociedade clássicos, apelará a um conceito de absoluto que se move no interior da filosofia do sujeito. Porém, segundo Habermas, isso redundará em novos problemas.
III
[arte e filosofia como meios da unificação]
Antes de abordar a questão da autofundamentação da modernidade em Hegel, Habermas passa à análise do O mais antigo programa sistemático. Nesse documento – cuja convicção é compartilhada por Hegel, Schelling e Hölderlin – a arte ocupa o importante papel de ser o medium da reconciliação, aquilo por meio do qual a religião racional se tornará popular, a razão se comunicará com a sensibilidade.
A predominância da arte como meio da reconciliação perde crédito, todavia, já no Differenzschrift (1801). Esse novo diagnóstico é simultâneo ao surgimento do romantismo, cujo subjetivismo é reconhecido por Hegel como expoente do espírito da modernidade. Justamente por isso, permanece como "poesia da cisão". A Filosofia passa a ser o lócus privilegiado no qual a razão apresenta plenamente seu poder de unificação. É a partir da filosofia da reflexão, no entanto, que Hegel buscará fundar esse conceito.
Hegel reclama da orientação da filosofia da reflexão na medida em que se trata de pensar uma subjetividade que para atingir identidade tem de subjugar um outro. As falsas identidades são criações de um finito alçado a absoluto, isto é, a própria subjetividade. O mundo cindido – nas instituições políticas, na religião, na moral – é unificado pelas categorias kantianas em uma mera projeção, que no limite deixa as coisas exatamente como são – e a permanência e mesmo a produção de cisões pela filosofia kantiana, Hegel dirá, é o dogmatismo dessa filosofia. Essa submissão – travestida de unificação – promovida pela subjetividade leva a uma unidade desarmônica, incompleta e violenta.
A possibilidade de uma unificação diferente dessa que acaba por gerar mais positividade, é legítima de ser pensada em razão das experiências de crise. A identidade passa a ser pensada como negação de todas absolutizações, em crítica permanente às positividades – portanto não como subjetividade subjugadora. Hegel pensa superar a oposição do finito e infinito através de um sujeito que tem consciência de si de sua substância, que tem em si a unidade e a diferença do finito e infinito. Esse sujeito absoluto não precede o processo universal – como o ser de Hölderlin ou a intuição intelectual de Schelling –, mas subsiste no processo de relação entre finito e infinito e na sua atividade reversa. O absoluto, desse modo, não é sujeito nem substância, mas o processo mediador que se produz independente das condições.
Habermas passa a mostrar, de modo ilustrativo, a tentativa de Hegel em buscar apontar os erros da modernidade sem abdicar de seu princípio. O exemplo é sua estética. De modo bem esquemático, Schlegel fiava-se aos padrões clássicos de arte, ao passo que Schiller, adotando o ponto de vista do poeta reflexivo da modernidade, pensa que a poesia clássica, ingênua, atingiu padrões hoje inatingíveis, mas toma claro partido da arte moderna que aspira ao ideal de uma unidade mediada com a natureza, ao invés de atingir o belo que é imitação dela. Para Hegel, a arte é a forma na qual o absoluto se apreende intuitivamente. Na religião e na Filosofia o Espírito se representa e concebe; trata-se de formas mais elevadas de sua apresentação. A arte, em contraste, é uma limitação da exposição do absoluto, pois seu medium é a sensibilidade. Desse modo, o que é apenas aspiração em Schiller, pode ser realizado em Hegel como Ideia além da arte. Nisso reside a polêmica dissolução da arte. Hegel conserva e supera através de um mesmo princípio, pois pensa o romantismo, por um lado, como consumação da arte porque é decadência subjetivista da arte reflexiva, mas, por outro lado, como consumação porque rompe
reflexivamente com uma forma de exposição do absoluto restrita ao simbólico.
O mesmo modelo de dissolução é proposto para a religião, cujo alargamento de interioridade no protestantismo foi cedendo cada vez mais espaço ao saber conceitual da Filosofia, salvando o conteúdo da fé e destruindo a forma religiosa.
Através de um conceito de absoluto que é invulnerável e se impõe contra todas as absolutizações, cujo incondicionado trata do processo infinito de auto-relação que contém todo o finito, Hegel aparentemente teve êxito em conceber e criticar a modernidade a partir de seu próprio princípio. À filosofia, dentro disso, cabe o poder de unificação que supera todas as positividades. Habermas, contudo, diz que o projeto hegeliano rebaixou-se. Da ideia de uma religião popular até a noção de superação promovida por fim pela Filosofia há uma grande resignação. A reconciliação da Filosofia é meramente parcial e o povo é abandonado nessa nova concepção. Habermas diz que isso reflete um esgotamento da crítica da dialética do esclarecimento, mais visível ainda na análise da sociedade civil e Estado.
IV
[política e a solução estatal]
As sociedades modernas implodiram o conceito tradicional, aristotélico, de política, na medida em que separaram dois âmbitos no qual o antigo conceito operava, isto é, o fundamento da política global estar ligado em um contínuo à economia doméstica; a estratificação social e a participação no poder político estarem intimamente ligados. Ao contrário, a época moderna caracteriza-se pelo desligamento desses dois âmbitos, dando lugar a economia capitalista, regulada pelo direito privado, e ao Estado burocrático. Isso deu lugar a duas novas disciplinas: a economia política e a teoria do Estado.
Hegel está historicamente no meio dessas mudanças. Pensa essa separação entre sociedade e política, o que o leva à conceituação da "sociedade civil burguesa". Hegel dirá que nessa sociedade os demais homens são nada, mas, na medida em que o indivíduo não pode prescindir dos outros para seus fins, deve tratá-los como meios de um fim particular. Este fim dá a forma da universalidade, na qual a satisfação de si e dos outros de algum modo coincide. Esse domínio é "neutro" eticamente e os homens nele perseguem seus objetivos egoístas. Essa sociedade é tomada por Hegel, por um lado, como pertencente à corrupção e, por outro, como a aurora do mundo moderno, cuja justificativa está na emancipação e liberdade formal do indivíduo, e mesmo a carência e o trabalho são momentos formadores da subjetividade.
Desde o escrito de juventude Sobre os modos de tratamento científico do direito natural, Hegel busca pensar a sociedade civil burguesa não como mera decadência da eticidade, mas também como momento necessário dessa mesma eticidade. Hegel pensará, então, um mediador entre a situação da sociedade à época e a totalidade ética que ambiciona, mas que como retomada da antiguidade já se vê interditada. Habermas dirá que Hegel viu a novidade representada pelo Estado moderno – contra a filosofia da restauração, que pensa o direito público como eticidade substancial e o Estado como extensão da família; e contra o direito natural individualista, não ético, e que identifica o Estado às relações privadas da sociedade burguesa –, pensado em contraste com a socialização não política operada pelo mercado.
Habermas argumentará que a solução apresentada por Hegel é "tendenciosa" quanto à questão da mediação. Segundo Habermas, não há nenhuma razão que aponte que o movimento da sociedade (família, sociedade, vontade política, Estado) deva voltar e ter seu momento superior no próprio Estado. A solução do Estado se apresenta nos quadros de uma solução para o fato da sociedade civil não se auto-regular (a miséria, a concentração de riquezas são exemplos disso). Habermas dirá que disso apenas resulta a necessidade de integrar o antagonismo em uma eticidade. No entanto, a solução toma a forma em Hegel de um universal na dupla forma da eticidade absoluta: 1) abarca a sociedade como um de seus "momentos" e é 2) um "universal positivo", cuja função é deter a autodestruição provocada pelo antagonismo, distinto da sociedade. Esse "universal positivo" é o Estado, que supera a sociedade na monarquia constitucional.
Essa solução só é satisfatória sob um pressuposto de absoluto pensado como "auto-relação de um sujeito cognoscente". Na Filosofia Real Hegel pensou o todo ético como unidade entre individualidade e universal através da figura da consciência de si. Um sujeito ao reconhecer-se refere a si mesmo como um sujeito universal que está no mundo como totalidade de objetos de conhecimento possível e, ao mesmo tempo, como um eu individual, um entre muitos outros. Como o modelo de absoluto é pensando como subjetividade infinita, os momentos do universal e singular estão unidos em um mesmo quadro lógico de autoconhecimento. Desse modo, o universal tem prioridade sobre o singular, com conseqüências no domínio da eticidade, quais sejam, a prevalência da subjetividade do Estado sobre a do indivíduo – na fórmula de Dieter Henrich, o "forte institucionalismo" de Hegel.
Habermas aponta a alternativa de mediação do universal e singular por meio da "intersubjetividade de grau superior da formação não forçada da vontade". Essa universalidade formada pelo consenso garantiria uma forma de apelação contra desvios da institucionalização da vontade comum. Essa organização – esboçada nos escritos de juventude hegelianos – permitiria a substituição do aparelho estatal monárquico.
Por fim, Habermas diz que a partir da elevação do Estado como "efetividade da vontade substancial" por Hegel, tudo que destoa dessa orientação, é lançada na vala comum do irracionalismo. A filosofia passa a desconsiderar as manifestações da realidade. Exemplos são os movimentos democráticos vindo da revolução de julho de Paris e a reforma eleitoral do gabinete inglês, este último que motiva Hegel a escrever a um artigo no qual, conforme a opinião de Habermas, põe-se ao lado da restauração.
V
[fim da crítica à positividade]
Em 1802, no artigo Sobre a essência da crítica filosófica, do Jornal Crítico de Filosofia de Schelling, Hegel diferencia dois tipos de crítica: 1) uma
dirigida contra as positividades da época, ilustrada pelas críticas do jovem Hegel à religião e ao Estado e 2) outra crítica dirigida ao idealismo subjetivo de Kant e Fichte, que consiste em demonstrar a limitação de uma subjetividade que se nega a reconhecer um conhecimento superior já objetivamente disponível. O Hegel da Filosofia do Direito apenas pratica esse segundo tipo de crítica.
Desse modo, a crítica não mais incide contra as "falsas" positividades, mas sim é obrigada a reconhecer que as cisões modernas possuem certo direito. Isso se ilustra no prefácio da Filosofia do Direito quando Hegel disse que o efetivo é racional e o racional é efetivo, mesmo na formulação moderada de 1819-20: "O que é racional se torna efetivo, e o efetivo torna-se racional", o que acusa uma concepção de presente pré-decidido.
Isso leva a uma desvalorização do presente e embotamento da crítica. A filosofia não toma mais os acontecimentos históricos como oportunidade autocrítica, mas sim os esvazia de significado. De acordo com o segundo modelo de crítica cabe à filosofia apenas criticar as abstrações que servem de anteparo a que a consciência subjetiva reconheça a objetividade da razão.
O problema da modernidade pôs-se a Hegel que a encarou sob a "constelação conceitual" de modernidade, consciência do tempo e racionalidade. No entanto, a racionalidade – transformada em Espírito Absoluto – impede que a modernidade tome consciência de si própria. A conclusão de Habermas é que Hegel não conseguiu certificar a modernidade, mas como saldo lega a pensar o conceito de razão de modo mais modesto.
A partir de Hegel surgem três partidos alternativos. O dos jovens hegelianos, que através de um conceito moderado de razão, e por uma dialética distinta, pensam conceber e criticar uma modernidade em conflito consigo própria. Os outros dois partidos buscam desvincular os laços entre modernidade, consciência do tempo e racionalidade. Os neoconservadores (hegelianos de direita) são acríticos à modernidade social, desconsiderando uma crítica ao próprio tempo, além de limitarem a razão ao entendimento e a racionalidade à racionalidade com respeito a fins, perdendo de vista a modernidade cultural e deixando a razão autonomizada no cientificismo. Os jovens conservadores (Nietzsche) radicalizam a crítica ao próprio tempo denunciando a razão com respeito a fins como uma relação de poder.
Excurso sobre as cartas de Schiller acerca da educação estética do homem
As Cartas (1795) são a primeira crítica estética da modernidade. De modo solidário com as pesquisas dos amigos de Tübingen, as Cartas pensam uma "utopia estética", compreendendo a arte como o poder unificador capaz de superar as cisões modernas. Para tanto, Schiller pensa a arte como comunicação, intervindo nas relações intersubjetivas dos homens e sendo capaz de realizar o "Estado estético".
A arte, no esquema de Schiller, passa a ser o meio de realização da liberdade política, através de um processo de formação. Essa formação incide não sobre o indivíduo, mas sobre a coletividade do povo e suas formas de vida. A arte importa enquanto resguarda seu caráter público. Além disso, a mudança das formas de vida passa pela força da comunicação como fundadora da comunidade.
A autocertificação da modernidade se dá pelo contraste com o antigo. Enquanto nesse a projeção da natureza humana combinava de diferentes modos as partes dessa natureza, na modernidade toda projeção dá-se em fragmentos, com perda da totalidade – e a arte e a poesia têm de se ver com isso.
Schiller faz uma crítica da positividade na forma de uma crítica da sociedade burguesa ("sistema do egoísmo"), do trabalho alienado (separação entre produção e fruição, meio e fim), da burocracia (o Estado trata os cidadãos como meros objetos de administração) e da ciência especializada e intelectualizada (afastamento do cotidiano, perda da sensibilidade, encerramento à fórmulas).
Schiller, todavia, compreende a alienação como um movimento necessário do desenvolvimento da humanidade. O isolamento das forças que terminam por entrar em conflito com a verdade é o motor que não deixa o senso comum acomodar-se. Como exemplo, a autonomização do espírito de negócios na sociedade coage os indivíduos fisicamente na natureza e a autonomia do espírito especulativo na filosofia leva a uma coerção moral da liberdade. Isso acaba por gerar um Estado dinâmico e
um Estado ético em oposição; à semelhança, ambos oprimem o senso comunitário. A solução dessa oposição para Schiller vêm da retomada do "sentido comunitário destruído", nem como natureza nem como liberdade, mas como um processo de formação que tire do caráter físico a contingência da natureza e do caráter moral a liberdade da vontade, salvaguardando-os. O medium do processo é a arte, que sem nenhuma espécie de constrangimento faz a mente permanecer ativa, em uma "disposição intermediária". A arte, desse modo, ao exceder o domínio da natureza e da moral, cria uma terceira legislação e estabelece uma totalidade.
O precedente que permite a Schiller pensar essa utopia estética – que acabou por ter produtivas repercussões na tradição hegeliano-marxista – encontra-se no juízo estético da Crítica do Juízo de Kant, que passa a ter uso na filosofia da história. A síntese entre o conceito kantiano de juízo com o conceito tradicional permitiu a Schiller conceber a arte como comunicação, cujo fim é "trazer a harmonia para a sociedade".
Schiller pensa uma forma ideal da intersubjetividade em oposição a duas deformações: a alienação (o troglodita, que por viver fora da sociedade a toma como algo objetivo) e a fusão (o indivíduo-massa que vagueia na sociedade, sem identidade). A justa medida encontra-se na reconciliação por meio de uma estrutura de comunicação que permita àquele que silencia falar consigo e aquele que na sociedade se encontra fale com toda a espécie, em um modelo de comunicação mais harmônico.
A proposta de Schiller consiste em revolucionar as relações de entendimento, e não em estetizar as relações da vida – como no projeto surrealista. Schiller insiste na autonomia da arte. Essa concepção terá ecos em Marcuse, que pensará a relação da arte com a revolução, no registro de uma emancipação dos sentidos então embotados. Marcuse alerta que a coincidência entre arte e vida é sintoma de barbarismo, e insiste, como Schiller, na arte como aparência.
Essa autonomia da arte em Schiller ensaia a autonomia das esferas da ciência, moral e arte, tematizada por Emil Lask e Weber. A confusão entre as esferas não proporciona nenhuma libertação. A arte para Schiller é então apenas o "catalisador", como forma de comunicação, para a unificação das cisões.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
HABERMAS E A RETOMADA DA TEORIA CRÍTICA
TATIANA SCHOR
Pretende-se mostrar neste artigo como o livro ‘O discurso
filosófico da modernidade’[1] de Jürgen Habermas pode ser analisado
como uma retomada da Teoria Crítica. Retomada a partir do texto de
Horkheimer ‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’[2]. E, mais que isso, como
este livro de Habermas pode ser compreendido como práxis no sentido
elaborado por Horkheimer no texto já citado.
Como práxis, a retomada da teoria crítica poderá indicar um
interessante caminho para a discussão acerca da interdisciplinaridade
necessária para a compreensão de objetos complexos tal como a questão
ambiental.
Antes de adentrar propriamente na argumentação principal é
necessário explicitar o sentido de Teoria Crítica e práxis elaborado por
Horkheimer. De maneira simplificada, podemos entender a Teoria Crítica
como sendo a análise teórica que, consciente de seu tempo e de sua
especificidade histórica, toma uma postura reflexiva (isto é, crítica) com
impossibilita que ele consiga reformular o conceito de práxis e não supera
o paradigma da consciência.
Habermas aponta alguns problemas que fazem com que
Castoriadis não amplie o conceito de práxis. Aponta um reducionismo no
conceito de práxis elaborado por Castoriadis pois este o relaciona com o
conceito de produção que por sua vez mantém o mundo como objeto
capaz de ser compreendido pelo sujeito cogniscente. Não escapa da
relação sujeito objeto,(p.460) fazendo com que o conceito de práxis fique
embaralhado entre o imaginário que abre o mundo e o trabalho e a
interação(p.461) . Considera que o conceito de linguagem do qual Castoriadis
parte não permite uma diferença entre sentido e validade (p.460) . Não fica
claro quem seria o ator da práxis social revolucionária(p.462) parece que esta
ganha um certo estatuto autônomo que para Habermas é indeterminado.
Castoriadis não percebendo a necessidade de uma dupla validade
perdendo-se em considerações psíquicas relacionadas com a primeira
infância que como cerne monádico tem que superar o complexo de Édipo
para fazer parte da sociedade, que para Habermas esses “conflitos
intrapsíquicos não guardam uma relação interna com os sociais; antes,
psique e sociedade estão em uma espécie de oposição metafísica uma
com a outra.”(p.464)
Habermas considera que a necessidade de ampliar o conceito de
linguagem é fundamental, pois este deixa a dimensão lógico-semântico e
passa a ser um medium que envolve cada participante da interação como
integrante de uma comunidade de comunicação.(p.465) Para ele com base no
conceito de linguagem ampliado (o mundo da vida já esboçado)
reformulá-se o conceito de práxis a partir da razão comunicativa “que
impõe aos participantes da interação uma orientação segundo pretensões
de validade, possibilitando assim, uma acumulação de saber capaz de
modificar as imagens do mundo.”(p.465) É esta possibilidade de modificação
das imagens do mundo que possibilita uma reprodução diferenciada do
mundo da vida que por sua vez possibilitaria uma intercomunicação cada
vez mais elaborada. Este seria, ao nosso ver, o sentido de emancipação.
Podemos ainda perceber por outro angulo, que a reprodução do
mundo da vida é emancipatória, pois o mundo da vida não é estático nem
no tempo nem no espaço e tem como cerne a interação entre indivíduos.
Emancipação em um sentido mais fraco (do que Hegel), pois não será
possível desvendar o mundo da vida, unificar as esferas, nem fazer uma
revolução(p.482). Tem-se a possibilidade de emancipação parcial incapaz de
esclarecer o todo – Habermas só lida com ilusões isoladas e não pretende
juntar as esferas cindidas, em suas palavras: (p.418) “A sua força libertadora
dirige-se contra ilusões isoladas: ela não pode, por exemplo, tornar
transparente o todo de um curso da vida individual ou de uma forma de
vida coletiva.”
Em certo sentido consciente dessas questões, Habermas aponta
que para que esse conceito de ‘mundo da vida’ sirva para algo (eis a Práxis
da teoria herança da Teoria Crítica) tem que ser transformado em um
“conceito empiricamente aplicável e integrado, com o sistema auto-
regulado, a um conceito de sociedade constituído em dois níveis” que
seriam da lógica e da dinâmica evolutiva. Habermas retoma a questão da
especificidade da dinâmica histórica apontada por Horkheimer no texto
‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’ comentando que “(...) a teoria social
precisa permanecer consciente de seu próprio contexto de surgimento e
de sua posição no contexto de nosso presente; também os fortes
conceitos universalistas têm um núcleo temporal” (p.419) Para ele, a práxis
de sua teoria vem do fato de que “a teoria da comunicação pode
contribuir para explicar como na modernidade uma economia organizada
sob a forma do mercado se entrelaça funcionalmente com o Estado que
monopoliza a violência, se autonomiza em relação ao mundo da vida,
tornando-se uma parte de sociabilidade isenta de normas, e opõe aos
imperativos da razão os seus próprios imperativos, fundados na
conservação do sistema”.(p.484) Assim, sua Teoria, como Teoria Crítica,
desvenda as patologias da modernidade e dá um passo na sua solução
quando resolve a patologia no campo teórico: Unifica a cisão do discurso
filosófico da modernidade.
Como discurso unificado que se posiciona ativamente (Teoria da
ação comunicativa) frente à dicotomia sujeito-objeto pode indicar um
caminho interessante para a questão epistemológica referente aos
estudos interdisciplinares. Romper com a elaboração de conceitos
universais, pré-estabelecidos e com conteúdo fixo possibilita o diálogo
entre diferentes, e como práxis legitima o papel propositivo da teoria.
Esse caminho fica mais claro quando abordamos as questões
relacionadas aos problemas interdisciplinares encontrados em programas
de pesquisa que tem como objeto questões ambientais, tais como
biodiversidade e mudanças globais. A interação entre os diferentes
cientistas oriundos das mais diversas áreas de conhecimento esbarra
sempre na visão da inter-relação homem-meio, afinal a perspectiva de um
cientista das humanidades difere em muito dos demais que
invariavelmente posicionam o homem como elemento exógeno
perturbador: elemento antrópico. A separação Natureza (como conceito
universal indeterminado) e Homem, clássicos da modernidade dificultam
ainda mais o diálogo entre as partes. A teoria como práxis e o teórico
como desvendador do fetiche possibilita, tal como David Harvey[11]
propõem, unificá-los em um sistema sócio-ecológico no qual os fluxos de
dinheiro e mercadoria são considerados, incorporando assim os diversos
aspectos do mundo em um discurso compreensivo.
A Teoria, como nos mostra Habermas, quando incorpora a
Crítica, retoma seu papel transformador. Como práxis viabiliza o diálogo
interno à própria discussão acadêmica ampliando e incorporando
temáticas complexas sem produzir universais absolutos.
Notas
[1] HABERMAS, Jürgen (1984: 2000). O discurso filosófico da modernidade. Editora Martins Fontes, São Paulo. (Tradução: Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento).
[2] HORKHEIMER, Max (1937; 1980). ‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’ In: Textos Escolhidos, Coleção Os Pensadores, Editora Abril Cultural, São Paulo, pp 117-154. (Tradução: Edgard Afonso Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha).
[3] “No pensamento sobre o homem, sujeito e objeto divergem um do outro; sua identidade se encontra no futuro e não no presente. O método que leva a isso pode ser designado clareza, de acordo com a terminologia cartesiana, mas essa clareza significa, no pensamento efetivamente crítico, não apenas um processo lógico, mas também um processo histórico concreto. Em seu percurso se modifica tanto a estrutura social em seu todo, como também a relação do teórico com a classe e com a
sociedade em geral, ou seja, modifica-se o sujeito e também o papel desempenhado pelo pensamento. A suposição da invariabilidade social da relação sujeito, teoria e objeto distingue a concepção cartesiana de qualquer tipo de lógica dialética.” (Horkheimer, Max 1980:133)
[4] É interessante notar que este termo não é utilizado nem por Horkheimer no texto ‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’ nem por Habermas.
[5] “(...) a função da teoria crítica torna-se clara se o teórico e sua atividade específica são considerados em unidade dinâmica com a classe dominada, de tal modo que a exposição das contradições sociais não seja meramente uma expressão da situação histórica concreta, mas também uma expressão da situação histórico concreta, mas também um fator que estimula e que transforma.” (Horkheimer, Max 1980:136)
[6] “A teoria crítica não tem, apesar de toda sua profunda compreensão dos fatos isolados e da conformidade de seus elementos com as teorias tradicionais mais avançadas, nenhuma instância específica para si, a não ser os interesses ligados à própria teoria crítica de suprimir a dominação de classe. Essa formulação negativa, expressa abstratamente, é o conteúdo materialista do conceito idealista da razão. Num período histórico como este a teoria verdadeira não é tão afirmativa como crítica, como também a sua ação não pode ser ‘produtiva’. O futuro da humanidade depende da existência do comportamento crítico que abriga em si elementos da teoria tradicional e dessa cultura que tende a desaparecer. Uma ciência que em sua autonomia imaginária se satisfaz em considerar a práxis – à qual serve e na qual está inserida – como seu Além, e se contenta com a separação entre pensamento e ação, já renunciou à humanidade. Determinar o conteúdo e a finalidade de suas próprias realizações, e não apenas nas partes isoladas mas em sua totalidade, é a característica marcante da atividade intelectual.” (Horkheimer, Max 1980:154)
[7] Sempre que estivermos citando o livro de Habermas aqui analisado usaremos essa notação simples.
[8] Considero importante citar o trecho: “Lembremo-nos do problema inicial. Uma modernidade sem modelos, aberta ao futuro e ávida por inovações só pode extrair seus critérios de si mesma. Como única fonte do normativo se oferece o princípio da subjetividade, do qual brota a própria
consciência de tempo da modernidade. A filosofia da reflexão, que parte do fato básico da consciência de si , eleva esse princípio ao conceito. No entanto a faculdade de reflexão, aplicada sobre si mesma, revela-se também o negativo de uma subjetividade autonomizada, posta de modo absoluto. Por isso, a racionalidade do entendimento, que a modernidade sabe que lhe é própria e reconhece como único vínculo, deve ampliar-se até a razão, seguindo os rastros da dialética do esclarecimento. Porém, como saber absoluto, essa razão assume, por fim, uma forma tão avassaladora que não apenas resolve o problema inicial de uma autocertificação da modernidade, mas o resolve demasiado bem: (...) Dessa maneira a filosofia de Hegel satisfaz a necessidade da modernidade de autofundamentação apenas sob o preço de uma desvalorização da atualidade e de um embotamento da crítica.” (p.60)
[9] Não nos parece gratuita a expressão ‘permanece às costas’ pois está é a expressão utilizada por Marx não só no Primeiro Capítulo do Capital para introduzir o conceito de fetiche mas perpassa os três livros. Com isso não estamos querendo dizer o que Habermas chama de mundo da vida é o fetiche, mas achamos que de fato ele faz uma referência velada ao termo.
[10] Castoríadis “Tem de resolver o problema de conceber a função da linguagem de abrir o mundo de modo que corresponda a um conceito de práxis pleno de conteúdo normativo.”(p.459)