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HORIZONTE TEOLÓGICO ANO 12 | Nº 24 | JULHO - DEZEMBRO 2013 AS MULTIFORMAS DO SABER ISSN 1677-4400 Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 12 | N. 24 | P. 1-132 | 2013
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A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO: a crítica de Desmond aos modelos unívoco, equívoco e dialético da tradição filosófica

Jan 22, 2023

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Page 1: A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO  PENSAMENTO: a crítica de Desmond aos modelos unívoco, equívoco e dialético da tradição filosófica

HORIZONTE

TEOLÓGICO

ANO 12 | Nº 24 | JULHO - DEZEMBRO 2013

AS MULTIFORMAS DO SABER

ISSN 1677-4400

Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 12 | N. 24 | P. 1-132 | 2013

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© 2013 - Instituto Santo Tomás de Aquino Proibida a reprodução de qualquer parte, por qualquer meio, sem a prévia autorização do Conselho Editorial Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039 Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, Damásio R. Medeiros dos Santos (UPS, Roma), José Carlos Aguiar, Manoel Godoy, Sílvia Contaldo, William Desmond (KUL, Bélgica), Wolfgang Gruen. Revisão: Helena Contaldo - Conttexto Diagramação: Samarone Barcellos Normalização Bibliográfica: Iaramar Sampaio - CRB6/1684 As matérias assinadas são de responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos

livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou

não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres. Administração / Redação: Rua Itutinga, 340 Bairro Minas Brasil 30535-640 | Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3419-2803 | Fax: (31) 3419-2818 [email protected] www.ista.edu.br Publicação Semestral Impressão: Editora O Lutador

H811 Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 12, n. 24

(2º Sem. 2013) - Belo Horizonte: O Lutador, 2013. 132p.

ISSN 1677-4400 Semestral

1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto

Santo Tomás de Aquino.

CDU: 2:1

Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684

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SU

RIO

EDITORIAL 5

AS MULTIFORMAS DO SABER

Manoel Godoy

A SUBJETIVIDADE HIPERMODERNA E A 9

FORMAÇÃO PRESBITERAL (1ª parte)

Pe. Ildomar Ambos Danelon

A MULHER NA IGREJA 31

Solange Maria do Carmo

RESGATE HISTÓRICO E TEOLÓGICO DA 47

ANÁFORA DE HIPÓLITO DE ROMA NA ORAÇÃO

EUCARÍSTICA II DO MISSAL DE PAULO VI

Vanderson de Sousa Silva

A DESCIDA AO INFERNO DA 71

EXCLUSÃO SOCIAL

Fabiano Victor de O. Campos

A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO 91

PENSAMENTO

Daniel Nazaré do Prado

RECENSÕES 109

NORMAS PARA COLABORADORES 119

LIVROS RECEBIDOS 121

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ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos

Diretor Executivo: Manoel Godoy

GRADUAÇÃO: Filosofia (licenciatura) Coordenação: Antonio Martins Pinheiro Teologia (bacharelado) Coordenação: Cleto Caliman PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu): Coordenação: Cleto Caliman Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Direito Matrimonial Canônico - 360 horas / aulas Julho / janeiro / julho Especialização em Gestão de Projetos Sociais - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Especialização em Língua Portuguesa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro Mais informações: Rua Itutinga, 340 - Minas Brasil 30535-640 - Belo Horizonte - MG Telefax: (31) 3419-2800 [email protected] www.ista.edu.br

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ED

ITO

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L

Manoel Godoy | 5

AS MULTIFORMAS DO SABER

Multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinari-

dade e transdiciplinaridade são quatro palavras relacionadas hoje ao mundo da educação que tornam o universo acadêmico bastante complexo e desafiador. Qualquer disciplina hoje exige a busca de várias interfaces para que possa contextualizar e operacionalizar o objeto em questão. Igual tarefa está a exigir das ciências estudadas no Instituto Santo Tomás de Aquino: filosofia e teologia. Passada a era dos manuais, esses dois campos sofreram uma verdadeira ressemantização, cujas consequências estão longe de mostrar seu ponto final. Se se ganha do lado da amplitude da reflexão, corre-se o risco, por outro, de não se ter claro o objeto de cada disciplina. Será possível um termo intermédio, que nos ajude a dar consistência ao saber filosófico e teológico no emaranhado de tantas ciências com as quais somos hoje impelidos a dialogar? Lendo este número da Revista Horizonte Teológico, percebe-se a necessidade, cada vez mais urgente, de uma interlocução constante da filosofia e da teologia com as ciências da linguagem: semiótica, filologia e outras. Desafio não é palavra feia. Muito pelo contrário. Serve de estímulo e abertura às realidades que nos transcendem. Assim é que convido a todos a fazerem essa viagem pela variedade de artigos e temas que compõem este volume de nossa Revista Horizonte Teológico

Caros leitores, começamos esta edição fazendo uma correção ao número anterior, onde fizemos aceno ao artigo de Ildomar Danelon no editorial e o omitimos do corpo da Revista. Dizíamos na ocasião:

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.5-7, jul./dez. 2013.

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6 | EDITORIAL É possível adequar a formação dos presbíteros tendo como foco a subjetividade hipermoderna, tão característica das novas gerações? Esse é o enfoque de Ildomar Danelon, cuja primeira parte de sua reflexão publicamos neste número. O conceito de hipermoderno pode ser uma maneira de superar o enfoque de pós-moderno, pois na verdade o que vivemos é o superlativo da modernidade e não tanto sua substituição.

Os dados estatísticos da FGV traziam uma informação muito significativa sobre a crença e a questão de gênero: “Os homens são mais fiéis às instituições religiosas a que pertencem do que as mulheres”. A professora Solange apresenta um corte bíblico e outro social na crença feminina e coloca a questão em debate, sobretudo quanto ao posicionamento oficial do magistério eclesiástico. Seria interessante que algum leitor de nossa revista pudesse escrever sobre o homem na Igreja.

Num tempo em que se questiona e muito sobre a linguagem e a comunicação das Celebrações Eucarísticas, fazer o resgate histórico e teológico da Anáfora II pode ajudar a dar mais seriedade a todas as celebrações. Na verdade, qualquer tentativa de reforma litúrgica deve passar pelo crivo da Tradição, para não se jogarem fora verdadeiros tesouros em nome de uma tentativa de adequação aos tempos atuais. Daí a pertinência do texto de Vanderson de Sousa Silva.

A reflexão sobre a exclusão social, tendo como objeto a obra literária vencedora do prêmio Jabuti de Literatura de 2001, Inferno, de Patrícia Melo, à luz do pensamento de Hannah Arendt, e a condição existencial da população de rua forma um quadro muito significativo para um entendimento mais claro da situação social brasileira hoje. O doutorando Fabiano Victor de Oliveira Campos consegue nos afetar com seu artigo e nos provoca a uma resposta pessoal à situação de exclusão na sociedade atual.

Poder inteirar-se de debates filosóficos atuais, tendo como objeto questionador a questão da unicidade e pluralidade do ser, nos leva a rever conceitos fundamentais que temos da nossa própria existência e dos processos sociais. Daniel Nazaré do Prado,

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.5-7, jul./dez. 2013.

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Manoel Godoy | 7 doutorando em filosofia, nos ajuda a fazer esse trajeto, reportando-se ao pensamento do filósofo contemporâneo William Desmond. A temática da linguagem também é abordada de forma oportuna e atual. Por meio da noção de metaxologia, Desmond, citado por Prado, abre uma perspectiva bastante intrigante quando afirma: “o nosso ser é essencialmente intermediário, ou seja, meio caminho entre a inteireza totalizadora, representada pela opção hegeliana, e a pluralidade descontínua da opção wittgensteiniana”.

Completando este número da Revista Horizonte Teológico temos duas resenhas interessantes. Pe. Cleto Caliman visita a obra de Moisés Sbardelotto – “E o Verbo se fez bit”, de maneira crítica e pertinente. E o aluno João Paulo nos apresenta uma instigante chave de leitura do livro do Pe. Henrique de Lima Vaz, sobre a experiência mística e a filosofia.

Cremos que este número da Revista Horizonte Teológico deverá ser devorado com muito interesse por todos os que se debruçam a filosofar e a teologar nos dias de hoje. A interdisciplinaridade entre filosofia e teologia continua sendo o chão básico da Revista do

Instituto Santo Tomás de Aquino.

Pe. Manoel Godoy Diretor Executivo do ISTA

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.5-7, jul./dez. 2013.

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A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO

PENSAMENTO: a crítica de Desmond aos modelos unívoco, equívoco e dialético da tradição filosófica*

Daniel Nazaré do Prado

1 INTRODUÇÃO

Um dos assuntos ou correntes justapostas que se constituem

face ao nosso horizonte é o intrincado pensamento hegeliano, mormente a dialética, o conceito “suprassumir ou ultrapassar” (negar, conservar e elevar) como mola teórica que instiga a aproximação da verdade e a superação das contradições que possibilitam a mudança, a interpretação da realidade e o movimento que caracteriza o tempo: o devir intuído. Em contraposição a Hegel, o filósofo contemporâneo William Desmond propõe uma nova categoria e um novo modo de filosofar, a partir da metaxologia. Na primeira parte do artigo nos deteremos sobre a dialética hegeliana e o sistema filosófico no encalço do Espírito absoluto. Em seguida, veremos uma abordagem sobre Desmond e o nascimento do pensamento metaxológico: a filosofia como metaxologia e a intermediação com os seus outros.

2 A DIALÉTICA HEGELIANA E O MOVIMENTO DO ESPÍRITO

A dialética hegeliana é a base da crítica desmondiana para

estarmos a par do que Desmond vai chamar de “univocidade dialética” em sua análise sobre o pensamento que pensa-os-seus-outros modos do ser e do pensar. _______________ * Este artigo é fruto de pesquisa e discussão realizada pelo grupo de estudos hegelia nos do

ISTA coordenado e orientado pelo Prof. Dr. José Carlos Aguiar de Souza.

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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A dialética traduz a temporalidade do fluxo do espírito (Geist) que se revela de modo triádico, dinâmico e espiral. Ela é a maneira mais adequada de se perceber e analisar a realidade, que é fundamentalmente permeada por contrastes e lutas. (HEGEL, 1968, p.66). E são as contradições que possibilitam o processo da dialética no seu movimento racional e histórico na medida em que “ela é a construção racional da realidade.” (HEGEL, 1968, p.73). A engrenagem que a impulsiona enquanto teoria converge para a acepção do verbo “ultrapassar” (Aufheben) visto como um contestar, guardar e ascender. (HEGEL, 1968, p.75). Isto se faz melhor compreendido nos aspectos entrelaçados e amalgamados da afirmação ou momento especulativo (tese), da negação ou negativamente racional (antítese), e da negação da negação ou positivamente racional (síntese).

A dialética concebida por Hegel é essencialmente movida pelas contradições, que se situam no devir do tempo seguindo o ciclo das mudanças e avanços. Segundo Hegel, “todas as coisas são contraditórias em si mesmas.” (HEGEL, 1968, p. 386). A contradição é a mola propulsora de todo movimento e de toda manifestação vital, e somente na medida em que encerra e contradição é que pode alguma coisa ter impulso e atividade. (HEGEL, 1968, p. 387). No Ser já se encontra em potencial o lado da negação, transcrito como o nada ou o não-ser, ou seja, objeto ausente de determinação, de conceito. O primeiro movimento evoca o nível da afirmação do universal abstrato, a ideia em si, no estranhamento face às coisas. A seguir suspende e se eleva ao grau da universalidade particular, o para-si; se aliena no sentido de projetar para fora de si, de negar-se na direção do contato com a natureza ou com o meio. Confronta-se, conhece algo que não é a si mesmo, “um não eu, que é outro”. Por fim, volta a se afirmar (síntese) chegando à escala de universalidade concreta, singular. Ideia carregada de conteúdo. Passa a ter consciência de si mesmo, tornando-se em-si-para-si. Concilia e dá harmonia às diferenças, superando-as enquanto espírito que se sabe como saber de si próprio. A consciência subjetiva lança-se no meio objetivo, se eleva e retorna como saber absoluto. Persegue-se a superação da contradição em virtude de uma unidade final. (HEGEL, 1968, p. 237). Segundo Hegel, “o ser atinge a

verdade quando conceito e objeto formam uma amálgama1.

1 HEGEL. Enciclopédia das ciências filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995. p.166; 232. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107 jul./dez. 2013.

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Umas das chaves para entendermos o processo idealista da dialética é o conceito de aufhebung, que quer dizer aproximadamente “suspensão ou suprassunção”; um negar, conservar e elevar. (HEGEL, 2002, p. 96). Esse eixo evidencia-se pela operação imanente em que cada momento refuta e reprime, e concomitantemente mantém, conserva os elementos anteriores e os joga e eleva a outro patamar progressivo. Uma engrenagem formal complexa configurada no fim do processo dialético como “o círculo de círculos”, pois cada síntese abre um novo estágio dialético. Suspende ou nega, mas conserva o termo suspenso na condição penetrante de avançar e engendrar uma etapa adiante, aproximando-se da unidade mais acabada. Para Hegel, “a contradição expressa a verdade e a essência das coisas. (HEGEL, 1968, p. 386). Logo, a antítese é a verdade da tese, e a síntese passa a ser a verdade da antítese, e assim sucessiva e espiralmente, até culminar numa fusão, numa identidade que suspende as contradições e zela, guarda o oposto, o diferente numa alteridade, que pensa o todo numa unidade. (HEGEL, 1968, p. 382-383). Envereda-se no intuito de sondar a imagem de conjunto, todavia, sem abandonar as partes. Segundo Borhein, “a dialética, na Fenomenologia do Espírito, parte do sensível e depois de percorrer todas as etapas, culmina no saber absoluto.” (BORHEIN, 1977, p. 50).

No sistema filosófico-epistemológico de Hegel, a consciência (Bewusstsein) é a afirmação que nota, experimenta e concebe o mundo como algo externo, diferente e independente de si. Nesse processo ela percorre três momentos sucessivos e interligados. Primeiro, a consciência na relação e experiência com o outro (o mundo) é dada na certeza sensível ou: O Isto é o Visar. Apresenta-se como um universal abstrato ou particular, uma forma de saber imediato, na qual é apreendida a totalidade do objeto, o Isto ou o Isso-aí; a captação mais abstrata, imediata e genérica da coisa. O sujeito, como possuidor desse ser, o conhece e tem a verdade sobre ele, apesar de não poder ainda expressá-lo por meio da linguagem no sentido singular, já que só consegue visar a ele ou, no máximo, exprimir que ele é, o Isto é. Tal impasse se resolve quando a certeza sensível for elevada como um todo, eliminando as oposições e suprassumindo os instantes precedentes para garantir a unidade e a imediatidade universal do Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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94 | A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO discurso.

No segundo momento, a consciência, ao suspender a certeza sensível, se detém, por hora, na percepção do objeto. Fruto da experiência empírica, o objeto é tido como um universal, porém, condicionado, na medida em que nele, em sua ligação com o sujeito, impera a tensão entre a unidade que se busca e a multiplicidade de propriedades que nele aparecem. Essa “coisidade”, que antes parecia verdade, faz gerar certa ilusão do conhecimento frente às ambiguidades inerentes na percepção do objeto. O universal se confronta e caminha paradoxalmente com o particular. No entanto, embora o objeto tenha várias características, ele é, em si mesmo, uma unidade, sendo o sujeito, que através da percepção vê a multiplicidade nele, estando, pois, à mercê das contradições que estão, sobretudo, nele mesmo, no instante da percepção. No terceiro movimento, a consciência revela-se como entendimento, mundo das ideias e da lógica, que suprassumiu a percepção com suas contradições e multiplicidades pela força interna, para chegar a uma síntese ideal, que definisse o objeto e o internalizasse como verdade, de fato, intrínseca ao sujeito. O objeto passa a ser “fenômeno” que se automanifesta na consciência como representação conceitual, sob a força da lei do intelecto. A consciência penetra no interior do objeto e simultaneamente volta e mergulha em si mesma para defini-lo e expressá-lo. O ser do objeto passa a estar inferido como ser do sujeito. Segundo Hegel, “No seu percurso, desvanecem os modos de consciência – conhecimento sensível, percepção e entendimento; e também resultará que o conhecer daquilo que a consciência sabe enquanto sabe a si mesma.” (HEGEL, 2002, p. 123).

O sujeito começa a se reconhecer e passa a compreender que, pela sua consciência, eleva-se como dialética progressiva chegando à Autoconsciência (Selbstbewusstsein), enquanto saber de si. O sujeito enquanto autoconsciência visa captar todas as coisas dentro de uma perspectiva totalizadora. A consciência se desenvolve da seguinte maneira: o Eu puro, como objeto imediato (afirmação), suprassume o objeto independente, é seu desejo (negação), e a reflexão redobrada, na qual a consciência-de-si põe em si mesmo seu ser-outro (negação da negação). A fluidez desse processo garante à autoconsciência uma

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Daniel Nazaré do Prado | 95 busca continua pelo vir-a-ser de si mesma em seu ser-outro.

A engrenagem do momento da autoconsciência (ser-para-si) a incita a suprassumir o seu ser-fora-de-si por meio de uma negação dialética. Nesta fase, Hegel apresenta a alegoria da dominação e da escravidão, como dependência ou independência-de-si descreve o processo de formação histórico-dialética do indivíduo para tornar-se sujeito e autoridade de um saber capaz de fundar o conhecimento universal. A consciência mostra-se fragmentada em si, haja vista que seu objeto (e logo a si mesmo) está projetado para o exterior, “alienado” no meio eqüidistante. A síntese é o restabelecimento da consciência em crise na autoconsciência, se resolverá na inflexão de reencontrar a si mesmo na suspensão mediante as coisas, entendendo-as a partir do em-si-para-si. Caminha-se para a razão. Unidade cabal da consciência na progressão do Espírito (Geist).

A concepção de Espírito é central no transcurso do sistema hegeliano. Segundo Hegel, “o Espírito é a ideia que volta a si de sua

alteridade.” (HEGEL, 2002, § 441)2. O caminho desdobrado

anteriormente na razão emergente aparecia como o devir do Espírito. Aqui, vigora a mais elevada manifestação do absoluto. “O absoluto é o Espírito. A vida infinita é Espírito. A totalidade da vida com todos os seres – sobretudo racionais – bem como a totalidade da existência com todas as contradições é efetivamente: Espírito.” (MARCUSE, 1967, p. 48). No entanto, para efetivar-se enquanto espírito absoluto que se manifesta pela arte, pela religião e pela filosofia, ainda percorre as fases do Espírito subjetivo e do Espírito objetivo e suas molas contraditórias internas, mas isso não irá ser tratado aqui. Vimos somente este aspecto dialético e o espírito absoluto como autoconsciência redutora da sua alteridade. A seguir, enunciaremos o enunciaremos o nascimento do pensamento metaxológico desmondiano como crítica ao pensamento unívoco - dialético hegeliano.

3 DESMOND E A VEREDA METAXOLÓGICA DA FILOSOFIA

A filosofia tem se constituído no debate entre duas significativas

2 Ibidem § 441.

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96 |A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO correntes, uma com um caráter sistemático e outra com uma abordagem não-sistemática. O modo de pensar filosófico sistemático se associa, em termos gerais, à tradição platônica que culmina em Hegel e a não-sistemática se encontra em pensadores como Kierkegaard, Nietzsche e Wittgenstein. Na primeira opção, próxima ao idealismo hegeliano, encontramos uma obstinada propensão de reduzir toda pluralidade a uma unidade; trata-se da subordinação da diferença à igualdade. Contudo, não se pode simplesmente equiparar Hegel a um pensador unívoco. Isto porque, mesmo possuindo forte tendência de encapsulação da alteridade à identidade, o pensamento hegeliano não deixa de representar um esforço originário que busca um equilíbrio dialético entre unidade e pluralidade. Com o pensamento wittgensteniano, deparamo-nos com um mundo fragmentado cuja multiplicidade se recusa a ser reduzida a uma simples unidade. Este paradigma wittgensteniano de pensar o mundo como um conjunto de “jogos de linguagens”, onde cada um conhece e privilegia somente a regra do seu jogo linguístico, pode constituir, em certa medida, uma repulsa à pretensão original da filosofia de determinar o ser. De forma bem explícita, a multiplicidade wittgensteniana parece ter se tornado um elemento de relevância que influencia o caráter da própria da assim chamada pós-modernidade. Desse modo, a busca por uma filosofia que tematize de modo mais apropriado a questão do ser e do pensamento nos fez encontrar na reflexão de um jovem filósofo contemporâneo o instrumento necessário para tal.

Willian Desmond, com seu pensamento metaxológico, advoga que o ser possui um excesso que resiste a uma conceitualização completa, para além de uma fragmentação dispersiva. Desmond se considera um pensador do meio (Between). De fato, o autor viveu, e ainda vive, entre o catolicismo e o protestantismo, entre a filosofia anglo-saxônica e a tradição da filosofia continental, entre a Irlanda, a Europa continental e os Estados Unidos, e nesses termos é ele próprio quem diz que na sua trajetória pessoal ele estava situado entre dois mundos, vivendo entre dois mundos sem a possibilidade de nenhum aufhebung, que os unisse em unidade única. “Eu estava entre dois mundos. [...] Eu vivo entre dois mundos e não há suprassunção que possa unir estes dois mundos em uma mesma unidade.” (DESMOND, 1991, p. 322). É justamente a partir deste “estar no meio” (being

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Daniel Nazaré do Prado | 97 between), que desponta toda a filosofia de Desmond como uma concepção metaxológica do ser.

Desmond percebeu ao longo de sua formação acadêmica a vertente da tradição filosófica ocidental, que desde seus primórdios foi pretensiosa em determinar o ser. Seu pensamento nos traz uma proposta, talvez um convite: trata-se do desafio de pensarmos uma nova concepção da filosofia, não mais como monólogo consigo mesmo

em última instância fechado, mas como um modo atento-plenamente3

de pensar o ser em sua alteridade genuína. Dessa forma, a filosofia teria que se reconhecer limitada, como sendo no meio

(middle), esvair-se-ia sua pretensão de ser dona da verdade.

William Desmond busca assumir uma posição intermediária entre as duas opções e ao mesmo tempo entre Hegel e seus críticos. Desmond defende, então, a noção de “metaxologia”, que evita reduzir a multiplicidade a uma univocidade última. (DESMOND, 1991, p. 55). Segundo Desmond, “o nosso ser é essencialmente intermediário, ou seja, meio caminho entre a inteireza totalizadora, representada pela opção hegeliana, e a pluralidade descontínua da opção wittgensteiniana.” (DESMOND, 2000, p. 22).

Desmond concebe o sentido metaxológico do ser em contraste com os três outros: unívoco, equívoco e dialético. O termo metaxológico, cunhado por Desmond, é derivado do grego metaxu, que significa meio, intermediário, entre, e logos, que significa discurso, fala narrativa articulada. Dessa forma, Desmond nos dirá que este quarto sentido do ser, o sentido metaxológico, se refere a um logos da metaxu, um discurso do entre, do meio. (DESMOND, 1991, p. 315). Certamente Desmond nos apresenta esta metaxologia como uma nova atenção-plena metafísica. (SOUZA, 2011, p. 200). 3 O termo atenção-plena ou plena-atenção, em inglês mindfulness, é utilizado por

Desmond para indicar o cuidado para consigo e para com o outro. Ele possui uma

conotação de “consciência”, mas se afasta do sentido do cogito cartesiano que é

originador das formas e fundamento de racionalidade. Ele nos faz ajuizar sobre um

sentido da razão além da determinação e do poder. Em outras palavras, pretende estar

em comunhão consigo e com o outro. Cf. nota do tradutor in DESMOND, 2000, p. 11.

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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98 | A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO

Essa atenção-plena é expressa então pelo movimento

único de estar atento plenamente a si mesmo e ao que lhe é outro. Esta constitui uma característica peculiar do ser metaxológico, e poderíamos dizer, em certa medida, que esteve presente na tentativa frustrada da atenção-plena dialética. A atenção-plena metaxológica é o pano de fundo através do qual nos é possível pensar uma totalidade aberta (open whole), em detrimento do todo fechado hegeliano que acaba por não ser atento-plenamente ao que lhe é outro.

4 A METAXOLOGIA, O CONCEITO E A CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A constituição do ser enquanto metaxológico demanda a compreensão da origem enquanto plenitude, enquanto excesso, na medida em que o ser excede sempre a nossa possibilidade de conceituá-lo. O sentido metaxológico do ser, como já dissemos acima, foi concebido por Desmond na perspectiva de outro modo do ser filosófico, que medeie entre o absoluto hegeliano e os “jogos de linguagem” de Wittgenstein.

Para além de uma simples negação dos sentidos unívoco, equívoco e dialético, a atenção-plena metaxológica engloba e se inter-relaciona com tais sentidos para que se possa conceber o ser em sua expressão pluralizada. Segundo a afirmação Metafísica de Aristóteles (Metafísica, 1003b5) “o ser é dito de muitos modos” e somente um pensamento aberto a reconhecer as vozes outras ao pensamento que se compreende como um monólogo consigo mesmo faz jus à plurivocidade do próprio ser, que não poderá nunca ser abarcada pelo pensamento que se pensa a si mesmo. O Ser que é ele próprio plurívoco. O “entre” (between) surge como uma possibilidade promissora para que se pense em algo que busca integrar unidade totalizadora e pluralidade descontínua. Segundo Desmond, “Nosso ser intermediário é mais do que identidade unívoca, mais do que diferença equívoca. Como um poder transcendente, ele é tanto dialeticamente automediador como metaxologicamente aberto para a alteridade.” (DESMOND, 2000, p. 100).

Nesse sentido, a metaxologia desmondiana busca sanar Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107 jul./dez. 2013.

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Daniel Nazaré do Prado | 99 opostos, através da intermediação metaxológica, onde nenhuma das partes dos modos do ser tenha superioridade, mas se constitua enquanto uma comunidade de vozes. A intermediação sempre ocorre de forma plural. Assim, a mediação do entre não é reduzida nem a mediação do “eu” nem a do “outro”, pois, antes de tudo, ela é dupla. Ou seja, frente ao complexo entre, existe a dupla exigência tanto da automediação como da intermediação. Nessa plurivociade de vozes não há espaço para se estar no centro, mas no meio (middle) unido, junto, articulado.

O sentido metaxológico não abandona inteiramente a noção de totalidade, não fica preso ao enclausuramento de um pensamento por-si-mesmo e em-si-mesmo. O pensamento metaxológico é uma abertura intermediada à alteridade, a tal ponto que a automediação do pensamento escapa da tendência ao fechamento de si. Há uma dupla necessidade do pensamento metaxológico, que é pensar-tanto-a-si-mesmo-como-a-seus-outros.

Para Desmond, a multiplicidade de instâncias recalcitrantes de identidade é reconhecida e respeitada como sendo capaz de apontar para um novo modo de totalidade do ser. Assim, a plenitude do ser não pode ser reduzida, seja religiosa, científica, filosófica ou esteticamente. Cada modo do ser, como a técnica, a ciência, a poesia, a religião, entre outros, por exemplo, traz uma contribuição para a comunidade de outros, onde a identidade de cada um carrega a marca de sua intermediação com figuras que são outras a eles mesmos. Por isso, a metafísica desmondiana busca reconhecer a presença do mistério, desafiando-nos a pensar para além da inteligibilidade determinada. (SOUZA, 2011, p. 208-213).

O pensamento, enquanto análise, busca mediar a ambiguidade que aparece no meio (middle); contudo, pode ir além de uma oscilação entre a univocidade (dialética ou não) e a equivocidade a partir do discernimento metaxológico. Dessa forma, a filosofia é a esperança de uma instanciação da consciência filosófica, onde o absoluto seja pensado nos liames de uma totalidade aberta capaz de pensar-a-si-mesmo-e-seus-outros. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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100 | A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO

Enquanto participante de uma comunidade do ser que se revela como excesso e se localiza no meio (middle), a filosofia tem a tarefa primordial de instanciar certa consciência metaxológica. Se existe a pretensão de se pensar plurivocamente, não é possível isolar a reflexão filosófica de sua interação com seus outros modos do ser.

Nesse sentido, em detrimento de um todo fechado, de uma lógica unívoca, a proposta de Desmond é pensar uma filosofia que seja aberta às contribuições outras a si e, ao mesmo tempo, que se mantenha fiel à sua tarefa de refletir acerca da totalidade. Pensar um novo espaço para o pensamento filosófico que respeite as vozes outras constitui algo indispensável. Assim, o ser já não poderá mais ser pensado apenas a partir das categorias da lógica instrumental. Ainda que esteja ligado à racionalidade, o pensar deve se abrir às diversas manifestações do ser.

Para Desmond existe uma forte tendência na tradição filosófica do ocidente de conceber a atenção-plena apenas em termos lógicos. O problema surge quando aparecem outros modos do pensar o nosso ser no mundo que não possam ser totalmente capturados pelas categorias lógicas do pensamento. No que diz respeito à impossibilidade da lógica unívoca de abarcar o todo, Desmond se pronuncia, metaforicamente, da seguinte forma: “Ela [a lógica] lançou a rede da univocidade nas águas prolíferas, mas aquilo que consegue retirar não esvazia o oceano.” (DESMOND, 2000, p. 375). Para Desmond este sentido ontológico da univocidade lógica na constituição da realidade perpassa todo o pensamento metafísico iniciado em Parmênides, passando de Platão a Espinosa e chegando até seu máximo expoente, Hegel. Nesse sentido, Desmond afirma que amamos a lógica porque amamos as coisas definidas. (DESMOND, 2000, p. 375). A univocidade sempre tem se apresentado como o único modo de atenção-plena do ser. Por outro lado, Desmond se refere à certa desconfiança ao pensamento lógico: “percebo uma oscilação entre um logicismo operando sob a égide da univocidade e um antilogicismo permeado de equivocidade”, afirma o autor (DESMOND, 2000, p. 373). Entretanto, para ele, “a fidelidade ao logos alimenta uma atenção-plena mais profunda da comunidade do ser e do pensamento na qual aparece o fracasso, limite da razão

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Daniel Nazaré do Prado | 101 instrumental.” (DESMOND, 2000, p. 370). A desconfiança existente no pensamento contemporâneo sobre as reais possibilidades da razão de abarcar a totalidade do ser em sua alteridade recalcitrante permite explorar modos outros do pensar que se liguem à nossa condição de “estar no meio” (being between).

O fracasso lógico instrumental pode ser percebido e experimentado de maneira mais radical no século XX. A razão emancipatória sonhada e defendida pelos iluministas acabou na barbárie de duas guerras mundiais e uma infinidade de conflitos étnicos, cuja instrumentalidade racional foi amplamente utilizada para a repressão e destruição em vez de oferecer vida e liberdade. A vida humana oferece complexidade bem maior e a lógica unívoca não pode ser tomada como único padrão de racionalidade. Para Desmond, não se trata de negar os benefícios advindos da razão. Muito embora não possamos negá-la, tampouco podemos idolatrá-la. (DESMOND, 2000, p. 372).

Assim, o grande drama contemporâneo se situa nos liames de que uma verdade lógica racional tem sido negada. A desconfiança em relação à lógica significou uma cautela com todas as afirmações feitas pela razão. Neste aspecto se faz necessário mais uma vez lembrar que, embora Hegel tenha buscado uma conciliação entre univocidade e equivocidade, ele não consegue atingir tal ideal e termina por cair na univocidade dialética (dialectical univocity). O movimento da suprassunção dialética acaba desempenhando a função de redutor da pluralidade a uma unidade. O panlogismo hegeliano identifica o real como a concretização da ideia lógica que aparece como o pensamento totalmente automediador. O Espírito absoluto não faz outra coisa que reconhecer-se em cada movimento da consciência, onde tudo está irremediavelmente reduzido a uma única totalidade fechada.

Com sua crítica à lógica enquanto uma abordagem totalizadora do real, Desmond busca apontar novos caminhos para a razão que não estejam ligados à racionalidade da dominação, mas a uma razão atenta aos outros modos do ser que escapam da conceituação lógica. O pensamento não é pura automediação, mas uma abertura aos outros modos do ser e do pensar. Desmond possui, entretanto, Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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102 |A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO uma leitura generosa dos autores mais expressivos da nossa tradição filosófica:

Pensadores como Platão e Hegel são testemunhas de uma atenção-plena mais ampla, para quem a razão não pode ser encaixotada na categoria do logocentrismo. Precisamos, pois, conceber o logos em sua melhor forma em diálogo com seus outros, especialmente a arte e a religião como participante do ser metaxológico. (DESMOND, 2000, p. 373).

A tentativa hegeliana de mediar alteridade e identidade

acaba privilegiando a última em detrimento da primeira, na medida em que o Espírito absoluto nos é apresentado como um pensamento automediador que pensa-somente-a-si-mesmo e identifica toda a realidade como exteriorização de si mesmo. Não obstante, Desmond não descarta Hegel e reconhece a importância da dialética como um modo do ser que buscou por uma plena-atenção metafísica. Ele se recusa, como já o dissemos, a rotular o pensamento hegeliano de monismo simples. Desmond afirma que considera haver uma importante ambiguidade na empresa hegeliana. (DESMOND, 1991, p. 325).

Na filosofia desmondiana, o ser humano tem suma importância por ter em si a capacidade inerente de pensar. O ser humano é possibilidade de colaboração para a realização da comunidade metaxológica do ser, por poder pensar a si mesmo e o outro. Nesse sentido, não se pode negar a alteridade interna e externa e tampouco a própria identidade. O fato de sermos seres pensantes nos conduz a pensar o outro, tornando-nos, assim, abertos ao ser atento-plenamente: “somos a esperança de uma comunidade do pensamento e do ser.” (DESMOND, 2000, p. 375).

Para Desmond, “ser é ser no meio”. Assim, esta ideia de ocupar um espaço intermediário é parte constituinte da própria nossa condição de existir. Tal linha de pensamento perpassa toda reflexão desmondiana. O autor afirma: “visto que a ideia de ser-no-meio é algo central para meu pensamento e ser, eu regresso para mim mesmo. Eu percebo meu pensamento como algo compatível com a ideia de ser no meio (entre) no sentido sistemático e existencial que eu sublinharei.”

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Daniel Nazaré do Prado | 103 (DESMOND, 1991, p. 306).

Desmond discute a polaridade entre ser e pensamento que se faz presente em toda a tradição metafísica. Ele afirma que os filósofos, de um modo ou de outro, sempre estiveram entre estes dois polos. (DESMOND, 1991, p. 305). Dessa forma, Desmond acaba por desbancar a pretensão filosófica de ser a única voz da verdade. Segundo Desmond, “a filosofia é esse ansiar, em que já somos amigos da verdade. A verdade não é nunca uma posse [...] a busca da verdade emerge nesse meio, a comunidade metaxológica do ser, onde podemos renegar o ideal como permanecer leais àquilo que, afinal, constitui a nossa essência perplexa.” (DESMOND, 2000, p. 47).

A partir do exposto, Desmond aludirá à importância da

contemplação da plenitude do ser. Essa contemplação exige um adentrar-se na própria interioridade do indivíduo, na solidão final de sua alma que se abre em sua ligação com a realidade última. A contemplação é necessária porque permite a ruptura no ver trivial. Segundo Desmond, “tal ruptura (pôr de lado a visão trivial) é necessária para a diferenciação, posição de distanciamento, sem o qual o rejuvenescimento do pensamento é impossível. O ato diferenciador da contemplação desperta novamente a perplexidade metafísica diante do estar-aí do ser, em sua alteridade interna e externa.” (DESMOND, 2000, p. 410).

Essa contemplação nos permite, pois, voltar ao espanto inicial da bondade e plenitude do ser. O movimento de autorreflexão proporcionado pela solidão nos permite reconhecer não só a plenitude, mas também a recalcitrância do ser. Isso nos impulsiona até o limite da automediação e nos faz assumir um ceticismo metaxológico. (DESMOND, 2000, p. 47). A solidão então possui papel bastante importante no que se refere à tentativa de se alcançar uma plena-atenção metaxológica. Desmond pensa essa solidão desde o paradigma oriental no qual a solidão mística traz consigo, necessariamente, o desemaranhar-se da ilusão de uma personeidade isolada. O indivíduo supera a solidão quando alcança uma plena-atenção de seu ser como apenas mais um participante da vida universal, ou seja, da plenitude do ser. Assim, por mais paradoxal que Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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104 |A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO possa parecer, a solidão é necessária para se superar a ilusão de se estar só. Essa ilusão, por vezes, não nos tem permitido perceber que participamos, em certa medida, da plenitude do ser.

Ao se deparar com a isseidade interior e através da contemplação da plenitude do ser, o lógico se dá conta da sua ousadia em tentar determinar o Ser. Isto é o que Desmond denomina como “fracasso lógico”. A filosofia, através do fracasso lógico, ao se abrir ao reconhecimento da alteridade indomável do meio, acaba por reconhecer seu limite como “ser no meio”. O pensamento se rompe ao encontro com o outro, ao encontro com a alteridade recalcitrante. Nesse sentido, o ser lógico se abre aos outros por se perceber fracassado; sendo assim, o fracasso não deve ser entendido como pura negatividade. O fracasso conduz o ser lógico a perceber que não está só e se abre à alteridade indomada. Ele pode ser visto como uma etapa que nos servirá para estarmos atento-plenamente. Nesse sentido dirá Desmond que “a desolação profunda do fracasso radical pode, desse modo, ser uma purificação das fontes abissais da atenção-plena metafísica,... assim como o fracasso radical pode ser o limiar sombrio de uma nova aurora.” (DESMOND, 2000, p. 440).

Obviamente, a possibilidade do fracasso lógico deve representar para a mente instrumental algo absurdamente terrível, uma verdadeira tragédia. O fracasso, como limite negativo, não precisa ser algo destrutivamente negativo, pois dele pode surgir uma plena-atenção à alteridade radical que vá além de nosso limite extremo, lançando-nos na comunidade metaxológica do ser. (DESMOND, 2000, p. 439). O ser atento-plenamente ao fracasso é algo que já nos havia sido sugerido pelo próprio Sócrates quando se refere à filosofia como uma preparação para a própria morte, pois o ser que nos é dado um dia há de falhar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Voltamos à proposta desmondiana de pensar uma filosofia que

assuma uma plena-atenção metaxológica. De fato, Desmond dir-nos-á que “na ambiguidade do meio, a filosofia, como atenção-plena deste, é tanto dialeticamente automediadora como metaxologicamente

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Daniel Nazaré do Prado | 105 intermediadora com a alteridade [...]. Desse modo a voz filosófica não existe; existem muitas vozes e a própria filosofia é plurívoca [...]. O filósofo não é nenhum ciclope de um olho só, mas um argos de mil olhos.” (DESMOND, 2000, p. 117-118).

Certamente Desmond dar-nos-á grande prova da abertura de seu pensamento, ao dizer que o ideal tradicional de sabedoria não deve ser preocupação exclusiva da filosofia. Ele diz que toda potencialidade humana tem importância para a vida como um todo e por isso está envolvida, como um modo da atenção-plena, na busca da sabedoria. Isto nos tira definitivamente a pretensão de pensar a filosofia como rainha absoluta do saber, a obstinada senhora, a única a se preocupar com a sabedoria. Isto se difere claramente do pensamento hegeliano e da pluralidade wittgensteiniana, pois não se trata aqui de um sistema fechado, tampouco de uma pluralidade descontínua, mas da proposta desmondiana de uma totalidade aberta.

Consequentemente, depois de derrubada a pretensão filosófica

de se apreender totalmente a verdade do ser num sistema fechado, o filósofo precisa reaver sua postura frente a si mesmo e aos outros. Se assim não o fizer, ele poderá permanecer obstinado e angustiado igualmente ao “sabe tudo”. Viverá numa tentativa inútil de postergar a cada dia seu encontro com o “único mal irremediável”, com o fracasso final, a saber, a morte. A respeito da figura do filósofo, vale a pena repetir uma de suas falas mais significantes: “O filósofo é ninguém e todo mundo. Ele é o pensador dos interstícios e das conexões, dos espaços da intermediação entre o pensamento e seus outros. O filósofo é o pensador do meio.” (DESMOND, 2000, p. 116).

O resultado de todo esse processo culmina no canto filosófico; a filosofia torna-se capaz de cantar seus outros. Isto não significa, em absoluto, que ela esteja sendo incoerente consigo mesma ou esteja perdendo sua identidade. Trata-se, melhor dizendo, de uma demonstração do seu reconhecimento como apenas um dos modos de dizer o Ser: ela sabe-se habitante do meio. A respeito de tudo isso, sobre a possibilidade do canto filosófico, o próprio Desmond diz: “Somos lembrados da alteridade indomada do ser no meio; reconhecendo os limites de nossa automediação, uma habitação Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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106 |A METAXOLOGIA E AS NUANÇAS DO PENSAMENTO diferente no meio pode ser obtida.” (DESMOND, 2000, p. 421). Esta “habitação diferente” concebida por Desmond pode ser traduzida em termos de uma filosofia capaz de cantar seu outro. Trata-se de uma abertura às vozes que lhes são outras, um pôr de lado seus pré-conceitos e sua ambição de ser não só amiga da sabedoria, mas também a dona e a constituidora da verdade.

Retomando, a filosofia enquanto metaxológica lança o desafio de assumirmos o que, na verdade, ontologicamente já somos: nossa posição de seres intermediários, homens e mulheres capazes de pensar seus outros, respeitando a isseidade interior e consequentemente a alteridade. Pensadores que saibam ser e estar no meio. Assim, como consequência, se observa que, quando não se é enrijecido, se ganha um dinamismo novo. De tal sorte que esperamos que este texto, através de sua discussão, tenha contribuído para a compreensão da crítica de Desmond à univocidade dialética do sistema hegeliano e ao pensamento fragmentado da contemporaneidade.

Daniel Nazaré do Prado é estudante de filosofia, está num programa de doutorado na Universidade do Chile em Santiago do Chile desde 2009, este semestre conclui o mestrado em filosofia e continua os estudos de doutorado. Suas linhas de pesquisa são fenomenologia, personalismo,

ética e antropologia filosófica. Trabalhou em alguns projetos como

Metaxologia e plurivocidade (grupo de estudos hegelianos e Desmond – 2005-2006) com o professor Dr. José Carlos Souza Aguiar, também participou de conferências em jornadas doutorais promovidas pela

Pontificia Universidad Catolica de Chile nos anos de 2010 e 2011.

REFERÊNCIAS

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Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107 jul./dez. 2013.

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MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Loyola, 1985. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia no espírito da música, e Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores). REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2002. 3 vols. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O projeto da modernidade: autonomia, secularização e novas perspectivas. Brasília: Líber livro, 2005. SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1982. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.12, n.24, p.91-107, jul./dez. 2013.

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