UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE DEPARTAMENTO DE ECOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECOLOGIA A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro: distribuição, uso do habitat e diversidade genética. Patrícia Farias Rosas Ribeiro NATAL 2017
100
Embed
A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste ... · A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro: distribuição, uso do habitat e diversidade genética
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE DEPARTAMENTO DE ECOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECOLOGIA
A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro:
distribuição, uso do habitat e diversidade genética.
Patrícia Farias Rosas Ribeiro
NATAL
2017
Patrícia Farias Rosas Ribeiro
A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro:
distribuição, uso do habitat e diversidade genética.
Orientador: Dr. Eduardo Martins Venticinque
NATAL
2017
Tese apresentada ao programa de Pós- Graduação em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Ecologia.
Ribeiro, Patrícia Farias Rosas. A Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordestebrasileiro: distribuição, uso do habitat e diversidade genética/ Patrícia Farias Rosas Ribeiro. - Natal, 2017. 99 f.: il.
Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande doNorte. Centro de Biociências. Programa de Pós-Graduação emEcologia. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Martins Venticinque.
1. Mustelidae - Tese. 2. Lutrinae - Tese. 3. BaciasHidrográficas - Tese. 4. Caatinga - Tese. 5. Ocorrência - Tese.6. Detecção - Tese. I. Venticinque, Eduardo Martins. II.Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/UF/BSE-CB CDU 574
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Leopoldo Nelson - -Centro de Biociências - CB
“No Amazonas chama-se ariranha esse quadrúpede que parece um gato,
vivendo em toca à beira de um regato, ou rio caudaloso onde se banha.
Nada com perfeição, tem certa manha,
em várias posições supera o pato, de peixe faz seu predileto prato,
solta um miado feio quando se assanha..."
(A Lontra, Antônio Carlos Barreto, Crateús, 1976)
Ao meu pai e à minha filha, duas lindas estrelas que iluminaram esta jornada do começo ao fim.
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a todos que tornaram este projeto, um sonho antigo, possível.
À Fundação Grupo Boticário de Proteção a Natureza, Centro de Pesquisas Ambientais
do Nordeste e Mohamed Bin Zayed Species Conservation Fund, por acreditarem na
importância do projeto e fornecerem o suporte financeiro indispensável para a realização desse
trabalho.
Ao Programa de Pós Graduação em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte pela oportunidade e estrutura oferecida, e à CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa concedida.
Ao meu orientador, Eduardo M. Venticinque (Dadão), por ter acreditado no projeto
desde o início, mesmo quando ainda parecia loucura "procurar lontra na Caatinga". Pela
amizade, hospitalidade, por todo o conhecimento passado e pela disponibilidade nos momentos
realmente importantes, sempre com tranquilidade e bom humor.
A Frederico Martins, Sylvain Chartier, Felipe Monteiro e Aleksander Hada Ribeiro,
amigos que me acompanharam e ajudaram durante os extensos trabalhos de campo, sem os
quais este trabalho não teria sido realizado. A Weber Silva e Felipe Monteiro pela ajuda na
obtenção de literatura rara sobre a fauna do estado do Ceará.
A Guilherme Mazzochini (Guiga) pela importante ajuda nas análises, e pela boa
vontade e disponibilidade em ajudar em todos os momentos que precisei.
Aos Drs. Eduardo Eizirik e Cristine Trinca pela parceria nas análises genéticas e pelo
apoio durante minha estadia em Porto Alegre.
Aos amigos Paulo Henrique Marinho e Eduardo von Mühlen (Duka), pelas longas
conversas sobre modelos de ocupação, troca de ideias e artigos. A Paulo também pela coleta de
amostras e informações de lontras nas suas andanças pelo Nordeste.
Aos colegas da Pós-Graduação em Ecologia e aos vários amigos da "conexão Manaus -
Natal" pela amizade, conversas, momentos de descontração e discussões ao longo desse anos.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ecologia pelas discussões ao longo
do curso, em especial ao Dr. Gabriel Correa Costa, que acompanhou o projeto desde o início;
Dr. José Attayde (Coca), pela ajuda nas análises de qualidade da água; e Dr. Mauro Pichorim,
pelas reuniões e conversas que me ajudaram muito a compreender os modelos de ocupação.
Ao Dr. Diego Astúa, Dra. Renata Pardini, Dr. Anderson Feijó, Dr. Carlos Roberto
Fonseca e Dra. Renata Sousa-Lima por terem aceitado o convite para participar da banca,
avaliado o trabalho, e por todas as correções, comentários e sugestões.
A Fernando Rosas, por ter me aberto as portas ao mundo dos mustelídeos aquáticos,
por todo conhecimento passado e pela ajuda na ideia inicial do projeto. A toda a família do
Laboratório de Mamíferos Aquáticos do INPA pelos muitos anos de convívio, aprendizado e
trabalhos compartilhados, que me renderam a experiência que tenho atualmente para trabalhar
com o grupo.
A Rodrigo Ranulpho, companheiro que escolhi para a minha vida, pelo apoio
fundamental em todas as etapas deste projeto, desde a escolha das áreas de estudo, logística,
formatação de mapas, às inúmeras remadas e andanças em campo, e aos cuidados comigo.
Também pela paciência e compreensão nos momentos mais difíceis, e pelos maravilhosos
momentos compartilhados em campo. Sem você tudo seria mais difícil.
A toda minha querida e grande família, em especial à minha mãe, Gerusa Farias Rosas
Ribeiro, que com todo o amor forneceu a educação, valores e princípios que constituem a base
do que sou hoje, pelo apoio em todos os momentos e por ser o meu porto seguro, para onde
sempre recorro e me sinto acolhida. Ao meu irmão, Mateus Rosas Ribeiro Filho, pelo
incentivo, apoio e por ser um exemplo de pesquisador a ser seguido. À minha irmã, Sandra
Farias Rosas Ribeiro, pela amizade e parceria durante toda a vida, e pelas inúmeras revisões
dos textos em inglês. À minha segunda mãe, Nevinha, por todo amor, cuidados e mimos que
sempre recebi.
Aos meus tios: Yara Rosas e José de Borja Peregrino, por todo apoio e incentivo no
início desta caminhada, em um momento tão difícil; Nelson Rosas, pelo interesse que sempre
teve nas minhas pesquisas e projetos, e por ser mais um grande referencial que tenho de ética e
pesquisa na academia; Clemente Rosas e Paula Baracho, pelo apoio em vários momentos, em
especial nesta fase final de tantas mudanças; Rita de Cássia, pelo apoio em todos os momentos
e por ser um exemplo de mulher a ser seguido, uma pessoa forte, de coração enorme e sempre
disposta a ajudar.
A Tânia e Joaozinho, tios queridos, pela hospitalidade sempre tão aconchegante em
Natal, e a Tânia também por ter se tornado a dentista oficial e mais querida da Ecologia.
A todas as pessoas e famílias maravilhosas que conheci ao longo dos rios nordestinos,
do Velho Chico (Rio São Francisco) ao Velho Monge (Rio Parnaíba). Pessoas simples e
sempre de portas abertas para uma conversa, abrigo, café... a todos os pescadores que me
acompanharam e forneceram importantes informações sobre as lontras.
Às lontras, animais tão misteriosos e fantásticos, que raramente se permitem serem
vistas, mas que deixaram seus rastrinhos ao longo do meu caminho, comprovando sua
existência e resistência diante das condições mais adversas.
Por último, não só agradeço como dedico esta tese ao meu Pai, Mateus Rosas Ribeiro, o
qual nunca estará in memoriam, pois é uma presença muito viva em vários momentos da minha
vida. Foi o maior incentivador deste doutorado e, apesar de não ter presenciado a sua
concretização nesse plano, me guiou em todos os momentos. E a minha filha, Elis, que mesmo
ainda na barriga, me transmitiu uma calma e tranquilidade fundamentais nesta última etapa.
Espero poder contribuir de alguma forma para que você ainda conheça um pouco da cultura e
beleza do Nordeste, como eu conheci.
8
SUMÁRIO RESUMO GERAL ........................................................................................................................9 ABSTRACT ................................................................................................................................11 CAPÍTULO I - New records and update on the geographic distribution of Lontra longicaudis (Olfers, 1818) (Carnivora: Mustelidae) in Seasonally Dry Tropical Forests of northeastern Brazil* ....................................................................................................................13 ACKNOWLEDGEMENTS ........................................................................................................25 LITERATURE CITED ...............................................................................................................25 CAPÍTULO II - Ocupação e uso do habitat pela Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro* ....................................................................................................................30 RESUMO ....................................................................................................................................31 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................................32 2. MATERIAL E MÉTODOS ....................................................................................................34 3. RESULTADOS .......................................................................................................................48 4. DISCUSSÃO ...........................................................................................................................54 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................59 CAPÍTULO III - Diversidade genética e padrão de dispersão da Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no nordeste brasileiro* ...........................................................................................67 RESUMO ....................................................................................................................................68 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................................69 2. MATERIAL E MÉTODOS ....................................................................................................72 3. RESULTADOS .......................................................................................................................81 4. DISCUSSÃO ...........................................................................................................................90 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................93 CONCLUSÃO GERAL ..............................................................................................................98
9
RESUMO GERAL
A distribuição geográfica de uma espécie é uma informação básica essencial para
planejamentos de conservação. Esta informação, no entanto, muitas vezes é tendenciosa para
algumas regiões ou grupos taxonômicos, de acordo com as facilidades de acesso e
características da história natural. A lontra neotropical [Lontra longicaudis (Olfers,1818)] é
uma espécie pouco estudada devido ao seu comportamento discreto e a consequente baixa
detectabilidade na natureza. Essa situação é agravada na região Nordeste do Brasil, que por
muito tempo foi considerada como uma lacuna nos seus mapas de distribuição, sendo
atualmente apontada como uma região prioritária para estudos com a espécie. Este projeto teve
o objetivo de entender como a L. longicaudis está distribuída no Nordeste brasileiro e os fatores
estruturantes da sua distribuição, uso do habitat e diversidade genética. Este foi o primeiro
estudo com enfoque para a espécie na região, realizado através de uma amostragem
padronizada em 17 bacias hidrográficas do Nordeste brasileiro ao Norte do Rio São Francisco,
entre os estados de Alagoas e Piauí. Cada bacia hidrográfica foi amostrada em três trechos
(alto, médio e baixo curso), sendo em cada trecho percorridos aproximadamente 5km, repetidos
ao longo de 4 dias, em busca de indícios de presença da espécie. Isto resultou em 726 km,
percorridos em 45 trechos de rio amostrados. No primeiro capítulo discutimos a ocorrência da
L. longicaudis na Caatinga, bioma semiárido onde existia apenas um registro de ocorrência da
espécie relatado na literatura, e que por isso não tem sido considerado como parte da sua
distribuição em planejamentos e estratégias de conservação. São apresentados registros
históricos e atuais inéditos de ocorrência da L. longicaudis na Caatinga, discutidos os fatores
que podem estar influenciando sua ocorrência na região, e é proposta a atualização do mapa de
distribuição da espécie, com base na confirmação de uma real lacuna na sua distribuição atual.
No segundo capítulo nós analisamos os fatores ambientais, climáticos e antrópicos que
influenciam no padrão de ocupação, detecção e uso do habitat da L. longicaudis nas bacias
hidrográficas do Nordeste Brasileiro. A probabilidade de detecção da L. longicaudis na região
foi alta e negativamente influenciada pela ordem do rio, variável relacionada à localização do
trecho de rio na rede de drenagem. A sazonalidade da precipitação foi o principal fator
determinante da ocupação da espécie na região, que se apresenta concentrada na subregião das
bacias que drenam para o leste, onde a sazonalidade da precipitação é menor. Esta variável
climática também foi importante para a ocorrência e uso do habitat pela espécie, mais intenso
nas áreas com menor sazonalidade, relacionadas à Floresta Atlântica. A Floresta Atlântica
nordestina é a porção menos conservada deste bioma. Nesta região as lontras utilizaram mais os
rios com menor área de captação de água a montante, que correspondem a tributários menores,
10
que podem oferecer melhores condições ambientais que os rios principais, funcionando como
um refúgio para a espécie. Mesmo utilizando refúgios, o uso do habitat foi negativamente
correlacionado com a porcentagem de remanescentes naturais, uma consequência indireta do
estado de degradação das áreas mais utilizadas pela espécie, o que coloca a L. longicaudis em
um estado de alerta na região. Para entender como está estruturada a população de lontras do
Nordeste brasileiro e fornecer subsídios para a sua persistência a longo prazo, no terceiro
capítulo nós analisamos a diversidade genética e fluxo gênico da espécie na região, através de
DNA mitocondrial e da análise de cinco cenários alternativos de dispersão. Para isto foram
analisadas 36 amostras não invasivas (fezes frescas, muco e tecido), provenientes de oito bacias
hidrográficas. Destas amostras, 17 amplificaram os três segmentos analisados e foram
consideradas indivíduos distintos pela localização amostral e composição genética. Estes
indivíduos são representativos de 7 haplótipos, dos quais 4 foram identificados pela primeira
vez neste estudo. A espécie apresentou alta diversidade haplotípica, mas baixa variabilidade
nucleotídica na região. A maior diferenciação genética foi observada em duas amostras do
Piauí, acima da área de Caatinga onde a ausência da espécie foi confirmada neste estudo,
corroborando a existência de uma barreira climática por onde o fluxo gênico pode estar
interrompido há mais tempo. A população de lontra do Nordeste apresentou diferença genética
significativa em relação aos grupos geográficos da Amazônia e do Leste da América do Sul, o
que indica menor fluxo gênico entre essas regiões. O cenário que atribuiu um custo elevado
para a dispersão por terra foi o que apresentou relação mais forte com a divergência genética
observada entre as amostras da região nordeste, indicando que a espécie é capaz de se dispersar
por terra, mas em situações extremas. Já a divergência genética entre as bacias costeiras
apresentou relação mais forte com as distâncias geográficas (euclidiana e trecho de bacias), o
que pode ser resultado de uma região mais homogênea, sujeita a alagamentos, onde a paisagem
impõe menos resistência à dispersão por animais semiaquáticos. Análises do caminho de menor
custo indicam o Rio São Francisco como uma importante rota de dispersão, conectando as
bacias costeiras do Nordeste com as bacias localizadas ao Norte da Caatinga, o que ressalta a
importância da sua preservação para a manutenção da diversidade genética na região. As três
questões abordadas neste estudo preenchem uma importante lacuna de conhecimento sobre a
lontra neotropical no Nordeste do Brasil, uma das regiões mais secas da sua área de
distribuição, atendendo a ações prioritárias do plano nacional de ações para a conservação da
et al. 2010; FEIJÓ & LANGGUTH 2013; TOLEDO et al. 2014), Rio Grande do Norte (RN)
(LAURENTINO & SOUSA 2014), and Maranhão (MA) (MESQUITA & MENESES 2015). These
reports indicate that the aforementioned gap was not due to the actual absence of the species,
but to a lack of studies and adequate sampling in the region.
Records of L. longicaudis in northeastern Brazil are mostly restricted to Atlantic Forest and
its associated ecosystems. No record was reported in Ceará and Piauí, which are states mostly
covered by a Seasonally Dry Tropical Forests biome, the Caatinga. This biome has not been
considered in the species geographical distribution (RODRIGUES et al. 2013). A single
occurrence of this species in Caatinga was reported in São Francisco River (SE), which was
the first official record of L. longicaudis in this biome (DIAS & BOCCHIGLIERI 2016).
However, no field inventory to verify the presence of the Neotropical Otter was conducted in
the region. All L. longicaudis occurrence data in northeastern Brazil are occasional reports or
compilations of existing occurrence data, which could be geographically biased towards more
populated or better-studied regions.
In a recent study, RHEINGANTZ et al. (2014) estimated a species distribution model for L.
longicaudis and suggested the expansion of its current distribution to new areas, covering
Brazil’s Northeast Region, including Caatinga biome. Following recommendations by
RHEINGANTZ et al. (2014), and based on existing occurrence data, the distribution map of L.
longicaudis was updated, and now the entire Brazilian territory is included within its
distribution range (IUCN 2015). Although the map is presented as a uniform polygon,
RHEINGANTZ et al. (2014) pointed the importance of gathering occurrence data in areas with
16
little information, and recommended that northeastern Brazil be a priority area for future
studies; this region represents one of the driest areas within the range of the Neotropical Otter.
Confirming the current distribution of this species, with emphasis on North and Northeast
regions, is one of the actions set out in the national action plan for the conservation of otters
(ICMBio/MMA 2010). Investigating the isolation of otter populations in northeastern Brazil
is also necessary for this species’ conservation, according to a recent risk assessment of L.
longicaudis (RODRIGUES et al. 2013).
The conservation status of L. longicaudis was recently updated from Data Deficient to Near
Threatened by the International Union for the Conservation of Nature, because of increasing
anthropogenic threats to aquatic and terrestrial environments (RHEINGANTZ & TRINCA 2015).
The species is also classified as Near Threatened in Brazil, and Vulnerable in the northeastern
Atlantic Forest region because of the high level of habitat degradation (RODRIGUES et al.
2013). The species’ conservation status was not assessed for the Caatinga due to the lack of
occurrence data in this biome.
To improve the understanding of L. longicaudis distribution in northeastern Brazil, the
present study assessed this species’ occurrence in Caatinga, a seasonally dry tropical forest in
the semi-arid region of Brazil's Northeast.
Field campaigns were planned and conducted in northeastern Brazil, north of the São
Francisco River. This area is inserted in two freshwater ecoregions: Parnaíba, and
Northeastern Caatinga and Coastal Drainages (NCCD) (ABELL 2008). The Parnaíba
freshwater ecoregion consists of the Paranaíba River and its tributaries, covering the entire
Piauí state and a border region between Piauí and Maranhão, including areas of Caatinga and
Cerrado biomes; the NCCD freshwater ecoregion extends between Ceará and Alagoas states,
covering several smaller river basins and areas of Atlantic Forest and Caatinga biomes
(Figure 1). We used the biome boundaries given by the Brazilian Institute of Geography and
Statistics, the same adopted for environmental laws.
In the Caatinga biome, the main focus of our study, low annual rainfall ranges from 240 to
1500 mm, but with 50% of the Caatinga’s area receiving less than 750 mm/year (PRADO
2003). Additionally, the irregularity of rainfalls is the main characteristic of Caatinga biome,
where most of the rainfall is concentrated within a three-month period, with wide annual and
17
interannual variation causing periodic severe droughts (PRADO 2003). Even with these
droughts, the biome sustains 11.8% of the Brazilian human population, and has been under
increasing anthropic pressure for years (RIBEIRO et al. 2015).
We selected 16 river basins with the goal to fill gaps in the species distribution records. Each
river basin was sampled at three stretches (lower, middle and upper courses; Figure 1). As an
exception, two rivers of Parnaíba ecoregion were sampled at only two stretches, a strategy to
maximize the number of sampled rivers in this ecoregion, where most of the records were
historical occurrences. Headwaters in Caatinga biome are often intermittent and their
surroundings stay completely dry most of the year. In these cases, because otters are semi-
aquatic animals, instead of sampling the upper stretches near headwaters, we sampled the
upper stretches where a minimal amount of water was maintained throughout the year (i.e.,
river stretches at least 2 m wide or water ponds less than 1 km apart).
Each river stretch was sampled repeatedly for four days over approximately 5 km, looking for
sights or indirect signs of otter presence (dens, tracks, faeces, and latrines). This amounted to
an overall sample effort of 725 km, of which 472.5 km were inside the Caatinga biome.
Sampled stretches were navigated using a boat with outboard engine (controlled speed ≤ 7
km/h) or kayak, or by walking, depending on navigation conditions. Camera traps were
placed near fresh dens, trails or latrines in order to obtain photographic records. Besides the
active search, semi-structured interviews were conducted with local people, to gather
information about historical and current occurrences. At least six interviews were conducted
in each sampled river stretch, totalling 445 interviews. Interview records were only
considered when supported by pictures, or by detailed report from more than one interviewee.
Occurrences were considered historical when no evidence of this species’ presence was
recorded for more than 10 years.
The extant presence of L. longicaudis in Caatinga biome was recorded in seven of the 16
sampled river basins, all of them inserted in NCCD freshwater ecoregion, as well as in an
additional stretch sampled in São Francisco River (Figure 1; Table 1). In addition, otter
presence in Caatinga was confirmed in two river basins not included in our sampling effort:
upper Jundiaí River (Macaíba, RN), where a dead specimen was found; and upper Paraíba
River (Umbuzeiro, PB), based on the interviews. These results show a total of 10 river basins
in the Caatinga of northeastern Brazil where the Neotropical otter is present (Figure 1; Table
18
1). Considering only studies that present geographic coordinates, we report here the first
accurate records of the species for five of the 10 river basins: Pium (RN), Jundiaí (RN), Jacu
(RN), Curimatau (RN/PB), and Coruripe (AL) (Table 1). Except for São Francisco River, all
of the sampled river stretches have an intermittent hydrologic regime, maintaining some
ponds or very little volume and water flow during the dry season.
Figure 1. Study area in northeastern Brazil, north of São Francisco River (right inset); Sampled
river stretches in Parnaíba (dark blue) and Northeastern Caatinga and Coastal Drainages (light
blue) freshwater ecoregions, where current occurrence of otter was confirmed - indicated by black
squares, or not confirmed - indicated by white squares (left inset); The main map shows records of
Lontra longicaudis in Caatinga of northeastern Brazil: signs and camera trap records (black dots),
records from interviews (black triangles – current; grey triangles – historical). Black stars indicate
first records of Lontra longicaudis in Piauí state. Numbers next to the records are identification
labels (Record ID in Table 1). Small gray squares indicate records in Atlantic Forest. Datum
WGS1984.
19
Table 1. Current and historical records of Lontra longicaudis in Caatinga of northeastern Brazil, and first records of the species in Piauí state (PI). Record type: S= signs, I= interviews, CT= camera trap records, C= carcass. NCCD= Northeastern Caatinga and Coastal Drainages freshwater ecoregion.
Record ID Freshwater Ecoregion River Basin River
Stretch State City Number of records
Record Type Latitudea Longitudea Year
1 - 5 São Francisco São Francisco Lower AL/SE Piranhas/Canidé do São Francisco 5 S, I, CT -9.6282 -37.7544 2015
6 - 15 NCCD Pium Upper RN Macaíba/São José de Mipibu 10 S, I -5.9734 -35.3287 2013
50 - 58 NCCD Goiana Upper PE Bom Jardim, São Vicente Ferrer 9 S, I -7.7815 -35.6088 2015
59 - 67 NCCD Una Upper PE Cachoeirinha 9 S, I -8.5194 -36.2909 2015
68 - 84 NCCD Coruripe Upper AL Palmeira dos Índios 17 S, I, C -9.431 -36.6153 2015 85 NCCD Jundiaí Upper RN Macaíba 1 C -5.9896 -35.4541 2015 86 NCCD Paraíba Upper PB Umbuzeiro 1 I -7.6609 -35.836 2015
87 - 89 Parnaiba Longá Lower PI Caxingó 3 I -3.3535 -41.9092 >50 years agoc
90, 91 Parnaiba Longá Middle PI São José do Divino 2 I -3.8084 -41.8504 ≅50 years agoc
92, 93 Parnaiba Longá Upper PI Barras/Batalha, Boa Hora 2 I -4.013 -42.2641 ≅50 years agoc
94 Parnaiba Poti Lower PI Demerval Lobão 1 I -5.3426 -42.6295 >50 years agoc
95 Parnaiba Parnaíba Middle PI/MA Palmeirais/Parnarama 1 I -5.8979 -43.0976 >50 years agoc
96 Parnaiba Canindé Lower PI Amarante 2 I -6.4703 -42.7166 ≅50 years agoc
97 - 109 Parnaiba Uruçui-Pretob Upper PI Currais/Baixa Grande do Ribeiro 13 S, I -8.6798 -44.8844 2014
110 - 116 Parnaiba Uruçui-Pretob Lower PI Uruçuí 7 S, I, CT -7.3372 -44.6167 2014 117, 118 Parnaiba Parnaibab Upper PI Uruçuí 2 S, I -7.3121 -44.6321 2014
a When more than one record were found in a river stretch, we presented geographic coordinates of the record further inside Caatinga biome; b First records of Lontra longicaudis in Piauí state, Cerrado biome; c Historical records of Lontra longicaudis: no evidence of the species occurrence for more than 10 years
20
Current occurrences of Lontra longicaudis were mostly confirmed in multiple occasions, by
signs (Figure 2), interviews, and sometimes also by camera trap records (Figure 3; Table 1),
indicating that otters are residents or frequent users of these river stretches. Otter signs,
especially faeces, are the best evidence of otter presence, since they are quite conspicuous,
frequently found on prominent rocks, sandbanks and trunks along riverbanks (QUADROS &
MONTEIRO-FILHO 2002; KRUUK 2006; KASPER et al. 2008). Furthermore, otter faeces are
easily identified by their content and smell, consisting mainly of fish and crustacean remains
(KRUUK 2006). A voucher specimen (skull) was collected in April 2015 in the upper stretch
of Coruripe River basin (AL), and is deposited in the mammal collection of the Departamento
de Zoologia, Universidade Federal de Pernambuco, UFPE 3332.
Figure 2. Lontra longicaudis faeces in the middle stretch of Pium River, Rio Grande do Norte state.
21
Figure 3. Lontra longicaudis in the lower stretch of Uruçui-Preto River, South of Piauí state.
Our records confirm the presence of L. longicaudis in Caatinga biome. All current records of
the species, however, are located in river basins divided between both the Caatinga and
Atlantic Forest biomes, and most of them in a transition zone between the two biomes.
Although current occurrences had been recorded in intermittent river stretches, all of these
river basins have some perennial stretches at their lower course. The occurrences further
inside the Caatinga biome were recorded in São Francisco river basin, which is the largest
river of the region, with the headwaters in the Cerrado of southeastern Brazil and with a
perennial hydrologic regime. This indicates that water availability is the main factor limiting
otter occurrence in northeastern Brazil.
Neotropical Otter occurs in other seasonally dry tropical forests along its distribution, for
instance in Mexico (GALLO REYNOSO 1997), Colombia (GARCÍA-HERRERA et al. 2015), and
Bolivia (TARIFA et al. 2010). In these regions, however, tropical dry forests occur as patches
within an environmental mosaic encompassing more humid forests, where perennial rivers
arise. The mammalian community within dry forests of the upper Tuichi River (Asariamas,
La Paz, Bolivia) consists of species from adjacent humid forests (RÍOS-UZEDA et al. 2001). In
Mexico, the Neotropical Otter usually occurs in arid and semi-arid regions, but always
associated with perennial rivers or rivers that maintain permanent ponds (GALLO REYNOSO
1997; MONTERRUBIO-RICO & CHARRE-MEDELLÍN 2014). Caatinga is the only vast continuous
area of seasonally dry tropical forest in South America (SANTOS et al. 2012) and one of the
most extensive contiguous areas of tropical dry forest in the world (MILES et al. 2006). It
22
encompasses many rivers that originate from and are totally inserted within this biome; they
are intermittent for their entire course.
The ability of otters to survive in semi-arid conditions has been shown for the Eurasian Otter
Authors’ contributions: PRR and EMV designed sampling, conducted data analyses and
discussions, PRR and RR conducted field campaigns for data collection, RR contributed in
image analyses and maps, and PRR wrote the manuscript.
Received: 15 December 2016
Accepted: 29 March 2017
Academic editor: Guilherme S. T. Garbino
30
CAPÍTULO II
Ocupação e uso do habitat pela Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro*
* Manuscrito em preparação
31
Ocupação e uso do habitat pela Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro
Patrícia F. Rosas-Ribeiro1; Eduardo M. Venticinque1
1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências, Departamento de Ecologia, Caixa Postal 1524, CEP 59078-970, Natal, RN, Brazil
RESUMO
Entender os fatores que influenciam a ocorrência e uso do habitat é essencial para a efetividade de estratégias de conservação que possam garantir a persistência das espécies em ambientes degradados. A lontra neotropical [Lontra longicaudis (Olfers,1818)] é um carnívoro semiaquático, recentemente classificado como quase ameaçado de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza, pela crescente degradação do ambiente aquático e terrestre onde vive. Sendo uma das espécies menos estudadas da subfamíllia Lutrinae, a lacuna de conhecimento em relação à L. longicaudis é agravada no nordeste brasileiro, que até recentemente aparecia como uma lacuna nos seus mapas de distribuição. Neste estudo nós analisamos o padrão de ocupação e uso do habitat da L. longicaudis no nordeste brasileiro ao norte do rio São Francisco. Para isto foram amostradas 45 microbacias, distribuídas em 17 bacias hidrográficas, a procura de vestígios de lontra. Foram utilizados modelos de ocupação para analisar a influência de covariáveis ambientais, climáticas e antrópicas na detecção e ocupação da espécie na região. Modelos lineares generalizados mistos foram utilizados para modelar a intensidade de uso do habitat em função das mesmas covariáveis, na subregião das bacias hidrográficas que drenam para o leste, onde houve maior concentração de registros da espécie. A probabilidade de detecção da L. longicaudis na região foi alta e negativamente influenciada pela ordem do rio. A sazonalidade da precipitação foi o principal fator determinante da ocupação da espécie na região, que se apresenta concentrada na subregião das bacias que drenam para o leste, onde a sazonalidade da precipitação é menor, corroborando a ausência previamente relatada da espécie nas bacias totalmente inseridas na Caatinga. Esta variável climática também foi importante para a ocorrência e uso do habitat pela espécie, que foi mais intenso nas áreas com menor sazonalidade, relacionadas à Floresta Atlântica. A Floresta Atlântica nordestina é a porção menos conservada deste bioma. Nesta região as lontras utilizaram mais os rios com menor área de captação de água a montante, que correspondem a tributários menores, com melhores condições ambientais que os rios principais, e que podem funcionar como um refúgio para a espécie. Mesmo utilizando refúgios, o uso do habitat foi negativamente correlacionado com a porcentagem de remanescentes naturais, uma consequência indireta do estado de degradação das áreas mais utilizadas pela espécie, o que coloca a L. longicaudis em estado de alerta na região. Ressaltamos a necessidade urgente de estudos populacionais e estratégias de conservação direcionadas à espécie no Nordeste brasileiro, para que a persistência a longo prazo de suas populações seja garantida. Palavras chave: Lutrinae, Distribuição geográfica, Detecção, Ocorrência, Conservação
32
1. INTRODUÇÃO
Entender que fatores influenciam a distribuição geográfica e o uso do habitat por uma
espécie é essencial para o planejamento de estratégias efetivas de conservação (Barbosa et al.,
2003; Perinchery et al., 2011; Prakash et al., 2012), o que tem se tornado cada vez mais
importante diante da rápida expansão de paisagens modificadas pelo homem, associada à
escassa e ineficiente rede de unidades de conservação existente (Gardner et al., 2009; Gardner
et al., 2010). Menos de 10% das florestas tropicais do mundo estão inseridas em unidades de
conservação (Gardner et al, 2009), sendo este percentual ainda menor em algumas regiões,
como na porção norte da Floresta Atlântica nordestina, onde menos de 3% dos remanescentes
florestais estão inseridos em áreas protegidas (Ribeiro et al., 2009), e na Caatinga, onde as
áreas de proteção integral cobrem cerca de 1,13% do bioma (MMA, 2016).
Diante deste cenário, ações de conservação voltadas para os ecossistemas de água doce
são ainda mais escassas (Abell, 2002; Abell et al., 2007). A alta demanda por água concentra
a ocupação humana ao longo dos canais principais dos rios, expondo estes ambientes a várias
ameaças, como sobre-exploração de seus recursos, poluição, alteração dos cursos d'água,
construção de represas e destruição de habitats (Dudgeon et al., 2006; Nel et al., 2007;
Vörösmarty et al., 2010). A vulnerabilidade desses ambientes às ações antrópicas é maior que
a de ambientes terrestres, pelas suas características intrínsecas de conectividade, sendo
influenciados por toda a área da bacia à montante, pela zona ripária e ambiente terrestre
adjacente (Dudgeon et al., 2006), o que torna também mais vulnerável as populações de
espécies aquáticas e semiaquáticas.
A lontra neotropical [Lontra longicaudis (Olfers,1818)] é um carnívoro semiaquático,
que depende dos ecossistemas de água doce e ripários para sobreviver (Kruuk, 2006). Apesar
de ser uma espécie de grande tolerância ecológica, capaz de suportar modificações ambientais
e ocorrer em locais próximos a cidades e aglomerações humanas (Kruuk, 2006), devido às
crescentes ameaças que afetam o ambiente aquático e terrestre onde vivem, o seu status de
conservação foi recentemente atualizado de insuficientemente conhecida (DD – “data
deficient”) para quase ameaçada (NT – “Near Threatened") (IUCN - União Internacional para
a Conservação da Natureza, 2015). No Brasil a espécie também foi recentemente avaliada
como quase ameaçada (NT – “near threatened”), sendo considerada vulnerável (VU) no
bioma Floresta Atlântica, especialmente na Floresta Atlântica nordestina, onde existe uma
forte tendência de declínio populacional devido à degradação ambiental do bioma na região
(Rodrigues et al., 2013).
33
O status de conservação da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro é ainda agravado
pela falta de conhecimento em relação à espécie na região, que até recentemente aparecia
como uma lacuna nos seus mapas de distribuição (Emmons & Feer, 1999; Eisenberg &
Redford, 1999; Larivière 1999, Kruuk 2006). Apesar de ser amplamente distribuída,
ocorrendo desde o México até o Uruguai (Kruuk, 2006), a Lontra longicaudis é uma das
espécies menos estudadas da subfamília Lutrinae, o que se deve principalmente ao seu
comportamento discreto e a consequente baixa detectabilidade em ambiente natural (Rosas,
2004). As lontras neotropicais são animais de médio porte, solitários, com vocalização
Meneses, 2015; Dias & Bocchiglieri, 2016; Rosas-Ribeiro et al., 2017), comprovando que a
lacuna existente nunca refletiu uma ausência real da espécie, mas sim a falta de pesquisas na
região. O nordeste brasileiro tem sido apontado como uma área prioritária para estudo futuros
com Lontra longicaudis ((ICMBio/MMA, 2010; Rheingantz et al., 2014). Todos os dados de
ocorrência da espécie na região são registros ocasionais, ou compilações de dados de
ocorrência já existentes. Apenas um estudo foi realizado com enfoque específico para a
Lontra longicaudis no nordeste (Rosas-Ribeiro et al. 2017), refinando as modificações do seu
atual mapa de distribuição (Rheingantz et al., 2014; IUCN, 2015).
A amostragem de espécies crípticas, de comportamento elusivo, mesmo quando
sistemática e padronizada, está sujeita a falhas na detecção, que podem resultar em falsas
ausências. Estas falsas ausências são comuns em amostragens baseadas na identificação de
vestígios como indicadores de presença, comumente aplicadas para as lontras, e ocorrem
quando a espécie é dada como ausente em um determinado local, apesar de estar presente e
apenas não ter sido detectada (Ruiz-Olmo et al., 2001a; MacKenzie et al., 2006; Evans et al.,
2009; Jeffress et al., 2011b). Isto pode ocorrer quando o vestígio passa despercebido ao
observador, ou quando é um vestígio sujeito à deterioração natural, como as fezes (Parry et
al., 2012).
As fezes são as principais ferramentas para pesquisas com lontras (Kruuk, 2006), pois
geralmente são depositadas em locais conspícuos nas margens dos corpos d’água (Quadros &
Monteiro-Filho, 2002; Kasper et al., 2008), sendo o indício de presença da espécie mais fácil
de visualizar em ambiente natural. Além disso, a amostragem de vestígios é um método não
invasivo, fácil de implementar e de baixo custo, quando comparado com outras metodologias
34
utilizadas em estudos de distribuição e preferências de hábitat das espécies. Apesar de
amplamente utilizadas como um método confiável para determinar a presença de lontras,
amostragens baseadas em vestígios precisam ser corrigidas, principalmente em relação à
detectabilidade (Ruiz-Olmo et al., 2001a).
Uma abordagem que vem sendo bastante utilizada por considerar a probabilidade de
detecção para corrigir falsas ausências, gerando estimativas mais precisas da real área de
ocorrência de uma espécie, são os modelos de ocupação (MacKenzie et al., 2002). Estes
modelos permitem estimar a probabilidade de ocupação de um local por uma espécie, em
função de características do ambiente, mesmo que esta espécie não seja detectada em alguns
momentos (detecção imperfeita) (MacKenzie et al., 2002; MacKenzie et al., 2006). A
probabilidade de detecção é estimada ao longo de múltiplas visitas aos locais de amostragem
para coletar informações de presença e ausência, permitindo assim inferências mais precisas
sobre a distribuição das espécies e seus requerimentos ambientais (MacKenzie et al., 2002;
2006). Devido a natureza elusiva das espécies semiaquáticas, as análises de ocupação têm
sido frequentemente utilizadas em estudos sobre a distribuição, requerimentos de habitat e
monitoramento de várias espécies da família Lutrinae (Jeffress et al., 2011a; Perinchery et al.,
2011; Prakash et al., 2012; Okes & O'Riain, 2017).
Neste estudo nós utilizamos modelos de ocupação para analisar a probabilidade de
detecção e o padrão de ocupação da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro ao norte do rio
São Francisco, assim como a influência de covariáveis do habitat nos padrões encontrados; e
modelos lineares generalizados mistos (GLMMs) para analisar a intensidade de uso do habitat
na escala espacial mais restrita das bacias hidrográficas desta região que drenam para o leste,
onde houve maior concentração de registros da espécie. Para isto foram analisados fatores
ambientais, climáticos e antrópicos. Esperamos que fatores ambientais e climáticos
relacionados com a disponibilidade de água tenham influencia positiva na ocupação da
espécie na região, enquanto que os fatores antrópicos, considerando a tolerância da espécie,
tenham mais influencia negativa na intensidade de uso do habitat.
2. MATERIAL E MÉTODOS
Área de estudo
O estudo foi realizado no nordeste do Brasil, com enfoque para a região ao norte do
Rio São Francisco, entre os estados do Piauí e Alagoas, onde os registros de ocorrência da
espécie são mais escassos (Figura 1A). Esta região abrange duas das eco-regiões de água doce
35
do mundo: a eco-região Parnaíba e a eco-região Bacias Costeiras e da Caatinga Nordestina
(Abell, 2008). A eco-região Parnaíba é constituída pelo rio Parnaíba e seus afluentes, e se
estende por todo o estado do Piauí, até a sua fronteira com o estado do Maranhão, incluindo
áreas do bioma Caatinga e uma pequena porção do Cerrado; a eco-região Bacias Costeiras e
da Caatinga Nordestina se estende entre os estados do Ceará e Alagoas, abrangendo várias
bacias hidrográficas pequenas inseridas nos biomas Floresta Atlântica e Caatinga (Figura 1B).
Figura 1: A) Área de estudo no nordeste do Brasil, ao norte do Rio São Francisco; B) Eco-regiões hidrográfica do Parnaíba (azul escuro) e das Bacias Costeiras e da Caatinga Nordestina (azul claro); C) Bacias e microbacias amostradas para registros de ocorrência de Lontra longicaudis na região Nordeste ao norte do Rio São Francisco.
Delineamento amostral
As campanhas para levantamento de registros de ocorrência de Lontra longicaudis
ocorreram entre dezembro/2013 e Junho/2015, e foram direcionadas a 16 bacias
hidrográficas, selecionadas com o objetivo de cobrir as lacunas existentes nos registros de
36
ocorrência da espécie ao norte do rio São Francisco. Adicionalmente, a bacia hidrográfica do
baixo rio São Francisco também foi incluída na amostragem, já que este é um dos principais
rios que percorrem o bioma Caatinga (Figura 1C; Tabela 1). As bacias hidrográficas
amostradas foram subdivididas em microbacias espacialmente uniformes, utilizado o SRTM 4
(Shuttle Radar Topographic Mission), modelo digital de elevação (DEM - Digital Elevation
Model) com resolução aproximada de 90 m, disponível através do CIAT (Centro
Internacional de Agricultura Tropical - http://srtm.csi.cgiar.org/).
Para a derivação das microbacias, o modelo digital de elevação foi recondicionado
utilizando a hidrografia fornecida pelo IBGE (IBGE-BC 2013; Escala 1:250.000). O
recondicionamento do DEM foi realizado com uso da extensão Arc Hydro Tools do ArcGIS
10.1. Para preencher eventuais depressões restantes no DEM recondicionado que poderiam
impedir o fluxo de água, foi aplicada a ferramenta FILL, que faz o preenchimento destas
regiões possibilitando que o fluxo seja continuado. As microbacias foram derivadas utilizando
toda a área de drenagem das bacias, com um limiar de 10.000 células a montante
(UPSTREAM). Desta forma, as microbacias variaram entre 39 e 490 km2, tendo em média
206 km2 .
Cada bacia hidrográfica foi amostrada em 3 microbacias (baixo, médio e alto curso) e
cada microbacia foi amostrada por um trecho de rio que variou de 3 - 5 km. Para a definição
das microbacias amostradas, o curso principal de cada rio foi medido a partir da base vetorial
de hidrografia disponibilizada pelo IBGE (IBGE-BC 2013, escala 1:250.000), e dividido em
três seções, sendo a primeira próxima à foz, no baixo curso do rio, a segunda correspondente
ao curso médio, e a terceira, próxima às nascentes, no alto curso. As nascentes de rios
localizadas na caatinga são muitas vezes intermitentes, e as regiões próximas a elas ficam a
maior parte do ano completamente secas. Pelo fato das lontras serem animais semiaquáticos,
nesses casos, o alto curso do rio não foi considerado próximo à nascente, mas sim até onde o
rio mantinha algum volume perene de água durante todo o ano (e.g. trechos de rios com
largura de espelho d’água de aproximadamente 2 m, e trechos de rios apartados em poças com
menos 1 km de distância entre si). A seleção das microbacias e dos trechos de amostragem
em cada seção do curso do rio foi realizada com base na identificação de locais considerados
favoráveis para a detecção da espécie (e.g. trechos com presença de barrancos, tocas, fezes e
trechos com relatos de visualização da espécie em entrevistas com moradores locais). Os
trechos amostrados de uma mesma bacia hidrográfica estavam separados por > 15 km, com
exceção dos trechos baixo e médio do rio Pium, separados por apenas 5 km, pelo fato desta
ser a menor bacia hidrográfica amostrada no estudo.
37
Três bacias hidrográficas da eco-região Parnaíba foram amostradas em apenas duas
microbacias, como uma estratégia para maximizar o número de bacias diferentes amostradas
nesta eco-região, onde a maioria das evidência obtidas de presença da espécie foram relatos
de ocorrência histórica por moradores locais; e uma bacia da eco-região Bacias Costeiras e da
Caatinga Nordestina não foi amostrada na microbacia do médio curso pelo risco de
contaminação dos pesquisadores por Schistosoma mansoni. Isto resultou em um total de 45
trechos de rios amostrados, correspondentes a 45 microbacias, inseridas em 17 bacias
hidrográficas (Figura 1C; Tabela 1).
Coleta de dados
Os trechos de amostragem variaram entre 3 - 5 km e foram percorridos de forma
replicada por quatro dias consecutivos, exceto em casos de problemas logísticos, totalizando
726 km percorridos (Tabela 1). As amostragens foram realizadas ao longo dos rios, utilizando
barco com motor de popa (≤ 7 km/h), caiaque ou a pé, dependendo das condições de
locomoção, inspecionando margens, pedrais e barrancos, em busca de vestígios (tocas, fezes,
pegadas e locais de descanso) ou visualizações dos animais (cf. Groenendijk et al., 2005).
Armadilhas fotográficas foram oportunisticamente colocadas em frente a tocas e latrinas
recentes de lontra, com o objetivo de validação dos vestígios com registros fotográficos.
Foram considerados como registros distintos os vestígios separados por no mínimo 50 m.
38
Tabela 1: Bacias hidrográficas e trechos de rio selecionados para amostragem de registros de ocorrência de Lontra longicaudis na região nordeste do Brasil, ao norte do Rio São Francisco, sua área, localização, bioma (CA= Caatinga; CE= Cerrado; MA= Mata Atlântica), esforço em dias amostrados e km percorridos (km*dia), número de vestígios encontrados e taxa de encontro de vestígios da espécie (Vestígios/km).
Região Hidrográfica Bacia Área
(km²) Trecho Estado Bioma Dias Amostrados
km Percorridos
NO Vestígios
Vestígios/km
Bacias Costeiras e da Caatinga
Nordestina
Timonha 923 Baixo CE CA 4 20 0 0 Médio CE CA 4 16 0 0 Alto CE CA 3 15 0 0
Jaguaribe 74000 Baixo CE CA 4 20 0 0 Médio CE CA 3 12 0 0 Alto CE CA 2 6 0 0
Apodi-Mossoró 13930
Baixo RN CA 4 20 0 0 Médio RN CA 3 12 0 0 Alto RN CA 4 20 0 0
Piranhas-Assu 41420
Baixo RN CA 4 20 0 0 Médio RN CA 3 12 0 0 Alto PB CA 3 12 0 0
Ceará-Mirim 2656
Baixo RN MA 4 16 0 0 Médio RN CA 4 20 0 0 Alto RN CA 4 20 0 0
Pium 502 Baixo RN MA 4 20 16 0.8 Médio RN MA 4 20 20 1.0 Alto RN CA/MA 4 16 21 1.3
Jacu 2716 Baixo RN MA 4 20 8 0.4 Médio RN CA 4 20 5 0.3 Alto RN CA 4 20 0 0
Curimataú 4139 Baixo RN MA 4 20 13 0.7 Médio RN CA 4 20 19 1.0 Alto PB CA 4 16 3 0.2
Camaratuba 628 Baixo PB MA 4 20 10 0.5 Médio PB MA 4 16 18 1.1 Alto PB CA 4 12 10 0.8
Goiana 2870 Baixo PE/PB MA 4 20 5 0.3 Médio PE MA 4 12 10 0.8 Alto PE CA 4 12 8 0.7
Una 6605 Baixo PE MA 4 20 6 0.3 Alto PE CA 4 12 8 0.7
Coruripe 1618 Baixo AL MA 4 20 22 1.1 Médio AL MA 3 9 16 1.8 Alto AL CA 4 12 16 1.3
Panaíba Longá 24230 Baixo PI CA 3 15 0 0 Médio PI CA 3 15 0 0
39
Alto PI CA 4 20 0 0
Poti 52280 Baixo PI CA 3 15 0 0 Médio PI CA 4 16 0 0
Caninde 74970 Baixo PI CA 3 9 0 0 Médio PI CA 2 8 0 0
Uruçuí-Preto 15930 Baixo PI CE 4 20 10 0.5
Médio PI CE 4 20 14 0.7
São Francisco Baixo São Francisco 29100 Baixo AL/SE CA 2 10 4 0.4
Variáveis preditoras
Com base nas informações existentes sobre a história natural da espécie (Larivière,
1999; Rosas, 2004; Kruuk, 2006) e suas preferências de hábitat (Barbosa et al., 2003;
Carrillo-Rubio & Lafón, 2004; Waldemarin, 2004; Gomez et al., 2014), foram selecionadas
15 variáveis capazes de influenciar a ocupação, uso do hábitat e detecção da Lontra
longicaudis nas bacias hidrográficas do nordeste brasileiro. Este conjunto preliminar de
variáveis foi analisado quanto à correlação (Pearson - R Development Core Team, 2013).
Quando correlacionadas (r > 0,70), as variáveis com menor sentido biológico para a espécie
foram excluídas, como as variáveis Cobertura de área urbana (Área Urbana), Temperatura
média do trimestre mais seco (Temp_trimestre seco) e Precipitação do mês mais seco
(Precip_mês seco) (Tabela 2). As variáveis: Ordem do rio (Ordem_Rio) e Fluxo de área de
captação de água acumulado (Flux_cap_água), apesar de correlacionadas, foram mantidas no
grupo por serem relacionadas a escalas diferentes da paisagem, e consideradas importantes
para os diferentes parâmetros analisados, mas nunca foram utilizadas no mesmo modelo
(Tabela 2). O conjunto final, com 12 variáveis preditoras, foi dividido em variáveis
ambientais, climáticas e antrópicas, sendo 4 relacionadas ao trecho de amostragem (escala
local) e 8 relacionadas às microbacias (escala regional) (Tabela 3). Além destas, como alguns
trechos de rio foram amostrados a barco e outros a pé, dependendo das condições de
locomoção, foi considerada a variável metodológica Condução da amostragem, analisada
apenas como covariável da probabilidade de detecção da espécie.
A maior parte das variáveis preditoras consideradas neste estudo foram extraídas na
resolução de microbacias, pelo fato das bacias hidrográficas serem apontadas como as
unidades espaciais mais apropriadas para planejamento de estratégias de conservação
direcionadas às lontras, animais semiaquáticos que se dispersam principalmente ao longo dos
cursos d'água (Ottaviani et al., 2009; Jeffress et al., 2011a).
40
Os valores das variáveis preditoras na escala das microbacias foram estimados
considerando como valor da microbacia a média dos valores de todos os pixels de 1 km
englobados por ela. No caso da variável "fluxo de área de captação de água acumulada", foi
considerado como o valor da microbacia o maior valor encontrado entre os pixels, e não a
média. Todas as variáveis foram derivadas no programa ArcGis 10.1.
As variáveis "densidade da população" e "fluxo de área de captação de água" foram
logaritimizadas (Log10) por apresentarem alguns valores muito altos. Todas as variáveis
contínuas foram padronizadas e transformadas em escores z.
41
Tabela 2: Correlação entre as 15 variáveis preditoras selecionadas para analisar a ocupação, uso do habitat e detecção da Lontra longicaudis nas bacias hidrográficas do nordeste brasileiro. Ver tabela 3 para mais detalhes sobre as variáveis.
Tabela 3: Descrição das variáveis selecionadas como preditoras da ocupação, uso do habitat e detecção da Lontra longicaudis nas bacias hidrográficas
do nordeste brasileiro.
Variáveis Abreviação Escala DescriçãoAmbientais
Ordem do rio Ordem_Rio Local
Ordem do trecho de rio amostrado de acordo com a regra de hierarquia fluvial de Strahler (1964). Drenagem derivada a partir do SRTM (Shuttle Radar Topographic Mission), disponível através do CIAT (http://srtm.csi.cgiar.org/), e recondicionada utilizando a base hidrográfica do IBGE (IBGE-BC 2013; Escala 1:250.000).
Cobertura arbórea ripária Cob_arborea Local Porcentagem de pixels (30x30) com 40% ou mais de cobertura arbórea de dossel (> 5 m) em um buffer de 100 mem torno do transecto (Fonte: Hansen et al. 2013).
Cobertura de remanescentes Remanescentes Regional Porcentagem de cobertura de remanescentes naturais dos três biomas presentes na área de estudo (Floresta Atlântica, Caatinga ou Cerrado), até 2009, na área da microbacia (Fonte: MMA, 2011).
Complexidade do relevo Complex_relevo Regional Medida da complexidade do relevo, calculada pelo desvio padrão da altitude na área da microbacia (Fonte: SRTM).
Densidade de drenagem Dens_drenagem Regional Soma dos kms de rios da microbacia / Área da microbacia (km2) (Fonte: IBGE 1:250.000, 2015).
Fluxo de área de captação de água acumulado Flux_cap_água Regional
Soma da área de captação de água acumulada na microbacia, considerando toda drenagem dos cursos d'água àmontante. Drenagem derivada a partir do SRTM, disponível através do CIAT (http://srtm.csi.cgiar.org/), erecondicionada utilizando a base hidrográfica do IBGE ((Fonte: IBGE 1:250.000, 2015).
Climáticas
Precipitação anual Precip_anual Regional Precipitação anual da microbacia. Variável disponível no WorldClim (www.worldclim.org), na resolução de 1km2. O valor da microbacia foi considerado como o valor médio de todos os pixels englobados por ela.
Sazonalidade da precipitação Sazonal_precip RegionalCoeficiente de variação da preciptação ao longo do ano.Variável disponível no WorldClim (www.worldclim.org), na resolução de 1 km2. O valor da microbacia foi considerado como o valor médio de todos os pixelsenglobados por ela.
Antrópicas
Distância de estrada Dist_Estrada Local Distância euclidiana (m) do techo amostrado do rio para a estrada (pavimentada ou não) mais próxima (Fonte:IBGE 1:250.000, 2015).
Distância de cidade via estrada Dist_ViaEstrada Local Distância (km) da zona urbana mais próxima ao transecto via estrada (pavimentada ou não). Fonte: IBGE 1:250.000, 2015; Setores censitários - IBGE 2010.
Densidade de estradas Dens_Estradas Regional Soma dos kms de estradas (pavimentadas e não pavimentadas) da microbacia / Área da microbacia (km2). Fonte: IBGE 1:250.000, 2015
Densidade populacional Dens_pop Regional Densidade populacional da microbacia (hab/ha). Fonte: Setores censitários - IBGE 2010.MetodologiaCondução da amostragem Amostragem Amostragem realizada com barco (1) ou a pé (0).
43
Análise dos dados - Probabilidade de ocupação e detecção
Foram utilizados modelos hierárquicos de ocupação baseados em máxima
verossimilhança (Mackenzie et al., 2002; Mackenzie et al., 2006) para estimar a probabilidade
de ocupação (ψ, probabilidade da espécie ocupar um local específico) e a probabilidade de
detecção (p, probabilidade da espécie ser detectada quando presente) da Lontra longicaudis nas
bacias hidrográficas do nordeste brasileiro. Nestes modelos, históricos de detecção (1) e não
detecção (0) são construídos ao longo de múltiplas amostragens em cada unidade amostral, e
são modelados em função de covariáveis que possam afetar a ocupação e/ou detecção da
espécie (Mackenzie et al., 2002). Esta abordagem considera que a detecção pode ser imperfeita
(p < 1), situação muito frequente com espécies crípticas, principalmente em estudos baseados
em vestígios, onde a não detecção não reflete necessariamente a ausência da espécie, que pode
estar presente e apenas não ter sido detectada.
Neste estudo, para estimar a probabilidade de detecção da Lontra longicaudis, cada um
dos 45 trechos de rio amostrados foi dividido em segmentos de 1 km, considerados como
réplicas espaciais. Dessa forma, cada trecho amostrado continha 3 - 5 réplicas espaciais (Figura
2), o que permitiu a construção de um histórico de detecção com base na detecção (1) ou não
(0) de vestígios de lontra em cada segmento de 1 km, considerando os quatro dias de
amostragem.
Figura 2: Esquema do protocolo de amostragem utilizado para estimar a ocupação da Lontra longicaudis em cada um dos 45 trechos de rios amostrados nas bacias hidrográficas do nordeste brasileiro. Cada segmento de 1 km foi utilizado como uma réplica espacial para estimar a probabilidade de detecção em um trecho de rio, que possuía 3 - 5 réplicas.
Para espécies com alta capacidade de mobilidade, a utilização de réplicas espaciais
sequenciais tem resultado em estimativas de probabilidade de detecção mais eficientes que
réplicas temporais (Parry et al., 2013), pois a presença/ausência da espécie em um determinado
local pode variar temporalmente, mas, devido a alta mobilidade, a presença/ausência da espécie
em um determinado local não influencia na probabilidade do local de amostragem subsequente
estar ocupado (Kendall & White, 2009; Parry et al., 2013). As lontras geralmente possuem
grandes áreas de uso e podem percorrer vários quilômetros por dia (Ruiz-Olmo et al., 2001a),
44
por isso réplicas espaciais ao longo dos rios são muito utilizadas para estimativas de
probabilidade de detecção da família Lutrinae (Jeffress et al., 2011a; Jeffress et al., 2011b;
Perinchery et al., 2011; Okes & O'Riain, 2017). Apesar da área de uso da Lontra longicaudis
não ser conhecida, indivíduos dessa espécie podem se locomover em média por 6,5 km ao
longo dos rios, com alguns registros de deslocamento cumulativo de indivíduos residentes por
18 km (Trinca et al., 2013).
O tamanho máximo de 5 km para os trechos de rios amostrados, menor que a provável
área de uso da espécie, foi definido para minimizar probabilidade de agrupamento de vestígios
e mudanças no status de ocupação entre as réplicas espaciais (Perinchery et al., 2011). Já o
tamanho da réplica espacial foi definido com base: 1) no aumento da probabilidade de
detecção, já que esta tende a aumentar linearmente com o aumento do comprimento da réplica
espacial (Jeffress et al., 2011b; Parry et al., 2013); e 2) na efetividade logística da amostragem,
já que estudos de distribuição com a espécie indicam que, em 92% dos casos, quando a espécie
está presente, o primeiro vestígio é encontrado no primeiro quilômetro de amostragem (Silva et
al., 2005). Além disso, este tamanho de segmento foi considerado por minimizar a dependência
espacial entre as réplicas adjacentes, que tende a diminuir com o aumento do tamanho do
segmento considerado, o qual deve ser grande o suficiente para maximizar a detecção da
espécie, mas de um tamanho que permita a existência de pelo menos 3 réplicas por unidade
amostral (Hines et al., 2010).
A utilização de modelos de ocupação que consideram a dependência entre réplicas
espaciais, Markovian occupancy model (Hines et al., 2010), não foi possível para o conjunto de
45 unidades amostrais desse estudo, pois estes modelos são constituídos por quatro parâmetros,
o que impossibilita a adição das covariáveis de ocupação e detecção por problemas de
sobreparametrização e convergência. Desta forma, considerando unidades amostrais compostas
por 3 - 5 réplicas espaciais de 1 km, assumimos que a probabilidade de ocupação não variou
entre as amostragens sucessivas em um mesmo trecho, e utilizamos modelos padrão de uma
única estação, single season models (Mackenzie et al., 2002). Apesar do período total do estudo
abranger época chuvosa e seca, as amostragens em um mesmo trecho foram conduzidas em 4
dias consecutivos, e em todos os trechos amostrados, independente da localidade e época, havia
água (habitat disponível para a espécie). Os históricos de detecção de cada trecho amostral, e o
conjunto de variáveis preditoras foram importados e analisados no programa PRESENCE
v.10.9 (Hines, 2006).
Foi criado um conjunto de modelos que representam hipóteses biológicas para explicar a
ocupação e detectabilidade da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro. Como uma maneira de
evitar a sobreparametrização, foram considerados apenas modelos com ≤ 5 parâmetros,
45
garantindo aproximadamente 10 unidades amostrais por parâmetro estimado (Burnham &
Anderson, 2002). Por esta razão, um modelo global, com todas as variáveis, não foi produzido.
O procedimento de construção e seleção dos modelos foi realizado em duas etapas. Na
primeira etapa foi avaliado o efeito das variáveis "ordem do rio", "cobertura arbórea" e
"método de amostragem" na probabilidade de detecção das lontras. A escolha dessas variáveis
foi feita com base em evidências da sua influência na detecção da espécie. A ordem do rio é
uma variável que influencia a disponibilidade de locais para a deposição/produção de vestígios,
podendo afetar a detecção dos mesmos pelo observador (Ruiz-Olmo et al, 2001a). Além disso,
muitos rios de alta ordem apresentam vegetação aquática próxima às margens, o que dificulta a
visualização do ambiente terrestre adjacente, e rios maiores representam uma maior superfície
de procura para o observador, o que pode influenciar negativamente na sua capacidade de
detecção. A cobertura arbórea foi analisada como uma covariável da detecção pela sua
influência no tipo de substrato. Substratos de serrapilheira, comuns em regiões com alta
cobertura arbórea, tendem a encobrir fezes e pegadas, diminuindo a probabilidade de detecção
dos vestígios de lontra (Jeffress et al., 2011b). Como o tipo de locomoção durante as
amostragens variou de acordo com as condições de navegabilidade do trecho do rio, sendo
alguns trechos percorridos com barco e outros a pé, também foi testada a influência desta
variável na probabilidade de detecção. O tipo de vestígio e a experiência do observador são
variáveis que também podem afetar a probabilidade de detecção das lontras (Jeffress et al.,
2011b), mas que não foram consideradas neste estudo, pois todas as amostragens foram
realizadas pelo mesmo observador, e todos os tipos de vestígios foram considerados.
Na ausência de um modelo global, para garantir que a covariável de detecção não
estivesse absorvendo alguma variação da ocupação, o efeito de cada uma das covariáveis de
detecção foi testado em um conjunto de três modelos, sendo cada um composto por duas
covariáveis de ocupação aleatoriamente selecionadas e uma covariável de detecção "ψ(cov.
aleatória1 + cov. aleatória2), p(cov. detecção)". Os mesmo três modelos foram testados para
cada uma das três covariáveis de detecção analisadas, com a detecção mantida constante
"ψ(cov. aleatória1 + cov. aleatória2), p(.)”, e com o modelo nulo “ψ(.) p(.)”, resultando em
um total de 13 modelos.
Na segunda etapa, a probabilidade de ocupação (ψ) foi modelada em função das variáveis
preditoras consideradas (Tabela 3), enquanto a probabilidade de detecção foi mantida
invariável de acordo com o melhor modelo ranqueado na primeira etapa "ψ(covariável),
p(modelo melhor ranqueado na 1o etapa)”. O efeito das covariáveis consideradas importantes
para a probabilidade de ocupação da Lontra longicaudis foi avaliado inicialmente de forma
individual. A partir desta avaliação, foram feitas combinações de duas covariáveis,
46
representando hipóteses biológicas para explicar a ocupação da espécie. Foram eliminados do
conjunto os modelos que apresentaram problemas de convergência (Long et al., 2011). O
modelo mais básico gerado foi o modelo nulo, no qual as probabilidades de ocupação e
detecção são mantidas constantes “ψ(.) p(.)”, representando a ausência de influência das
covariáveis analisadas. No total foi produzido um conjunto de 39 modelos candidatos.
Na ausência de um modelo global, nós analisamos o ajuste de todos os modelos mais
complexos (com 5 parâmetros) através do parâmetro cˆ (bootstrap, n= 10.000) (Burnham &
Anderson, 2002). A valor c^ mais baixo estimado foi 1.09 (p= 0.28), o que não indica problema
de sobre-dispersão dos dados, por isso não foi feita nenhuma correção no AIC em relação a isto
(Burnham & Anderson, 2002).
O ranqueamento dos modelos candidatos foi feito através do Critério de Informação de
Akaike corrigido para pequenas amostras (AICc) (Burnham & Anderson, 2002). Os modelos
que apresentaram valores de ΔAICc ≤ 2 foram considerados bem ajustados aos dados, sendo as
variáveis que os compõem consideradas importantes preditoras da ocorrência da espécie
(Burnham & Anderson, 2002). A importância relativa de cada modelo, assim como de suas
covariáveis, foi analisada pelo peso de Akaike (wAICc).
Como nenhum modelo absorveu mais de 90% da variação dos dados (wAIC ≥ 0,9), os
modelos ranqueados que juntos somaram wAICc ≥ 0,90 foram considerados (Burnham &
Anderson, 2002). Neste caso, para a interpretação dos efeitos das variáveis entre os modelos
ranqueados, foi calculada a média dos modelos (model averaging), gerando os coeficientes
médios das covariáveis e seus respectivos erros padrão. Para isto foi utilizada a planilha
desenvolvida por B. Mitchell (disponível em: www.uvm.edu/%7Ebmitchel/software.html;
Long et al., 2011). Para inferir sobre a significância de cada variável, foram analisados os
intervalos de confiança 95% (IC) e sua sobreposição com o zero (Burnham & Anderson 2002).
Como os modelos resultaram em probabilidades de ocupação e detecção específicas para cada
site, nós aplicamos o model averaging no programa PRESENCE v.10.9 (Hines, 2006) para
estimar as probabilidades de cada site como uma média das estimativas de ocupação e detecção
dos modelos ranqueados que juntos somaram wAICc ≥ 0,90. Uma média geral da probabilidade
de ocupação e detecção para a região foi então calculada considerando as estimativas médias
dos 45 sites.
Análise dos dados - Uso do habitat
Foi observado que a área de estudo abrange duas regiões distintas em relação à
probabilidade de ocupação. A região que abrange as bacias hidrográficas que drenam para o
norte (excluindo as duas microbacias amostradas no Cerrado), com probabilidade de ocupação
47
média muito próxima a zero, e a região que abrange as bacias hidrográficas que drenam para o
leste, com probabilidade de ocupação média próxima a um. Dessa forma, com o objetivo de
entender que variáveis influenciam na utilização do habitat pela Lontra longicaudis onde a
espécie realmente ocorre, o número de vestígios de lontra por trecho de rio amostrado foi
modelado em função das mesmas variáveis selecionadas para os modelos de ocupação.
Considerando a alta probabilidade de detecção observada para a espécie neste estudo (^p=
0,68; Ep= 0,15), principalmente na região das bacias que drenam para o leste (^p= 0,76; Ep=
0,11), assumimos a contagem de vestígios de lontra em um trecho de rio como um índice
confiável de intensidade de uso do habitat (cf. Perinchery et al., 2011). Para isto foram
considerados todos os vestígios recentes e antigos encontrados no trecho de rio (5 km), ao
longo dos 4 dias de amostragem, sendo considerados registros distintos os vestígios separados
por pelo menos 50 m, e os vestígios novos, produzidos no dia da amostragem, mesmo que
localizado um ponto já marcado no dia anterior. Para esta análise foram consideradas apenas as
bacias hidrográficas que drenam para o leste, região que se estende entre os estados de Alagoas
e leste do Rio Grande do Norte. Isto corresponde a 9 das 17 bacias hidrográficas amostradas,
onde estão inseridas 24 das microbacias e trechos de rios estudados.
Foram utilizados modelos lineares generalizados mistos (Generalized Linear Mixed
Models - GLMMs) (McCulloch & Searle, 2001), com as bacias hidrográficas como variáveis
randômicas, para considerar alguma variabilidade natural existente no número de vestígio dos
trechos amostrados entre as nove bacias hidrográficas. Foram consideradas como variáveis
fixas as variáveis ambientais, climáticas e antrópicas mais relevantes para os modelos de
ocupação, todas padronizadas e transformadas em escores z. Inicialmente, pelo fato do número
de vestígios por trecho de rio representar uma contagem, assumimos que os erros seguiam a
distribuição de Poisson e utilizamos uma função de ligação logarítmica (Crawley, 2007). Os
dados, no entanto, apresentaram problemas de sobre-dispersão, com variância maior que a
média, uma violação nos pressupostos da distribuição de Poisson (Crawley, 2007; Hilbe, 2011).
A sobre-dispersão pode ser resultado de uma variação nos dados causada por covariável
que não foi considerada, ou de algum tipo de dependência nos dados, ou de uma frequência de
zeros maior do que a esperada de acordo com a média (Coxe et al., 2009; Harrison, 2014).
Modelamos a variação extra-Poisson para ajustar melhor a sobre-dispersão de duas maneiras:
1) mantemos a distribuição de Poisson, mas consideramos mais uma variável randômica ao
nível da observação, com um nível individual para cada ponto dos dados (Harrison, 2014); 2)
ajustamos o modelo com a distribuição binomial negativa (Hilbe, 2011; Atkins et al., 2012). A
distribuição binomial negativa pode ser considerada uma extensão do modelo de Poisson, com
um parâmetro a mais (θ), que permite que a média e a variância sejam diferentes, ajustando
48
melhor os dados desviados da distribuição, como uma frequência de zeros relativamente maior
que a esperada (Hilbe, 2011; Atkins et al., 2012). O modelo binomial negativo foi o que melhor
ajustou os dados, sendo, portanto, o considerado neste estudo. Como houve uma pequena
variação no numero de dias e tamanho dos trechos de rios amostrados (Tabela 1), adicionamos
os quilômetros totais percorridos em cada trecho (dias*comprimento do transecto) como um
ajuste (offset) do preditor linear (log km percorridos) (Crawley, 2007).
Assim como para os modelos de ocupação, para evitar a sobreparametrização, os modelos
foram construídos por combinações de duas covariáveis, representando hipóteses biológicas
para explicar a intensidade de uso do habitat pela espécie. Foram eliminados do conjunto os
modelos que apresentaram problemas de convergência, resultando em um conjunto de 20
modelos candidatos, incluindo o modelo nulo, só com o intercepto.
O ranqueamento e análise dos modelos e variáveis preditoras, assim como o model
averaging dos parâmetros, foi realizado como descrito acima para os modelos de ocupação.
Todas as análises dos GLMMs, no entanto, foram realizadas no programa R (R Development
Core Team, 2013).
3. RESULTADOS
Ao longo do estudo foram percorridos 726 km em trechos de amostragem e registrados
262 vestígios de Lontra longicaudis (Tabela 1). A presença de lontras foi detectada em 22 dos
45 trechos de rio amostrados (Figura 1), totalizando uma ocupação bruta (naive) de 48,89%.
Na modelagem da probabilidade de detecção, primeira etapa na análise dos modelos,
foi observado que a variável "ordem do rio" tem uma influência negativa na probabilidade de
detecção da Lontra longicaudis, o que significa que quanto maior a ordem do rio, menor a
probabilidade de detecção da espécie. Dentre o conjunto de 13 modelos analisados, os modelos
contendo esta variável foram melhor ajustados quando comparados com os modelos
equivalentes com as covariáveis de detecção "cobertura arbórea" e "método de amostragem",
assim como com os modelos de detecção constante e o modelo nulo “ψ(.) p(.)” (Tabela 4).
Dessa forma, todos os modelos de ocupação construídos na segunda etapa mantiveram a
estrutura "ψ(covariável), p(Ordem_Rio)".
49
Tabela 4: Avaliação da influência das variáveis "ordem do rio", "cobertura arbórea" e "método de amostragem" na probabilidade de detecção de Lontra longicaudis em um conjunto de 13 modelos, constituído por três modelos com duas covariáveis de ocupação selecionadas aleatoriamente e cada uma da covariáveis de detecção analisadas, três modelos equivalentes com a detecção mantida constante, e um modelo nulo de ocupação e detecção constantes. ΔAICc: diferença no AICc de um modelo e o melhor modelo ranqueado; wAIC: peso de Akaike; K: número de parâmetros; -2l: duas vezes a verossimilhança negativa; ψ: probabilidade de ocupação e p: probabilidade de detecção.
Na análise do conjunto de 39 modelos candidatos que representaram hipóteses
biológicas para explicar a probabilidade de ocupação da Lontra longicaudis no nordeste
brasileiro, 5 apresentaram ΔAICc ≤ 2, todos apresentando a variável "sazonalidade da
precipitação" em sua composição (Tabela 5). Como nenhum modelo apresentou wAIC ≥ 0,90,
foram considerados os 5 melhores modelos ajustados, que juntos somaram wAICcum ≥ 0,90
(Tabela 5), para estimativas média dos coeficientes das variáveis que os compõe, e
interpretação do efeito de cada uma sobre a ocupação da espécie (Tabela 6). Apesar de 5
covariáveis de ocupação comporem este conjunto de modelos, apenas a variável climática
"sazonalidade da precipitação" apresentou um efeito significativamente negativo na ocupação
da espécie, com 95% do intervalo de confiança do seu coeficiente não sobrepondo o zero, o que
50
significa que quanto maior o coeficiente de variação na precipitação ao longo do ano, menor a
probabilidade de ocupação da espécie (Tabela 8; Figura 3).
Tabela 5: Ranqueamento dos 39 modelos construídos para analisar a ocupação da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro. ΔAICc: diferença no AICc de um modelo e o melhor modelo ranqueado; wAIC: peso de Akaike; K: número de parâmetros; -2l: duas vezes a verossimilhança negativa; wAICcum: peso de Akaike cumulatvo.; ψ: probabilidade de ocupação e p: probabilidade de detecção.
Tabela 6: Estimativas médias dos coeficientes (^β) das variáveis que compõem os cinco modelos melhor ranqueados como preditores da ocupação da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro; seus respectivos erros padrão (EP), intervalos de confiança (IC) superior e inferior, soma do peso de Akaike (wAIC ) e um ranqueamento de importância das covariáveis. Valores resultantes da média dos modelos (model averaging).
Figura 3: Covariáveis importantes para a ocupação da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro, de acordo com os cinco modelos melhor ajustados, que juntos somaram 90% da variação na probabilidade de ocupação da espécie. Os pontos correspondem aos coeficientes médios e as barras ao intervalo de confiança de 95%.
-12 -8 -4 0 4 Coeficientes
Cobertura arborea
Densidade da drenagem
Densidade de Estradas
Distância da Estrada
Intercepto (psi)
Sazonalidade Precipitação
Variá
veis
52
A probabilidade média geral de ocupação para toda a área estudada, considerando as 45
microbacias amostradas, foi estimada em 0,49 (Ep= 0,45). Foi observado, no entanto, que a
área de estudo abrange duas regiões distintas em relação à probabilidade de ocupação. A região
que abrange as bacias hidrográficas que drenam para o norte (excluindo as duas microbacias
amostradas no Cerrado), totalmente inserida no bioma Caatinga e constituída por 19 das
microbacias amostradas, com probabilidades de ocupação entre 0 - 0,03 (^ψ= 0,006; Ep=
0,009); e a região que abrange as bacias hidrográficas que drenam para o leste, inserida nos
biomas Caatinga e Floresta Atlântica, com 24 microbacias amostradas e probabilidades de
ocupação variando entre 0,13 - 0,99 (^ψ= 0,88; Ep= 0,2). A probabilidade de detecção geral da
espécie na área de estudo foi alta 0,68 (Ep= 0,15), sendo um pouco maior nas bacias
hidrográficas que drenam para o leste (^p= 0,76; Ep= 0,11) em relação as bacias que drenam
para o norte (^p= 0,59; Ep= 0,13).
Do total de 262 vestígios de lontras encontrados, 238 foram registrados na região que
abrange as bacias hidrográficas que drenam para o leste, resultando em uma taxa média de
encontro de 1vestígio/km percorrido em trecho de amostragem. Do conjunto de 20 modelos
construídos para explicar a intensidade de uso do habitat pelas lontras nessa região, quatro
apresentaram ΔAICc ≤ 2, sendo o modelo contento as variáveis "porcentagem de
remanescentes" e "sazonalidade da precipitação" o melhor ranqueado (Tabela 7). Estes modelos
retiveram 59% da variabilidade explicada por todos os modelos (wAICcum= 0,59), portanto,
paras as estimativas médias dos coeficientes e interpretação do efeito das variáveis sobre a
intensidade de uso do habitat, foram considerados mais oito modelos, totalizando 12 modelos,
que juntos somaram wAICcum ≥ 0,90 (Tabela 7). Excluindo-se os quatro modelos melhor
ranqueados, no entanto, os oito modelos restantes apresentaram pesos entre 0,06 - 0,03, com
influência pouco significativa na intensidade de uso do habitat pela espécie. Dessa forma,
apesar de considerados para a média dos modelos (model averaging), as variáveis referentes a
esses modelos não foram apresentadas por serem pouco significativas (Tabela 8).
A sazonalidade da precipitação, além de ser uma variável importante para a ocupação
da Lontra longicaudis na região nordeste, também é uma variável importante para a intensidade
de uso do habitat pela espécie nas bacias hidrográficas que drenam para o leste, seguida pelas
variáveis "fluxo de área de captação de água" e "porcentagem de remanescentes", todas com
influência negativa, apesar de uma pequena sobreposição com o zero nas duas primeiras
(Tabela 8; Figura 4)
53
Tabela 7: Ranqueamento dos 20 modelos construídos para analisar a intensidade de uso do habitat pela Lontra longicaudis no nordeste brasileiro. ΔAICc: diferença no AICc de um modelo e o melhor modelo ranqueado; wAIC: peso de Akaike; K: número de parâmetros; wAICcum: peso de Akaike cumulatvo.
Tabela 8: Estimativas médias dos coeficientes (^β) das variáveis que compõem os quatro modelos melhor ranqueados de intensidade de uso do habitat pela Lontra longicaudis no nordeste brasileiro; seus respectivos erros padrão (EP), intervalos de confiança (IC) superior e inferior, soma do peso de Akaike (wAIC ), e valores de Z e P. Valores resultantes da média dos modelos (model averaging).
Figura 4: Variáveis importantes para a intensidade de uso do habitat pela Lontra longicaudis no nordeste brasileiro, de acordo com os 12 modelos melhor ajustados, que juntos somaram 90% da variação na intensidade de uso do habitat. Os pontos correspondem aos coeficientes médios e as barras ao intervalo de confiança de 95%.
4. DISCUSSÃO
Neste estudo foram utilizados modelos de ocupação para analisar o efeito de variáveis
ambientais, climáticas e antrópicas na ocupação das bacias hidrográficas do nordeste brasileiro
pela Lontra longicaudis. Apesar das lontras serem animais de comportamento críptico, as suas
fezes são depositadas em locais conspícuos e possuem alta probabilidade de detecção, sendo a
principal ferramenta para estudos com a família Lutrinae (Kruuk, 2006). A probabilidade de
detecção da Lontra longicaudis obtida neste estudo foi alta, principalmente nas bacias
hidrográficas que drenam para o leste, semelhante as obtidas para as espécies Lontra
canadensis (p= 0,61; Jeffress et al., 2011b), Aonyx capensis (0.80; Okes & O'Riain, 2017) e
Aonyx cinereus (p= 0,97; Perinchery et al., 2011). Esta alta detectabilidade dos vestígios,
associada com um observador experiente, pode ter refletido na baixa influência da forma de
condução da amostragem (barco ou a pé) na probabilidade de detecção observada neste estudo.
A cobertura arbórea não foi uma variável importante para a detecção da lontra na área
de estudo. Esta variável foi testada como covariável da detecção pela sua influencia no tipo de
55
substrato, considerando que a probabilidade de detectar vestígios de lontra é menor em
substratos de serrapilheira (Jeffress et al., 2011b), comuns em áreas florestais. Esta variável, no
entanto, reflete a estrutura arbórea da vegetação (> 5m; Hansen et al., 2013), o que não inclui
apenas remanescentes florestais, mas áreas de cultivo de maior porte, que podem não ter a
mesma influência na formação da serrapilheira.
A ordem dos rios foi a única variável que apresentou influência negativa significativa
na probabilidade de detecção da espécie, e que deve ser considerada em estudos futuros com
Lontra longicaudis, principalmente se forem utilizadas réplicas espaciais. Em rios menores, a
disponibilidade de locais para a deposição de fezes e construção de tocas em um trecho é
menor, por isso as lontras tendem a se deslocar mais ao longo do curso d'água, e, assim, uma
única lontra pode marcar vários quilômetros de rio, aumentando a probabilidade de ser
detectada ao longo de segmentos consecutivos de amostragem (Ruiz-Olmo et al., 2001a). A
diferença observada na probabilidade de detecção entre as bacias que drenam para o leste e
para o norte pode estar relacionada à ordem dos rios dessas regiões. A maioria dos trechos de
rios amostrados na bacias hidrográficas com drenagem norte eram de sexta ordem, enquanto
que os trechos amostrados na bacias com drenagem leste eram em sua maioria de quarta ordem.
A ocupação bruta obtida para a região foi muito próxima da ocupação geral estimada
neste estudo, o que pode ser resultado da alta detectabilidade da espécie (Prakash et al., 2012).
Quando analisamos separadamente a ocupação bruta da região que abrange as bacias
hidrográficas que drenam para o leste (0,83), onde estão concentrados os registros de
ocorrência da espécie, observamos um incremento de 6% na ocupação média estimada para
esta mesma região (0,88), o que significa que a espécie nem sempre foi detectada quando
estava presente, e ressalta a importância de se considerar a detectabilidade em estudos com
Lontra longicaudis.
A estruturação geográfica observada na probabilidade de ocupação da Lontra
longicaudis no nordeste brasileiro pode estar relacionada à variáveis ambientais que também
estejam espacialmente estruturadas (Barbosa et al., 2003). A área focal deste estudo, ao norte
do Rio São Francisco, abrange áreas dos biomas Floresta Atlântica, Caatinga e Cerrado. A
Floresta Atlântica está restrita à porção sul da região estudada, onde estão inseridas as bacias
hidrográficas que drenam para o leste. Já as bacias hidrográfica que drenam para o norte da
nossa área de estudo, com exceção dos rios localizados no Cerrado do sul do estado do Piauí,
são compostas por rios totalmente inseridos na Caatinga. Estes biomas diferem muito em
relação ao clima.
O clima foi o fator mais importante para explicar o padrão de ocupação das bacias
hidrográficas do nordeste brasileiro pela lontra. A sazonalidade da precipitação apresentou uma
56
influência negativa significativa na probabilidade de ocupação da espécie, enquanto que a
precipitação média anual não foi uma variável importante na estimativa desse parâmetro. Isto
indica que a variação na disponibilidade de água ao longo do ano é mais importante para as
lontras do que a quantidade deste recurso em si.
A capacidade das lontras de ocorrer em regiões semiáridas tem sido demonstrada pela
Lutra lutra em ecossitemas mediterrâneos (Ruiz-Olmo & Jiménez, 2008). Nesta região as
lontras ocorrem frequentemente em poças de rios quase secos, e a ocorrência da espécie nesses
ambientes não está relacionada à disponibilidade de água em si, mas à disponibilidade de
presas, que em sua maioria são aquáticas (Ruiz-Olmo et al., 2001b, Ruiz-Olmo et al., 2007). A
variação na disponibilidade de água, refletida em longos períodos de seca, diminui os recursos
alimentares disponíveis para a espécie e aumenta o estresse ambiental, sendo por isso uma
variável mais importante na determinação da sua ocorrência (Ruiz-Olmo & Jiménez, 2008).
As bacias hidrográficas que drenam para o norte da nossa área de estudo, com exceção
das microbacias localizadas no Cerrado do Sul do Piauí, são compostas por rios totalmente
inseridos na Caatinga, que sofrem uma influencia mais forte do clima semiárido. Esta região é
caracterizada por eventos periódicos de secas severas, que ocorrem a intervalos de poucos anos,
com raros eventos de cheia (Krol et al., 2001, Prado, 2003), o que pode ser uma condição
limitante para a espécie. A exceção de alguns rios que possuem regime hidrológico artificial
controlado por grandes reservatórios, todos os rios desta região são originalmente intermitentes
ao longo de seu curso e secam completamente por longos períodos (Rosa et al., 2003). A baixa
probabilidade de ocupação estimada para esta região confirma a lacuna reportada por Rosas-
Ribeiro et al. (2017) na área de distribuição da Lontra longicaudis.
Além de ser um dos fatores determinantes da ocorrência da espécie na região, o clima é
também um dos fatores importantes para a intensidade de uso do habitat pelas lontras. Apesar
desta análise estar restrita a uma área menor, com menor variação climática, observa-se um
aumento na sazonalidade da precipitação em direção ao norte, a medida que a faixa de Floresta
Atlântica se torna mais estreita, e em direção aos trechos altos dos rios, localizados em áreas de
Caatinga. Nestes trechos foi registrado um número menor de vestígios, principalmente
vestígios recentes (Rosas-Ribeiro, observação pessoal), indicando um uso ocasional ou menos
frequente pelas lontras. Apesar das bacias hidrográficas dessa região apresentarem condições
climáticas menos severas que as bacias totalmente inseridas no bioma Caatinga, a maior
variabilidade na disponibilidade de água ao longo do ano afeta a disponibilidade e distribuição
dos recursos alimentares. Como resposta a essas flutuações, as lontras podem adotar um padrão
muito elástico de uso do espaço, aumentando suas áreas de vida, com grande mobilidade no
57
tempo (Ruiz-Olmo & Jiménez, 2008). Dessa forma, apesar de ocorrerem na bacia hidrográfica,
no momento da amostragem o trecho de rio pode estar sendo utilizado com menos frequência.
A área de captação de água a montante (flux_cap_agua) é uma variável das
microbacias, muito correlacionada com a ordem dos rios (r = 0.90; p<0.0001), ambas
relacionadas ao tamanho dos cursos d'água e localização do trecho amostrado. Rios com maior
fluxo de área de captação e maior ordem, possuem maior volume de água. Apesar de não serem
variáveis importantes para a ocorrência da Lontra longicaudis, são variáveis que influenciam
negativamente a detectabilidade e o uso do habitat pela espécie. A ordem do rio foi uma
variável importante para o uso do habitat pela espécie Aonyx cinereus, que utiliza mais os rios
intermediários, de segunda ordem, que os rios muito pequenos (primeira ordem), ou rios de
grande porte (terceira ordem ou maior) (Perinchery et al., 2011). Em uma bacia hidrográfica
geralmente os impactos e ameaças se acumulam na direção montante-jusante, de forma que os
trechos de rio com maior volume de água, como os canais principais próximos à foz, são os
mais degradados (Nel et al., 2007; Vörösmarty et al., 2010). Isto é agravado pelo fato dessas
partes baixas dos rios, principalmente em regiões costeiras, serem densamente povoadas
(Vörösmarty et al., 2010). Desta forma, rios tributários, de menor porte, oferecem melhores
condições ambientais e podem funcionar como um refúgio para as espécies que dependem do
ambiente aquático (Nel et al., 2007), o que pode explicar a influência negativa do fluxo de área
de captação de água acumulado no uso do habitat pela Lontra longicaudis.
A ocorrência da lontra neotropical na área estudada está concentrada nas bacias
hidrográficas que drenam para o leste, com intensidade maior de uso do habitat em regiões com
menor sazonalidade da precipitação. Esta região corresponde à Floresta Atlântica nordestina,
porção menos conservada deste bioma, com alta densidade populacional humana, onde a
expansão de paisagens antropizadas tem restringindo os remanescentes florestais a pequenos
fragmentos com menos de 10.000 ha (Ribeiro et al., 2009; Tabarelli et al., 2010). Como uma
consequência indireta disto, mesmo procurando refúgios, a espécie utiliza habitats com poucos
remanescentes florestais, o que resultou em uma influência negativa da porcentagem de
remanescentes na intensidade de uso do habitat pela lontra nessa região.
A Lontra longicaudis é uma espécie de grande tolerância ecológica, capaz de ocorrer
em áreas alteradas por impacto antrópico, próximas a cidades e atividades humanas (Larivière,
1999; Pardini & Trajano, 1999; Alarcon & Simões-Lopes, 2003). Por serem animais que
dependem do ambiente aquático, em algumas regiões as lontras utilizam preferencialmente
habitats de planícies costeiras, bem drenadas, geralmente também muito utilizados pela
população humana (Sepúlveda et al., 2007), como observado neste estudo para a Lontra
longicaudis na Floresta Atlântica nordestina, e também para a espécie Aonyx capensis, que
58
ocorre preferencialmente nos trechos baixos dos rios da Península de Cape - Africa do Sul,
apesar do alto grau de degradação e poluição (Okes & O'Riain, 2017). A ocorrência das lontras
nessas áreas, no entanto, não garante a persistência de suas populações. A exposição
prolongada à poluentes, trafego de veículos e contato com animais domésticos pode colocar as
populações de lontras em risco a longo prazo, principalmente por serem predadores de topo,
indiretamente afetados por qualquer impacto ao longo da cadeia trófica, podendo responder a
estes impactos tardiamente (Okes & O'Riain, 2017).
A ocorrência e uso de área degradadas pelas lontras também pode ser intensificada
como um reflexo da escala local de amostragem, sendo revelado um padrão diferente quando
analisada em uma escala mais ampla da paisagem (Okes & O'Riain, 2017). Quando
considerada toda a área de distribuição da Lontra longicaudis, a densidade populacional
humana teve efeito negativo na adequabilidade do habitat para a espécie, apesar de valores
altos de adequabilidade ainda serem observados em áreas densamente povoadas (Rheingantz et
al., 2014).
De acordo com Robitaille e Laurence (2002), a Lutra lutra aparenta ter um limiar de
tolerância para a densidade populacional humana, estando sempre ausente em locais com
densidade populacional superior a 183 habitantes/km2. Isto pode estar relacionado à
manutenção dos recursos críticos mínimos para a espécie, que pode ser ameaçada em condições
de alta densidade populacional. As lontras são capazes de se adaptar a ambientes alterados,
desde que os recursos críticos para a sua existência, como água, alimento e locais de abrigo e
reprodução, sejam mantidos (Prakash et al., 2012; Okes & O'Riain, 2017). Os níveis de
perturbação antrópica existentes na área de estudo podem estar dentro do limite de tolerância
da Lontra longicaudis, mas a falta de estratégias de conservação que garantam a manutenção
desses recursos na região torna a espécie suscetível à extinção regional.
A degradação ambiental e perturbações antrópicas têm causado declínios populacionais
em várias espécies da família Lutrinae, como a Lontra canadensis e Lutra lutra que sofreram
várias extinções locais ao longo das suas áreas de distribuição (Kruuk, 2006; Battisti et al.,
2011; Fei & Chan, 2017). A subespécie Lutra lutra whitelleyi, com distribuição geográfica
restrita ao Japão, foi declarada extinta na natureza pela caça e perda de habitat (Hance, 2012), e
as três espécies de lontra que ocorrem na China, Lutra lutra, Aonyx cinereus e Lutrogale
perspicillata estão em acentuado declínio populacional (Fei & Chan, 2017). A extinção local da
espécie Lutra lutra na região do Lácio, Itália central, ocorreu em um período de 5 a 6 décadas
após a destruição das áreas de planícies úmidas, antes amplamente ocupadas pelas lontras
(Battisti et al., 2011). Inicialmente a espécie ficou restrita a pequenos fragmentos florestais em
tributários de menor porte, em subpopulações sumidouro, que se extinguiram em algumas
59
décadas (Battisti et al., 2011). O intervalo de tempo entre o impacto ambiental e a extinção da
espécie foi atribuído a um efeito de retardo (débito de extinção), que pode ocorrer
principalmente com espécies abundantes e bem adaptadas (Tilman et al., 1994). Apesar de não
existirem estudos populacionais com a Lontra longicaudis no nordeste brasileiro, alertamos
para a possibilidade da espécie estar passando pelo mesmo processo. Algumas regiões com
grande magnitude de debito de extinção para mamíferos foram estimadas para o nordeste
brasileiro (Chen & Peng, 2017) e uma recente avaliação de risco de extinção da espécie fez
uma previsão de desaparecimento local da Lontra longicaudis na Floresta Atlântica nordestina
nos próximos 50 anos, devido a perda da capacidade de suporte do ambiente por redução de
habitat, caça e atropelamentos (Rodrigues et al., 2013).
Apesar da situação de alerta, as lontras são resilientes e têm demostrado capacidade de
recuperação a partir de grandes declínios populacionais (Kruuk, 2006; Recharte Uscamaita &
Bodmer, 2009; Theng & Sivasothi, 2016). Dessa forma, ressaltamos a necessidade urgente de
estratégias efetivas para a conservação da espécie na região nordeste brasileira ao norte do rio
São Francisco. Com uma melhor compreensão da distribuição e dos principais fatores que
influenciam a ocorrência e uso do habitat pela espécie na região, recomendamos como ações
prioritárias: 1) estudos genéticos e populacionais, até então inexistentes, para que se conheça a
variabilidade genética e o estado atual da população de Lontra longicaudis na região; 2) análise
e seleção de bacias hidrográficas prioritárias para a conservação da espécie, para que sejam
definidas ações de conservação e restauração que garantam a persistência da Lontra
longicaudis no nordeste brasileiro.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abell, R. 2002. Conservation Biology for the Biodiversity Crisis : a Freshwater Follow-up.
Conservatio Biology, 16(5): 1435-1437.
Abell, R.; Allan, J.D.; Lehner, B. 2007. Unlocking the potential of protected areas for
threats to human water security and river biodiversity. Nature, 467: 555-561.
Waldemarin, H.F. 2004. Ecologia da Lontra Neotropical (Lontra longicaudis), no Trecho
Inferior da Bacia do Rio Mambucaba, Angra dos Reis. Tese de Doutorado. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
67
CAPÍTULO III
Diversidade genética e padrão de dispersão da Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no nordeste brasileiro*
* Manuscrito em preparação
68
Diversidade genética e padrão de dispersão da Lontra Neotropical (Lontra longicaudis) no Nordeste brasileiro*
Patrícia F. Rosas-Ribeiro1; Cristine Trinca2; Eduardo Eizirik2, Eduardo M. Venticinque1
1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências, Departamento de Ecologia, Caixa Postal 1524, CEP 59078-970, Natal, RN, Brazil 2 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Laboratório de Biologia Genômica e Molecular.
RESUMO A diversidade genética representa o potencial evolutivo para uma espécie se adaptar às mudanças ambientais. Entender os fatores que afetam a estrutura genética e fluxo gênico entre populações é essencial para definir estratégias efetivas de conservação. A Lontra longicaudis é uma das espécies menos estudadas da subfamíllia Lutrinae e foi recentemente classificada como quase ameaçada de extinção. Pouca informação existe sobre esta espécie no nordeste do Brasil, que nunca foi significativamente amostrado em estudos genéticos e taxonômicos. Para suprir esta lacuna e contribuir com a persistência a longo prazo da L. longicaudis no nordeste brasileiro, neste estudo nós analisamos a diversidade genética e o padrão de dispersão da espécie na região. Para isto foram analisados segmentos de DNA mitocondrial de 36 amostras não invasivas (fezes frescas, muco e tecido), provenientes de 8 bacias hidrográficas. Destas, 17 amplificaram os três segmentos analisados e foram consideradas indivíduos distintos pela localização amostral e composição genética. Estes indivíduos são representativos de 7 haplótipos, dos quais 4 foram identificados pela primeira vez neste estudo. A espécie apresentou alta diversidade haplotípica, mas baixa variabilidade nucleotídica, o que indica expansão recente da população. A maior diferenciação genética entre todas as amostras foi observada em duas amostras do Piauí, acima da área de Caatinga onde não há registros atuais de presença da espécie, corroborando a existência de uma barreira climática por onde o fluxo gênico pode estar interrompido há mais tempo. A população de lontra do nordeste apresentou diferença genética significativa em relação aos grupos geográficos da Amazônia e do Leste da América do Sul, maior que a diferença desses dois grupos entre si, o que indica menor fluxo gênico para essa região. O cenário que atribuiu um custo elevado para a dispersão por terra, foi o que apresentou relação mais forte com a divergência genética observada entre as amostras da região nordeste, indicando que a espécie é capaz de se dispersar por terra, mas em situações extremas. Já a divergência genética entre as bacias costeiras apresentou relação mais forte com as distâncias geográficas (euclidiana e trecho de bacias), o que pode ser resultado de uma região mais homogênea, sujeita a alagamentos, onde a paisagem impõe menos resistência à dispersão por animais semiaquáticos. Análises do caminho de menor custo indicam o Rio São Francisco como uma importante rota de dispersão, conectando as bacias costeiras do nordeste com as bacias localizadas ao norte da Caatinga, o que ressalta a importância da sua preservação para a manutenção da diversidade genética na região. Palavras chave: Lutrinae, DNA Mitocondrial, Genética da paisagem, Dispersão, Conservação
69
1. INTRODUÇÃO
A diversidade genética representa o potencial evolutivo para que uma espécie possa se
adaptar às mudanças ambientais, sendo por isso considerada uma das prioridades da biologia da
ambientais e ecológicos podem influenciar na variabilidade e estrutura genética de uma
população, como o tamanho populacional, características reprodutivas e a conectividade entre
populações (Frankham et al., 2009). Quanto maior a conectividade, maior a variabilidade
genética em populações locais e menor a variabilidade entre populações, enquanto que a baixa
conectividade leva ao isolamento e diminui a variabilidade genética local, aumentando a
divergência entre populações por deriva genética e/ou seleção natural (Slatkin, 1985).
O fluxo gênico entre populações pode ser influenciado por características dos
organismos e pela estruturação dos elementos da paisagem (Baguette et al., 2012). No caso de
espécies aquáticas e semiaquáticas, a dependência dos corpos d'água ressalta a influencia da
estrutura espacial da drenagem na conectividade entre populações (Hughes et al., 2009). Para
espécies aquáticas o fluxo gênico ocorre mais frequentemente dentro do que entre bacias
hidrográficas (Meffre & Vrijenhoek, 1988), o que pode resultar em uma forte estruturação da
variabilidade genética entre as bacias, mais correlacionada à resistência a dispersão pela
paisagem, do que à distância euclidiana entre elas. Para espécies que não são obrigatoriamente
restritas ao ambiente aquático, no entanto, esta estruturação pode estar relacionada ao grau de
dependência aos corpos d'água, e ao posicionamento das populações ao longo da rede de
drenagem (Hughes et al., 2009), de forma que espécies semiaquáticas podem utilizar caminhos
de dispersão alternativos e manterem populações conectadas em uma grande escala espacial
(Baguette et al., 2012).
A influência dos elementos da paisagem no fluxo gênico e estrutura genética das
populações deu origem a abordagem da genética da paisagem (Manel et al., 2003), utilizada em
muitos estudos para inferir sobre os padrões de dispersão e fluxo gênico a partir da correlação
entre a diferenciação genética e características da paisagem (Finn et al., 2007; Byrne et al.,
2015; Guerrero et al., 2015; Pagacz, 2016). Compreender o padrão de dispersão de uma espécie
é essencial para avaliar os efeitos da fragmentação do hábitat e impactos antrópicos na
manutenção a longo prazo das populações, assim como para analisar o potencial de
recolonização da espécie e definir estratégias efetivas de conservação (Baguette et al., 2012).
A lontra neotropical [Lontra longicaudis (Olfers,1818)] é um carnívoro semiaquático,
com ampla distribuição geográfica, que ocorre originalmente desde o México até o Uruguai
(Kruuk, 2006). Apesar de ser uma espécie de grande tolerância ecológica, capaz de suportar
modificações ambientais e ocorrer em locais próximos a cidades e aglomerações humanas
70
(Kruuk, 2006), devido às crescentes ameaças que afetam o ambiente aquático e terrestre onde
vivem, o seu status de conservação foi recentemente atualizado de insuficientemente conhecida
(DD – “data deficient”) para quase ameaçada (NT – “Near Threatened") (IUCN - União
Internacional para a Conservação da Natureza, 2015). A dependência da espécie aos ambientes
aquáticos e ripários está associada principalmente à obtenção de alimento, já que suas presas
mais frequentes são espécies aquáticas (Pardini, 1998; Rheingantz et al., 2012; Rheingantz et
al., 2017), e à construção das tocas e locais de descanso, normalmente próximos à agua e
associados à boa qualidade desses ambientes (Pardini & Trajano, 1999; Kasper et al., 2008).
Apesar da existência de uma rede de drenagem permanente e bem conectada ser
considerada um fator importante para o fluxo gênico entre populações de lontras (Janssens et
al., 2008; Guerrero et al., 2015), as lontras possuem boa capacidade de locomoção por terra.
Estudos com Lutra lutra comprovam que a espécie é capaz de se deslocar por vários
quilômetros terrestres entre poças ou bacias hidrográficas (Ruiz-Olmo & Jiménez, 2008),
inclusive mantendo o fluxo gênico contínuo entre bacias hidrográficas separadas por grandes
elevações (Pagacz, 2016). Em algumas regiões, no entanto, Lutra lutra e Lontra canadensis
apresentam populações espacialmente estruturadas (Latch et al., 2008; Honnen et al.. 2015;
Lehoczky et al.., 2015), o que indica que essa dispersão não ocorre de forma independente aos
elementos da paisagem.
A Lontra longicaudis apresenta grande capacidade de dispersão por água, com longos
deslocamentos e fluxo gênico frequente ao longo de bacias hidrográficas (Ortega et al, 2012).
Apesar de pouco se conhecer sobre a capacidade de dispersão terrestre da Lontra longicaudis, a
migração por terra entre bacias hidrográficas fica evidente para esta espécie pela falta de
estruturação genética encontrada em grandes regiões geográficas, como o sul e Sudeste do
Brasil (Trinca et al., 2007; Trinca et al., 2012), e a região que abrange a Amazônia, Peru e
Guianas, onde não se encontra evidência de estruturação por região ou bacia hidrográfica
(Trinca et al., 2012). Nestas regiões a similaridade genética não está relacionada à distância
geográfica, o que pode indicar a influência de características da paisagem na capacidade de
dispersão da espécie.
No México as populações de Lontra longicaudis se encontram espacialmente
estruturadas, indicando que áreas de baixa altitude e bem drenadas funcionam como corredores
facilitando a dispersão entre bacias hidrográficas, enquanto áreas mais elevadas e com escassez
de água podem funcionar como barreiras (Guerrero et al., 2015). A maior diferenciação
genética nessa região se encontra na população localizada mais ao norte do México, em uma
das regiões mais secas da área de distribuição da espécie, o que, além do maior isolamento,
também pode levar a evolução de adaptações (Guerrero et al., 2015). Diferenciações
71
morfológicas no crânio e mandíbula da Lontra longicaudis também foram observadas entre
regiões geográficas, principalmente em regiões limítrofes da sua distribuição no México e
Argentina (Hernández-Romero et al., 2015), corroborando o padrão de diferenciação genética
encontrado.
A falta de estruturação encontrada entre as populações de Lontra longicaudis em
algumas regiões brasileiras pode estar relacionada a lacunas amostrais. O Nordeste brasileiro,
que abrange o bioma Caatinga, uma das regiões mais secas na área de distribuição da Lontra
longicaudis, foi por muito tempo considerado como uma lacuna nos mapas de distribuição da
espécie (Larivière 1999, Kruuk 2006) e nunca foi significativamente amostrados em estudos
genéticos e taxonômicos (Harris, 1968; van Zyll de Jong, 1972; Trinca et al., 2012; Hernández-
Romero et al., 2015). Recentemente, em um estudo com maior abrangência amostral, Trinca et
al. (2012) identificou um padrão filogeográfico consistente que sugere a existência de pelo
menos quatro linhagens evolutivas para a Lontra longicaudis, corroborando parcialmente com a
divisão intraespecífica previamente proposta para a espécie: linhagem da Colômbia (L.
longicaudis annenctes), Bolívia, Amazônia (L. longicaudis enudris) e Leste da América do Sul
(ESA - East of South America; L. longicaudis longicaudis). Este estudo considerou duas
amostras provenientes de uma mesma região do nordeste brasileiro, e aponta para uma possível
hipótese de colonização da espécie a partir do Norte da América do Sul em direção ao Sul, com
base na posição do haplótipo único encontrado nessas amostras, que é o mais basal do grupo
ESA (Trinca et al., 2012). Esta hipótese é criticada por Feijó & Langguth (2013), que
defendem a possibilidade da existência de uma espécie distinta de lontra no nordeste brasileiro,
cuja área de distribuição seria ao norte do rio São Francisco.
Estudos para avaliar a diversidade genética, o padrão de dispersão e a conectividade das
populações de Lontra longicaudis ao longo da sua distribuição são considerados prioritários
para a conservação da espécie (Rheingantz et al., 2017), principalmente em regiões limites e
pouco amostradas da sua distribuição, como o nordeste do Brasil (Rodrigues et al., 2013).
Neste estudo nós analisamos a diversidade genética da população de lontras do nordeste
brasileiro ao norte do rio São Francisco, e avaliamos hipóteses alternativas de dispersão que
possam explicar o fluxo gênico na região, com o objetivo de analisar a influência relativa da
distância geográfica, e de características da paisagem, no padrão de diversidade encontrado.
Para isto foram analisados cinco cenários de dispersão: 1) distância euclidiana, cenário que
assume que a dispersão das lontras não depende de características da paisagem, sendo
influenciada exclusivamente pela distância; 2) bacias hidrográficas, cenário que considera o
número de microbacias adjacentes, representando um custo constante de dispersão entre bacias
para a espécie; 3) cenário de alta dependência aos corpos d'água, considerando a possibilidade
72
de dispersão pelo mar a um custo moderado e pela terra a um custo muito alto; 4) cenário de
dispersão preferencial ao longo dos corpos d'água, considerando possível a dispersão por terra a
um custo relativo à distância ao rio; 5) cenário de dispersão preferencial ao longo dos corpos
d'água, considerando possível a dispersão por terra a um custo relativo à declividade.
2. MATERIAL E MÉTODOS
Foram coletadas 34 amostras não invasivas (fezes frescas e muco) e 2 amostras de
tecido de Lontra longicaudis da região nordeste do Brasil ao norte do Rio São Francisco, entre
os estados de Alagoas e Piauí (Figura 1; Tabela 1). Isto resultou em um total de 36 amostras,
em uma região onde apenas 2 amostras de sangue de uma mesma localidade haviam sido
geneticamente analisadas (Trinca et al., 2012; Figura 1). Esta região abrange duas das eco-
regiões de água doce do mundo: a eco-região Parnaíba e a eco-região Bacias Costeiras e da
Caatinga Nordestina (Abell, 2008). A eco-região Parnaíba é constituída pelo rio Parnaíba e seus
afluentes, e se estende por todo o estado do Piauí, até a sua fronteira com o estado do
Maranhão, incluindo áreas do bioma Caatinga e uma pequena porção do Cerrado; a eco-região
Bacias Costeiras e da Caatinga Nordestina se estende entre os estados do Ceará e Alagoas,
abrangendo várias bacias hidrográficas pequenas inseridas nos biomas Floresta Atlântica e
Caatinga (Figura 1). Das 36 amostras, 31 foram coletadas ao longo de sete bacias hidrográficas
da eco-região das Bacias Costeiras, enquanto que apenas 5 foram coletadas em uma única bacia
da eco-região Parnaíba (Figura 1; Tabela 1). As amostras foram coletadas com luvas,
armazenadas em frascos de 50 ml contendo álcool 96%, e mantidas a temperatura de -20o até a
extração do DNA.
73
Figura 1: Área de estudo no nordeste do Brasil, ao norte do Rio São Francisco. No detalhe à esquerda: localidades com amostras de Lontra longicaudis geneticamente analisadas no estudo anterior de Trinca et al. (2012), com destaque para a área de estudo, onde apenas 2 amostras foram analisadas. No mapa central: amostras de fezes e tecidos de Lontra longicaudis coletadas neste estudo, com identificação dos haplótipos obtidos de acordo com o conjunto concatenado de amostras com os três segmentos amplificados (CR+ATP8+ND5). Neste conjunto foram consideradas as duas amostras da região nordeste analisadas por Trinca et al. (2012).
74
Tabela 1: Amostras de Lontra longicaudis coletadas durante o estudo, com indicação dos segmentos do DNA mitocondrial amplificados em cada uma. BCCN = Bacias Costeiras e da Caatinga Nordestina.
Segmentos
sequenciados
Amostra ID Material Região Hidrográfica
Bacia Hidrográfica Estado RC ATP8 ND5
L1 Tecido BCCN Jundiaí RN x x x PIUMML02 Muco BCCN Pium RN x x x PIUMML01 Muco BCCN Pium RN x x x PIUMFL13.2 Fezes BCCN Pium RN x x x PIUMFL13.1 Fezes BCCN Pium RN x x x PIUMFL1.1* Fezes BCCN Pium RN x x x PIUMFL22.1* Fezes BCCN Pium RN x x x PIUMFL7* Fezes BCCN Pium RN x x x CURIMATAUFL7 Fezes BCCN Curimatau RN x x CURIMATAUFL21 Fezes BCCN Curimatau RN x CAMARATUBAFL13 Fezes BCCN Camaratuba PB x x x CAMARATUBAFL2.1 Fezes BCCN Camaratuba PB x CAMARATUBAFL3 Fezes BCCN Camaratuba PB x x CAMARATUBATL1* Fezes BCCN Camaratuba PB x x CAMARATUBAFL16* Fezes BCCN Camaratuba PB x x CAMARATUBAFL5* Fezes BCCN Camaratuba PB x x MTRACFL5 Fezes BCCN Goiana PE x x x ATRACFL2 Muco BCCN Goiana PE x x x GOIANAFL4 Fezes BCCN Goiana PE x x GOIANAFL3* Fezes BCCN Goiana PE x GOIANAFL1* Fezes BCCN Goiana PE x x BUNAFL1 Fezes BCCN Una PE x x x BUNATL1* Fezes BCCN Una PE x L2 Tecido BCCN Coruripe AL x x x MCORFL1 Fezes BCCN Coruripe AL x x x MCORFL12* Fezes BCCN Coruripe AL x x ACORFL13 Fezes BCCN Coruripe AL x x x ACORFL7* Fezes BCCN Coruripe AL x x BCORPL6 Fezes BCCN Coruripe AL x x x BCORFL2 Fezes BCCN Coruripe AL x x BCORFL1* Fezes BCCN Coruripe AL x AURUÇUIFL6 Fezes Parnaíba Uruçuí-Preto PI x x x URUÇUIFL3 Fezes Parnaíba Uruçuí-Preto PI x x x URUÇUIPL2* Fezes Parnaíba Uruçuí-Preto PI x x x URUÇUIFL5* Fezes Parnaíba Uruçuí-Preto PI x x URUÇUIPL1* Fezes Parnaíba Uruçuí-Preto PI x x * Amostras que apresentam sequências iguais a de outras analisadas, sem evidência de representarem indivíduos distintos.
75
Extração do DNA e análises moleculares
O DNA fecal foi extraído usando o QIAamp DNA Stool Mini Kit® (Qiagen) de acordo
com as instruções do fabricante, com uma pequena modificação no tempo final de eluição de 1
para 20 min a temperatura ambiente (Trinca et al., 2013). A extração de DNA das duas
amostras de tecido, obtidas de animais encontrados mortos durante o trabalho de campo, foi
realizada através do QIAamp DNA Mini Kit® (Qiagen) de acordo com as instruções do
fabricante. Para evitar contaminação, todo o procedimento foi realizado em um laboratório
separado, dedicado exclusivamente à manipulação de amostras com baixa qualidade de DNA
(pele, pelos, fezes), em capela com luz ultravioleta e utilizando ponteiras com barreiras. Cada
lote de extração de DNA incluiu um controle negativo (apenas os reagentes) para monitorar
possíveis eventos de contaminação.
A fim de comparar as estimativas de diversidade genética da Lontra longicaudis obtidas
neste estudo com aquelas reportadas por Trinca et al. (2012) em estudo mais amplo sobre a
filogeografia da espécie, o mesmo conjunto de marcadores moleculares do DNA mitocondrial
foi selecionado, o qual inclui: 1) a porção 5’ da região controle (RC) (Tchaicka et al., 2007); 2)
um segmento incluindo o gene ATP8 e parte do gene ATP6 (Trigo et al., 2008); e 3) um
segmento do gene ND5 (Trigo et al., 2008).
Uma vez que o DNA recuperado a partir de amostras fecais tende a estar degradado,
tornando difícil a amplificação e sequenciamento de fragmentos longos, em alguns casos foram
utilizados os primers internos desenvolvidos para a RC (Trinca et al. 2007). Estes primers
subdividem o segmento-alvo em três fragmentos menores que se sobrepõem parcialmente,
aumentando o sucesso de amplificação e o rendimento do sequenciamento.
Todos os segmentos foram amplificados por PCR (Reação em Cadeia da Polimerase),
em reações de 20 μl contendo: 2 μl de DNA, Tampão de PCR 1x (Invitrogen), 2.0 – 2.5 mM
MgCl2, 200 μM dNTPs, 0.2 μM de cada primer, Triton 4%, e 0.5 unidades de Taq DNA
Polimerase Platinum (Invitrogen). As condições de PCR foram as mesmas para os três
segmentos: 94°C por 3 min, 5 ciclos (‘‘Touchdown’’) de 94°C por 45 s, 55–51°C por 45 s (-
1°C por ciclo), e 72°C por 1.5 min, os quais foram seguidos por 40 ciclos de 94°C por 45 s,
50°C por 45 s, 72°C por 1.5 min, e extensão final de 72°C por 30 min. Os produtos de PCR
foram visualizados em gel de agarose 1% com GelRed 10x (Biothium) e purificados usando-se
as enzimas Exonuclease I e FastAP. Os produtos purificados foram sequenciados em
sequenciador automático e as sequências resultantes serão depositadas no GenBank.
76
Análises das sequências
As sequências foram visualizadas e corrigidas manualmente usando o programa
FinchTV 1.4 (www.geospiza.com/Products/finchtv.shtml), e alinhadas com o algoritmo
CLUSTALW implementado no programa MEGA6 (Tamura et al., 2013).
Uma vez que amostras de fezes coletadas podiam ser representantes do mesmo
indivíduo, estas só foram definidas como pertencendo a indivíduos distintos quando as
sequências de DNA apresentaram polimorfismo. Esta avaliação foi realizada com base no
alinhamento das sequências obtidas para os três segmentos analisados. Considerando que
indivíduos de Lontra longicaudis podem se locomover por mais de 18 km ao longo do rio,
(Trinca et al., 2013), exceções foram feitas e sequências de DNA idênticas foram consideradas
como indivíduos distintos apenas quando a distância entre as amostras foi maior que 30 km, ou
quando duas amostras de composição distinta e com o mesmo tempo de deposição foram
encontradas juntas na mesma latrina, como um indicativo de animais andando juntos. Isto
resultou em um total de 21 amostras pertencentes a indivíduos distintos, dentre estes 15 com os
três segmentos de DNA mitocondrial amplificados (Tabela 1).
Adicionalmente ao conjunto de dados gerado a partir das amostras coletadas neste
estudo, as sequências de duas amostras de lontras da região metropolitana de Recife
(Pernambuco), geradas no estudo de Trinca et al. (2012) e depositadas no GenBank, foram
incluídas nas análises de diversidade genética. Estimativas de diversidade nucleotídica (S) e
haplotípica (h) foram obtidas usando os programas MEGA6, DnaSP v.5 (Librado & Rozas,
2009) e ARLEQUIN v.3.5 (Excoffier et al., 2010), para cada um dos segmentos de DNA
analisados, assim como para o conjunto concatenado dos segmentos ATP8+ND5, e o conjunto
concatenado de todos os segmentos (RC+ATP8+ND5). As diversidades genéticas obtidas para
estes dois conjuntos de segmentos concatenados foram comparadas com as diversidades
obtidas por Trinca et al. (2012) nas regiões Amazônica (AMZ) e Leste da América do Sul
(ESA). Para isto a região nordeste foi desconsiderada do grupo ESA, de forma que as
diversidades obtidas por Trinca et al. (2012) para este grupo foram recalculadas, excluindo-se
as duas amostras da região nordeste que já estão sendo consideradas neste estudo.
Com o objetivo de analisar relações filogenéticas e geográficas entre as amostras
obtidas na região nordeste, foi gerada uma rede de haplótipos no programa NETWORK v.5.0
(http://www.fluxus-engineering.com) através do método de median-joining (Bandelt et al.,
1999). Para esta análise foram considerados os haplótipos resultantes do conjunto concatenado
de todos os segmentos (RC+ ATP8+ND5). Testes específicos de estruturação populacional
dentro da região nordeste não foram possíveis devido a limitações de tamanho amostral para
algumas regiões. Como uma análise preliminar, a estrutura populacional foi analisada
77
assumindo-se três grandes unidades geográficas (Amazônia, Nordeste e grupo ESA). Como
medidas de diferenciação entre as populações, foi estimado o índice de fixação Fst (Wright,
1965) através da Análise de Variância Molecular (AMOVA) (Excoffier et al., 1992)
implementada no programa ARLEQUIN.
A divergência genética entre as sequencias de DNA mitocondrial das amostras
coletadas no nordeste brasileiro foi calculada pelo método Tamura Nei, no programa
ARLEQUIN v.3.5. Foi gerada uma matriz de distância genética entre todos os pares de
amostras nas quais os três segmentos do DNA foram amplificados. (N= 19; Tabela 1).
Cenários de dispersão
Para analisar a influência de características da paisagem no fluxo gênico e diversidade
genética encontrada na região, a distância genética entre cada par de amostra foi correlacionada
com os custos de dispersão derivados de cinco cenários, sendo dois cenários de distâncias
geográficas: Distância euclidiana e Custo de deslocamento entre bacias hidrográficas; e três de
resistência da paisagem: Alto custo de dispersão por terra, Custo de dispersão por terra relativo
à distância ao rio e Custo de dispersão por terra relativo à declividade (Tabela 2).
Os custos de dispersão são estimados com base na distância geográfica e em mapas de
superfícies de resistência, nos quais o valor atribuído a cada pixel corresponde à dificuldade ao
movimento (Adriaensen et al., 2003). As superfícies de resistência de três desses cenários
(água, dist_rio e decliv.) foram construídas a partir de uma imagem SRTM (Shuttle Radar
Topographic Mission), com resolução aproximada de 90 m, de todas as bacias que drenam para
o nordeste, considerando toda a área das bacias, desde suas nascentes até a foz. A partir desta
imagem a drenagem foi derivada com um limiar de 1000 células upstream, o que significa que
a drenagem só começava a ser gerada após uma área de acúmulo de fluxo de 1000 células a
montante. Após a derivação da drenagem foi realizada uma reamostragem para a resolução de
300 m cada pixel. Para garantir a conectividade ao longo de toda a drenagem, foi aplicada a
ferramenta EXPAND do ArcGis 10.1, com a expansão de uma célula sobre os cursos d'água.
O cenário "Água" representa uma situação de alta dependência ao ambiente aquático, que
considera possível a dispersão por terra, mas a um alto custo (10000), e a dispersão pelo mar a
um custo moderado (10), em relação ao baixo custo de dispersão ao longo do rio (1) (Tabela 2;
Figura 2a). O cenário "Dist_Rio" considera uma dispersão preferencial pelo rio, estando o custo
de se deslocar por terra associado à distância aos corpos d'água. Esse cenário foi gerado a partir
de uma superfície de distância euclidiana da drenagem que foi reclassificada para valores
inteiros, sendo que cada classe de distância ficou com 900 metros. À primeira classe, que
envolve o rio e seus primeiros 900 metros adjacentes, foi atribuído o valor 1, e a cada classe de
78
distância subsequente os valores até 9, acima de 9 todas as distância foram classificadas como
10 (Tabela 2; Figura 2b). O cenário "Decliv." representa uma situação em que a dispersão por
áreas planas é mais fácil que por áreas íngremes. Para isto foram criadas 48 classes de
declividade. O único procedimento para criação das classes foi o truncamento dos valores
decimais para números inteiros. A superfície de declividade foi gerada no ArcGis 10.1 com a
ferramenta SLOPE (Tabela 2; Figura 2c). No cenário "Dist_Bacias" o valor de resistência foi
equivalente ao número de microbacias entre cada par de amostra, como uma medida de
distância geográfica representando um custo constate de transposição de bacias para a espécie.
Para isto as microbacias foram definidas com um limiar de 10000 células a montante
(upstream). Finalmente, a distância geográfica euclidiana foi calculada pela menor distância em
linha reta entre cada par de amostra, considerando as coordenadas geográficas de cada uma.
Tabela 2: Descrição das superfícies de resistência geradas para os cinco cenários de dispersão analisados para a Lontra longicaudis no nordeste brasileiro.
Cenários de Dispersão Abreviação Valores de Resistência Descrição
Distância euclidiana Dist_Euclid Todos os pixel = 1 Dispersão independente das características da paisagem
Custo de deslocamento entre bacias hidrográficas Dist_Bacias Cada bacia= 1
Custo relacionado à transposição entre bacias hidrográficas
Alto custo de dispersão por terra Água Rio= 1; Mar= 10; Terra= 10000
Alto custo de dispersão por terra
Custo de dispersão por terra relativo à distância ao rio Dist_Rio
Rio e 900 m adjacentes= 1; a cada classe subsequente de 900 m mais 1 até 9; acima de 8.1 km= 10
Custo de dispersão por terra relacionado à distância ao rio
Custo de dispersão por terra relativo à declividade Decliv. 1 a 48 de acordo com a
declividade
Custo de dispersão por terra relacionado à declividade
79
Figura 2: Superfícies de resistência geradas para três cenários de dispersão da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro que consideram características da paisagem. A) Cenário Água; B) Cenário Declividade; C) Cenário Distância do Rio.
B
C
A
80
Para cada cenário de dispersão foi gerada uma matriz de distância ponderada por
valores de resistência para cada par de amostra. A resistência efetiva entre estas amostras foi
calculada pelo programa CircuitScape v. 4.0 (McRae, Shah & Mohapatra, 2014) em sua
interface no programa ArcGis 10.1. A metodologia do CircuitScape é baseada na teoria do
circuito elétrico, e considera os valores de resistência atribuídos aos elementos da paisagem
para calcular mapas de fluxo de corrente e voltagens ao longo de toda área amostrada (McRae,
2006). Dessa forma é possível calcular a resistência cumulativa da paisagem entre duas
amostras, considerando todos os caminhos possíveis entres estas duas localidades, e não apenas
o caminho de menor custo (LCP - Least Cost Path), o que confere uma melhor performance
desta metodologia em relação a metodologias padrão que analisam a influência da paisagem na
diversidade e estrutura genética das populações (McRae, 2006; McRae & Beier, 2007).
A correlação das distâncias genéticas entre amostras e os correspondentes custos de
dispersão dos cinco cenários, tanto de distância geográfica quanto de resistência da paisagem,
foi analisada por modelos de regressão múltipla em matrizes de distância (MRM) (Manly,1986;
Lichstein, 2007). Os MRMs representam uma extensão do teste de Mantel parcial
(frequentemente utilizado para analisar a correlação entre distâncias ambientais/geográficas e
genéticas), pois permitem a análise das relações entre mais de duas matrizes de distância,
permitindo uma melhor compreensão da importância relativa de cada cenário ou variável
ambiental analisada (Manly,1986; Lichstein, 2007). A diversidade genética de uma região pode
variar em resposta a vários fatores, de forma que é importante compreender, além do quanto a
distância genética está correlacionada com variáveis ambientais, como a distância genética
responde a essas múltiplas variáveis (Wang, 2013). MRMs têm mostrado um bom desempenho,
tanto com dados empíricos quanto simulados (Wang, 2013).
Foram construídos 16 modelos de regressão múltipla em matrizes, sendo um modelo para
cada um dos cincos cenários de dispersão de forma isolada, modelos formados por todas as
combinações possíveis de dois cenários e um modelo global contendo todos os cenários. Estes
modelos foram analisados com dois conjuntos de dados, sendo um o conjunto de toda as
amostras nos quais os três segmentos de DNA foram amplificados (N= 19), e outro o conjunto
apenas das amostras coletadas na região hidrográfica das Bacias costeiras e da Caatinga
nordestina (N= 16).
A seleção dos modelos candidatos foi feito através do Critério de Informação de Akaike
corrigido para pequenas amostras (AICc) (Burnham & Anderson, 2002). Os modelos que
apresentaram valores de ΔAICc ≤ 2 foram considerados bem ajustados aos dados. A
importância relativa de cada modelo, assim como de suas covariáveis, foi analisada pelo peso
de Akaike (wAICc). Apesar da seleção de modelos em MRMs ser criticada por Franckowiak et
81
al. (2017), as falhas no ranqueamento dos modelos com base no AICc observadas por estes
autores foram causadas provavelmente por grandes amostragens, e levaram à seleção
tendenciosa de modelos muito complexos (Franckowiak et al., 2017). Este não foi o caso deste
estudo, que obteve uma amostragem pequena (N=19) e onde os modelos mais complexos não
foram os melhor ranqueados. Todas as análises dos MRMs foram realizadas no programa R (R
Development Core Team, 2013).
Com o objetivo de identificar rotas menos custosas e inferir sobre as potenciais vias de
dispersão conectando bacias e regiões hidrográficas, para cada cenário de dispersão que
considerou a influência de elementos da paisagem foram calculados caminhos de menor custo
(LCPs) entre todos os pares de amostra, utilizando o programa Linkage Mapper v. 1.1.
3. RESULTADOS
Diversidade genética
Um total de 22 indivíduos de Lontra longicaudis, representativos de 7 haplótipos, foram
identificados de acordo com o segmento de 510 pb sequenciado da região controladora do
DNA (RC). O segmento ATP8 (329 pb), no entanto, foi obtido para 21 indivíduos,
representativos de apenas 2 haplótipos, apresentando a menor variabilidade haplotípica e
nucleotídica dentre todos os segmentos e conjuntos concatenados de segmentos analisados para
a região. A exceção do ATP8, todos os segmentos (isolados e concatenados) apresentaram
diversidade haplotípica de moderada a alta, e nucleotídica baixa (Tabela 3). O conjunto
concatenado dos três segmentos (CR+ATP8+ND5), utilizado para as análises filogeográficas
subsequentes, foi o que apresentou maior diversidade haplotípica, com 17 indivíduos,
representativos de 7 haplótipos (Tabela 3 e 4; Figura 1), dos quais 4 foram identificados pela
primeira vez neste estudo, sendo até o momento considerados haplótipos únicos da região
nordeste ao norte do rio São Francisco (Tabela 4).
Tabela 3: Diversidade estimada do DNA mitocondrial da Lontra longicaudis de acordo com os segmentos e conjunto de segmentos analisados. N: número de indivíduos; S: sítios polimórficos; PI: sítios informativos de parcimônia; π: diversidade nucleotídica; h: diversidade haplotípica.
Tabela 4: Indivíduos e haplótipos identificados de acordo com o conjunto concatenado dos três segmentos sequenciados (RC+ATP8+ND5), com indicação das bacias hidrográficas de ocorrência de cada haplótipo na região nordeste, e das regiões geográficas onde já foram identificados. NE: Nordeste; ESA: Leste da América do Sul.
Haplótipos Indivíduos Bacias Hidrográficas Região Geográfica**
Hap-01* PIUMML02, MTRACFL5, BUNAFL1, BLlo60a
Pium, Goiana, Una e Região metropolitana de Recife
Hap-06 URUÇUIFL3 Uruçuí-preto NE Hap-07* AURUÇUIFL6 Uruçuí-preto NE
* Haplótipos identificados pela primeira vez neste estudo; ** Dados de outras regiões retirados de Trinca et al., 2012. a Amostras analisadas por Trinca et al., 2012.
Figura 3: Rede de haplótipos da Lontra longicaudis encontrados na região nordeste do Brasil com base no conjunto concatenado dos três segmentos de DNA mitocondrial analisados (RC+ATP8+ND5, 1490 pb). Cada haplótipo é representado por um círculo, cuja a área é proporcional a sua frequência.
83
As pequenas barras que cortam os ramos indicam substituições nucleotídicas inferidas para cada linhagem. Hap-01, 03, 05 e 07 são haplótipos novos, registrados pela primeira vez neste estudo.
O haplótipo 4 foi o mais frequente na região, sendo encontrado tanto no limite norte
quanto no limite sul das bacias hidrográficas com amostras coletadas (Figuras 1 e 3), seguido
pelos haplótipos 1 e 3. Estes últimos, registrados pela primeira vez neste estudo, apresentam
pouca divergência em relação ao haplótipo 2 (Figura 3), encontrado em uma única amostrada
da região metropolitana de Recife (PE) analisada por Trinca et al. (2012), também restrito à
região nordeste ao norte do rio São Francisco. Os haplótipos 6 e 7, ambos encontrados em uma
bacia hidrográfica tributária do rio Parnaíba, no Piauí, foram os mais divergentes dentre os
haplótipos encontrados na região, principalmente o haplótipo 7, também registrado pela
primeira vez neste estudo. O haplótipo das bacias costeiras menos divergente em relação a este
foi o haplótipo 5, encontrado na bacia do rio Coruripe, próximo ao rio São Francisco, no limite
sul da área de estudo (Figura 3).
Em comparação com os dois grupos geográficos sugeridos por Trinca et al. (2012), a
região nordeste apresentou alta diversidade haplotípica, sendo esta mais baixa que a de região
Amazônica, mas muito similar a do grupo ESA (Tabela 5). O número de indivíduos amostrados
no grupo ESA, no entanto, foi quase o dobro do número de indivíduos do nordeste, o que indica
que uma maior amostragem na região poderia resultar em maior diversidade. Já a diversidade
nucleotídica da Lontra longicaudis foi no geral baixa, mas mais alta no nordeste do que no
grupo ESA (Tabela 5).
Tabela 5: Diversidade nucleotídica (π) e haplotípica (h) dos conjuntos concatenados de segmentos do DNA mitocondrial da Lontra longicaudis no Nordeste brasileiro (NE), em comparação com os dois grupos geográficos sugeridos por Trinca et al. (2012): Leste da América do Sul (ESA) e Amazônia.
Total 65 0.008217 ± 0.004171 0.9678 ± 0.0104 * Diversidades recalculadas a partir dos dados de Trinca et al. (2012), desconsiderando as duas amostras do NE, que neste estudo estão sendo analisadas no grupo da devida região. ** Diversidades calculadas por Trinca et al. (2012).
A análise preliminar de estrutura populacional entre estes três grupos geográficos (NE,
ESA e Amazônia) indicou uma pequena, mas significativa, diferença entre essas regiões. O
84
grupo do NE apresentou maior diferença em relação aos grupos ESA (Fst= 0.1188; p= 0.000) e
da Amazônia (Fst = 0.1031; p= 0.000), do que os grupos ESA e da Amazônia entre si (Fst =
0.0422; p= 0.009).
Modelos de dispersão
Os dois modelos de dispersão que melhor se ajustaram às diferenciações genéticas
observadas entre as amostras analisadas na região nordeste incluíram o cenário Água
(coeficiente padronizado= 0.89840) e Declividade (coeficiente padronizado= -0.13989), e o
cenário Água (coeficiente padronizado= 0.90249) e Dist_Rio (coeficiente padronizado=
-0.14008) (Tabela 6; Figura 4). Os dois modelos selecionados (ΔAICc < 2) retiveram 85 % da
informação de todos modelos submetidos ao processo de seleção. O cenário Água esteve
presente entre todos os melhores modelos ranqueados.
Tabela 6: Ranqueamento dos 16 modelos construídos para analisar a diferenciação genética entre todas as amostras de Lontra longicaudis analisadas no nordeste Brasileiro, em relação a cinco cenários de dispersão. AICc: critério de informação de Akaike para amostras reduzidas; ΔAICc: diferença no AICc de um modelo e o melhor modelo ranqueado; wAIC: peso de Akaike; wAICcum: peso de Akaike cumulatvo.
Figura 4: Resultados parciais dos dois melhores modelos ranqueados para explicar a diferenciação genética entre as amostras de Lontra longicaudis da região nordeste do Brasil. A) modelo Água + Declividade; B) modelo Água + Dist_Rio. Os pontos pretos indicam pares de amostras das duas regiões amostradas (bacias costeiras e Parnaíba), enquanto os brancos indicam pares de amostras de uma mesma região. Quando consideradas apenas as bacias costeiras, o modelo Água (coeficiente padronizado=
-0.38270) e Dist_Bacias (coeficiente padronizado= 0.52375) foi o mais importante (wAIC= 0.34),
seguido pelo modelo Água (coeficiente padronizado= -0.35426) e Dist_Euclid (coeficiente
padronizado= 0.48959), que reteve 18% da informação de todos modelos submetidos ao processo
de seleção (wAIC= 0.18), (Tabela 7; Figura 5).
Declividade (parcial)
86
Tabela 7: Ranqueamento dos 16 modelos construídos para analisar a diferenciação genética entre as amostras de Lontra longicaudis das bacias costeiras do nordeste Brasileiro em relação a cinco cenários de dispersão. AICc: critério de informação de Akaike para amostras reduzidas; ΔAICc: diferença no AICc de um modelo e o melhor modelo ranqueado; wAIC: peso de Akaike; wAICcum: peso de Akaike cumulatvo.
Figura 5: Resultados parciais dos dois melhores modelos ranqueados para explicar a diferenciação genética entre as amostras de Lontra longicaudis das bacias costeiras do nordeste brasileiro. A) modelo Água + Dist_Bacias; B) modelo Água + Dist_Euclid.
As superfícies de resistência efetiva geradas indicam alta condutância entres as bacias
hidrográficas costeiras, com um aumento da resistência em direção ao norte, e à divisão entre
as duas regiões hidrográficas amostradas (Bacias costeiras e Parnaíba) (Figura 6). O rio São
Francisco apresenta uma resistência à dispersão de baixa a moderada de acordo com os três
cenários gerados. Esta bacia hidrográfica se destaca como uma das principais vias estimadas de
conexão entre as duas regiões hidrográficas estudadas (Figura 7), sendo possível identificar a
via menos custosa de transposição entre essas regiões (Figura 7A).
88
A B
C
Figura 6: Superfícies estimadas de resistência efetiva da paisagem à dispersão da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro de acordo com os cenários Água (A); Declividade (B); Distância ao rio (C).
89
A
Figura 7: Caminhos de menor custo (LCPs) entre as amostras de Lontra logicaudis no nordeste brasileiro de acordo com os cenários: Água (A); Declividade (B) e Distância ao Rio (C)
B
C
90
4. DISCUSSÃO
Diversidade genética
Este foi o primeiro estudo a analisar a diversidade genética da Lontra longicaudis no
nordeste brasileiro. O registro de quatro haplótipos novos, nunca anteriormente descritos,
ressalta a amostragem insuficiente dessa região em estudos prévios.
As amostras analisadas no nordeste do Brasil apresentaram diversidade genética mais
baixa na região controladora (RC) do DNA mitocondrial (h= 0.697) em relação à observada
no sul e sudeste do Brasil (h= 0.8188; Trinca et al., 2007; Trinca et al., 2012), e na Amazônia
(h= 0.9487; Trinca et al., 2012), sendo mais similar à diversidade encontrada para a espécie
no México (h= 0.7620; Guerrero et al., 2015). O México, assim como o nordeste brasileiro,
abrange regiões mais secas da área de distribuição da Lontra longicaudis, o que pode refletir
em um menor tamanho populacional ou maior isolamento de suas populações, gerando menor
diversidade. O segmento ATP8 também apresentou variabilidade mais baixa na região
estudada, com apenas 2 sequencias polimórficas em 21 indivíduos, enquanto Trinca et al.
(2012) registraram 15 sequencias polimórficas deste segmento em 52 indivíduos das regiões
Sul, Sudeste e Amazônia. Este segmento, no entanto, foi considerado o menos variável para
as regiões estudadas por Trinca et al (2012), padrão também observado em outros carnívoros
(Trigo et al., 2008; Trinca et al., 2012). Quando comparado o conjunto concatenado dos três
segmentos analisados, a diversidade haplotípica do nordeste se apresenta mais alta,
semelhante a observada nos grupos ESA e Amazônia (Tabela 5), o que indica um alto poder
informativo do segmento ND5, também observado por Trinca et al. (2012).
Apesar da alta variabilidade haplotípica apresentada pela Lontra longicaudis em várias
regiões, a espécie apresenta baixa variabilidade nucleotídica (Trinca et al., 2007; Trinca et al.,
2012; Guerrero et al., 2015). Este padrão, também observado para outras espécies do gênero,
como a Lontra provocax (Centrón et al., 2008) e Lontra felina (Viana et al., 2010), foi
observado para todos os segmentos e conjuntos concatenados de segmentos analisados neste
estudo. Apesar de baixa, a variabilidade nucleotídica observada no nordeste brasileiro foi
maior que a observada para o gruo ESA, o que pode indicar uma população mais antiga de
Lontra longicaudis na região nordeste. Isto suporta a hipótese de uma colonização recente da
espécie a partir do norte da América do Sul, em direção ao sul (Trinca et al., 2012). Não
existem evidências, no entanto, da conexão atual dessas populações pelo região nordeste,
cujas amostras analisadas apresentam diferenças genéticas significativas em relação aos
grupos ESA e Amazônia. De acordo com a análise de estruturação populacional entre os três
91
grandes grupos geográficos (NE, ESA e Amazônia), as populações de lontra do grupo ESA e
Amazônia apresentam menos divergência genética entre si do que entre as amostras do
Nordeste brasileiro, o que indica um menor fluxo gênico para esta região.
A distribuição geográfica da Lontra longicaudis no nordeste brasileiro apresenta-se
interrompida na porção norte desta região, onde estão localizadas as bacias hidrográficas
totalmente inseridas no bioma Caatinga (Rosas-Ribeiro et al., 2017). Estas bacias sofrem
maior influência do clima semiárido, estando sujeitas a maior sazonalidade na disponibilidade
de água, o que influência negativamente a ocorrência da espécie (Capítulo II) e pode
representar uma barreira climática por onde o fluxo gênico está interrompido há mais tempo.
A maior diferenciação genética entre as amostras do nordeste do Brasil foi observada nas
amostras coletadas na região hidrográfica do Parnaíba, no sul do estado do Piauí,
geograficamente acima da lacuna na distribuição da espécie reportada por Rosas-Ribeiro et al.
(2017). A existência de redes de drenagem permanentes e bem conectadas tem sido
considerada como um fator importante para a manutenção do fluxo gênico entre populações
de várias espécies da família Lutrina (Janssens et al., 2008; Guerrero et al., 2015, Lehoczky et
al., 2015).
Modelos de dispersão
O cenário Água, que atribui um custo muito elevado para a dispersão por terra, foi o
que apresentou relação mais forte com a divergência genética observada entre as amostras da
região nordeste, associado aos cenários Declividade e Distância do Rio. Estes dois últimos,
embora apareçam nos melhores modelos ranqueados, contribuem muito pouco para explicar a
variação nos dados e apresentam parciais não significativos. Isto indica que as lontras do
nordeste brasileiro apresentam grande dependência aos cursos d'água, sendo capazes de se
locomover por terra, mas em situações extremas. O custo de dispersão relacionado à distância
ao rio foi o cenário mais correlacionado com a divergência genética entre indivíduos de Lutra
lutra na Polônia e Eslováquia, onde a espécie apresentou grande capacidade de locomoção
por terra, inclusive entre bacias hidrográficas separadas por grandes elevações (Pagacz, 2016).
Pouco se conhece, no entanto, sobre a frequência desse tipo de dispersão, que pode variar de
acordo com características ambientais e abundância populacional da espécie (Kruuk, 2006). A
área estudada por Pagacz (2016) possui baixa densidade populacional humana e uma densa
rede de drenagem permanente, enquanto que a maior parte do nordeste brasileiro está inserida
na Caatinga, uma das regiões semiáridas mais populosas do mundo, que abriga uma extensa
rede de rios intermitente. No sul da França a declividade das montanhas divisoras de bacias
92
hidrográficas apresentou correlação positiva com a divergência genética entre os indivíduos
de Lutra lutra, indicando que áreas mais elevadas e com escassez de água podem funcionar
como barreiras à dispersão (Janssens, 2008), o que também foi observado para a Lontra
longicaudis no México (Guerrero et al., 2015).
Quando consideramos apenas as bacias costeiras da região nordeste, a divergência
genética entre as amostras de Lontra longicaudis se torna mais correlacionada às distâncias
geográficas (euclidiana e número de bacias por trecho) do que aos elementos da paisagem.
Isto pode ser resultado de uma paisagem mais homogênea, associada ao fato de que nas
regiões costeiras os cursos baixos das bacias hidrográficas são áreas com presença de
estuários, lagos e lagunas, mais suscetíveis a se tornarem alagadas, favorecendo o fluxo
gênico contínuo entre bacias. As amostras dessa região são menos divergentes entre si,
principalmente os haplótipos restritos ao nordeste, que foram encontrados em bacias entre os
estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte, onde existem vários grupos de pequenas
drenagens de escoamento difuso entre as desembocaduras dos rios maiores (SEMARH-RN,
2017; SRHE-PE, 2017). Dessa forma, a paisagem impõe menos resistência à dispersão por
animais semiaquáticos, e observa-se uma maior correlação entre a divergência genética e
distâncias geográficas.
A maior homogeneidade da paisagem nas bacias costeiras também fica evidente pela
maior opção de caminhos de menor custo entre as amostras desta região, em relação às poucas
vias de menor custo de dispersão que conectam as bacias costeira com as amostras do rio
Parnaíba. Dentre estas poucas opções, o rio São Francisco aparece em todos os cenários,
fazendo parte da única rota apresentada no cenário Água, que, como o mais correlacionado
com a distância genética, indica o caminho menos custoso de transposição entre as duas
regiões hidrográficas. O haplótipo das bacias costeiras menos divergente em relação aos
haplótipos da região do Parnaíba é o Hap-05 encontrado na bacia hidrográfica do rio
Coruripe, adjacente à bacia do rio São Francisco, o que destaca esta bacia como a principal
via de fluxo gênico entre as bacias costeiras do nordeste e as demais regiões geográficas,
ressaltando a importância da sua conservação, para a manutenção da diversidade genética da
Lontra longicaudis no nordeste brasileiro.
Este estudo preencheu uma lacuna importante sobre o conhecimento genético da
Lontra longicaudis no nordeste brasileiro, fornecendo subsídios para análises filogeográficas
mais amplas e para a conservação da espécie na região. Estudos futuros que englobem a
região do nordeste ao sul do rio São Francisco são recomendados para uma melhor
compreensão da estruturação populacional e história demográfica desta espécie.
93
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abell, R., M.L. Thieme, C. Revenga, M. Bryer, M. Kottelat, N. Bogutskaya et al. 2008.
Freshwater Ecoregions of the World: a new map of biogeographic units for freshwater