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1. A INVENO DA FOTOGRAFIA: REPERCUSSES SOCIAIS
Annateresa Fabris
Pensar a fotografia em suas mltiplas relaes com a socie-dade
oitocentista implica, como primeira operao crtica, analis-la luz
das especificidades das "imagens de consumo", daquelas imagens
impressas e multiplicadas, que constituem o esteio da co-municao e
da informao visual desde a Idade Mdia e que de-terminam a
visualidade prpria da era pr-fotogrfica.
Dos trs momentos da histria das imagens de consumo ante-riores
ao advento da fotografia - idade da madeira (sculo XIII), idade do
metal (sculo XV), idade da pedra (sculo XIX), corres-pondentes
respectivamente s tcnicas da xj)ogravura, da gua-forte e da
litografia 1 - , s reteremos o terceiro, pois as razes do consu-mo
fotogrfico j esto presentes naquele litogrfico, que responde
1. A. Gilardi, Storia Sociale dei/a Fotografia, Milano,
1976.
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a uma srie de demandas e exigncias geradas pela Revoluo
Industrial.
No processo litogrfico, descoberto em 1797 por Alois
Sene-felder, o desenho original e o desenho impresso so
praticamente idnticos. No mais preciso retocar, traduzir o primeiro
num ou-tro meio expressivo, o que liberta o artista da constrio do
esque-ma linear. O desaparecimento do gravador de interpretao
acompanhado pelo aparecimento simultneo da informao visual de
primeira mo. Se acrescentarmos a isto fatores como facilidade de
execuo, baixo custo dos equipamentos, recuperao das pran-chas,
arquivamento do desenho no papel, compreenderemos o al-cance da
revoluo litogrfica.
Se lembrarmos que, no sculo XIX, uma parcela considervel da
populao analfabeta, enquanto se torna cada vez maior a ne-cessidade
de informao visual - ampliada para a propaganda pol-tica e para a
publicidade comercial - concordaremos com Ivins, quando este afirma
que, naquele momento, a imagem impressa al-cana a maioridade, no
apenas numericamente, mas por sua desti-nao difusa e
indiferenciada2
O processo de produo industrial determinante para esta
maioridade, na medida em que estabelece uma diferena crescente
entre as modalidades e os ritmos de produo da imagem e aqueles dos
bens materiais. Face a uma demanda cada vez maior, a pro-duo de
imagens v-se obrigada a pautar-se por novos requisitos: exatido,
rapidez de execuo, baixo custo, reprodutibilidade.
Se a litografia representa um ponto culminante na definio de um
novo estatuto da imagem, precedida pelo retrato em minia-tura, pela
silhueta, pelo fisionotrao - os dois ltimos proporcio-nam rapidez
de execuo, preo mdico, produo em srie - , no se pode esquecer que
tambm as pesquisas qumicas tentam forne-cer solues capazes de
satisfazer o novo consumo icnico. Desde fins do sculo XVIII so
feitas vrias experincias na Frana e na
2. W. M. lvins Jr., lnragen lmpresa y Conocinriento, Barcelona,
1975, p. 135. 12
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Inglaterra para obter superfcies sensveis luz e para fixar as
ima-gens, graas ao emprego de sais de prata. Esses processos,
associa-dos cmara escura, lanam as bases do princpio da
fotografia.
O fato de cientistas como Charles e Davy terem conseguido fixar
apenas temporariamente as imagens e, assim mesmo, no te-rem levado
adiante suas pesquisas e de a soluo do problema ser encontrada por
artistas como Niepce e Daguerre apenas aparen-temente paradoxal, se
levarmos em conta os argumentos de Rouill. Enquanto artistas -
pintor de cenrios/inventor do dio-rama e litgrafo, respectivamente
- , Daguerre e Niepce so con-frontados diariamente com a crescente
demanda social de imagens, sentem a inadequao dos modos de produo
tradicionais e a elas tentam responder, dando incio a uma srie de
experincias que culminaro na daguerreotipia. Ao argumento de Rouill
pode er acrescentado o de Virilio, que no se interessa tanto pelo
Daguerre pintor de cenrios, mas pelo "iluminador", pelo
"manipulador das intensidades e projees luminosas, esta introduo
numa arquite-tura da imagem de um tempo e de um movimento
absolutamente realistas e totalmente ilusrios"3, j prximo da
dialtica da foto-grafia.
O sucesso do daguerretipo pode ser explicado por aqueles fatores
que expusemos de incio. Proporciona uma representao precisa e fiel
da realidade, retirando da imagem a hipoteca da sub-jetividade; a
imagem, alm de ser ntida e detalhada, forma-se ra-pidamente; o
procedimento simples, acessvel a todos, permitindo uma ampla
difuso.
Rouill analisa o entusiasmo despertado pelo daguerretipo em
termos de lgica industrial. O procedimento permite a decom-posio e
a racionalizao da produo das imagens numa srie de operaes tcnicas
ordenadas, sucessivas, obrigatrias e simples. O ato quase mstico e
totalizador da criao manual da imagem cede
3. A. Rouill, L'empire de la plwtographie, Paris, 1982, pp.
34-35; P. Virilio, La machine de 1isio11, Pa-ris, 1988, p. 93.
Sobre a dagucrrcotipia, vide H. Gcmshcim, Historia Grfica dela
Fotografia, Darce-lona, 1967, pp. ZG-26; J. - A. Kcim, Histoire de
la photograplue, Pans, 1970, pp. 9-15.
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lugar a uma suce o de gesto mecnico e qumicos parcelados. O
fotgrafo no o autor de um trabalho minucioso, e sim o especta-dor
da "apario autnoma e mgica de uma imagem qumica"4
No importa que o daguerretipo seja um unicum como as tcnicas
tradicionais da pintura e da miniatura. Seu poder de se-duo est na
fidelidade da imagem e no preo relativamente m-dico, que lhe
permitem entrar em concorrncia com os retratos fei-tos mo. Embora
no consiga atingir todas as camadas sociai., o estabelecimento de
um ateli de daguerreotipia no muito caro, como testemunha Alophe: o
material reduzido e barato, a amor-tizao do capital rpida em
virtude da demanda crescente. su-ficiente uma centena de francos,
rapidamente recuperados, face ao custo de um retrato - entre cinco
e vinte francos de acordo com a dimenso da chapa5
O anncio da de coberta de Daguerre prontamente seguido pelos
anncios de outros inventores que afirmam ter conseguido criar
imagens graas ao da luz. Entre esses, destacam- e as pes-quisas de
Hyppolite Bayard e de William Henry Fox Talbot, que con-seguem
produzir cpias sobre papel. O procedimento de Talbot -uma imagem
latente que, tran formada em negativo, gera um prot-tipo passvel de
reproduo - no chega a rivalizar com o daguerre-tipo por razes
tcnicas, que se confundem com raze ociai .
Tecnicamente, o caltipo no oferece a me ma nitidez de re-produo
(os contornos no so bem definidos) e a mesma rapidez de produo do
daguerretipo, o que faz pa ar para um segundo plano a possibilidade
de multiplicao da imagem. Apesar desses empeci-lhos, o caltipo traz
em si a possibilidade de interpretao do real: sua sintaxe, feita da
justapo io de zonas claras e zonas escuras, permitiria ao olho
elecionar os ponto obre o quai e fixar, ao con-trrio dos valores
lineares do daguerretipo que determinavam um trajeto praticamente
fixo, mas s poucos se do conta de e fato6
4. Rouill~. pp. 38-39. 5. Idem, p. 40. 6. Sobre Talbot, vide
Gcrnshcim, pp. 28-31; Keim, pp. 15-18. Vide tambm M. 1iraglia,
"L'Et dei
Collodio", in: Fotografia Italiana dell'Ottoce11to, Milano,
1979, p. 41. 14
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O daguerretipo mantm ua primazia at o ano 50. a d-cada eguinte,
perde progre ivamente terreno para a fotografia obre papel, capaz
de ati fazer nece idade de uma difu o capi-
lar da imagen de con umo. Legro muito claro obre a vanta-gen do
novo suporte, quando afirma: " ela capaz de dar ao in-finito e ta
infinidade de prova que a nece idade de no a poca reclamam imperio
amente".
Mayer e Pier on o tambm repre entativo de ta linha de pen amento
e no he itam em e crever: "a civilizao de no a poca e t meno na
perfeio do produto do que em ua vulgari-zao; a obra de arte, hoje,
deve chegar a todos para revelar-lhes o entido do belo". A
ideologia da vulgarizao, da difu o da ima-
gem em larga ercala um do e teio do pen amento liberal ento
dominante, mas re ponde tambm a exigncias econmica. , repre-entando
a pa agem de um mercado re trito a um mercado de
ma sa7
A e a nece idade, to enfatizada pelo contemporneo , re ponde um
novo vetor de pe qui a , que culmina no proce o do coldio mido,
divulgado por Frederick Scott Archer em 1851. O coldio mido permite
obter um negativo de qualidade, mai ntido do que o caltipo e
igualmente reprodutvel, e to preci o e deta-lhado quanto a imagem
daguerreotpica. O tempo de expo io o -cilava entre vinte egundo e
um minuto para as pai agens e o mo-tivo arquitetnicos, e entre dois
e vinte egundo para o retrato pequeno.
Se um fundo preto fo e colocado atr do vidro expo to e obteria
diretamente uma imagem po itiva e duradoura, o ambrti-po, tambm
conhecido como "daguerretipo do pobre". O preo mdico explicava- e
pela qualidade inferior da imagem que conhe-ce, entretanto, um
grande suce o.
O proce o do coldio mido ainda ba tante complicado: a placa
deveria er preparada imediatamente ante da fotografia e revelada
logo em eguida na cmara e cura; toda a operae no
7. Rouillt! , pp. 48, 44-45. 16
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poderiam durar mais do que quinze minutos, mas isto no impede o
declnio contnuo da daguerreotipia. Os aperfeioamentos propos-tos
para o processo acabam por levar pelcula de rolo de George Eastman,
passando pelas pesadas chapas de gelatina-bromuro de Burgess,
Kennett e Bennett, pela pelcula cortada de celulide de Carbutt,
pela pelcula de nitrocelulose de Goodwin8
Se foram determinados trs momentos fundamentais para o
aperfeioamento dos processos fotogrficos - primeiras experin-cias,
coldio mido, gelatina-bromuro - que levaro, em 1895, inveno da
primeira cmara porttil, carregvel e descarregvel em plena luz, so
igualmente trs as etapas nucleares da complexa relao da fotografia
com a sociedade do sculo XIX.
A primeira etapa estende-se de 1839 aos anos 50, quando o
interesse pela fotografia se restringe a um pequeno nmero de
amadores, provenientes das classes abastadas, que podem pagar os
altos preos cobrados pelos artistas fotgrafos (Nadar, Carjat, Le
Gray, por exemplo). O segundo momento corresponde descoberta do
carto de visita fotogrfico (carte-de-visite plwtographique) por
Disdri, que coloca ao alcance de muitos o que at aquele momen-to
fora apangio de poucos e confere fotografia uma verdadeira dimenso
industrial, quer pelo barateamento do produto, quer pela vulgarizao
dos cones fotogrficos em vrios sentidos (1854). Por volta de 1880,
tem incio a terceira etapa: o momento da massifi-cao, quando a
fotografia se torna um fenmeno prevalentemente comercial, sem
deixar de lado sua pretenso a ser considerada arte. Para
diferenciar-se da fotografia corriqueira, a fotografia artstica no
hesita em renegar as especificidades do meio, lanando mo de uma
srie de tcnicas como a goma bicromatada e o bromleo, que garantem
resultados semelhantes ao pastel e gua-forte.
Se Nadar, Carjat, Le Gray, Hill, Adamson e Julia Cameron so
exemplos do fotgrafo como artista, atento captao da inte-
8. Sobre o coldio mido e a gelatina-bromuro, vide Gcmshcim, pp.
33-36; Kcim, pp. 34-36, 55-58.
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Di~ri. R~trato da Rainha, 1861.
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Julia Cameron, Retrato de John H erscMI,
1867.
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rioridade do modelo, muitas vezes prximo de resultados
pictricos, Disdri representa, ao contrrio, o prottipo do fotgrafo
indus-trial, disposto a usar todos os truques a seu alcance para
adular e seduzir a clientela. A relao pessoal fotgrafo/fotografado,
que est na base das obras dos artistas fotgrafos, substituda pela
re-lao puramente mecnica entre o homem e a mquina instaurada ,~ por
Disdri.
Uma vez que o formato encarecia o preo das fotografias, Disdri
tem a idia de produzir imagens menores, 6x9, que permi-tiam a
tomada simultnea de oito clichs numa mesma chapa. Uma dzia de
cartes de visita custava vinte francos, enquanto um retra-to
convencional no saa por menos de cinqenta ou cem francos. Disdri
patenteia logo seu invento, abre o maior estabelecimento da Europa,
comea a lanar sries fotogrficas no mercado, entre as quais a dos
contemporneos clebres.
O carto de visita supre a "ausncia de retrato" nas classes menos
favorecidas, mas sua difuso capilar a alta burguesia ope uma srie
de estratgias de diferenciao, negadoras da multiplici-dade. Alm de
dirigir-se aos artistas fotgrafos, a elite social conti-nua a
privilegiar o daguerretipo at a dcada de 60 e passa a pre-ferir em
seguida a fotografia pintada, que garante "a fidelidade da
fotografia" e "a inteligncia do artista", como afirma uma revista
contempornea.
Em busca de um esquema que se adapte s condies econmicas e aos
critrios de gosto de sua clientela, Disdri estabe-lece as
qualidades da boa fotografia de acordo ,com o seguinte pro-grama:
fisionomia agradvel, nitidez geral, sombras, meios-tons e . claros
acentuados, propores naturais, detalhes em preto, beleza9 Pauta
ainda suas imagens pela pintura em voga. Aspira compor quadros de
gnero, cenas histricas, a partir de modelos como Scheffer, Ingres,
Delaroche, alinhando-se ao ecletismo vigente.
Ao contrrio das primeiras fotografias que se concentravam no
rosto, Disdri fotografa o cliente de corpo inteiro e o cerca de
9. G. Frcund, Photographic et socit, Paris, 1974, pp. 67-68.
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artifcio teatrais que definem eu status, longe do indivduo e
perto da mscara social, numa pardia da auto-representao em que se
fundem o realismo essencial da fotografia e a idealizao
intelec-tual do modelo10 por isso que no hesita em embelezar o
cliente, aplicando a tcnica do retoque. O "agradvel", ameaado pela
exa-tido da fotografia, torna-se o grande trunfo do fotgrafo
industrial, que pode fornecer clientela sua imagem "num espelho"
... com-placente.
Seguindo o exemplo de Disdri, os atelis fotogrficos passam a
adotar aparatos teatrais: teles pintados com decoraes exticas e
barroquizantes, colunas, mesas, cadeiras, poltronas, trips,
tape-tes, peles, flores, panejamentos, para criar imagens de
opulncia e de dignidade.
O truque, porm, no consegue disfarar as diferenas sociais. O
pobre travestido de rico no e caracteriza apenas por uma pose
demasiado rgida. Trai seu acanhamento na timidez com que se
lo-caliza num ambiente estranho e nas roupas que no lhe servem,
muito justas ou muito largas, corroborando a informao de Carlos
Lemos de que havia fotgrafos que forneciam a seus clientes veste
descosturadas nas costas para que se ajustassem a todo tipo de
ta-lhe11.
No apenas o aparato cenogrfico que caracteriza o retrato do
fotgrafo industrial. A princpio por razes tcnicas - ditadas tanto
pelos longos tempo de exposio, que no faziam aparecer os olhos do
fotografado ou os tornavam pequenos demais, quanto por falhas do
novo invento, como a ausncia de cor, que poderiam colocar em xeque
sua pretenso verossimilhana - e mais tarde para adular a clientela,
a fotografia submetida a operaes de re-toque a lpis e, quando neces
rio, com carmim, grafite e esfumi-nho, e de colorao com leo,
aquarela e anilina. No caso do da-guerretipo, tais operae eram indi
pensveis para que a imagem se tornasse visvel, e ele acaba sendo
constitudo por trs elemen-
10. R. Gubcrn, Mensajes Icnicos en la Cul111ra de Masas,
Barcelona, 1974, p. 35. 11. C. Lemos, "Ambientao Ilusria", in: C.
E. Marcondes de Moura (Org.), Retratos Quase Inocen-
tes, So Paulo, 1983, pp. 58-59.
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tos: uma chapa de metal, na qual era registrada a efgie; um
vidro, muito fino onde ocorriam as operaes de retoque e colorao; um
vidro mais resistente que servia de protetor ao conjunto.
Retoque e colorao so freqentemente realizados por mi-niaturistas
e pintores de segunda linha, que recebem as infor-maes necessrias
do fotgrafo. Ao fotografar o cliente, o profis-sional toma uma srie
de informaes complementares - cor da pele, dos olhos, dos cabelos -
a partir das quais sero executadas as tarefas finalizadoras da
imagem.
O uso de tais artifcios no sempre bem aceito em termos crticos.
Um jornal de Npoles, por exemplo, j em 1851 aventa a hiptese de que
colorao e retoque possam ser "prteses" a dis-fararem a inabilidade
do fotgrafo e a alterarem o registro realis-ta. Opondo o "trabalho
da mo" "criao a partir do real", o jor-nal enfatiza o interesse dos
artistas por imagens fotogrficas diretas, mesmo se imperfeitas, e
seu desprezo pelas "obras-primas arabes-cadas"12.
Na dcada de 80, o uso do retoque e da colorao torna-se uma
prtica cada vez mais corrente, pois o fotgrafo deve enfrentar a
concorrncia crescente dos amadores. A interveno artesanal, manual,
torna-se o toque distintivo do fotgrafo profissional, o algo a mais
que ele pode oferecer quelas camadas da sociedade em condies de
auto-representao pela difuso das cmaras port-teis.
A transformao da fotografia em fenmeno de massa altera
radicalmente as concepes vigentes. A "gra.1de fotografia" e seus
es-quemas pictricos so rapidamente marginalizados diante de um
no-vo conceito de "qualidade", indissoluvelmente ligado
"quantidade". Cada vez mais a fotografia se distancia da esfera do
unicum, de preo-cupaes estticas alheias a seu cdigo, apesar da
persistncia da ver-tente pictrica, abrindo-se a novas
possibilidades, como a ilustrao de jornais e revistas, que comea a
delinear-se no final do sculo.
12. Apud M. Picone Petrusa, "Linguaggio Fotografico e 'Generi
Pittorici" ', in: lmmagi11e e Ciu, Na-poli, 1981, p. 57, nota 74.
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Se, at os anos 80, havia uma distino entre fotgrafos ama-dores,
fotgrafos profis ionais e pesquisadores provenientes dos campos da
ptica e da qumica, interessados em melhorias tcnicas, o fenmeno da
massificao cria novas categorias. No II Congresso Fotogrfico
Italiano (Florena, 1899) torna-se patente a existncia da seguinte
estrutura de mercado: 1 - artistas fotgrafos, que "se-guem seu
caminho com dignidade de artista, mantm altos os seus preos e tm
sempre um grande nmero de clientes"; 2 - fotgra-fos propriamente
ditos, que "procuram, com meios escassos e sem o luxo dos
primeiros, manter elevado o seu prestgio, trabalham com cuidado (
... ) e mantm uma tarifa decorosa"; 3 - artfices fotgra-fos,
profissionais de baixo nvel, muitas vezes itinerantes, cujos pre-os
eram mdicos; 4 - amadores.
O artista fotgrafo, como escrevia Gioppi alguns anos antes, se
distinguiria de um profissional qualquer pela "escolha da si-tuao",
pelo "uso racional da luz e da sombra", pela perspectiva, pela
harmonia, pelo equilbrio, pela unidade, no caso das paisagens; pela
pose, pelo fundo, pelos detalhes, pela viragem, naquele dos
re-tratos13.
Disdri, que fizera do retrato o territrio da "semelhana
mentirosa", um incan vel paladino da fotografia como "teste-munho
fiel", advogando o desenvolvimento de um discurso espec-fico e sua
insero no processo de produo. Em sua opinio, a fo-tografia deveria
deixar de lado um uso apenas privado, articulado no eixo
exatido/arte, e pa sar a valorizar mais e mais critrios co-mo
rapidez, fidelidade, confiabilidade.
Se Alophe se refere a uma reproduo "exata" e "matemti-ca",
Disdri vai mais longe em seus argumentos, sublinhando o po-der
informativo da imagem fotogrfica, que, por suas peculiarida-des,
seria um auxiliar precioso do processo industrial. Na qualidade de
divulgadora fidedigna das inovaes tcnicas, a fotografia perrni-
13. Idem, pp. 23-24; 1. Zannier, "La Massificazione della
Fotografia", in: Fotografia Italiana dcll'Ouo-cento, p. 90.
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tiria modernizar mquinas e equipamentos, acelerar o ritmo de
produo, reduzir o contingente de mo-de-obra, diminuir os custos e,
conseqentemente, enfrentar melhor a concorrncia. No apenas ao
empregador que se aplicam os efeitos benficos da imagem fotogrfica.
Ela pode ser tambm auxiliar do empregado, que, atravs dela, tem
acesso a "noes teis" e a uma "sadia emu-lao". A fotografia, alis,
na viso de Disdri, parece aplainar qualquer conflito entre capital
e trabalho: dos prottipos por ela divulgados poderiam advir
"utilidade moral" e "utilidade material" para os dois protagonistas
do processo produtivo14
Em seu trabalho de propaganda dos usos possveis da fotogra-fia,
Disdri sublinha ainda suas possibilidades no terreno publicit-rio -
com argumentos nem sempre verdadeiros, pois a tcnica lito-grfica,
nos anos 50, era ainda mais barata e mais rpida - , no campo
cientfico, no qual abriria um "mundo de idias novas", na documentao
em geral, destacando-se particularmente os benef-cios que traria
cincia militar, face s transformaes da guerra pelo processo
industrial.
Transformada em instrumento de propaganda, a fotografia comea a
ser usada nas reportagens militares. A crena em sua fi-delidade to
grande que Mathew Brady chega a afirmar: "a cma-ra fotogrfica o
olho da histria". Mas, a questo bem mais complexa, como comprova a
anlise da documentao da Guerra da Crimia, realizada por Roger
Fenton em 1855.
Embora suas cartas retratem os horrores do conflito, suas
imagens estticas e tranqilas - planos gerais posados, mesmo quando
parecem instantneos de uma ao - do conta de uma guerra limpa,
incruenta. Tem-se afirmado que a firma encomen-dante do servio -
Agnews & Sons, de Manchester - no queria imagens que pudessem
atemorizar as famlias dos soldados, mas as crueldades da guerra no
eram poupadas ao pblico ingls pelo correspondente do Times, William
Howard Russell. Na realidade, o trabalho documentrio de Fenton
sofre limitaes tcnicas, impos-
14. Rouill~, pp. 65-66. 24
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tas pelas pesadas chapas de coldio mido e pela cmara de trip,
que no permitiam a movimentao e a animao que e poderiam esperar da
reportagem fotogrfica.
Embora enfrentando os mesmos problemas, Brady e eu
co-laboradores - Alexander Gardner e Timothy O'Sullivan - , ao
do-cumentarem a Guerra Civil norte-americana, criam imagen mai
diretas, mais concreta , longe de cnones retricos ou pictricos. A
novidade de Brady e de sua equipe prontamente percebida pelos
contemporneos, como demonstra um cronista do Humplzrey's
Joumal:
O pblico devedor a Brady de Broadway por suas numerosas e
excelentes vistas da "horrorosa guerra". ( ... ) So seus os nicos
documentos sobre Buli Run dignos de f. O correspondentes do jornais
rebeldes so verdadeiros falsrios; os correspondentes dos jor-nais
do Norte no so igualmente confiveis e os correspondentes da
imprensa inglesa so ainda piores que uns e outros, mas Brady no
engana nunca. Repre enta para as campanhas da repblica aquilo que
Van Der Meulen representou para as guerras de Lus XIV 15
A fotografia incide de vrios modos no imaginrio social. Em suas
memrias, Nadar dedica um captulo "fotografia homicida", narrando um
assas inato e um julgamento que teria tido um de fe-cho diferente e
no fos e pela fora da documentao fotogrfica. Por tratar-se de um
caso de adultrio, a absolvio do marido a -sassino era quase certa.
Le Figaro, entretanto, expe em sua sala de despachos a fotografia
do cadver do amante e acaba por influen-ciar a opinio pblica de
maneira deci iva. Para compreendermo o impacto causado pela
"fotografia homicida", nece .. rio recorrer descrio minuciosa de
Nadar:
Um ms, ei semanas aps a noite de Croissy, um marinheiro
engancha, . ob a pon-te, com seu arpo um monto informe, horrenda
apario de sujeira. o cadver de um afogado em estado de putrefao
avanada, reduzido de modo to abominvel que a forma humana , a
princpio, irreconhecvel. Os membro foram apertados e amarrados com
violncia no corpo. Faixas de chumbo os comprimem com turgorcs
lvidos; a massa informe parece o ventre plido de um sapo. A pele
das mos e dos ps, toda encarquilhada, crua-
15. Ap11d Gubem, pp. 62-63.
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,__ O V .. "' Sombra"' Morte, 1155.
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Timothy H, O' Sullivan, Batalha de Gm:ysburg,
1863.
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mente branca, enquanto o rosto de cor acinzentada. Os globos,
com as plpebras revi-radas, semelhantes a dois ovos e quase prestes
a explodir, saltam fora da lvida cabea. Entre os lbios inchados, da
grande boca aberta, pende a lngua intumescida, meio comida pelos
pe!xes ... ( ... ) Nunca a putrefao chegou a um estgio mais horrvel
do que este monto annimo, do que esta informe carcaa destripada e
mole que faria desmaiar um coveiro.
Diante da horrvel imagem, a opinio pblica revolta-se e pe-de a
condenao morte dos acusados, levando Nadar a escrever:
A foto pronunciou a sentena de morte, e uma sentena sem recurso.
MOR-TE!!!...
( ... ) tamanha a perturbao da prpria justia - pois assim
chamada - diante da imagem maldita do delito que aquela prova
fotogrfica acaba substancialmente por to-mar o lugar de tudo e
arrastar tudo.
( ... ) Sou dominado ao mesmo tempo pelo horror e por uma
piedade infinita diante destes condenados que pagaro por quem, mais
digno de condenao, absolvido: arrasta-dos para sempre eles e suas
crianas - que no cometeram nada - no horror e no irrepar-vel.
Mas, neste caso, A FOTOGRAFIA quis assim ... 16
Na rea judiciria, a fidelidade do novo meio leva ao
apare-cimento da fotografia criminal e do fotorretrato. A imposio
legal deste como instrumento de identificao pessoal remonta ao
incio do sculo XX e vrias justificativas so encontradas para a sua
adoo: possibilidade de descontos nas viagens ferrovirias,
possibi-lidade de uso de bilhetes postais de reconhecimento, tutela
da so-ciedade civil "contra os indivduos perigosos, posto que se
pode rea-lizar seu recenseamento grfico, e sua fisionomia
reproduzida em muitas cpias pode ser transmitida quando se fizer
necessria sua captura".
O cerceamento da liberdade individual no percebido no momento,
sobretudo em virtude do ltimo elemento. Um exemplo ser suficiente
para mostrar o efeito "milagroso" da fotografia no campo policial:
entre 2 de novembro de 1871 e 3 de dezembro de
16. Nadar, Q11a11do ero Fotografo, Roma, 1982, pp. 37-51. 28
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29
1872, so efetuadas 375 prises em Londres graas identificao por
ela permitida17
O fotorretrato, na verdade, uma exten o do princpio da
fotografia judiciria, que permite estabelecer catlogos baseados nas
caractersticas pessoais de indiciados e suspeitos, de acordo com um
esquema bem preciso: tomadas de frente e de perfil de modo direto,
sem nenhum dos truques dos atelis fotogrficos.
No incio do sculo XX, o uso da documentao fotogrfica permitir um
outro tipo de identificao. Em outubro de 1902, o mesmo Alphonse
Bertillon, que havia inventado o sistema antro-pomtrico, consegue a
identificao de um criminoso graas foto-grafia ampliada de suas
impresses digitais.
Ao mesmo tempo em que representa a sociedade burguesa em seus
feitos e realizaes, a fotografia comea a interessar- e por outras
realidades, voltando-se, num primeiro momento, para a cap-tao
daquela paisagem que povoava tantos quadros exticos, sem ter sido
nunca vista de perto.
O Oriente, de incio, repre enta a concretizao de um "grande
sonho coletivo", pois os primeiros temas das fotografias exticas se
concentram nos lugares e nos smbolos privilegiados pe-la imaginao
romntica: Terra Santa, Egito, pirmides, o cenrio das Cruzadas,
runas greco-romanas. Os fotgrafos no buscam, em suas expedies,
lugares inditos ou desconhecidos. Procuram, ao contrrio, reconhecer
os "lugares j existentes, como vises ima-ginrias, nas fantasias
incon cientes das massas", criando arquti-pos-esteretipos que
confirmariam uma viso j existente e con-formariam a viso das geraes
futuras18
Multiplicam-se as expedies fotogrficas em busca de novos
registros, apesar das inmeras dificuldades tcnicas, como aquelas
descritas vivamente por Maxime Du Camp em suas Lembranas Li-
17. Gilardi, pp. 233-234. 18. F. Alinovi, '-L'Esotismo
Fotografico", in: F. Alinovi & C. Marra, La Fotografia.
/ll11sione o Riw:la-
zione?, Bologna, 1981, p. 76.
-
DuCamp. Templo de Ramss. 1 49-1851.
-
Samuel Boume, Rufnas do Ttmplo
dt Rudra-Mala on Siddhapur, 1865.
-
terrias. Entre 1849 e 1851, Du Camp visita Egito, Sria,
Palestina, Turquia, Grcia e Itlia, na companhia de Flaubert.
Interessado em documentar os vestgios das civilizaes passadas e
consciente das limitaes do desenho, Du Camp aprende a tcnica
fotogrfi-ca e se vale dela, apesar das dificuldades inerentes ao
uso do no-vo meio. Egito, Nbia, Palestina e Sria, seu livro de
viagem, publi-cado em 1852, resultado de um rduo trabalho, assim
evocado pelo autor:
Estvamos ainda no processo do papel mido, processo longo,
mctiaaloso, que exi-gia uma grande habilidade manual e mais de 40
minutos para realizar uma prova negativa. Qualquer que fosse a fora
dos produtos quimicos e da objetiva usada, para obter uma ima-gem,
mesmo nas condies de luz mais favorveis, era necessria uma exposio
de pelo menos dois minutos( ... ) Aprender a fotografar era fcil;
mas transportar o equipamento no lombo de um mulo, de um cavalo ou
nas costas de um homem era um problema dificil. Na-quela poca no
existiam vasos de guta-percha; era obrigado a usar ampolas de
vidro, fras-cos de cristal, bacias de porcelana que um acidente
poderia quebrar ( ... )19
Mas nem sempre o objetivo das expedies fotogrficas apenas
informativo/documental. De um primeiro registro protot-pico,
voltado preferencialmente para os monumentos e a paisagem, passa-se
documentao de usos e costumes diferentes dos ociden-tais, de
territrios, de caminhos, com um intuito francamente pro-pagandista.
A fotografia torna-se aliada da expanso imperialista, afirmao que
alguns exemplos ajudaro a comprovar.
No caso do Oriente Mdio, Abigail Solomon-Godeau faz uma anlise
bem precisa do significado das "conquistas pacficas" propi-ciadas
pela fotografia, que registra pontualmente espaos, cidades,
vilarejos vazios, sem nenhuma presena humana. Se a ausncia humana
uma condio das primeiras fotografias, causada pelos longos tempos
de exposio, desde a utilizao do coldio mido possvel animar os
primitivos espaos vazios. Se, no caso das "con-quistas pacficas",
no se pode mais recorrer ao argumento tcnico,
19. M. Du Camp, "Ed io Imperai la fotografia", in: D. Monnorio
(Ors.). Gli Scrinori e la Fa1ografia, Roma, 1988, pp. 102-103.
32
-
33
legtimo aventar a hiptese de que as imagens de um "mundo va-zio"
serviam de reforo e de justificativa aos intuitos expansionistas
europeus.
Ao "vazio" de tais imagens, pode-se contrapor o "cheio" de John
Thomson, que, em Ilustraes da China e de seu Povo (1873), documenta
aspectos caractersticos da vida chinesa com objetivos bem prximos
daqueles das "conquistas pacficas" do Oriente M-dio. As suspeitas
dos chineses para com seu trabalho - chega a ser agredido vrias
vezes porque a cultura local via na cmara um ins-trumento de morte
- confirmam-se em grande parte. Registrando cenas de tortura, de
execues pblicas, de consumo de drogas, Thomson fornece a viso de
uma terra brbara e atrasada, que ne-cessitava de uma direo
imediata. Os objetivos colonialistas de seu livro o tambm
confirmados pela ateno que presta a caminhos fluviais e povoaes, a
recursos humanos e minerais inexplorados20
Um poderoso aliado na difuso da imagem fotogrfica em seu momento
de massificao ser o carto postal ilustrado, cuja origem atribuda
por uma revista especializada da poca a um li-vreiro de Oldenburg,
que, em 1875, teria editado dua srie de vin-te e cinco carte . O
primeiro carto postal ilustrado francs re-monta a 1889,
reproduzindo em sua superfcie uma vinheta da torre Eiffel,
desenhada por Libonis. introduzido no Brasil em 1901 e tambm aqui
se transforma num sucedneo da obra de arte, vindo a ser exposto
emoldurado como e fosse um quadro, de acordo com a moda
generalizada na Europa e nos Estados Unidos.
Sua difuso capilar imediata. Graas adoo de tcnicas como a
heliotipia, a fotolitografia, a fototipia, coloca ao alcan~e do
pblico de massa um verdadeiro inventrio do mundo. Abarcando
monumentos, paisagens, usos e costumes, profisses, instantneos de
eventos importantes, celebridades, imagens picantes, multiplica ao
infinito a possibilidade de posse simblica de todos os aspectos do
universo para um pblico vido de novidades.
20. A. Solomon-Godeau, "A Photographer in Jerusalem, 1855:
Auguste Salzmann and his Times" , Octo-ber, (18), fall 1981, p.
100; l.Jcffrcy,Photography: a Concise /listo')'. 'cwYork-To ronto,
1981 , p. 64.
-
Thomson, O Vigia Notunw, 1871-1872.
-
35
No clima eufrico da Be/le poque, no qual se tem a im-presso de
que o mundo exi te para poder converter-se em imagem fotogrfica,
compreende-se o entusiasmo de Edmond Haraucourt, curador do museu
de Cluny, pelo novo veculo de difuso:
Infinitamente precioso para a educao do homem pelo belo, o carto
postal vulga-riza as maravilhas da Natureza e da Arte: os que vivem
longe de tas belezas tm vontade de ir v-las, os que vivem ao lado
delas tomam conhecimento de sua existncia21
Instrumento de democratizao do conhecimento numa so-ciedade
liberal, que acredita no poder positivo da instruo, o carto postal
leva s ltimas conseqncias a "misso civilizadora", conferida
fotografia por sua capacidade de popularizar o que at ento fora
apangio de poucos. A viagem imaginria e a posse simblica so as
conquistas mais evidentes de uma nova concepo do espao e do tempo,
que abole as fronteiras geogrficas, acentua similitudes e
dessimilitudes entre os homens, pulveriza a linearida-de temporal
burguesa numa constelao de tempos particulares e sobrepostos.
Embora no seja aquele homlogo da realidade, to enfati-zado por
seus inventores e por propagandistas entusiastas como Disdri, a
fotografia no escapa facilmente da viso negativa que a acompanha
desde o incio. No livro que abre a saga proustiana - No Caminho de
Swann -, o narrador, ao relembrar a infncia, conta o processo
educacional instaurado por sua av para inici-lo ao belo. Temendo a
"vulgaridade" e a "utilidade" que atribua ao processo mecnico e,
assim mesmo, no conseguindo furtar-se ao novo veculo, a av do
narrador opta por uma estratgia oblqua. Ao invs de presentear o
neto com imagens diretas de monumentos arquitetnicos e acidentes
geogrficos, concentra sua escolha em
21. Apud A. Ripert & C. Frcrc, La cane posta/e: so11
histoire, sa fonctio11 sociale, Lyon-Paris, 1983. p. 28. A idia da
posse simblica do mundo pela fotografia objeto de uma das cenas de
Les carabi-niers de Jean-Luc Godard. Recrutados com a promessa de
conquistar o mundo e seus bens mate-riais, Ulysscs e Michel-Ange
regressam com duas malas repletas de cartes postais, que,
organiza-dos por categorias - monumentos, personalidades clebres,
empreendimentos comerciais e indus-triais etc. -, constituem a
totalidade de seu esplio de guerra.
-
fotografias de tais aspectos j tratados pela nobre arte da
pintura. A catedral de Chartres via Corot, as fontes de Saint-Cloud
via Hubert Robert, o Vesvio via Turner so considerados instrumentos
pe-daggicos mais convenientes, embora o narrador no concorde de
todo com o mtodo, que proporciona vises no exatas e no des-carta a
presena do fotgrafo. O fotgrafo, "eliminado da apresen-tao do
monumento ou da paisagem, reassumia, contudo, os seus direitos ao
reproduzir aquela interpretao do artista"22
A questo do cdigo, freqentemente escamoteada pelos de-fensores e
pelos detratores da fotografia, coloca-se integralmente nesta
simples frase de Proust. A fotografia cria uma viso do mun-do a
partir do mundo, molda um imaginrio novo, uma memria no-seletiva
porque cumulativa. Em sua superfcie o tempo e o es-pao inscrevem-se
como protagonistas absolutos, no importa se imobilizados, ou at
melhor se imobilizados porque passveis de uma recuperao, feita de
concretitude e devaneio, na qual a apa-rente analogia se revela
seleo, construo, filtro.
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