UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MARIANA MOUSINHO CAVALCANTE MEDEIROS GOMES A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS COMO MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA NATAL/RN 2020
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A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS …
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MARIANA MOUSINHO CAVALCANTE MEDEIROS GOMES
A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS COMO
MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA
NATAL/RN
2020
MARIANA MOUSINHO CAVALCANTE MEDEIROS GOMES
A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS COMO
MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA
Monografia apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito (PPGD) como requisito parcial
de conclusão do III Curso de Especialização em
Direito Administrativo da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.
Orientadora: Professora Doutora Mariana de
Siqueira.
NATAL/RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
Gomes, Mariana Mousinho Cavalcante Medeiros.
A internação involuntária dos usuários de drogas como
manifestação do poder de polícia / Mariana Mousinho Cavalcante
Medeiros Gomes. - 2020.
82f.: il.
Monografia (Especialização em Direito Administrativo) -
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal,
completo/T_53.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2019. 2 TAFFARELLO, Rogério Fernando. DROGAS: FALÊNCIA DO PROIBICIONISMO E ALTERNATIVAS
DE POLÍTICA CRIMINAL. 2009. 153 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Direito, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 13. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-
17112011-091652/pt-br.php>. Acesso em: 17 dez. 2019. 3 BRASIL. Parágrafo Único do Art. 1ª da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional
de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada
e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em:
inclusas até mesmo as substâncias legalizadas, como medicamentos e álcool, que causam
alterações significativas na composição química dos usuários. Porém, se utilizada a definição
dada pela Lei nº 11.343/06, serão consideradas drogas apenas as substâncias previstas como tal
nas listas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Aqui adotar-se-á a segunda
definição, devido ao fato da legislação que prevê a internação voluntária se inserir dentro do
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).
Portanto, para fins do presente estudo serão considerados sujeitos destinatários da Lei
nº 13.840/19 apenas aqueles que possuem vício em substâncias psicoativas classificadas como
ilícitas, excluindo-se os que consomem abusivamente as drogas tidas como lícitas.
Superada a definição do que são drogas e conforme apresentado no capítulo
introdutório, se faz necessária a abordagem prévia dos direitos que conflitam quando tratamos
desse assunto, quais sejam a liberdade individual e a proteção à saúde.
Ambos podem ser tidos com espécies do gênero Direitos Fundamentais, sendo inerentes
à condição humana e, por esta razão, essenciais e indispensáveis à coletividade. Além disso,
conforme leciona o jurista português José Gomes Canotilho, alguns direitos são tidos como
fundamentais como uma forma de defesa da pessoa perante os arbítrios estatais.
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob
uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de
competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as
ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-
subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva)
e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por
parte dos mesmos (liberdade negativa).4
Na mesma esteira, encontra-se a definição apresentada por Dimitri Dimoulis e Leonardo
Martins de que os direitos fundamentais são “direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou
jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo
supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face
da liberdade individual”5.
É possível concluir, então, que os direitos denominados fundamentais são os pilares da
vida em sociedade e que é por meio da positivação nas cartas constitucionais que esses direitos,
considerados naturais e inalienáveis, são incorporados à ordem jurídica, devendo o Estado
protegê-los efetivamente ao colocá-los sob a forma de normas.
4 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª Ed, 9 reimp. São Paulo: Editora
Almedina. p. 409. 5 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2014. p. 41.
15
2.1. DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE
A sociedade ocidental contemporânea é calcada sob o manto da liberdade, sendo esse
considerado um direito fundamental basilar que acompanha a evolução humana. Consoante
José Afonso da Silva “a História mostra que o conteúdo da liberdade se amplia com a evolução
da humanidade. Fortalece-se, estende-se, à medida que a atividade humana se alarga. Liberdade
é conquista constante”6.
É a partir do seu processo histórico de consolidação como direito fundamental que se
pode compreender a importância da garantia da liberdade para o mundo atual. O ocidente, desde
a formação das grandes civilizações da Antiguidade Clássica, formula as bases do que viria a
ser a democracia conhecida atualmente. Na Grécia e Roma antigas havia a garantia da liberdade
individual, da igualdade e da participação política direta, contudo, esses direitos alcançavam
apenas determinada parcela da sociedade: os cidadãos, compreendidos apenas como os homens
adultos e livres. Este, portanto, não era um sistema universal, pois excluía as mulheres, as
crianças e os escravizados.7
Posteriormente, durante o período da Idade Média, tal sistema foi rompido e suplantado
pelo feudalismo, baseado nas relações servis, no poder descentralizado, na economia assentada
na agricultura e em uma sociedade estática e hierarquizada. A Igreja Católica se consolidou no
continente europeu, tornando-se grande proprietária de terras e monopolizando o
conhecimento, estabelecendo os valores do homem medieval.
Por sua vez, o regime feudal foi sobrepujado pelos Estados Absolutistas, que
perduraram na Europa até as Revoluções Liberais do século XVIII. O absolutismo se
caracterizava pela centralização do poder na figura do monarca, tido como herdeiro do direito
divino de governar e que concentrava em si todas as funções posteriormente dividas entre os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Sob o pretexto de serem os representantes de Deus
na Terra possuíam plenos poderes e governavam de forma arbitraria e despótica, não havendo
a concepção de que o homem era um ser livre por natureza, devendo ser, portanto, subordinado
à vontade do Rei.
Os homens não eram livres, tampouco tinham garantida sua autonomia para a auto
realização individual. Durante os séculos XVII e XVIII, porém, ascendeu na Europa uma nova
classe social, econômica e política denominada burguesia. Contudo, os desequilíbrios dos
governos despóticos prejudicavam o desenvolvimento desse novo estrato social, fomentando a
6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 232. 7 FUNAN, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002. p. 38 e 83.
16
busca por um novo modelo de organização, em que o poder do Estado fosse limitado, cessando
com os abusos perpetrados pelo rei.
Motivados pelo ideal de que a liberdade favorecia o crescimento econômico, iniciou-se
a revolução burguesa, que culminou com a ascensão dos ideais Iluministas e com o fim do
absolutismo. Insurgia na sociedade o pensamento de que o homem era, a bem da verdade, livre
em sua essência e que o Estado deveria se submeter a sua vontade e não a vontade divina. A
partir de então se formulava liberdade conhecida na atualidade. Foram três os principais centros
indutores dessas mudanças: a Inglaterra, a França e, para além do continente europeu, os
Estados Unidos da América.
Na Inglaterra, diversos movimentos durante o século XVII foram responsáveis pela
defesa das liberdades individuais frente às arbitrariedades monárquicas, dentre os quais
destacam-se a Revolução Inglesa (1640-1648), quando o parlamento apresentou ao Rei Carlos
I a Petition of Rights, que instituía a necessidade aprovação parlamentear para criação e
alteração de impostos e para o julgamento e prisões, anteriormente discricionários ao monarca;
o Habeas Corpus Act (1679), visando a proteção da liberdade do indivíduo; e a Revolução
Gloriosa (1688-1689), que pôs fim ao absolutismo inglês, ao garantir por meio do Bill of Rights,
a adoção do parlamentarismo, de modo que nenhuma lei poderia ser sancionada sem a
aprovação do parlamento, representante do povo.
No campo filosófico, não se pode olvidar da importância do filósofo John Locke,
considerado pai do Estado Liberal, o qual afirmava que os homens nasciam plenamente livres
e eram detentores de direitos naturais, quais sejam direito à vida, à liberdade e à propriedade.
Como forma de garantir tais direitos natos instituíam os governos, mas caso os governantes não
os respeitassem, era direito dos cidadãos contestá-los e até mesmo destituí-los do poder.
No mesmo sentido, do outro lado do oceano Atlântico, motivados pelas mudanças
ocorridas na metrópole, as Treze Colônias britânicas tornaram-se independentes, culminando
na formação dos Estados Unidos da América no ano de 1776. Esse foi um dos mais importantes
passos para o desenvolvimento do liberalismo, pois na Carta de Independência8 o direito à
liberdade foi garantido e foi considerado inerente à condição humana.
Por último, a França com sua Revolução de 1789 é o maior expoente da ruptura do
sistema absolutista e do nascimento de uma nova Era sedimentada nos ideais de liberdade.
Motivados pelos pensamentos Iluministas e pelos princípios de Igualdade, Liberdade e
8 United States of America. Declaration Of Independence. Disponível em:
liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do
pensamento liberal de teor clássico.10
Em que pese o direito fundamental de liberdade ter sido estabelecido inicialmente como
uma forma de abstenção do Estado, ele possui múltiplas facetas, não se podendo falar em uma
única liberdade, mas sim em liberdades.11
No Brasil, os desdobramentos do direito fundamental à liberdade estão positivados na
Constituição de 1988. No caput do seu artigo 5º, o texto constitucional traz a garantia do direito
à liberdade de forma objetiva ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Além
disso, ao longo dos setenta e oito incisos que compõe tal dispositivo é apresentado um rol
extensivo das diversas nuances desse direito.
A liberdade, portanto, consiste no direito de cada indivíduo poder se autodeterminar de
acordo com as suas próprias escolhas com a finalidade de atingir a realização pessoal. A
sociedade ocidental contemporânea se moldou com base na ideia de que o indivíduo é livre,
tornando-se essa uma cláusula geral para o desenvolvimento da vida privada.
A consagração dos valores liberais fez florescer na cultura ocidental, há mais de
duzentos anos, uma especial consideração pela liberdade de autodeterminação dos
sujeitos e pelo poder de conduzir a vida de acordo com as normas que o indivíduo
haja escolhido para si. Internalizada como decorrência dos modelos socioeconômicos
e políticos que se consolidaram na tradição do Ocidente, a autonomia alcança, então,
relevo entre os valores acolhidos pela sociedade como fundamentais à sua constituição
e manutenção.12
Todavia, com o passar das experiências liberais, começou-se a entender que a liberdade
individual pode sofrer determinadas restrições. O Estado deve garantir que os indivíduos sejam
livres para se autodeterminarem de acordo com suas concepções, porém esta liberdade tem
como limite a autonomia de outrem, de modo que as escolhas pessoais não podem atingir a
10 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 563-564. 11 “(1) liberdade da pessoa física (liberdades de locomoção, de circulação); (2) liberdade pensamento, com todas
as suas liberdades (opinião, religião, informação, artística, comunicação do conhecimento); (3) liberdade de
expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de associação); (4) liberdade de ação profissional (livre
escolha e de exercício de trabalho, ofício e profissão); (5) liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade
econômica, livre iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual, liberdade de ensino e
liberdade de trabalho)”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 235. 12 BARRETO NETO, H. M. . O princípio constitucional da autonomia e sua implicação no direito penal. In:
Nestor Eduardo Araruna Santiago; Paulo César Corrêa Borges; Cláudio José Langroiva Pereira. (Org.). Direito
Penal e Criminologia: XXII Congresso Nacional do Conpedi. 1ed.São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013,
v. único. p. 2. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e58be547528b4bf8>. Acesso em:
03 de jan. de 2020.
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esfera de terceiros. Assim, sempre que houver choque entre liberdades individuais deve o
Estado intervir para balizar a situação.
A atuação estatal para coibir os abusos de direito deve se guiar no princípio da
proporcionalidade, para que não haja intervenções excessivamente restritivas. A questão central
passa a ser, então, a escolha do grau de liberdade que os indivíduos devem possuir para não
ameaçar o bem-estar dos outros. Destaca-se aqui a perspectiva kantiana apresentada por Barreto
Neto:
Kant não concebe, entretanto, que a realização do imperativo categórico leve a um
estado anárquico, em que cada um só faz o que deseja e apenas se sujeita a seus
próprios critérios racionais. O filósofo insere na própria ideia de liberdade a noção de
Direito. O Direito é, em si, um instrumento de regulação social que impõe uma série
de comportamentos aos indivíduos de forma coercitiva. Descumprir normas jurídicas
resulta em consequências sancionadoras aplicadas pelo Estado e este, procurando
promover a harmonia social e evitar a instauração da desordem, proíbe prévia e
abstratamente que muitas condutas – por vezes simplórias – sejam tomadas pelos
sujeitos de direito, sob pena de sofrerem castigos institucionais. Ora, se há uma
ameaça constante de sanção por parte do Estado para o caso de descumprimento de
suas regras, como conciliar a existência mesma do Direito com as formulações
kantianas segundo as quais a verdadeira liberdade é fruto de decisões individuais
estremes de ingerências exteriores? [...] Já foi citado anteriormente que a pedra de
toque da ligação, em Kant, entre autonomia, liberdade e Direito é o exercício da
própria autonomia até onde o permita o exercício da autonomia do outro. Pois bem.
Depois deste breve escorço das lições de Kant sobre autonomia, já é possível
compreender que o elemento jurídico é resultado de um exercício de autonomia.13
De acordo com a definição acima apresentada, a liberdade estaria, então, ligada à própria
concepção do Direito, pois as normas jurídicas limitadoras seriam fruto da liberdade,
expressando a vontade geral da sociedade através da participação popular no processo
legislativo. Assim, o Estado, por meio do Direito, passa ter a dupla função de se abster para que
os indivíduos sejam livres e ao mesmo tempo de estabelecer limites para que todos possam
exercer suas liberdades.
Um dos princípios existentes e utilizados pelo Estado para guiar sua atuação nesta dupla
função é o da legalidade, que pode ser encontrado sob dois vieses. O primeiro deles é o aplicável
à Administração Pública e encontrado no ordenamento jurídico pátrio no art. 37, caput, da
Constituição Federal, o qual só permite à Administração Pública agir em conformidade com a
lei. Já o segundo diz respeito ao princípio da legalidade aplicado no direito penal e previsto no
13 BARRETO NETO, H. M. . O princípio constitucional da autonomia e sua implicação no direito penal. In:
Nestor Eduardo Araruna Santiago; Paulo César Corrêa Borges; Cláudio José Langroiva Pereira. (Org.). Direito
Penal e Criminologia: XXII Congresso Nacional do Conpedi. 1ed.São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013,
v. único. p. 2. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e58be547528b4bf8>. Acesso em:
03 de jan. de 2020.
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inciso XXXIX, do art. 5º da CF, o qual preceitua não haver crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal.
Desse modo, não é permitido que o Estado aja em desconformidade com a lei, nem que
ninguém seja punido por uma conduta que não esteja previamente definida como proibida,
devendo o Poder Público se ater a esses limites. Com isso, o princípio da legalidade se
caracteriza como uma maneira de equalizar a atuação estatal frente às liberdades individuais. O
regime democrático estabelecido na Constituição se sustenta com a preservação dos direitos de
liberdade, assim as restrições estatais devem se fundamentar em critérios práticos de
racionalidade.14
Diante da análise do que é liberdade, questiona-se a possibilidade de intervenção estatal
no tocante ao uso de drogas, bem como a possibilidade de cerceamento do direito daqueles que
têm sua autonomia mitigada pela dependência química. Se o indivíduo, com fulcro no direito
fundamental à liberdade, é soberano acerca de si mesmo, seria possível a intervenção coercitiva
estatal devido o consumo de drogas? Cada pessoa não teria o direito de se guiar de acordo com
sua liberdade para escolher como dispor do seu próprio corpo? Por que o Estado permite que
algumas substâncias, igualmente prejudiciais, sejam utilizadas e outras não? Em estudo sobre
o tema, Maurício Fiore apresenta alguns pontos que merecem destaque para reflexão acerca das
perguntas apresentadas.
Os protocolos de pesquisa de novas drogas com aplicação médica, por exemplo,
supõem riscos na forma de efeitos colaterais não previsíveis. Reconhece-se, inclusive
legalmente, que eles irão ocorrer, ocasionando complicações graves e até letais. No
caso das drogas de uso mais geral, o Estado se limita a regular a produção e a
comercialização, não o consumo, sendo responsabilidade dos indivíduos obedecer, ou
não, à prescrição médica. E há, ainda, drogas que prescindem de receituário médico,
disponíveis nos balcões de farmácia para livre comercialização. Ali se encontram, por
exemplo, os analgésicos, que em muitos países, como o Brasil, lideram os
investimentos do mercado publicitário e estão, ao mesmo tempo, relacionados a
milhares de mortes anuais, seja por reações adversas e efeitos colaterais, seja por
consumo abusivo. (...) Há, também, produtos que contêm substâncias psicoativas e
não têm aplicação médica oficial. São as drogas mais consumidas do planeta: as
bebidas alcoólicas, as bebidas estimulantes (café, chá e energéticos) e o tabaco. Fora
das listas da ONU de drogas proscritas, sofrem restrições diferentes em cada país,
mas, no geral, seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual
para os adultos. E, finalmente, as drogas psicoativas que, mesmo ilegais, são
maciçamente consumidas por milhões de pessoas no mundo. Sobre sua
comercialização não há controle do Estado, que se limita a pedir — e, de alguma
forma, obrigar — a seus cidadãos que se mantenham distantes para que não coloquem
a si e à sociedade em risco. Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de
dano, seja fisiológico, seja mental. Além disso, uma parte significativa delas é
bastante tóxica, gerando grande número de mortes acidentais todos os anos. E, o que
é mais importante, os indivíduos podem consumi-las de maneira abusiva, seja
14 RODRIGUES. Fillipe Azevedo. Análise econômica da expansão do direito penal. Belo Horizonte: DelRey,
2014. p. 35.
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esporádica, seja frequentemente, o que pode levar tanto a comportamentos perigosos
como a quadros graves de dependência. Como se vê, tanto as drogas psicoativas
livremente disponíveis como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas. Mas,
por isso, podem ser consideradas prescindíveis? Definitivamente, não.15
Existem inúmeras substâncias cujo potencial psicoativo é reconhecido como nocivo,
todavia, o Estado as libera, garantido apenas a sua regulamentação para que as pessoas optem
por realizar ou não uso dentro dos parâmetros estabelecidos. E é exatamente esse o papel cabível
à atuação estatal, pois cada indivíduo tem direito de se autodeterminar de acordo com suas
convicções, desde que não afete a esfera de terceiros, sendo este um direito constitucionalmente
garantido aos brasileiros.
Assim, entende-se que o papel do Estado não é de criminalizar a conduta de uso das
drogas, tampouco de cercear a liberdade dos indivíduos que optam por realiza-la, mas sim de
regulamentar em que medida o uso pode ser feito, oferecendo apoio aos dependentes e
informações à sociedade.
2.2. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
O liberalismo puro, conforme preceituado pelas Revoluções do século XVIII, gerou
inúmeras desigualdades que culminaram na necessidade da interferência estatal. A liberdade
conquistada levou ao domínio econômico e consequentemente a graves situações de arbítrio. A
partir de então surgiu a necessidade de se garantir formal e materialmente os direitos ligados à
igualdade, como os direitos sociais, econômicos e culturais.
Esses direitos, diferentemente dos de primeira geração, se pautam por uma perspectiva
positiva, pois necessitam de uma atuação estatal para se concretizarem. Desse modo, sem que
uma dimensão suprimisse a outra, mas a ela se acrescesse, estabeleceram-se os direitos
fundamentais de segunda geração, ligados ao ideal de igualdade.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Branco fazem a ressalva de que os direitos
sociais de segunda geração são chamados de direitos sociais não por serem direitos de
coletividade, pois na maioria das vezes esses direitos têm como titulares indivíduos
singularizados, mas por serem fruto de reinvindicações de justiça social.16
15 FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos
Estudos - Cebrap, [s.l.], n. 92, p.9-21, mar. 2012. FapUNIFESP (SciELO). p. 12-13. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/s0101-33002012000100002>. Acesso em: 20 de fev. 2020. 16 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 206.
22
Conforme é possível extrair das lições de José Afonso da Silva17, os direitos sociais se
caracterizam por serem prestações positivas estatais que têm como objetivo possibilitar
melhores condições de vida, igualizando situações sociais desiguais. Ainda de acordo com o
constitucionalista, os direitos sociais se conexionam com a liberdade, pois é a partir da garantia
de uma igualdade material que se torna possível o exercício efetivo da liberdade. Esses direitos,
ligados à perspectiva prestacional, ganharam força constitucional a partir do século XX,
especialmente com as Constituições do México e de Weimar e com a Declaração Soviética dos
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado.
Sob a inspiração da Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar, de
1919, a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918,
nasce a denominada segunda geração de direitos fundamentais, que traz proteção aos
direitos sociais, econômicos e culturais, onde do Estado não mais se exige uma
abstenção, mas, ao contrário, impõe-se a sua intervenção, visto que a liberdade do
homem sem a sua participação não é protegida integralmente. Esta necessidade de
prestação positiva do Estado corresponderia aos chamados direitos sociais dos
cidadãos, direitos que transcendem a individualidade e alcançam um caráter
econômico e social, com o objetivo de garantir à sociedade melhores condições de
vida. Nesse diapasão, seriam exemplos clássicos desses direitos o direito à saúde, ao
trabalho, à assistência social, à educação e o direito de greve.18
Dentre os direitos sociais a serem garantidos pelo Estado, encontra-se o direito de
proteção à saúde, que ganhou destaque no âmbito internacional com a criação da Organização
Mundial da Saúde (OMS) em 1946. Tal agência internacional especializada em saúde é
subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU) e tem como objetivo primordial a
melhoria do nível de saúde de todos os povos, tratando-a como direito fundamental inerente à
condição humana.
Para a OMS o direito à saúde abrange não apenas o tratamento médico, como também
toda uma rede de benefícios que possibilitem ao indivíduo uma vida digna.19 Desse modo, nota-
se uma conexão entre o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana, de modo que a saúde
17 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 18 MARTINS, Flávia Bahia. O Direito Fundamental à Saúde no Brasil sob a Perspectiva do Pensamento
Constitucional Contemporâneo. 2008. 128 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Puc, Rio de Janeiro, 2008. p.
um caráter universal. Consoante o comando dado pelo texto constitucional, foi publicada no
ano de 1990 a Lei nº 8.080, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, viabilizando e estruturando
o SUS. Esse sistema tem como objetivo atender as necessidades locais da população e de cuidar
de questões que influenciam na verificação da saúde, como o meio ambiente, a vigilância
sanitária, a fiscalização de alimentos, entre outros24.
Em conformidade com a referida Lei, o desenvolvimento das ações pertinentes à saúde
passou a ser dever do Poder Público das esferas federal, estadual e municipal, devendo os
serviços de saúde serem prestados por todos os três entes. Além disso, o SUS deve se organizar
seguindo as diretrizes de descentralização, com uma direção em cada esfera de governo,
garantindo o atendimento integral e a participação da comunidade, com igualdade na assistência
à saúde e prestando o direito à informação às pessoas assistidas.25
Observa-se que o SUS é formado por uma rede complexa, organizada de forma
regionalizada, a fim de garantir uma assistência de qualidade, estando incluídas no seu campo
de ação também a execução de aços ligadas à vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, à
de saúde do trabalhador e de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica.
Desse modo, conforme analisado, a saúde constitui no ordenamento jurídico brasileiro
um direito fundamental social, que deve ser garantido a todos indistintamente, com observância
das individualidades. Indaga-se, pois, como as drogas se relacionam com a saúde pública no
Brasil?
A primeira relação decorre da própria Lei de Drogas que aduz em seu art. 1º, parágrafo
único que "consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar
dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente
pelo Poder Executivo da União". Adiante, a lei apresenta em seu art. 66 uma norma penal em
branco heterogênea remetendo à Portaria SVS/MS nº 344/1998 a definição de quais são as
substâncias consideradas drogas para efeito da referida lei.26
24 BRASIL. Art. 6º da Lei nº 8080, de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 19 set.
1990. 25 BRASIL. Art. 198 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 de jan. 2020. 26 “Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista
mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob
controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998”. BRASIL. Art. 66 da Lei nº 11.343, de 23
de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas
para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece
normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras
Essa Portaria é editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que
é uma agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde. Com isso, observa-se que a escolha
política sobre quais drogas serão criminalizadas é uma questão de saúde pública, pois é
determinada por uma agência vinculada ao SUS. É, portanto, o poder público executivo, por
meio do Ministério da Saúde, o responsável pela lista das substâncias criminalizadas como
drogas no país.
Além disso, a segunda relação decorre do tratamento atual dispensado aos adictos.
Atualmente, fortalece-se o entendimento de que o uso de drogas não é mais um problema a ser
tutelado exclusivamente pelo direito penal, constituindo primordialmente um problema de
saúde pública. Assim, ao se deslocar o uso de drogas para a seara sanitária é preciso formular
políticas públicas que garantam o atendimento mais adequado a estas pessoas, observando as
diferentes necessidades e particularidades.
Em 2006, a Lei nº 11.340 estabeleceu que o SISNAD deveria atuar em conjunto com o
SUS e, em 2019, foi publicada a Lei nº 13.840/19 que possibilita a internação involuntária do
usuário ou dependente de droga, fortalecendo a ideia de que essa é uma questão de saúde pública
a ser tutelada pelo Sistema Único de Saúde.
26
3 A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS
O uso de substâncias psicoativas não é contemporâneo, acompanha o desenvolvimento
da humanidade estando presente ao longo de milênios, seja em rituais religiosos ou de forma
recreativa fazendo parte das interações sociais.27 Até o final do século XIX e início do século
XX, a utilização de entorpecentes conviveu de maneira harmônica com a evolução da
sociedade, de modo que a criminalização das drogas, tal como conhecemos, é relativamente
recente.28
Conforme analisado no capítulo anterior, a palavra “droga” em sua essência se refere a
um número incontável de substâncias, contudo é utilizada no ordenamento jurídico pátrio para
definir apenas aquelas que são proibidas pela ANVISA, sendo essa definição importante para
estabelecer quem são os sujeitos que se submetem às políticas públicas relacionadas ao uso de
drogas.
A internação no Brasil tem suas origens legais no início do século XX, com o Decreto
nº 1.132/1903 que previa o recolhimento em “estabelecimento de alienados” daqueles que “por
moléstia mental, congênita ou adquirida” comprometessem a ordem pública ou a segurança das
pessoas.29
No ano de 1934 foi publicado por Getúlio Vargas, então Presidente da República, o
Decreto n.º 24.559/34 que possibilitava a internação dos “psicopatas e dos menores anormais”
e que pela primeira vez previa a possibilidade de internação de dependentes químicos ao
estabelecer no §5º, do art. 3º que poderiam “ser admitidos nos estabelecimentos psiquiátricos
os toxicômanos e os intoxicados por substâncias de ação analgésica ou entorpecente por bebidas
inebriantes, particularmente as alcoólicas”.30
Posteriormente, em 1938, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 891, conhecido como Lei de
Fiscalização de Entorpecentes, que marcou a intensificação da a política proibicionista
brasileira. No primeiro artigo foi estabelecido um rol de substâncias proibidas dividido em dois
27 SILVEIRA, 2006, apud BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo., São Paulo, 2006, p. 26. 28 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/2006. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 46. 29 BRASIL. Decreto nº 1.132, de 1903. Reorganiza a Assistencia a Alienados. Rio de Janeiro, 22 dez. 1903.
585004-publicacaooriginal-107902-pl.html>. Acesso em: 20 jan. 2020. 30 BRASIL. Decreto nº 24.559, de 1934. Dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção à pessoa e aos
bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. Rio de Janeiro, 03 jul. 1934.
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 jan. 2020. 32 BRASIL. Art. 10 da Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão
ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica,
e dá outras providências. Brasília. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6368.htmimpressao.htm>. Acesso em: 18 de jan. 2020. 33 “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os
seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação
voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o
consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”.
BRASIL. Art. 6º da Lei nº 10.216, de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.. . Brasília, 06 abr. 2001. Disponível em:
Em 2003 o Ministério da Saúde, por meio da sua Secretaria Executiva, publicou um
documento intitulado “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de
Álcool e outras Drogas”, no qual estabeleceu as diretrizes para uma política de atenção integral
aos dependentes químicos, priorizando a intersetorialidade e os modelos de atenção das redes
assistenciais e estabelecendo como objetivo imprescindível a formulação de “políticas que
possam desconstruir o senso comum de que todo usuário de droga é um doente que requer
internação, prisão ou absolvição” 34.
Em 2006 foi promulgada a Lei 11.343 que instituiu um novo sistema de controle penal
das drogas no Brasil ao revogar e substituir a Lei nº 6.368/76 e ao criar o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). A partir da nova legislação foram feitas alterações
consideráveis sobre o modelo legal de incriminação, que passou a prever medidas preventivas
e de reinserção social dos usuários e voltou sua atenção quase que exclusivamente para o
combate ao tráfico ilícito de entorpecentes.
A lei também inovou ao distinguir o tratamento penal dispensado aos usuários e
traficantes, porém ainda se pautou no modelo proibicionista, pois mesmo retirando a pena
privativa de liberdade dos usuários, havendo uma despenalização desse tipo, os manteve sob a
tutela do Direito Penal, sendo possível a punição com penas restritivas de direitos, penas
alternativas e multa.35
Destaca-se, ainda, que a atual Lei de Drogas, em seu texto original, não faz menção ao
tratamento do drogo-dependente por meio de internações, estabelecendo apenas que o SISNAD
atuará em articulação com o SUS e com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com a
finalidade de prevenir o uso indevido e de garantir a atenção e reinserção social dos usuários de
drogas.
Contudo, apesar da não previsão de internação, na última década se fortaleceu o
entendimento jurisprudencial de que a internação compulsória de dependentes químicos
poderia ser fundamentada na Lei nº 10.216/01, pois os adictos teriam sua capacidade cognitiva
mitigada, assemelhando-se a pessoas com transtornos mentais.36 Em relação ao tema, destaca-
34 Ministério da Saúde. A política do ministério da saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras
drogas. 2003. p. 27. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020. 35 BRASIL. Art. 28 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 36 JUSBRASIL. Jurisprudência internação compulsória usuários de drogas Lei nº 10.216/01. Disponível em:
se a ideia apresentada em texto sobre a relação entre a internação para usuários de drogas e a
reforma psiquiátrica:
Só em 2002, consoante às recomendações da III Conferência Nacional de Saúde
Mental, o Ministério da Saúde implementou o Programa Nacional de Atenção
Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras drogas, reconhecendo o uso
prejudicial de drogas como problema da saúde pública e construindo uma política
pública específica para a atenção a essas pessoas, situada no campo da saúde mental
e tendo como estratégia a ampliação do acesso ao tratamento, a compreensão integral
e dinâmica do problema, a promoção dos direitos e a abordagem de redução de danos.
Apesar disso, em oposição aos princípios e práticas que Reforma Psiquiátrica e da
Política Nacional de Saúde Mental, assistimos no cenário social do cuidado para
pessoas com problemas de abuso de drogas, a retomada da defesa de práticas e
concepções semelhantes às usadas na perspectiva asilar, sob a justificativa de que
usuários de drogas não têm condições de lidar, em liberdade, com os problemas
decorrentes de seu uso. Em tese, esses usuários estariam subjugados ao poder das
drogas, seriam "fracos", necessitados de contenção e tutela. Em razão disso, justificar-
se-ia interná-los, ainda que contra sua vontade, antes de tentar quaisquer outras
abordagens, descaracterizando os princípios do cuidado em saúde mental em suas
diferentes dimensões, sobretudo no concernente ao potencial emancipatório e de
exercício dos direitos dos usuários.37
A partir do fortalecimento do entendimento de que os usuários de drogas não teriam
condições de estar em liberdade e que por isso necessitariam de internação, tramitou no
Congresso Nacional um projeto de lei que buscava alterar o Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas, instituindo a possibilidade da internação voluntária e involuntária dos
usuários e dependentes. Tal projeto foi aprovado e, em 05 de junho de 2019, foi sancionada
pelo Presidente da República a Lei nº 13.840, que estabeleceu no inciso II, do §3º, do art. 23-
A, a possibilidade de internação involuntária, sem o consentimento do dependente e sem a
necessidade de decisão judicial, pautada exclusivamente em decisão por médico responsável.
Com isso, desde junho de 2019 passou a ser legalmente possível que a Administração
Pública, após a formalização da decisão por médico responsável, cerceie a liberdade do
indivíduo usuário de drogas, mesmo sem o seu consentimento. Pontua-se que, diferentemente
das legislações anteriores que englobavam por exemplo alcoólatras, a Lei atual se limita apenas
aos usuários de drogas, ou seja, apenas aos que fazem uso de substâncias tidas como ilícitas, de
modo que entendo não ser possível a sua aplicação para adictos de substâncias legais.
Por dispensar autorização do judiciário, essa possibilidade de internação se justifica em
decorrência do poder de polícia conferido à Administração Pública, conforme será analisado a
seguir.
37 ASSIS, Jaqueline Tavares de; BARREIROS, Graziella Barbosa; CONCEIÇÃO, Maria Inês Gandolfo. A
internação para usuários de drogas: diálogos com a reforma psiquiátrica. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, [s.l.], v. 16, n. 4, p.584-596, dez. 2013. FapUNIFESP (SciELO). p. 588-589.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s1415-47142013000400007>. Acesso em 09 jan. 2020.
30
3.1. A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA NO BRASIL: MANIFESTAÇÃO DO PODER DE
POLÍCIA
A garantia das liberdades individuais se estabeleceu como um freio aos arbítrios estatais,
priorizando-se a autonomia individual. Todavia, essa liberdade não é ilimitada, de modo que,
em caráter excepcional, é possível que o Estado interfira na vida privada dos indivíduos para
garantir que estes exerçam seus direitos em compatibilidade com o bem-estar social.
Nem sempre os limites dos direitos individuais são claros e em determinados casos os
interesses particulares se opõem ao interesse público, restando à Administração o poder-dever
de intervir para balizar eventuais desequilíbrios.38 Essa atividade estatal limitadora decorre dos
poderes administrativos, que constituem o mecanismo pelo qual a Administração irá atuar.
Para bem atender ao interesse público, a Administração é dotada de poderes
administrativos - distintos dos poderes políticos - consentâneos e proporcionais aos
encargos que lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de
trabalho, adequados à realização das tarefas administrativas. Daí o serem
considerados poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são
estruturais e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a
organização constitucional. Os poderes administrativos nascem com a Administração
e se apresentam diversificados segundo as exigências do serviço público, o interesse
da coletividade e os objetivos a que se dirigem. Dentro dessa diversidade, são
classificados, consoante a liberdade da Administração para a prática de seus atos, em
poder vinculado e poder discricionário; segundo visem ao ordenamento da
Administração ou à punição dos que a ela se vinculam, em poder hierárquico e poder
disciplinar; diante de sua finalidade normativa, em poder regulamentar; e, tendo em
vista seus objetivos de contenção dos direitos individuais, em poder de polícia. 39
Os poderes administrativos conferem aos agentes públicos determinadas prerrogativas
que são indispensáveis para a persecução da finalidade pública, disciplinando as relações
sociais e garantindo a preservação da ordem pública. Dentre tais poderes, destaca-se o poder de
polícia, que se caracteriza por ser uma “atividade da administração pública que, limitando ou
disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em
razão de interesse público”40.
Quando exerce o poder de polícia, o Estado não desenvolve uma atividade de cunho
prestacional para satisfazer as necessidades dos indivíduos, mas sim uma atividade repressiva,
com a finalidade de impedir a realização de condutas indesejáveis e garantir o equilíbrio para
38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p.
843. 39 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 101. 40 BRASIL. Art. 78 da Lei nº 5.172, de 1966. Código Tributário Nacional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 20 de jan. 2020.
31
que ninguém ultrapasse o limite do direito alheio. Isso, porque, o direito individual tem como
limite natural o direito de outrem, cabendo ao Estado garantir o controle da ordem coletiva,
impedindo que hajam excessos. Caio Tácito aduz que o poder de polícia nasce implementando
o dever geral de não perturbar como limite à liberdade individual.41
De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, a expressão poder de polícia possui um
sentido amplo e um estrito. O primeiro, corresponde a qualquer ação estatal limitadora de
direitos individuais, como a atuação do Poder Legislativo. Já o segundo sentido, que aqui nos
interessa, diz respeito ao poder de polícia enquanto atividade administrativa, consubstanciada
na prerrogativa conferida aos agentes públicos de poder restringir e condicionar a liberdade e a
propriedade.42
Para Hely Lopes Meirelles, a razão de existência do poder de polícia é o interesse
coletivo, de modo que esse poder é o mecanismo de frenagem pelo qual o Estado pode
condicionar a atuação privada em benefício da coletividade, com fundamento na supremacia do
interesse público proveniente dos mandamentos constitucionais. Assim, “por esse mecanismo,
que faz parte de toda Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar
contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança
nacional”43.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que “o fundamento do poder de polícia é o
princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração
posição de supremacia sobre os administrados”44 e que, embora haja uma aparente
incompatibilidade entre o exercício dos direitos fundamentais e a limitação imposta pelo
Estado, é a própria limitação que garante o exercício desses direitos por todos.
Por sua vez, Marçal Justen Filho acrescenta à definição de poder de polícia a ideia de
democracia, definindo esse poder como sendo “a competência para disciplinar o exercício da
autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da democracia, segundo os
princípios da legalidade e da proporcionalidade”45.
41 TÁCITO, Caio. Princípio de legalidade e poder de polícia. Revista Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 2001. p.
Acesso em: 25 jan. 2020. 42 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p.
137 – 138. 43 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 115. 44 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 191. 45 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.
585.
32
Diz-se, portanto, que a liberdade e a propriedade são direitos condicionados, pois estão
subordinados ao interesse da coletividade, devendo o Estado ser o protagonista, por meio do
seu poder de polícia, na preservação do interesse público.46 Por restringir direitos tão caros à
democracia, a atuação estatal deve estar sempre dentro dos parâmetros estabelecidos em lei e
se guiar de acordo com a proporcionalidade, devendo a sua atuação ser adequada e necessária,
não se admitindo que as competências de poder de polícia administrativa sejam utilizadas de
modo antidemocrático.47
Desse modo, não pode o Estado, sob a justificativa de exercer o poder de polícia, anular
ou restringir arbitrariamente os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, de
maneira que as intervenções administrativas em prol do bem-estar social devem sempre
respeitar aos limites impostos pela Constituição.
Além disso, o poder de polícia tem como objetivo a proteção do interesse público no
que concerne a vários setores da sociedade, abrangendo, a título de exemplo, a segurança, a
higiene, os costumes, o meio ambiente, a defesa do consumidor, dentre outros, conforme
demonstra Hely Lopes:
A extensão do poder de polícia é hoje muito ampla, abrangendo desde a proteção à
moral e aos bons costumes, a preservação da saúde pública, o controle de publicações,
a segurança das construções e dos transportes até a segurança nacional em particular.
Daí encontrarmos nos Estados modernos a polícia de costumes, a polícia sanitária, a
polícia das construções, a polícia das águas, a polícia da atmosfera, a polícia florestal,
a polícia de trânsito, a polícia dos meios de comunicação e divulgação, a polícia das
profissões, a polícia ambiental, a polícia da economia popular, e tantas outras que
atuam sobre atividades particulares que afetam ou possam afetar os superiores
interesses da comunidade que ao Estado incumbe velar e proteger. Onde houver
interesse relevante da coletividade ou do próprio Estado haverá, correlatamente, igual
poder de polícia administrativa para a proteção desses interesses. É a regra, sem
exceção.48
Acrescenta-se ainda que, para Moreira Neto, a atuação do poder de polícia é dividida
em campos e em setores. Os campos são as quatro grandes áreas de interesse público: a
segurança, a salubridade, o decoro e a estética. Por sua vez, os setores seriam específicos e,
portanto, não haveria um rol exaustivo, mas sim exemplificativo deles. Dentre os setores
46 “O interesse público, desde as suas origens liberais, é termo identificado com as ideias de bem comum, felicidade
geral e vontade geral. É expressão conectada às aspirações de uma coletividade que quer para si o bem, a felicidade,
a harmonia”. SIQUEIRA, Mariana de. Interesse público no direito administrativo brasileiro: da construção da
moldura à composição da pintura. 2015. 280 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós Graduação em
Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. p. 101. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/16281>. Acesso em: 27 jan. 2020. 47 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.
587. 48 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 118.
33
específicos de atuação administrativa de polícia, destaca-se a polícia dos costumes e a polícia
sanitária.
Polícia dos costumes: mas o Estado não deve acompanhar inane a decadência da
tessitura social. Antes, compete-lhe policiar essas atividades, que afetam pelo
exemplo e destroem pela prática o vigor moral dos povos, combatendo o
afrouxamento e a desagregação éticos, pela lei e pela atividade administrativa de
polícia, ambos com preponderante caráter suasório e pedagógico. Essas limitações
incidem sobre uma extensa lista de males sociais, destinadas à prevenção e repressão,
em nível administrativo: do alcoolismo, da pornografia, do decoro no trajar, na
linguagem e nos gestos, da mendicância, do uso de estupefacientes, da perversão
sexual, do proxenetismo, da vadiagem, da exploração de menores, da crueldade contra
animais, do vandalismo, exemplificados entre tantas outras mazelas sociais.
[...]
Polícia sanitária: é o setor que visa à defesa da saúde humana, coletivamente
considerada. Para tanto, desdobra-se em vários subsetores: a polícia higiênica, a
polícia bromatológica, a polícia médico-farmacêutica e a polícia zoo-sanitária, como
expressões contemporaneamente mais importantes no campo da salubridade.49
É possível observar que a Administração Pública, quando no uso das suas atribuições
provenientes do poder de polícia, poderá intervir em diversos espectros da sociedade para que
alcance o interesse público. Essas intervenções administrativas na esfera privada em
decorrência do poder de polícia somente são possíveis por causa dos atributos que este poder
possui. Classicamente, a doutrina assinala que são três os atributos do poder de polícia: a
discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade.
Quanto à discricionariedade, atualmente há um forte descontentamento com a aplicação
desta terminologia. Marçal Justen Filho faz a ressalva de que “não existe a categoria de poder
discricionário. Há competências administrativas disciplinadas por lei, as quais podem
contemplar margem de discricionariedade”50. Isso decorre do fato da atuação administrativa ter
como princípio norteador a legalidade, de modo que a administração fica adstrita a agir em
conformidade com aquilo que está previsto em lei. No entanto, se diz que o poder de polícia é
caracterizado pela discricionariedade, pois não há como o legislador esgotar todas as razões que
ensejam limitações às liberdades, sendo muitas vezes necessária uma análise de caso a caso.51
Assim, em determinadas situações existe uma margem de escolha para o administrador,
que deverá respeitar as delimitações impostas pela lei. Caio Tácito ressalta que o poder
discricionário constitui tão somente a faculdade concedida à administração para apreciar o valor
49 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: Parte introdutória, parte geral e
parte especial. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 540 -543. 50 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.
594. 51 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Direito
Administrativo, [s.l.], v. 222, 22 abr. 2015. Fundação Getúlio Vargas. p. 97-98. Disponível em:
dos motivos e determinar o objeto do ato administrativo52, devendo se ater a estrita legalidade
no que concerne à competência, à finalidade e à forma.
Sobre o tema, Di Pietro anota que embora a discricionariedade esteja presente na maior
parte das medidas de polícia, isso nem sempre ocorre. Em algumas hipóteses a lei estabelece
requisitos determinados, ficando a Administração adstrita a eles, devendo adotar a solução
previamente estabelecida, sem possibilidade de opção, sendo, nesses casos, o poder
vinculado.53
A discricionariedade, por conseguinte, distingue-se da arbitrariedade, pois a
“discricionariedade é liberdade de agir dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação fora ou
excedente da lei, com abuso ou desvio de poder”54. A discricionariedade se mostra como um
atributo que decorre da lei, aplicável a casos específicos no exercício do poder de polícia pela
administração. Para Vladimir França, não há como se confundir a discricionariedade com a
arbitrariedade, pois o exercício do poder discricionário pressupõe obediência aos parâmetros
legais, com a devida subsunção do caso à lei, não havendo coerência caso o Estado Democrático
de Direito apresentasse um poder sem limites, danoso ao ordenamento jurídico.55
A autoexecutoriedade, por sua vez, corresponde à capacidade que detém a
Administração Pública de executar seus próprios atos, dispensando autorização prévia do Poder
Judiciário. Desde que presentes os pressupostos legais, a Administração pode executar o ato
imediatamente e de forma integral, independentemente da autorização de qualquer outro
Poder.56 Ressalva-se que nem todos os atos do poder de polícia são autoexecutáveis, pois é
necessária a autorização legal expressa para que a administração possa se valer dessa
característica ou que se trate da única medida urgente aplicável capaz de coibir eventual
prejuízo ao interesse público.
Por fim, tem-se o atributo da coercibilidade. Os atos de polícia são obrigatórios para
seus destinatários, podendo a Administração utilizar meios coercitivos para torna-los efetivos.
Para Di Pietro “a coercibilidade é indissociável da autoexecutoriedade. O ato de polícia só é
autoexecutório porque dotado de força coercitiva”57. A coerção também independe de
52 TÁCITO, Caio. O poder de polícia e seus limites. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 27,
p.1-11, 1952. p. 9. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/12238>. Acesso
em: 03 fev. 2020. 53 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 196. 54 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 120. 55 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Direito
Administrativo, [s.l.], v. 222, 22 abr. 2015. Fundação Getúlio Vargas. p. 102. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/48940 >. Acesso em: 30 jan. 2020. 56 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p.
149. 57 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 198.
35
autorização do Judiciário, pois o Poder Público tem a prerrogativa de determinar e executar
suas próprias medidas.
O atributo da coercibilidade do ato de polícia justifica o emprego da força física
quando houver oposição do infrator, mas não legaliza a violência desnecessária ou
desproporcional à resistência, que em tal caso pode caracterizar o excesso de poder e
o abuso de autoridade nulificadores do ato praticado e ensejadores das ações civis e
criminais para reparação do dano e punição dos culpados.58
Assim como os demais atributos, a coercibilidade não é irrestrita, devendo obedecer aos
parâmetros constitucionais de proporcionalidade. Assim, conclui-se que o poder de polícia
permite, em determinados casos, que o administrador tenha uma margem de escolha e que a
administração, sem influência do Poder Judiciário, tome suas próprias decisões e as execute,
sempre em observância à legalidade e aos princípios constitucionais.
Em face do exposto, define-se a polícia administrativa como sendo a atividade da
Administração Pública que pode ser realizada por atos normativos ou concretos, de condicionar
a liberdade e a propriedade, com fundamento na supremacia geral do interesse público, sempre
dentro dos parâmetros legais, impondo de maneira coercitiva aos particulares um dever de
abstenção.59
Assim, constata-se que a internação involuntária de usuários de drogas se enquadra nas
definições do poder de polícia, constituindo um desdobramento dessa capacidade conferida ao
Poder Público, especialmente da polícia de costumes e da polícia sanitária alhures apresentadas
na definição de Moreira Neto.
Ao internar involuntariamente o indivíduo, o Estado age limitando sua liberdade
individual com a justificativa de proteção da coletividade, dos costumes, de manutenção e do
controle do bem-estar nos espaços públicos urbanos. De um lado se encontra o interesse privado
de liberdade individual e autonomia da vontade e do outro o interesse público no que diz
respeito a proteção da saúde do indivíduo para a garantia do bem-estar coletivo.
Ademais, observa-se a presença dos atributos do poder de polícia. Primeiro, a própria
internação constitui uma medida coercitiva por cercear diretamente a liberdade individual em
prol do interesse social. Além disso, é o médico que irá definir se é ou não necessária a
internação diante do caso concreto, agindo discricionariamente dentro dos limites legais. E, por
58 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 121. 59 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p.
861.
36
último, por não haver necessidade de provocação do poder judiciário, sendo, portanto, um ato
autoexecutório.
Assim como todos os atos derivados do poder de polícia, a internação involuntária
encontra demarcação na Constituição Federal e nas leis que disciplinam a temática, bem como
está sujeita ao controle administrativo, devendo submeter-se aos seus limites.
3.2. OS LIMITES DO PODER DE POLÍCIA EM VIRTUDE DO CONTROLE
ADMINISTRATIVO
O poder de polícia, conforme visto, caracteriza-se como uma forma de proteção estatal
para que seja garantido o exercício dos direitos fundamentais, fomentando a convivência
pacífica entre os cidadãos, com a finalidade de que os direitos de cada um não ofendam,
perturbem ou impeçam o exercício dos direitos de outrem.
Porém, tal poder não é ilimitado, havendo limitações que separam a discricionariedade
da arbitrariedade, devendo a administração estimar até onde poderá exercitar seu poder sem que
haja lesão ao direito do administrado.60 Hely Lopes trabalha essa perspectiva ao apontar que
Os limites do poder de polícia administrativa são demarcados pelo interesse social em
conciliação com os direitos fundamentais do indivíduo assegurados na Constituição
da República (art. 5.º). Do absolutismo individual evoluímos para o relativismo social.
Os Estados Democráticos, como o nosso, inspiram-se nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana. Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição
dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum. Em
nossos dias predomina a ideia da relatividade dos direitos, porque, como bem adverte
Ripert, "o direito do indivíduo não pode ser absoluto, visto que absolutismo é
sinônimo de soberania. Não sendo o homem soberano na sociedade, o seu direito é,
por consequência, simplesmente relativo".61
No Estado democrático é preciso que seja encontrado o equilíbrio entre os direitos
individuais e o interesse coletivo, devendo ser respeitadas as liberdades individuais e ao mesmo
tempo estabelecidas delineações para que nenhum indivíduo suprima o exercício do direito
alheio. Para isso, é necessário que o Estado observe os limites que lhes são impostos para que
não aja em desconformidade com o ordenamento jurídico ou de maneira arbitrária, cerceando
60 LAZZARINI·, Alvaro. LIMITES DO PODER DE POLÍCIA. Revista de Direito Administrativo FGV, Rio de
Janeiro, v. 198, p.69-83, 1994. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46412>. Acesso em: 29 jan. 2020. 61 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 118.
37
direitos para além do necessário. Cretella Júnior diz que “o requisito da conveniência ou do
interesse público é, assim, pressuposto necessário à limitação dos direitos do indivíduo”62.
No que concerne à internação involuntária, observa-se a manifestação do poder de
polícia com uso da prerrogativa da discricionariedade, uma vez que fica a cargo do Poder
Público, representado na figura do médico, analisar, conforme o caso concreto, a possiblidade
de internação. Entretanto, este poder-dever discricionário está subordinado ao ordenamento
jurídico, devendo a opção da Administração Pública ser sempre a melhor, considerando o
interesse público diante da situação jurídica estabelecida63. Assim, a internação só será válida
caso sejam respeitados os limites impostos à Administração.
É nesse contexto de adequação dos atos administrativos à legalidade e à Constituição
que se estabelece o chamado controle da Administração Pública. Caio Tácito indica que “a
coexistência da liberdade individual e do poder de polícia repousa na conciliação entre a
necessidade de respeitar essa liberdade e a de assegurar a ordem social”64, desse modo o
controle administrativo assume especial relevância para eliminar os arbítrios estatais.
Controle, na sua acepção administrativa, pode ser conceituado como uma faculdade de
vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade dispõe sobre a conduta de
outro.65 Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a Administração Pública pode, ela mesma, exercer
controle sobre os seus próprios atos, bem como se sujeitar ao controle por parte dos Poderes
Legislativo e Judiciário.66 Em complementariedade, Celso Antônio Bandeira de Mello aponta
que
No Estado de Direto, a Administração Pública assujeita-se a múltiplos controles, no
afã de impedir-se que desgarre de seus objetivos, que desatenda as balizas legais e
ofenda interesses públicos ou dos particulares. Assim são concebidos diversos
mecanismos para mantê-la dentro das trilhas a que está assujeitada. (...) Tais controles
envolvem quer aspectos de conveniência e oportunidade quer aspectos de
legitimidade.67
62 CRETELLA JÚNIOR, José. Polícia e poder de polícia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v.
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/44771>. Acesso em: 25 jan. 2020. p. 31-32. 63 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Direito
Administrativo, [s.l.], v. 222, 22 abr. 2015. Fundação Getúlio Vargas. p. 98. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/48940 >. Acesso em: 30 jan. 2020. 64 TÁCITO, Caio. O poder de polícia e seus limites. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 27,
p.1-11, 1952. p. 10. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/12238>. Acesso
em: 03 fev. 2020. 65 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 554. 66 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 970. 67 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.
961.
38
Consoante o excerto acima transcrito, observa-se que não há como se falar em um único
controle administrativo, existindo uma multiplicidade desses controles que irão se distinguir
conforme determinados critérios. Para ele, os controles se dividirão em interno, quando
exercido por órgãos da própria administração; e, em externo, quando efetuado por órgãos
alheios ao Poder Executivo.68
Por sua vez, Marçal Justen Filho traz uma definição mais aperfeiçoada desses dois tipos
de controle:
O controle interno da atividade administrativa é o dever-poder imposto ao próprio
Poder de promover a verificação permanente e contínua da legalidade e da
oportunidade da atuação administrativa própria, visando a prevenir ou eliminar
defeitos ou aperfeiçoar a atividade administrativa, promovendo as medidas
necessárias a tanto.69
O controle externo é o dever-poder atribuído constitucionalmente e instituído por lei
como competência específica de certos Poderes e órgãos, tendo por objeto identificar
e prevenir defeitos ou aperfeiçoar a atividade administrativa, promovendo as medidas
necessárias para tanto.70
As definições supramencionadas demonstram que o controle não se aplica unicamente
à atuação do Poder Executivo, existindo também controle da atividade administrativa
legiferante e jurisdicional. Desse modo, entende-se que o controle interno diz respeito ao
controle exercido por um poder em relação a sua própria atividade, não sendo exclusivo apenas
ao executivo, mas sim executável pelo judiciário e pelo legislativo quando atuam
administrativamente. Além disso, o controle interno é obrigatório, tendo todos os poderes
estatais o dever de controlar os atos administrativos que produzam.
Já o controle externo corresponde a fiscalização da atividade administrativa exercida
por um órgão externo ao poder que o praticou, sendo, portanto, desempenhado por um poder
em relação a outro. Embora também seja um poder-dever, só pode ser exercido por órgãos com
competência prevista para tanto, como por exemplo, a competência dada pela Constituição para
que o poder judiciário reveja os atos administrativos do poder executivo.
Ademais, as espécies de controle podem se distinguir de acordo com o momento
temporal de exercício. O controle será prévio, quando exercido de maneira preventiva, com o
fito de evitar a prática de ato ilegal ou contrário ao interesse público; concomitante, quando
68 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.
963. 69 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1204. 70 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1211.
39
ocorrer no mesmo momento que a prática do ato administrativo; ou posterior, nos casos em que
o ato já fora praticado, mas necessita ser revisto, seja para corrigi-lo, desfazê-lo ou tão somente
confirmá-lo.71
Também se diferenciam os controles conforme a natureza da atividade a ser controlada,
podendo ser de legalidade ou de mérito. O primeiro, também denominado de controle de
legitimidade, tem como objetivo verificar se o ato ou procedimento administrativo é compatível
com as normas legais que o regem. Por normas legais, “deve-se entender não só o atendimento
de normas legisladas como, também, dos preceitos da Administração pertinentes ao ato
controlado”72. Por outro lado, o controle de mérito objetiva a revisão do conteúdo da decisão
discricionária, verificando a oportunidade e a conveniência da conduta administrativa.73
O ponto que mais merece atenção nesse tipo de controle reside na competência para
exercê-lo. Com efeito, o controle de mérito é privativo da Administração Pública e,
logicamente, não se submete à sindicabilidade no Poder Judiciário. A razão é simples.
Se esse controle tem por objeto a avaliação de condutas administrativas, há de traduzir
certa discricionariedade atribuída aos órgãos administrativos. Somente a estes
incumbe proceder a essa valoração, até porque esta é inteiramente administrativa. Ao
Judiciário somente é cabível o controle de legalidade, vez que constitui sua função
decidir sobre os confrontos entre as condutas administrativas e as normas jurídicas,
como vimos acima.74
O controle da atividade administrativa, quando realizado pelo Poder Executivo em
relação aos seus próprios atos se caracteriza por ser um controle interno que pode ocorrer nos
três momentos vistos e que também pode verificar a legitimidade ou o mérito, quando se tratar
de ato discricionário. Justen Filho destaca que o controle interno pode ser exercitado de ofício
ou por provocação dos particulares, pois a Constituição assegura a possibilidade de o controle
ser realizado por terceiros não investidos na condição de agentes públicos.75 Dentre os
instrumentos para tanto, destacam-se o direito de petição previsto no art. 5.º, XXXIV, da
Constituição Federal; a reclamação administrativa relativa à prestação dos serviços públicos,
estabelecida no art. 37, § 3.º, I, da CF; e, os recursos administrativos definidos
constitucionalmente no art. 5.º, LV.76
71 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 971 – 972. 72 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 547. 73 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1202. 74 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p.
1088. 75 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1210. 76 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: Parte introdutória, parte geral e
parte especial. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 721-722.
40
No tocante à possibilidade de a Administração Pública rever seus próprios atos quando
ilegais, inoportunos ou inconvenientes, o controle exercitado de ofício decorre do poder de
autotutela, que “encontra fundamento nos princípios a que se submete a Administração Pública,
em especial o da legalidade e o da predominância do interesse público, dos quais decorrem
todos os demais”77. Com fulcro nesse poder, o controle administrativo pode confirmar, corrigir
ou alterar o ato administrativo praticado78, sendo possível, em caso de defeito a anulação do ato
ilegal, a revogação do ato inconveniente, a ratificação ou suprimento do ato evaiado de defeito
sanável, ou a orientação para alteração pontual ou futura do procedimento ou entendimento
adotado79.
Em relação ao controle externo da atividade administrativa do Poder Executivo, pode-
se aludir de forma geral à existência de controles por parte do Poder Legislativo, do Ministério
Público e do Poder Judiciário80, interessando aqui os dois últimos.
Inicialmente, é preciso destacar que o controle exercido entre um poder em relação ao
outro é decorrência direta do princípio da separação dos poderes, sendo as modalidades de
controle externo exclusivamente previstas na Constituição e disciplinadas em lei.81 O art. 5º,
XXXV, da Constituição Federal estabelece a inafastabilidade da jurisdição ao preceituar que “a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, caso a
Administração Pública, no exercício de suas prerrogativas, lesione ou ameace direitos é
possibilitado ao indivíduo ou ao Ministério Público, na sua função de defesa da ordem jurídica
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, acionar o poder judiciário para que seja
exercido o controle da atividade administrativa.
Existem, para tanto, dois sistemas de controle jurisdicional. O primeiro deles, de origem
francesa, denomina-se contencioso administrativo (ou sistema de jurisdição administrativa) e
se caracteriza por apresentar um caráter duplo, com a existência de duas ordens de jurisdição:
a comum e a administrativa.82 No sistema jurídico pátrio, porém, vigora o outro sistema,
77 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 973. 78 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p.
1090. 79 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1207. 80 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1211. 81 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
denominado de jurisdição una, em que todos os litígios, sejam eles entre particulares ou
envolvendo o Poder Público, são apreciados pela justiça comum.83
Para Di Pietro84 e Carvalho Filho85 a adoção do sistema de unidade de jurisdição no
Brasil tem como fundamento o já mencionado art. 5º, XXXV, da Constituição, que proíbe a lei
de excluir da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito. Desse modo, nenhuma
decisão, independente de qual poder seja fruto, será excluída do exame pelo órgão jurisdicional.
Anteriormente, ao se falar sobre os tipos de controle, destacou-se que o controle de
mérito só pode ser feito quando se tratar de controle interno. À vista disso, o controle judicial
sobre atos administrativos, espécie de controle externo, é exclusivamente de legalidade.86 É
vedado ao judiciário a análise do chamado mérito administrativo, devendo se ater somente à
legalidade do ato, pois “o princípio da separação dos poderes acarreta a existência de um núcleo
mínimo da atividade administrativa que não comporta revisão pelo órgão controlador
externo”87.
Importante destacar que, embora o mérito não possa ser discutido judicialmente, os atos
discricionários não fogem do controle judicial no que tange aos seus limites legais, pois, não
obstante haja margem de discricionariedade para que o administrador decida de acordo com a
oportunidade e conveniência, a forma, a finalidade e a competência dos atos administrativos
serão sempre vinculados.
Não se admite que o juízo de conveniência e oportunidade, inerente à atividade
administrativa, seja revisado pelo órgão de fiscalização. Mas isso não impede a
invalidação de atos por defeitos formais: assim, não se pode invocar a competência
discricionária para defender ato produzido com infração do devido processo legal. Por
decorrência, deve ser pronunciado o defeito do ato quando se evidenciar que a
Administração deixou de tomar todas as precauções necessárias para adotar a solução
mais adequada em vista do caso concreto.88
Hely Lopes Meirelles acrescenta que além da legalidade também deve ser verificada a
legitimidade, que corresponde à conformidade com a moral administrativa e com o interesse
83 CARVALHO NETO, Tarcisio Vieira de. Controle jurisdicional da Administração Pública: algumas
ideias. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 50, n. 199, p.121-141, 2013. p. 132-133. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/199/ril_v50_n199_p121>. Acesso em: 03 fev. 2020. 84 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 989. 85 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p.
1160. 86 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p.
1160-1161. 87 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1213. 88 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
1217.
42
coletivo89, devendo o ato respeitar tanto os limites impostos pela lei, como os princípios que
regem o Direito Administrativo.
A partir da ideia de que o mérito administrativo deve se ater a legalidade e de que a
legalidade compreende também a legitimidade, há uma ampliação do que seriam os “limites da
lei” resultando, inevitavelmente, em uma redução da margem de discricionariedade
administrativa e ampliação do controle judicial. Atualmente, há quem defenda que não existe
limites para o judiciário apreciar o mérito dos atos administrativos, o que não merece prosperar,
pois embora haja redução da margem de escolha diante da ampliação dos parâmetros de
legalidade, ainda há um núcleo de escolha pela melhor opção que cabe apenas à Administração
Pública tomar.90
Por fim, cumpre mencionar que para que se ingresse em juízo não há necessidade do
esgotamento das vias administrativas, pois são independentes entre si, podendo o indivíduo
lesado em seus direitos escolher entre elas.91
Quanto ao controle externo exercido pelo Ministério Público, esse dispõe da
possiblidade de instaurar inquérito civil público para apurar eventuais provas e informações
sobre o desempenho da atividade administrativa, bem como deverá acionar o judiciário caso
constate irregularidades, pois não dispõe de competência própria para impor diretamente
sanções.92 Além do órgão ministerial, a Defensoria Pública também é uma instituição essencial
à função jurisdicional do Estado, cabendo sua atuação no controle e fiscalização dos direitos
individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso
LXXIV do art. 5º da CF.93
No que tange à internação involuntária de usuários de drogas, a Lei 13.840/19 prevê no
§7º, do art. 23-A, que as internações deverão ser informadas ao Ministério Público e à
Defensoria Pública, sendo possibilitado a estes órgãos o exercício do controle do ato praticado.
Assim, caso a internação não se adeque aos preceitos estabelecidos em lei, é possível que
acionem o judiciário para que haja um controle jurisdicional do ato administrativo.
89 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 578. 90 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio
da legalidade e a discricionariedade administrativa. Atualidades Jurídicas: Revista do Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil ‐ Oab, Belo Horizonte, n. 2, p.1-19, 2012. p. 8. Disponível em:
legislativo.96 Ao aplicar a lei, não era realizada a verificação dos seus efeitos, se bons ou ruins,
justos ou injustos, havendo somente a aferição da validade da norma, sendo os aspectos morais
extrínsecos ao direito.97
O positivismo, embora garantisse a segurança jurídica, afastava a ideia de justiça e de
moralidade do Direito. Desse modo, fora deturpado98 e utilizado para justificar o cometimento
de diversas atrocidades em nome da lei, especialmente durante o início do século XX, quando
emergiram os governos nazista e fascista na Europa.
Após a Segunda Guerra Mundial, sucedendo o constitucionalismo liberal, os direitos
fundamentais passaram a se irradiar pelos ordenamentos jurídicos ocidentais99, adentrando
todas as esferas do Direito e culminando no chamado Neoconstitucionalismo100.
As principais características desse novo posicionamento teórico podem ser
identificadas, em suma, como a) a abertura valorativa do sistema jurídico e, sobretudo,
da Constituição; b) tanto princípios quanto regras são considerados normas jurídicas;
c) a Constituição passa a ser o locus principal dos princípios; e d) o aumento da força
política do Judiciário em face da constatação de que o intérprete cria norma jurídica.
[...] O pós-positivismo, ao contrário, cria sustentação jusfilosófica para que se possam
buscar parâmetros de justiça ou equidade quando da aplicação concreta do direito.
Isso se dá com a abertura valorativa do sistema. Nessa nova corrente, a forma e o
momento da inserção dos valores no sistema são alterados; os valores permeiam o
96 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. Do positivismo ao pós-
positivismo jurídico: O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 48, n. 189, p.105-131, 2011. p. 106. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242864>. Acesso em: 13 fev. 2020. 97 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. Do positivismo ao pós-
positivismo jurídico: O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 48, n. 189, p.105-131, 2011. p. 109. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242864>. Acesso em: 13 fev. 2020. 98 “Hodiernamente, há associações feitas entre os regimes totalitários do século XX e o Positivismo Jurídico,
todavia destaca-se a seguinte ressalva: “Entretanto, não cabe reduzir a teoria jurídica de Kelsen a uma simples
concepção justificadora da violência estatal. O fazê-lo seria tentar extrair de Kelsen o que o próprio não se propôs
a oferecer. E mesmo que tal introspecção intelectual fosse levada a diante, dificilmente essa redução do direito ao
papel policial do Estado se ajustaria com o rigor metodológico tão arduamente por ele defendido e buscado a todo
custo para se afastar do mundo dos fatos. Feita essas ressalvas, Kelsen foi um democrata por excelência. Ao
enaltecer o aspecto sintático do direito e circunscrever o espaço de ação de um juiz àquilo que é previsto em um
ordenamento, ele corrobora com uma das principais construções do Estado moderno pós Revolução Francesa: a
lei impõe os freios formais à própria ação do Estado que, até então, agia sob a máxima “The king can do no wrong”.
Acentuar o limite adstrito do juiz ao que é estabelecido em lei é defender a própria democracia”. FONSECA,
Alexandre Müller. Positivismo jurídico x materialismo histórico: uma leitura acerca das fundações dos sistemas
jurídicos de Kelsen e Pachukanis / Legal positivism x historical materialism. Revista Direito e Práxis, [s.l.], v. 8,
n. 1, p.14-52, 8 mar. 2017. Universidade de Estado do Rio de Janeiro. p. 31-32. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.12957/dep.2017.20164>. Acesso em: 13 fev. 2020. 99 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; FREITAS, Marcyo Keveny de Lima. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO SOB UMA VISÃO NEOCONSTITUCIONALISTA. Revista
Digital Constituição e Garantia de Direitos, Natal, v. 11, n. 2, p.279-295, 04 abr. 2019. p. 285. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/15398>. Acesso em: 10 fev. 2020. 100 SIQUEIRA, Mariana de. Interesse público no direito administrativo brasileiro:: da construção da moldura
à composição da pintura. 2015. 280 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós Graduação em Direito,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. p. 105. Disponível em:
sistema tanto no momento da confecção da norma como durante sua aplicação. Os
princípios são os carreadores dos valores nessa concretização.101
No Brasil, as décadas de 1960 a 1980 foram marcadas pelo período da ditadura militar,
caracterizado pelo autoritarismo. A partir de 1985, com a redemocratização do país, houve a
necessidade de se estabelecer uma nova Constituição, desencadeando a Assembleia Nacional
Constituinte de 1987 que culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
apelidada de Constituição Cidadã102, por tratar dos mais variados direitos e por estabelecer
limites frente aos abusos do Poder Público.103
A partir de então, o Brasil passou a vivenciar o neoconstitucionalismo, ganhando relevo
a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição. Os valores
estabelecidos na Carta de 1988 se irradiaram por todo ordenamento jurídico, de modo que o
Código Civil, outrora visto como centro do Direito, deixou essa posição para as normas
constitucionais, devendo todos os ramos jurídicos serem filtrados e validados pela
Constituição.104
Inserido nessa lógica, o Direito Administrativo teve que se compatibilizar com os
preceitos constitucionais, devendo ser compatível com a materialidade da Constituição,
resultando no que Mariana de Siqueira denomina “Neoadministrativismo”105.
Devido a essa consolidação do Estado Democrático de Direito, as Constituições atuais
possuem uma elaboração voltada aos direitos e garantias fundamentais do
cidadão, invertendo-se a supremacia, em decorrência de que o Estado passou a ser
controlado, para justamente proporcionar a todos o bem-estar. O Estado, portanto,
deixou de ser um ente violador dos direitos fundamentais, passando a ser um ente
101 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. Do positivismo ao pós-
positivismo jurídico: O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 48, n. 189, p.105-131, 2011. p. 114 e 116. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242864>. Acesso em: 13 fev. 2020. 102 Apelido dado pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, durante o
discurso de promulgação da Constituição Federal de 1988. Câmara dos Deputados – Departamento de Taquigrafia,
Revisão e Redação. Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de
outubro de 1988, p. 14380-14382. 1988. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-
1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20-%20DISCURSO%20%20REVISADO.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2020. 103 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; FREITAS, Marcyo Keveny de Lima. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO SOB UMA VISÃO NEOCONSTITUCIONALISTA. Revista
Digital Constituição e Garantia de Direitos, Natal, v. 11, n. 2, p.279-295, 04 abr. 2019. p. 292. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/15398>. Acesso em: 10 fev. 2020. 104 SIQUEIRA, Mariana de. Interesse público no direito administrativo brasileiro:: da construção da moldura
à composição da pintura. 2015. 280 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós Graduação em Direito,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. p. 114-115. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/16281>. Acesso em: 27 jan. 2020. 105 SIQUEIRA, Mariana de. Interesse público no direito administrativo brasileiro:: da construção da moldura
à composição da pintura. 2015. 280 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós Graduação em Direito,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015. p. 118. Disponível em:
garantidor das prerrogativas constitucionais de cada cidadão, respeitado assim,
direitos e garantias e assumindo obrigações frente aos particulares. A relação do
Direito Administrativo com o Direito Constitucional é de extrema importância para a
ciência jurídica haja vista o Direito Constitucional alinhar as bases e parâmetros do
Direito Administrativo, sendo este, aliás, o lado dinâmico daquele. Assim, é na
Constituição que se encontram disciplinados os Princípios da Administração Pública,
as normas sobre servidores públicos e as competências do Poder Executivo.106
Com base nessa tendência, a Constituição de 1988 se preocupou ao longo do seu texto
com normas administrativas, possuindo um Capítulo (VII) dedicado à Administração Pública.
Essa tendência não se limitou apenas à incorporação do direito ao texto constitucional,
traduzindo-se também “em um movimento de releitura de institutos e conceitos básicos da
Administração Pública à luz dos princípios constitucionais”107.
O sistema passou, portanto, a ser todo interligado. Para Luís Roberto Barroso, o
conteúdo material e axiológico das normas constitucionais se irradia, com força normativa, para
todo ordenamento jurídico, “os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados
nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as
normas do direito infraconstitucional”108.
Com isso, a atuação administrativa atual deve respeitar não somente os preceitos
administrativos e a supremacia do interesse público, mas se guiar em prol da dignidade humana
e da proteção dos direitos fundamentais.
É à luz dessas premissas que se faz necessária a filtragem constitucional da Lei
13.840/2019, sendo necessário primeiro estabelecer os modelos de tratamento alternativos à
internação para posteriormente verificarmos qual é o modelo mais adequado frente aos
parâmetros constitucionais.
4.1. MODELOS DE TRATAMENTO DOS USUÁRIOS DE DROGAS ALTERNATIVOS À
INTERNAÇÃO
106 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; FREITAS, Marcyo Keveny de Lima. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO SOB UMA VISÃO NEOCONSTITUCIONALISTA. Revista
Digital Constituição e Garantia de Direitos, Natal, v. 11, n. 2, p.279-295, 04 abr. 2019. p. 282. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/15398>. Acesso em: 10 fev. 2020. 107 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; FREITAS, Marcyo Keveny de Lima. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO SOB UMA VISÃO NEOCONSTITUCIONALISTA. Revista
Digital Constituição e Garantia de Direitos, Natal, v. 11, n. 2, p.279-295, 04 abr. 2019. p. 288. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/15398>. Acesso em: 10 fev. 2020. 108 BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. o.
2020. 111 TISOTT, Zaira Letícia et al. Álcool e outras drogas e a implantação da política de redução de danos no Brasil:
Revisão narrativa. Revista Brasileira Ciências da Saúde - Uscs, [s.l.], v. 13, n. 43, p.79-89, 16 mar. 2015. USCS
Universidade Municipal de São Caetano do Sul. p. 80. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.13037/rbcs.vol13n43.2730>. Acesso em: 18 fev. 2020. 112 RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle
penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese (Doutorado) -
Curso de Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo., São Paulo, 2006, p. 67.
49
início ou o uso contínuo do consumo de drogas. Redução de danos também aceita o
fato de que muitas pessoas não conseguem ou não querem parar de usar drogas.
Acesso a um tratamento adequado para o uso de drogas é importante para pessoas que
têm problemas com as drogas, mas muita gente não tem acesso ou não consegue parar
de usar. Além do mais, a maioria das pessoas que usam drogas não precisam de
tratamento. Existe uma necessidade de prover pessoas que usam drogas com opções
que minimizem os riscos de continuarem usando drogas e acabarem causado danos a
eles próprios ou a outros. É portanto essencial a existência de informações, serviços e
outras intervenções de redução de danos que ajudem as pessoas a se manter seguros e
saudáveis. Deixar as pessoas morrerem ou adoecerem por uma causa evitável, não é
uma opção. Muitas pessoas que usam drogas preferem utilizar maneiras informais e
“não clínicas” para diminuir seu consumo de drogas ou pelo menos diminuir os riscos
associados ao consumo.113
Desse modo, a redução de danos parte da ideia de que os adictos devem ser reconhecidos
como sujeitos de direitos, priorizando a busca por um tratamento que faça sentido e que seja
realmente efetivo, cabendo ao usuário a escolha pelo método que mais se adeque aos seus
anseios. O papel dos profissionais de saúde é de auxiliá-los, sem impor métodos, a fim de que
sejam resgatadas a autonomia e a cidadania.114
No Brasil, na cidade Santos (SP), em 1989, houve uma das primeiras tentativas de
implementação pelo Poder Público dessa política, todavia, a ação foi judicialmente frustrada,
sendo interrompida pela justificativa de incentivar o uso de drogas.
Santos vivia, nesse momento, uma das gestões municipais mais promissoras para a
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) através de práticas concretas que
animariam o sentido de saúde democrática. Apesar desse cenário, aparentemente
favorável a práticas progressistas de atenção e gestão em saúde, o então secretário
municipal de saúde, David Capistrano, e o Coordenador do programa de DST/AIDS,
Fábio Mesquita, sofrem uma ação judicial por adotarem a estratégia de Redução de
Danos, acusados de incentivarem o uso de drogas. Nessa época, Santos era conhecida
como “capital da AIDS”, cidade portuária, a maior da América Latina, lugar de trocas
e encontros de todas as ordens, ponto estratégico do tráfico internacional de drogas.
Dados epidemiológicos indicavam que 51% dos casos de contaminação de HIV/AIDS
estavam relacionados ao compartilhamento de seringa para o uso de drogas injetáveis
(Mesquita, 1991). A ação judicial que David Capistrano sofreu não será tomada como
um episódio de uma história pessoal, mas sim como um acontecimento político que
evidencia o encontro entre as forças conservadoras que sustentam uma política
antidrogas e as forças progressistas que adotavam a RD como uma estratégia em
defesa da vida e da democracia. A retaliação judicial e policial sofrida por essa
secretaria municipal de saúde pôs em evidência a contradição da própria máquina
estatal, na medida em que o poder judiciário suspende o direito constitucional de
acesso universal à saúde.115
113 ASSOCIATION, International Harm Reduction. O que é redução de danos? Uma posição oficial da
Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA). p. 1. Disponível em:
<https://www.hri.global/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portuguese.pdf>. Acesso em: 17 de fev. 2020. 114 LOPES, Helenice Pereira; GONÇALVES, Aline Moreira. A política nacional de redução de danos: do
paradigma da abstinência às ações de liberdade. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João Del-rei, v.
13, n. 1, p.1-15, 2018. p. 10. Disponível em: <http://seer.ufsj.edu.br/index.php/revista_ppp/article/view/2858>.
Acesso em: 17 fev. 2020. 115 PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde pública: construções
alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 23, n. 1, p.154-162, abr.
50
Ao longo de décadas, as drogas foram plantadas no imaginário coletivo como sendo
principal problema a ser combatido pelo Poder Público, almejando-se a sua erradicação.116 Em
que pese a “guerra às drogas” não ter diminuído o consumo pela população, ainda é forte na
sociedade a associação do uso de drogas à criminalidade, sendo os adictos carregados de
estigmas e preconceitos. Dessa forma, pelo fato da redução de danos não ter como objetivo
precípuo a abstinência, essa política acaba sendo percebida como um incentivo à manutenção
do uso e da dependência de substâncias psicoativas.117
Até o ano de 2006, com a edição da atual legislação de drogas, predominou no país uma
construção de política de drogas centrada no direito penal, com algumas experiências diversas,
como a de Santos (SP), que não prosperaram. Atualmente, “o Ministério da Saúde propõe que
o usuário de drogas deve ser visto de maneira integral, com o objetivo de preveni-lo, tratá-lo e
reabilitá-lo, entendendo o consumo de drogas como um problema de saúde pública”118.
Embora a política de redução de danos não tenha prosperado integralmente, a legislação
brasileira adota alguns métodos alternativos de cuidado aos toxicomaníacos, priorizando a
observância dos direitos fundamentais da pessoa humana, os princípios e as diretrizes do SUS
e da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o tratamento por equipes
multidisciplinares.119
Integrando a PNAS, evidencia-se a existência da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS),
criada em 2011, pela Portaria GM/MS nº 3.088. Nela, estão previstos o atendimento para
população de rua e a organização dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com destaque
para o CAPS A/D, especializado no atendimento dos dependentes de álcool e drogas. Observa-
se que no Brasil já existe legalmente uma política que prioriza o atendimento psicossocial no
2011. FapUNIFESP (SciELO). p. 156. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0102-71822011000100017>.
Acesso em: 20 de fev. 2020. 116 PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde pública: construções
alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 23, n. 1, p.154-162, abr.
2011. FapUNIFESP (SciELO). p. 156. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0102-71822011000100017>.
Acesso em: 20 de fev. 2020. 117 LOPES, Helenice Pereira; GONÇALVES, Aline Moreira. A política nacional de redução de danos: do
paradigma da abstinência às ações de liberdade. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João Del-rei, v.
13, n. 1, p.1-15, 2018. p. 3. Disponível em: <http://seer.ufsj.edu.br/index.php/revista_ppp/article/view/2858>.
Acesso em: 17 fev. 2020. 118 TISOTT, Zaira Letícia et al. Álcool e outras drogas e a implantação da política de redução de danos no Brasil:
Revisão narrativa. Revista Brasileira Ciências da Saúde - Uscs, [s.l.], v. 13, n. 43, p.79-89, 16 mar. 2015. USCS
Universidade Municipal de Sao Caetano do Sul. p. 80. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.13037/rbcs.vol13n43.2730>. Acesso em: 18 fev. 2020. 119 BRASIL. Art. 22 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em:
tratamento dos toxicomaniacos, o que se caracteriza como um desdobramento da redução de
danos.
Entretanto, embora haja na legislação a proeminência de tratamentos alternativos, que
fogem à privação de liberdade, o modelo repressivo ainda tem força, com primazia do
paradigma da abstinência. Há resistência por parte de gestores, de profissionais e da sociedade
às novas formas de se trabalhar com o usuário de drogas120 e foi nesse contexto que se
intensificou a discussão sobre a possibilidade de internação desses indivíduos, que findou na
edição da Lei 13.840/19. Em 2012, Marcelo Fiori já atentava para o seguinte:
Julgando pelo histórico de atuação do legislativo sobre o tema, é improvável que
alguma mudança além do aprofundamento do modelo atual possa ocorrer. Desde a
promulgação da Lei de Drogas, em 2006, os projetos que ganharam algum destaque e
maior apoio no Congresso previam, por exemplo, o retorno da pena restritiva de
liberdade para consumidores, dessa vez sob a forma de tratamento compulsório e com
a justificativa de que a lei atual havia eliminado as ferramentas da dissuasão do
Estado.121
Assim, na contramão de países como Holanda, Dinamarca, Espanha, dentre outros122,
que adotam modelos de descriminalização e/ou legalização, com prioridade para as políticas de
redução de danos, o Brasil volta a legitimar a internação involuntária de usuários de drogas.
Ainda são disciplinados em lei os métodos alternativos de assistência social, porém voltou a ser
possível também o tratamento de usuários por meio da internação, inclusive nos casos em que
o indivíduo não a deseje.
4.1.1. População mais atingida com a internação
Em suas lições, Luís Carlos Valois alerta que a guerra às drogas revela a cada dia a sua
face desumana de ser uma guerra contra pessoas, pois drogas não morrem, não levam tiros e
não são encarceradas, constituindo verdadeiro sinônimo da “criminalização arbitrária de certas
relações que o ser humano trava com algumas substâncias”123.
120 TISOTT, Zaira Letícia et al. Álcool e outras drogas e a implantação da política de redução de danos no Brasil:
Revisão narrativa. Revista Brasileira Ciências da Saúde - Uscs, [s.l.], v. 13, n. 43, p.79-89, 16 mar. 2015. USCS
Universidade Municipal de Sao Caetano do Sul. p. 85. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.13037/rbcs.vol13n43.2730>. Acesso em: 18 fev. 2020. 121 FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos
Estudos - Cebrap, [s.l.], n. 92, p.9-21, mar. 2012. FapUNIFESP (SciELO). p. 21.Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/s0101-33002012000100002>. Acesso em: 20 de fev. 2020. 122 BBC. As salas onde dependentes são livres para tomar as drogas que quiserem. 2017. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-38562639>. Acesso em: 18 fev. 2020. 123 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 2. ed. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. p. 20.
52
É cediço o preconceito existente na sociedade para com os dependentes, especialmente
com aqueles que estão à margem da sociedade. Também é notório que as intervenções em
relação ao tráfico de substâncias ilícitas se dão, em sua maioria, contra pobres e negros.124 Desse
modo, é preciso identificar a população que será mais atingida com a nova política de drogas
brasileira.
Em que pese a internação involuntária de usuários de drogas ter se tornado efetivamente
legal apenas em 2019, essa prática já ocorria com frequência em determinados centros urbanos
brasileiros, como na cidade de São Paulo125, com base na Lei nº 10.216/01, conforme
apesentado no capítulo 3 deste trabalho.
Primeiro se faz necessário pontuar que, nas últimas duas décadas, quando se fala sobre
a internação involuntária de usuários de drogas há uma associação, no imaginário coletivo, aos
usuários de uma droga específica conhecida como crack, substância derivada da cocaína. Seus
usuários são comumente tidos como “zumbis” que necessitam de intervenção a qualquer
custo.126 Fala-se, popularmente, sobre a existência de uma epidemia dessa droga que assola o
território brasileiro127, todavia, estudos128 demonstram que o uso da terminologia “epidemia”
tem sido exacerbado pela mídia. Mesmo diante do conflito sobre a existência ou não de uma
epidemia, por ser a droga mais associada às internações, optou-se por se fazer uma análise da
população atingida com nova lei a partir de uma amostragem dos usuários de crack.
Em 2014 foi lançado o livro digital "Pesquisa Nacional sobre o uso de crack – Quem
são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras?”,
elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), sob a organização de Francisco Inácio
124 TELLES, Ana Clara; AROUCA, Luna; SANTIAGO, Raull. Do #vidasnasfavelasimportam ao #nóspornós: a
juventude periférica no centro do debate sobre política de drogas. Boletim de Análise Político-institucional Ipea,
Brasília, p.107-112, 2011. p. 108 – 109. Disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8886/1/bapi_18_cap_12.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2020. 125 Conforme demonstra matéria do ano de 2017, o governo de São Paulo tentava articular junto à Justiça a
promoção de internações forçadas de usuários de drogas. “Após a operação, os usuários se espalharam pela cidade.
A maior concentração estava na praça Princesa Isabel, a 300 metros da localidade original - enquanto a gestão do
prefeito João Doria (PSDB) tenta articular o acolhimento dessas pessoas e pede autorização à Justiça para
promover internações forçadas.” BBC. Fim da cracolândia: o que especialistas, governo e prefeitura apontam
como solução para a feira de drogas em SP. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
40115560>. Acesso em: 19 fev. 2020. 126 HYPENESS. Campanha brasileira usa zumbis para alertar sobre o crack. Disponível em:
alertar-sobre-a-droga/>. Acesso em: 24 fev. 2020. 127 R7. Epidemia de crack atinge dois milhões e coloca Brasil no topo do ranking de consumo da droga. 2015.
do-ranking-de-consumo-da-droga-29052017>. Acesso em: 19 fev. 2020. 128 “Pesquisadores ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que, embora preocupantes, os índices estão
longe de representar o que o governo, sobretudo na figura de Osmar Terra, insiste em chamar de epidemia”. The
Intercept Brasil. Guerra à pesquisa. 2019. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/03/31/estudo-drogas-
censura/>. Acesso em: 19 fev. 2020.
53
Bastos e Neilane Bertoni, do Laboratório de Informação em Saúde (Lis/Icict). A pesquisa teve
como objetivo mapear o perfil dos usuários de crack e de drogas similares em todo o país,
utilizando a metodologia de Time-Location Sampling (TLS), consistente em um método de
amostragem probabilística.129
Em relação a faixa etária, a pesquisa entrevistou apenas usuários com mais de 18 anos
de idade e teve como resultado a estatística de que no Brasil os usuários de crack e/ou similares
são, em sua maioria, jovens adultos – com idade média de 30 anos.130 Quanto ao sexo, a
pesquisa revelou que as cenas de uso são majoritariamente masculinas, com predominância de
78,68% de homens.131 No que tange ao critério de auto declaração de raça/cor, há um
predomínio de usuários “não brancos”, totalizando uma média de 79,15% dos entrevistados.132
Sobre o nível de escolaridade, a proporção de usuários de crack no Brasil que
cursaram/concluíram o Ensino Médio foi de 16,49% e o Ensino Superior de apenas 2,35%, o
que configuram médias baixíssimas.133 Por fim, as últimas estatísticas relevantes para o presente
trabalho são a respeito da moradia, aproximadamente 40% dos usuários no Brasil se
encontravam em situação de rua no momento da pesquisa134, e da forma de obtenção de renda,
sendo a mais comum o trabalho esporádico ou autônomo, correspondendo a cerca de 65% dos
entrevistados.135 Importante destacar que a pesquisa revelou que quase 80% dos usuários
entrevistados alegaram ter vontade de receber algum tipo de tratamento.
A ampla maioria dos usuários de crack e/ou similares do Brasil (77,23% [IC95%
74,73-79,55]) relatou ter vontade de realizar tratamento para o uso de drogas no
momento da entrevista (Figuras 3 e 4). Aprofundando esta questão, os usuários foram
questionados sobre quais aspectos consideravam importante em um serviço de
assistência para pessoas que usam drogas. Quase a totalidade dos usuários apontou
129 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 25. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 130 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 48. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 131 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 48. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 132 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 50. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 133 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 52. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 134 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 52. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 135 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 54. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020.
54
que seria importante que esses serviços fornecessem um suporte básico de modo a
garantir sua sobrevivência e dignidade, como cuidados básicos de saúde (97,18%
[IC95% 96,14-97,94]) e higiene (96,73% [IC95% 95,33-97,72]), alimentação
(96,92% [IC95% 95,77-97,76]), ajuda para conseguir emprego (95,57% [IC95%
93,96-96,77]) e escola/curso (94,88% [IC95% 93,29-96,11]), bem como que estes
serviços fossem gratuitos (97,00% [IC95% 95,69-97,92]). Além disso, a maior parte
dos usuários também classificou como importante que o serviço contasse com
atividades de lazer (94,81% [IC95% 93,46-95,90]) e serviços sociais básicos (90,14%
[IC95% 88,61-91,49]) (Tabelas 3 e 4).136
Os dados acima apresentados demonstram que manter o foco em internações
involuntárias ou compulsórias tende a ser inócuo, pois a maioria dos usuários já tem interesse
em receber algum tipo de tratamento, sendo mais eficaz o planejamento de ações que permitam
a existência de uma rede de cuidados capaz de oferecer aos usuários serviços de suporte básico.
Os defensores dessa tutela lançam mão de um argumento importante. Uma vez
dependentes, os indivíduos perderiam sua capacidade de livre escolha, permanecendo
presos à “escravidão” da compulsão pela droga. Porém, mesmo que se reconheça que
a dependência é um quadro dramático, a incapacidade de julgamento é controversa.
Mais importante, essa condição não justifica a supressão do direito de escolha de
outros indivíduos. Além de a interdição do uso não se sustentar pela existência do
abuso, ela própria não é capaz, no caso das drogas, de impedi-lo. [...]. Reconhecendo
que as drogas continuarão a existir, o Estado deve promover outros controles sociais
e promover o autocuidado, as melhores formas possíveis de prevenção e redução de
danos, ignoradas pelo proibicionismo.137
No que concerne à situação de rua, a pesquisa não discerniu se os usuários já estavam
nessa situação e por isso fazem o uso de drogas ou se chegaram a essa situação devido ao uso.
Embora não sejam a maioria, é um número bastante expressivo, demonstrando que há uma
grande vulnerabilidade no perfil dos usuários e que o problema dos entorpecentes se mescla à
questão do direito à moradia.
Outro ponto importante suscitado na pesquisa diz respeito às motivações subjacentes ao
uso de drogas, destacando-se a curiosidade de experimentar o efeito das drogas (58,28%), os
problemas familiares ou perdas afetivas (29,1%) e a pressão e/ou influência de amigos
(26,73%).138
136 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 106 – 107. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020. 137 FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos
Estudos - Cebrap, [s.l.], n. 92, p.9-21, mar. 2012. FapUNIFESP (SciELO). p. 13 – 14. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/s0101-33002012000100002>. Acesso em: 20 de fev. 2020. 138 BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras?. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.
224 p. p. 58. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 19 fev. 2020.
55
A ideia é que esses sujeitos são inteiramente culpados pela sua atual situação, o que
contribui para sua exclusão social. Existem vários motivos que levam ao uso de
substâncias psicoativas, entre elas: influência de pessoas próximas, atividades
festivas, busca pelo prazer, problemas conjugais, depressão, desestruturação familiar,
violência doméstica, estresse, cobranças, codependência e gravidez na adolescência.
Ainda, a drogadição na adolescência pode ser entendida como uma expressão da
linguagem no adolescer, sendo esta uma das maneiras encontradas pelos jovens de
socializar-se. Nessa perspectiva, é necessário compreender o uso de drogas e os reais
objetivos da política de redução de danos pelos profissionais envolvidos, a fim de
evitar condutas moralistas no ambiente de trabalho e estigmas referentes à sua
implantação.139
São diversos os fatores que levam um indivíduo ao uso de drogas. Dessa forma, é latente
a necessidade de se investir em mecanismos preventivos que sejam realmente efetivos, sendo
imprescindível a investigação desses motivos com clareza, tendo em vista que as políticas
essencialmente moralistas, que focam apenas em demonstrar que as drogas causam malefícios,
têm se mostrado falhas.140
Por fim, conclui-se que a maioria da população usuária de crack no Brasil e, portanto,
que está mais sujeita às intervenções médicas estabelecidas na Lei nº 13.840/19 é de homens,
na faixa dos 30 anos, pretos e pardos, com baixo nível de escolaridade, e sem emprego fixo.
Feita a análise sobre a população consumidora de drogas no país a partir da amostragem
dos usuários de crack, nota-se que a política de pública de internação involuntária possui um
forte caráter higienista. Essa conclusão pode ser tomada a partir da análise das ações de
internação de usuários de drogas que ocorriam no Brasil sustentadas na Lei nº 10.216/01.
Consultando-se matérias jornalísticas sobre o tema141, é perceptível que as ações que visam à
internação se dão preponderantemente em relação à população de rua, atingindo, em sua
maioria, àqueles que estão à margem da sociedade.
139 TISOTT, Zaira Letícia et al. Álcool e outras drogas e a implantação da política de redução de danos no Brasil:
Revisão narrativa. Revista Brasileira Ciências da Saúde - Uscs, [s.l.], v. 13, n. 43, p.79-89, 16 mar. 2015. USCS
Universidade Municipal de Sao Caetano do Sul. p. 85. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.13037/rbcs.vol13n43.2730>. Acesso em: 18 fev. 2020. 140 GOMES-MEDEIROS, Débora et al. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cadernos de
Saúde Pública, [s.l.], v. 35, n. 7, p.1-14, 2019. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00242618>. Acesso em: 19 fev. 2020. 141 UOL. Juiz autoriza retirada à força de usuários de drogas em SP para internação compulsória. 2017.
Sobre esse ponto, destaca-se que a internação prevista na Lei nº 13.840/19 tem duração
máxima pelo período de noventa dias.142 Contudo, cerca de 40% dos usuários de drogas vive
em situação de rua, o que demonstra a interseção da problemática não só com o direito de
proteção à saúde, mas também de necessidade de uma moradia digna, pois após a internação
esses indivíduos necessitam se estabelecer para se reinserirem na sociedade.
4.1.2. Experiências pregressas e a internação como medida privativa de liberdade
No Brasil vige o princípio da intervenção mínima, segundo o qual o direito penal deverá
ser utilizado apenas como último recurso, ocupando-se apenas de bens jurídicos relevantes143,
sendo o texto constitucional claro ao dispor sobre o tema.144
Desse modo, as penas restritivas de liberdade só poderão ser decretadas após o devido
processo legal e a prisão só poderá ser aplicada quando estiver previamente estabelecida em lei,
não se podendo adotar institutos que visem cercear a liberdade como se penas privativas de
liberdade fossem.
Ocorre que desde a despenalização da conduta de uso, com a edição da atual legislação
sobre drogas145, há uma tendência pela busca de medidas que punam de maneira mais efetiva o
usuário. Nesse sentindo, existem defensores da corrente de que “as penas cominadas aos
usuários de drogas não tem o alcance almejado pela Ciência Penal, tendo em vista que não
apresenta uma medida eficaz para o tratamento do dependente químico e não pune com rigor o
usuário de droga”146.
É nesse contexto que se fortalece a ideia de que o usuário é um ser completamente
incapaz e sem discernimento, que oferece risco para si e para terceiros, e que, portanto, necessita
ser afastado do convívio social, legitimando as internações forçadas.147 Na justificação ao
142 BRASIL. Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Art. 23, §5º, inciso III. Brasília, 05 jun. 2019. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020 143 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 84
– 91. 144 “XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; LIV - ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LXI - ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. BRASIL. Art. 5º da Constituição da
República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 de jan. 2020. 145 Sobre o tema ver introdução. 146 FARIA, Pablo Henrique de Abreu. A constitucionalidade da internação compulsória dos usuários
dependentes químicos de drogas. 2016. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
BRUNO* FOI FORÇADO a ficar seis dias e seis noites pelado, trancado em um
cômodo menor que 6m². Sem banheiro, o adolescente de 16 anos precisava defecar
em um ralo no canto da cela. O motivo do confinamento: ter tomado banho fora do
horário determinado. “Nem cadeia tem isso”, ele resumiu a temporada em que passou
preso na “cela solitária” de um centro de reabilitação para usuários de drogas chamado
Comunidade Terapêutica Centradeq-Credeq, na área rural do município mineiro
Lagoa Santa.155
Há quase um ano, Gleice internou Bernardo* na Comunidade Terapêutica Centradeq-
Credeq, em Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais, porque estava desesperada, sem
saber o que fazer com o filho de 15 anos que se ‘afundava na maconha’. Depois de
oito meses pagando R$ 1,8 mil de mensalidade, encontrou o menino muito pior do
que quando o entregou ao pastor dono da clínica. Hoje, Bernardo só consegue dormir
com remédios e vive constantemente assustado.156
Matheus ficou quatro meses em tratamento na Comunidade Terapêutica DeVida,
localizada em Itabirito, a 180 quilômetros de sua cidade natal, até a clínica ser
interditada por submeter os internos a superdosagem de remédios e maus tratos.
Depois do fechamento desta comunidade, foi encaminhado para a Centradeq-
Credeq, a clínica interditada em Lagoa Santa. Logo após a interdição da outra
clínica, foi mandado para a Comunidade Terapêutica Contagem Progressiva,
localizada no município de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte,
onde relata que apanhou de monitores ao menos quatro vezes. “O meu menino,
depois de todas essas internações, ficou pior, totalmente traumatizado” conta a mãe
de Matheus, Rosineia Aparecida de Oliveira.157
A violação de direitos humanos é notória e recorrente nas internações forçadas,
acompanhando a história da psiquiatria brasileira há décadas. Esse modelo de internações
evidencia a necessidade que o Estado possui de afastar as pessoas tidas como “indesejáveis”
dos espaços públicos. Daniela Arbex faz importante apontamento sobre a exclusão dessas
pessoas ao longo da história:
Ontem foram os judeus e os loucos, hoje os indesejáveis são os pobres, os negros, os
dependentes químicos, e, com eles, temos o retorno das internações compulsórias
temporárias. Será a reedição de abusos sob a forma de política de saúde pública? O
país está novamente dividido. Os parentes dos pacientes também. Pouco
instrumentalizadas para lidar com as mazelas impostas pelas drogas e pelo avanço do
crack, as famílias continuam se sentindo abandonadas pelo Poder Público,
reproduzindo, muitas vezes involuntariamente, a exclusão que as atinge.158
Há um discurso pautado na defesa social que na verdade revela a seletividade do nosso
sistema. A dignidade dos usuários de drogas é retirada e com isso é permitido ao Poder Público
155The Intercept Brasil. Clínica antidrogas tinha solitária, trabalho forçado e ameaças... Disponível em:
<https://theintercept.com/2019/03/10/tratamento-drogas-governo/>. Acesso em: 20 fev. 2020. 156 The Intercept Brasil. A vida dos internos em comunidades terapêuticas é pular de inferno em
Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 286. 167 FARIA, Pablo Henrique de Abreu. A constitucionalidade da internação compulsória dos usuários
dependentes químicos de drogas. 2016. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
sem manicômios’. A história da psiquiatria é marcada por um processo de asilamento
e a Lei nº 10.216/01 pretendeu romper com essa ordem. O seu objetivo foi privilegiar
a desospitalização dos doentes mentais, com “a extinção progressiva dos hospitais
psiquiátricos e sua substituição por outras modalidades e práticas assistenciais”.168
O trecho acima demonstra que a reforma psiquiátrica brasileira de 2001 teve como
objetivo a desospitalização. Assim, voltar a utilizar uma medida que possibilidade a internação
constitui um regresso frente aos avanços conquistados no tocante à saúde mental. Em 2012,
vários organismos ligados à ONU publicaram comunicado em que se convocavam os Estados
a fecharem os centros de internação forçada e substituí-los por programas de serviços sociais,
baseados na proteção à saúde dentro das comunidades.169
A internação involuntária recebe críticas e resistência à nível internacional, pois
constitui uma solução simplória para um problema macro. Maurício Fiore defende a ideia de
que o Estado precisa reconhecer que as drogas não deixarão de existir e que por essa razão deve
“promover outros controles sociais e promover o autocuidado, as melhores formas possíveis de
prevenção e redução de danos”170. É preciso que se leve em consideração as causas que levam
ao consumo desenfreado de drogas para que sejam tratadas em sua completude, como também
é necessário que se leve em consideração as particularidades dos indivíduos.
O campo das políticas públicas não necessita ser apenas o reflexo e o instrumento de
controle e de manutenção dessa ordem social; pode rechaçar esse papel de controle
que o colocou na posição de delegado das formas de vida modernas para ser elemento
que propõe a sua transformação, a partir do estabelecimento de novas relações com
os dependentes de drogas, de nova produção de valores culturais, de novos
questionamentos sobre as relações de poder e a produção de realidades e verdades.
(...) A única forma de dar respostas complexas a fenômenos complexos, como o uso
prejudicial de drogas, talvez seja trabalhar com todos os atores, instituições, conceitos,
práticas, valores e leis que compõem essa cena da exclusão e destruição dos
dependentes de drogas.171
168 COELHO, Isabel; OLIVEIRA, Maria Helena Barros de. Internação compulsória ecrack: um desserviço à saúde
pública. Saúde em Debate, [s.l.], v. 38, n. 101, p.359-367, 2014. GN1 Genesis Network. p. 360. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.5935/0103-1104.20140033>. Acesso em: 17 de jan. 2020. 169 “Criteria for detention of individuals in these centres vary within and among countries. However, such detention
often takes place without the benefit of sufficient due process, legal safeguards or judicial review. The deprivation
of liberty without due process is an unacceptable violation of internationally recognised human rights standards.
Furthermore, detention in these centres has been reported to involve physical and sexual violence, forced labour,
sub-standard conditions, denial of health care, and other measures that violate human rights.”. ONU. Joint
statement: Compulsory drug detention and rehabilitation centres. 2012. Disponível em:
March12FINAL_en.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2020. 170 FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos
Estudos - Cebrap, [s.l.], n. 92, p.9-21, mar. 2012. FapUNIFESP (SciELO). p. 14. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/s0101-33002012000100002>. Acesso em: 20 de fev. 2020. 171 REIS, Ademar Arthur Chioro dos; KINKER, Fernando Sfair; FURTADO, Lumena Almeida Castro.
Descriminalização das drogas: é preciso recuperar o espaço público e o direito de viver. In: ALEXANDER, Bruce
K.; MERHY, Emerson Elias; SILVEIRA, Paulo (Org.). Criminalização ou acolhimento?: Políticas e práticas de
cuidado a pessoas que também fazem o uso de drogas. Porto Alegre: Rede Unida, 2018. p. 109 - 110. Disponível
64
Grande parte dos sujeitos à internação involuntária vive em situação de rua, o que
constitui além de um problema de saúde, uma deficiência no direito à cidade. Surge então o
seguinte questionamento: do que adianta internar uma pessoa que está em situação de rua, pelo
prazo máximo de noventa dias172, se não for oferecido a ela, após a internação, uma maneira de
se reinserir socialmente? Não seria muito mais efetivo para a garantia da dignidade humana, do
direito à liberdade e do direito à saúde, se fossem pensados, por exemplo, em albergues para
que estas pessoas pudessem ter uma moradia, em uma rede de redução de danos e de
atendimento individualizado, considerando as necessidades e particularidades de cada
indivíduo e em acesso à cultura e ao lazer, para que houvesse outras alternativas para além do
uso de drogas?
No final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou através
do experimento denominado “Rat Park” que a socialização é instrumento fundamental no
enfrentamento da dependência de drogas.
À época eram realizados experimentos denominados “Skinner Boxes” nos quais ratos
eram confinados em gaiolas e tinham a sua disposição substâncias como morfina, cocaína ou
heroína. Com o passar do tempo, esses ratos preferiam os entorpecentes aos alimentos ou à
própria água, indo à óbito. Concluía-se, portanto, que tais substâncias eram nocivas e que por
isso deveriam ser proibidas. Porém, o canadense testou a hipótese de outra forma, construindo
uma espécie de parque para os ratos, no qual eles tinham acesso à lazer, a interação com outros
ratos e às drogas. Nessas condições, observou-se que os ratos consumiam uma quantidade
menor de psicoativos em relação àqueles que estavam confinados solitariamente. Quanto menos
estímulos externos possuíam, mais os ratos se viciavam e tendiam a consumir narcóticos.173
As pesquisas realizadas com os ratos, contudo, não puderam se aprofundar mais nas
causas do uso de drogas. Assim, o psicólogo buscou outras formas de análise da problemática
e em 2010 publicou em seu site o texto intitulado “Addiction: The View from Rat Park”, no
qual faz um paralelo entre o experimento dos ratos e o consumo de álcool pelos nativos
acolhimento-Completo.pdf#page=11>. Acesso em: 22 fev. 2020. 172 BRASIL. Art. 23, §5º, inciso III, da Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Brasília, 05 jun. 2019. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 173 ALEXANDER, Bruce K. et al. Effect of Early and Later Colony Housing on Oral Ingestion of Morphine in
Rats. Pharmacology Biochemistry & Behavior, USA, v. 15, p.571-576, 1980. Disponível em: