-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 29
O REALISMO MGICO E O ESPAO COMO REFGIO DA ALTERIDADE EM A ILHA
DOS GATOS PINGADOS DE
JOS J. VEIGA1
MAGIC REALISM AND SPACE AS REFUGE TO OTHERNESS IN A ILHA DOS
GATOS PINGADOS BY JOS J. VEIGA
Fabianna Simo Bellizzi CARNEIRO Alexander MEIRELES DA
SILVA**
Resumo: Esse trabalho far uma anlise da construo da relao entre
o discurso ideolgico utilizado em relao a grupos minoritrios e o
espao a eles reservado na narrativa contempornea, tendo como corpus
o conto A ilha dos gatos pingados (1959), do escritor Jos J. Veiga.
A escolha pelo tema se justifica pelo fato de que o homem
contemporneo, inserido em contexto de significativas transformaes
nas reas tecnolgica, social, cultural e econmica, tem na figura do
outro um agente ativo nesse processo, ou seja, o outro no pode mais
ser visto como perturbador ou como aquele que desacomoda o estado
de coisas, mas como algum que faz parte desta dinmica, apontando
para a construo de uma cultura hbrida. Nesse percurso, chama ateno
como a Literatura vem retratando esse personagem. Da que se
objetiva, de uma maneira geral, analisar o processo de constituio
da relao entre a alteridade e o espao na narrativa fantstica,
representada nessa proposta pela vertente romanesca do Realismo
Mgico. Refora-se que se trata de um trabalho analtico e no
conclusivo, portanto a pesquisa se sustenta em fontes bibliogrficas
que sero devidamente referenciadas ao longo do texto.
Palavras-chave: Espao; Alteridade; Realismo Mgico; Literatura
Brasileira.
Abstract: This work will review the construction of the relation
between the ideological discourse used towards minority groups and
the space reserved to them in contemporary narrative, based on the
short story A ilha dos gatos pingados (1986), by the writer Jos J.
Veiga. The choice for this theme is justified by the fact
1 Este artigo faz parte da pesquisa Onde vivem os monstros: o
espao da alteridade na Literatura Fantstica contempornea. Algumas
passagens do mesmo encontram-se adaptadas no captulo VII do livro
Travessias Literrias, organizado por Ulysses Rocha Filho e
Alexander Meireles da Silva, pela Editora Amrica: Goinia, 2013.
Docente da Universidade Federal de Gois /Campus de Catalo, onde
concluiu seu Mestrado em Estudos da Linguagem em 2013, com bolsa de
estudos da CAPES. Contato: [email protected].
** Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, professor adjunto da Universidade Federal de Gois/Campus
de Catalo, onde atua no Mestrado em Estudos da Linguagem. Contato:
[email protected].
UserTypewriterLinguagem - Estudos e PesquisasVol. 17, n. 01, p.
29-51, jan/jun 20132013 by UFG/Campus Catalo - doi:
0.5216/lep.v17i1.30430
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 30
that contemporary man, inserted in the context of significant
transformations in technological, social, cultural and economical
areas, has in the figure of the other an active agent in this
process, ie, the other can no longer be seen as disruptor or
someone who unsettles the order of things, but as someone who is
part of this dynamic, pointing to the rise of a hybrid culture.
Along this way, it is important to observe how Literature is
portraying this character. Hence it is intender to analyze the
constitutive process of the relation between space and otherness in
fantastic narrative, represented in this work by the romance mode
of Magic Realism. We stress thatit is an analytical work which is
not conclusive, so the search is based on bibliographical sources
that will be properly referenced throughout the text.
Keywords: Space; Otherness; Magical Realism; Brazilian
Literature.
Antonio Cndido em Literatura e sociedade (2006) observa que as
reas sociais, em alguns momentos e de forma incompleta, tm feito
suas anlises sobre a arte sem que haja um mtodo para isso. De
acordo com o autor, socilogos, psiclogos e outros manifestam s
vezes intuitos imperialistas (2006, p. 17), intuitos estes que
levaram pensadores a momentos em que julgaram poder explicar apenas
com os recursos das suas disciplinas a totalidade do fenmeno
artstico. (2006, p. 17). H que se fazer, portanto, certas
advertncias quanto aos aspectos sociais que se revelam em algumas
obras. Da que ao analisarmos as obras estando respaldados apenas em
estudos sociais ou antropolgicos cairamos em um simplismo ou
reducionismo que poderiam at mesmo matar a essncia de uma obra,
conforme analisa o autor.
O cuidado que se deve ter, de acordo com Antnio Candido,
perpassa questes muito mais abrangentes, do contrrio cairamos em
redues esquemticas que se poderiam reduzir a frmulas, como: Dai-me
o meio e a raa, eu vos darei a obra (2006, p. 17); ou: Sendo o
talento e o gnio formas especiais de desequilbrio, a obra constitui
essencialmente um sintoma, e assim por diante (2006, p. 17), como
ironicamente assinala o autor. O crtico brasileiro cita, inclusive,
um interessante trecho que melhor exprime as relaes entre o artista
e a sociedade:
O poeta no uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor;
possui o seu prprio espelho, a sua mnada individual e nica. Tem o
seu ncleo e o seu rgo, atravs do qual tudo o que
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 31
passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver
realidade (SAINTE-BEUVE apud CANDIDO, 2006, p. 18).
A partir da ficamos mais confortveis ao fazermos nossa anlise do
conto em questo. Devemos, primeiramente, levar em considerao que a
Sociologia e outras reas podem fornecer interessantes e at
importantes subsdios para melhor compreendermos o contexto no qual
uma obra est inserida, porm no podem explicar o fenmeno literrio,
que parte do artista e no do socilogo, afinal, A obra depende
estritamente do artista e das condies sociais que determinam a sua
posio (CANDIDO, 2006, p. 27).
Autor com a fora artstica de Jos J. Veiga soube colher, no meio
social, material para suas obras. Obras muito bem trabalhadas
artisticamente e que fazem o leitor refletir a respeito da condio
subumana de tantos personagens que preenchem os espaos das cidades
e do campo. O conto que ser analisado, A ilha dos gatos pingados
(1986), de Jos J. Veiga, publicado originalmente em 1958, mostra
minorias segregadas, marginalizadas, oprimidas e at mesmo
castigadas fisicamente e que dialoga com fatos ocorridos em nossas
sociedades. Dentro dessa proposta, este trabalho far uma anlise da
construo da relao entre o discurso ideolgico utilizado em relao a
grupos minoritrios e o espao a eles reservado na narrativa
contempornea, tendo como corpus o conto supracitado do escritor
goiano.
Em 2008, uma menina de 12 anos foi resgatada pela polcia de um
apartamento situado em uma rea nobre de Goinia. Ela foi encontrada
amordaada e acorrentada na rea de servio do apartamento de uma
empresria que a torturava diariamente, alm de obrig-la a executar
servios domsticos, configurando crime de explorao infantil2. Em
2010, no Rio de Janeiro, uma procuradora aposentada foi condenada a
8 anos e 2 meses de priso pelo crime de tortura contra uma menina
de 2 anos que estava sob sua guarda provisria espera de adoo3.
Neste sentido, o conto A ilha dos
2Disponvel em: . Acesso em: 25 fev. 2013.
3Disponvel em: . Acesso em: 25 fev. 2013.
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 32
gatos pingados traz um tema muito atual: a violncia cometida
contra crianas.
O conto traz a histria de amigos que acompanham Cedil em uma
ilha afastada de suas casas. Cedil, irmo de Milila, sofre bastante
por conta dos maus tratos cometidos por Zoaldo, namorado de sua irm
e usurpador do poder paterno, que abusa das surras no menino.
(VEIGA, 1986, p. 34). A situao fica ainda mais insuportvel por
causa da anuncia da me de Cedil. Ele, ento, resolve refugiar-se em
uma ilha e conta com a colaborao de seus amigos.
Esse conto de Veiga possibilita vrias reflexes que vo desde o
espao como refgio violncia contra crianas, passam pela linguagem e
cultura muito prpria e caractersticas daquela regio, apontam para o
realismo mgico e, por fim, desembocam novamente no espao a Ilha dos
Gatos Pingados, que fica na memria de crianas que foram felizes
naquele local. A narrativa se inicia com a voz de um
personagem-narrador lembrando-se do amigo Cedil (que j fugira),
volta para os encontros com os amigos na ilha, detalha a violncia
pela qual Cedil passara na maior parte do conto, passa pelo pice e
termina com a fuga do menino. O narrador abre o conto com o
seguinte pargrafo:
J sei o que vou fazer. Se Cedil no voltar at o fim do ano,
vou-me embora para o stio de minha av. L eu vou ter uma bezerra
para tirar cria, um cavalinho pra montar e muitas coisas pra fazer
o dia inteiro. melhor do que ficar aqui feito bobo, pensando toda a
vida na ilha, nos brinquedos que a gente brincava, nas coisas que
Cedil e Teniso diziam, e at nos sustos que passvamos, como no dia
em que a jangada quase afundou com ns trs (VEIGA, 1986, p. 1).
Esse pequeno trecho nos leva aos estudos de Gilles Deleuze e
Flix Guattari, na obra Mil Plats (1997), quando os autores levantam
suas teorias a respeito dos espaos lisos e espaos estriados. Essas
teorias aplicam-se em vrias instncias de nossas sociedades, desde o
modelo martimo, passando pelo modelo fsico, matemtico, esttico,
enfim. O que os autores defendem que tanto no espao liso quanto no
estriado h linhas de vetores e pontos, sendo que no espao estriado
o trajeto subordina-se aos pontos, ao
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 33
passo que no espao liso os pontos subordinam-se ao trajeto:
[...] o espao liso direcional, e no dimensional ou mtrico. O
espao liso ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do
que por coisas formadas e percebidas. um espao de afectos, mais que
de propriedades. uma percepo hptica, mais do que ptica. Enquanto no
espao estriado as formas organizam uma matria, no liso materiais
assinalam foras ou lhes servem de sintomas. um espao intensivo,
mais do que extensivo, de distncias e no de medidas. Spatium
intenso em vez de Extensio. Corpo sem rgos, em vez de organismo e
de organizao. Nele a percepo feita de sintomas e avaliaes mais do
que de medidas e propriedades. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.
162-163, grifos dos autores).
Podemos, ento, perceber que a ilha servia como espao liso, como
espao das sensaes, afetos e sentimentos e no das medidas ou
propriedades. na ilha que os garotos desenvolvem uma percepo hptica
e sintomtica com aquele espao, o que pode ser percebido no trecho:
Depois que a casa ficou pronta o nosso brinquedo era s na ilha. Eu
nem queria mais almoar quando voltava da escola, preparava merenda
escondido, mame no sabia e ralhava para eu comer [...] (VEIGA,
1986, p. 6-7).
Tal relao com o espao tambm pode ser observada nos estudos de
Borges Filho quando ele cita a palavra topopatia, ou seja, a relao
sentimental, experiencial, vivencial existente entre personagens e
espao (2007, p. 157).
Borges Filho ainda assinala que essa relao entre personagem e
espao pode se desenvolver de duas formas. Na primeira, h uma relao
positiva entre os elementos espao e personagem: A personagem
sente-se bem no espao em que se encontra, ele benfico, construtivo,
eufrico. Nesse caso, temos a topofilia. (2007, p. 159, grifo do
autor). Em contrapartida, temos que a ligao entre espao e
personagem pode ser de tal maneira ruim que a personagem sente
mesmo asco pelo espao. um espao malfico, negativo, disfrico. Nesse
caso, temos, ento, a topofobia (2007, p. 158, grifo do autor).
Cedil no exatamente sentia asco pelo espao de sua casa, mas o
seu temor provinha desse local na medida em que ele tambm
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 34
era ocupado por Zoaldo, seu cunhado. Da que a topofilia que
Cedil desenvolve em relao ilha de um grau to intenso que ele se
sente ainda mais feliz nela quando Zoaldo ausenta-se da cidade: Eu
gostava bem da ilha, mas acho que gostava mais era por causa de
Cedil. Ele tinha deixado de falar em afogar ou fugir, decerto
porque Zoaldo estava viajando [...] (VEIGA, 1986, p. 7).
Portanto, no esteio de um ato brusco como o suicdio que os
amigos incentivam Cedil a descortinar o local da ilha. Esse espao,
que em princpio seria uma forma de despistar Cedil em seus
propsitos de fuga ou suicdio torna-se, para Cedil, o verdadeiro
espao de refgio contra os maus tratos que ele sofria em casa:
Enquanto ele varria o cho da casa muito entusiasmado eu sa com
Teniso e combinamos que era preciso desistir Cedil de fugir
improvisado (VEIGA, 1986, p. 6).
Importante salientar a peculiaridade de Veiga ao retratar o
mundo infantil em suas narrativas. Nas histrias veigueanas as
crianas desenvolvem seus prprios cdigos sociais que vo de encontro
lgica dos adultos. No conto A ilha dos gatos pingados, o isolar-se
na ilha e criar um mundo outro se motiva por conta das agresses
fsicas sofridas por Cedil dentro de sua casa:
A ideia de brincar na ilha comeou um dia que Cedil andou fugido
de casa por causa do namorado da irm. Cedil sofria muito, todo
rapaz que namorava Milila achava de mandar nele, ele nem podia
brincar direito, vivia vigiado (VEIGA, 1986, p. 3, grifo
nosso).
No conto fica explcito que Cedil no tinha pai, da que o poder
paterno transfere-se para os namorados de sua irm. Zoaldo, o
namorado que aparece no conto, no s vigia Cedil como exerce sobre
ele atos de violncia a cada desobedincia:
Nos primeiros dias do namoro Zoaldo deu uma surra em Cedil por
causa de uma malcriao que ele fez para Milila. Cedil estava
brincando com outros meninos no barranco perto de casa. Milila
chegou na janela e chamou. Ele disse que j ia e ficou brincando.
Ela chamou de novo, ele disse para no amolar. Zoaldo desceu a
calada da casa e veio vindo, parecia que ia embora. Mas quando
passou perto de Cedil deu um bote e agarrou o coitado pelo cangote,
levou pra dentro debaixo de tapa e l ainda bateu com o cinturo.
[...] Depois disso Zoaldo no deixou mais Cedil ter
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 35
descanso. Vivia mandando o coitado na rua fazer isso e aquilo,
levar e buscar o cavalo no pasto, e volta e meia enfiava o couro
nele. Dizia que era para desasnar (VEIGA, 1986, p. 3-4).
Michel Foucault (1987), na obra Vigiar e Punir, estuda os
aparelhos de vigilncia e aparelhos de disciplina utilizados nas
prises, mas que podem ser relidos em vrias esferas de nossas
sociedades. Muito apropriadamente Foucault observa que [...] a
disciplina fabrica indivduos; ela a tcnica especfica de um poder
que toma os indivduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exerccio (FOUCAULT, 1987, p. 143, grifo do
autor). A interface entre o conto de Veiga e as colocaes de Michel
Foucault possvel no momento em que conseguimos perceber que quanto
mais Cedil disciplinado, tanto mais Zoaldo se apodera do
garoto.
Da, portanto, a importncia do espao da ilha. Espao do ldico e
das leis criadas por crianas, uma nova sociedade floresce no mais
de acordo com os ditames e regras do mundo adulto. Na ilha no h
espao para surras ou desmandos, muito embora ainda prevaleam certas
regras, como limpar a casa, organizar os brinquedos e buscar
comida. Ainda assim prevalece o ldico e a tranquilidade.
Necessrio, nesse momento, destacar a prpria simbologia da ilha,
que numa leitura metafrica nos remete ao desconhecido, incgnito e a
um espao a ser explorado. Como bem observa Manfred Lurker (2003) em
Dicionrio de simbologia: Devido sua localizao isolada, muitas vezes
de difcil acesso, as ilhas so geralmente associadas ao mgico [...]
e ao miraculoso (2003, p. 337). O autor ainda sinaliza que as ilhas
tambm representam, na literatura, fugas em direo a parasos
aparentes. De fato, o espao da ilha configura-se, em muitas
narrativas, como espao diferenciado da norma habitual dos
personagens. Clssicos como A tempestade, de William Shakespeare
(2006) e Robson Cruso (1997), de Daniel Defoe (1997), mostram
personagens que chegam perdidos em ilhas muito distantes do
continente, sofrem por no acharem o caminho de volta e que ao final
tm a busca de si.
Na narrativa de Veiga, a ilha promove uma experincia
revitalizadora no sentido de oferecer a Cedil um lugar no qual ele
pudesse ser o que uma criana que, como tal, no aceita as
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 36
normas do mundo adulto regido por horrios e regras muitas vezes
incompreensveis e contraditrios. A mesma situao se observa no
clssico da literatura infantil inglesa Alice no Pas das Maravilhas
de Lewis Carroll (2007), no qual as constantes mudanas de tamanho
da protagonista refletem o conflito de uma criana assustada ao
entrar em outro estgio de sua vida. Alice vive o paradoxo
deleuziano de ser grande demais para cometer algumas tolices, mas,
ao mesmo tempo, pequena demais para desejar algumas coisas (KHDE,
1990, p. 42).
Merecem destaque os detalhes da ilha de Veiga. Aps levar outra
surra de Zoaldo por causa do cavalo que desaparecera, Cedil levado
por seus amigos para o espao da ilha, at como forma de evitar que
ele fugisse ou se matasse, uma vez que esses eram seus planos. Aps
atravessarem uma densa mata, os garotos se apoderam de um lugar que
seria s deles, at mesmo por conta das dificuldades de se chegar
ilha:
L ningum ia, o mato era fechado na beira da gua, mas varando o
mato o resto era limpo, dava muito car e sangue-de-cristo. No tinha
era canoa, a que costuma ter tinham tirado, com certeza justamente
pra menino no atravessar. O jeito era fazer uma jangada de toro de
bananeira (VEIGA, 1986, p. 6).
Percebem-se as dificuldades para se chegar ao local da ilha.
Semelhante s narrativas de fico cientfica que oferecem passagens
especiais, senhas, portais mgicos ou acessos enigmticos para se
chegar a um determinado espao, a ilha de Cedil necessita de uma
entrada especial no caso, uma passagem dificultada por conta do
mato e da ausncia de algo que se locomovesse na gua, tanto que eles
constroem uma espcie de jangada, que [...] teimava em afundar na
parte de trs (VEIGA, 1986, p. 6).
Na ilha os meninos reproduzem, de forma pueril, o que acontece
diariamente em nossas sociedades: arrumar casa, limpar e cuidar.
Porm, para Cedil isso no era visto apenas como brincadeira, muito
embora ele poderia ser criana na ilha sem se preocupar com a
violncia sofrida em casa. Para Cedil, o espao da ilha fora
escolhido como o local do refgio:
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 37
No primeiro dia fincamos as estacas da casa, amarramos as traves
e cortamos uma braada de varas para tranar as paredes. Cedil queria
fazer uma parede de qualquer jeito, com ramo de assa-peixe mesmo, s
para poder dormir a primeira noite. Enquanto ele varria o cho da
casa muito entusiasmado eu sa com Teniso e combinamos que era
preciso desistir Cedil de fugir improvisado; a gente primeiro fazia
uma casinha caprichada, com jirau e tudo para dormir, depois ele
mudava para ela se ainda tivesse inclinao (VEIGA, 1986, p. 6).
Sendo um espao povoado por crianas, natural que nesse local
floresam fantasias e brincadeiras. E atravs de uma brincadeira
envolvendo o nome da ilha, que se manifesta a vinculao do conto com
o realismo mgico:
A ilha no tinha nome, era tratada s de ilha. Teniso disse que
carecia de dar nome, mas no achamos nenhum que prestasse. [...]
Teniso disse que o bichinho mais bonito do mundo inteiro, at
nacional, e o mais custoso de achar, era o gato pingado; tinha uns
at pingados de ouro, e esses ento nem se fala. Eu no sabia que
tinha esse bicho, Cedil tambm no, mas mostrou logo influncia. Disse
que se a gente juntasse dinheiro vendendo banana do quintal de cada
um, quem sabe se no podia comprar um casal e tirar cria na ilha? A
ficava sendo a ilha dos gatos pingados (VEIGA, 1986, p. 7).
Veiga dava uma especial ateno irrupo do inslito em suas obras.
Ao participar de um Simpsio em Campinas no ano de 1987, Veiga
ressalta o cuidado que tem ao inserir o fantstico:
[...] eu estou sempre atento, vigilante, para que as pessoas
acreditem, as coisas aconteam de uma maneira que no choquem, no
passem repentinamente a ser uma coisa inacreditvel e fora do
contexto daquilo que o leitor est preparado para aceitar (VEIGA
apud PRADO, 1989, p. 36).
Em um dos contos mais famosos de Jos J. Veiga, Os do outro lado
publicado em 1955, h uma passagem na narrativa que mostra pessoas
sendo carregadas dentro de enormes bolhas:
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 38
Quando ela acabou de dizer isso um claro muito forte, branco
como luz de magnsio, iluminou todo o cu atravessando as paredes e o
telhado da casa. Corremos para fora e vimos uma quantidade de
objetos como enormes bolhas de sabo cruzando lentamente o cu no
rumo do barraco do outro lado. Vai gente l dentro! gritou a irm de
Benigno, cutucando e mostrando. Era verdade (VEIGA, 1986, p.
59).
Para leitores incautos, pode-se inferir uma leitura enviesada no
sentido de algo mgico, ilusivo, fortuito ou at mesmo surreal, ou
seja, algo fora dos parmetros tidos como normais. A ltima frase
deste pequeno trecho pe um ponto final em uma possvel hesitao que
pudesse desacomodar o leitor. As pessoas estavam sendo carregadas
dentro de bolhas. No era mgica. No era maravilhoso. Era
verdade.
Porm, antes que se inicie uma abordagem em torno do realismo
mgico, no podemos ignorar certos princpios que podero melhor situar
o surgimento dos termos realismo mgico e realismo maravilhoso.
Mgico ou maravilhoso? Como a literatura se apropria destes
termos e a eles acrescenta a palavra realismo? O que ocorre de to
relevante para que a literatura se nutra de uma determinada
realidade e a partir dela componha termos complexos (realismo mgico
e realismo maravilhoso) e difceis de serem explicados?
O crtico literrio Alejo Carpentier na obra Literatura do
Maravilhoso (1987, p. 140) pressupe que a sensao do maravilhoso
admite uma f. Somente os que possuem f e capacidade de lev-la a
todos os setores da realidade, podem acreditar que santos curam
doenas, que pessoas transformam-se em lobisomens ou que milagres
possam alterar uma realidade:
[...] o maravilhoso invocado na descrena como o fizeram os
surrealistas durante tantos anos no passa de uma artimanha
literria, to aborrecida, ao prolongar-se, como certa literatura
onrica arranjada, certos elogios da loucura, de que j estamos
fartos (CARPENTIER, 1987, p. 141, grifo do autor).
Alis, um pouco antes, no prlogo da obra El reino de este mundo
(1967), Carpentier lana a expresso realismo
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 39
maravilhoso. Em visita ao Haiti no ano de 1943, Carpentier teria
tido contato com uma realidade mergulhada em crenas e religies
primitivas. O cubano logo associa essa realidade Amrica inteira e a
partir da lana um novo olhar ao continente, que repleto de histrias
de luta, crenas de toda espcie, um acentuado sincretismo religioso,
enfim. Esse prlogo gerou inmeras polmicas, a ponto de se tornar
mais importante que o prprio livro e vir a ser quase que um
manifesto a favor da escrita latino-americana, sem interferncias
europeias. Carpentier destaca que:
[...] na encruzilhada mgica da Cidade do Cabo, tudo resulta no
maravilhoso em uma histria impossvel de se situar na Europa, e que
to real, entretanto, como qualquer exemplo destinado a uma formao
pedaggica, nos manuais escolares. Porm, o que a histria da Amrica
seno uma crnica do real maravilhoso? (CARPENTIER, 1967, p. 6,
traduo nossa4).
Necessrio destacar que Carpentier utiliza a expresso realismo
maravilhoso americano no para registrar um mundo inventado ou
fantasiado pelo escritor, mas para registro de uma cultura que
sempre ressaltou sua f: Pisava eu em uma terra onde milhares de
homens que ansiavam por liberdade acreditaram nos poderes
licantrpicos de Mackandal, a ponto de essa f produzir um milagre no
dia de sua execuo (CARPENTIER, 1987, p. 141).
Portanto, identificar o realismo maravilhoso com a cultura
hispano-americana torna-se uma consequncia na medida em que atende
a tradio literria mais antiga (o realismo) (CHIAMPI, 2008), bem
como resgata a antiga e clssica viso do conquistador europeu quando
chega em solo americano e necessita de novos parmetros de
entendimento:
[...] no momento de seu ingresso na Histria, a estranheza e a
complexidade do Novo Mundo o levaram a invocar o atributo
maravilhoso para resolver o dilema da nomeao do que resistia ao
4 [...] en la encrucijada mgica de La Ciudad del Cabo, todo
resulta maravilloso en una historia imposible de situar en Europa,
y que es tan real, sin embargo, como cualquier sucesso ejemplar de
los consignados, para pedaggica edificacin, em los manuales
escolares. Pero qu es la historia de Amrica toda sino una crnica de
lo real-maravilloso? (CARPENTIER, 1967, p. 6).
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 40
cdigo racionalista da cultura europeia (CHIAMPI, 2008, p.
50).
Percebe-se, ento, um trao cultural e social que delineia as
bases do realismo maravilhoso. E quanto ao realismo mgico? Como se
deu esta transformao do termo realismo mgico para o realismo
maravilhoso? De fato houve uma transformao semntica? So conceitos
parecidos ou existe uma disparidade significativa entre eles?
Antonio R. Esteves e Eurdice Figueiredo (2010), no captulo
Realismo mgico e realismo maravilhoso, defendem que o sculo XX
marca a maturidade literria da Hispano-Amrica. Os autores salientam
que a Europa inicia um processo artstico de ruptura com os modelos
realistas dos oitocentos. Tal processo, ao atravessar o Atlntico e
se firmar em solo hispnico-americano, faz com que se quebrem as
fracas bases da narrativa da poca, [...] baseada em um modelo
exgeno, que confundia a realidade com a descrio da extica paisagem
local e das complexas relaes sociais herdadas dos modelos coloniais
aqui implantados (2010, p. 393).
Nasce, ento, uma literatura engajada, que trazia temas atuais,
como a crise do homem americano que entrava no mundo
industrializado, mas que ainda vivia em um ambiente agrrio e rural
(ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 394). Nomes como Jorge Lus Borges,
na Argentina; Arturo Uslar Pietri, na Venezuela; Miguel ngel
Asturias, na Guatemala; Joo Guimares Rosa, no Brasil, alm de muitos
outros, se destacam no cenrio artstico e literrio internacional,
fomentando um movimento conhecido como boom da literatura
hispano-americana. (ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 394). nesse
contexto que surgem os termos Realismo Mgico e Realismo
Maravilhoso:
A crtica, em seu tradicional descompasso com a produo artstica
latino-americana, diante de tal avalancha de textos, viu-se na
necessidade de tentar explicar o fenmeno, ou pelo menos de criar
alguns rtulos apressados que suprissem a falta de uma reflexo mais
profunda sobre a questo. Foi nesse contexto que se popularizaram,
principalmente nos meios acadmicos, os termos realismo mgico e
realismo maravilhoso que, mais que conceitos, seriam rtulos usados
de forma mais ou menos indiscriminada, s vezes alternando-se, s
vezes opondo-se, s vezes
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 41
complementando-se, durante as dcadas seguintes (ESTEVES;
FIGUEIREDO, 2010, p. 394-5).
Tambm Irlemar Chiampi (2008), na obra O realismo maravilhoso,
defende que o termo realismo mgico fora utilizado de forma
indiscriminada pela crtica internacional. Imaturamente, os tericos
defendiam que esse termo se encaixava naquele perodo de crise
vivenciada pelo realismo, que ocorria entre os anos 1940 e
1955:
[...] o realismo mgico veio a ser um achado
crtico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade
temtica (que era realista de um outro modo) do novo romance e a
necessidade de explicar a passagem da esttica realista-naturalista
para a nova viso (mgica) da realidade (CHIAMPI, 2008, p. 19, grifo
da autora).
Importante mencionar que o termo Realismo Mgico se manifesta,
inicialmente, nas artes plsticas:
A crtica tem sido unnime em apontar Franz Roh como o primeiro a
usar o termo, em seu livro Ps-expressionismo, realismo mgico.
Problemas relacionados com a pintura europeia mais recente,
publicado em Leipzig, em 1925 (ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 395,
grifo nosso).
Alis, as vanguardas europeias da dcada de vinte do sculo passado
passariam a usar o termo por alguns anos nas artes plsticas.
Aplicado ao contexto literrio o escritor venezuelano Arturo
Uslar Pietri quem utiliza o termo pela primeira vez: Em Letras y
hombres de Venezuela, de 1948, ao analisar a produo de contos
daquele pas, nos anos de 30 e 40, ele aponta como tendncia
predominante o realismo mgico (ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 396,
grifo nosso).
Selma Calazans Rodrigues cita que Angel Flores teria sido o
primeiro crtico a utilizar o termo realismo mgico no meio
acadmico:
Flores no indagou a sua origem e ampliou enormemente a
abrangncia semntica do termo, dando-lhe um cunho vago, embora tenha
o mrito de apontar, bem ou mal, a origem da
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 42
literatura fantstica hispano-americana [...] (RODRIGUES, 1988,
p. 51).
A autora ainda observa que Flores teria colocado como marco
inicial do realismo mgico a obra Histria universal da infmia, de
Jorge Luis Borges (1935). Duas dcadas depois, especificamente em
1967, o crtico Luis Leal lanava a obra El realismo mgico en la
literatura hispano-americana, que faz a revelao do contexto em que
teria sido cunhada a expresso [...]. (RODRIGUES, 1988, p. 52).
Porm, outras partes do mundo se utilizam do termo. Na Itlia, atravs
do crtico Massimo Bontempelli em Lavventura novecentista (1938), h
emprego do realismo mgico de forma a superar a esttica futurista.
Importante destacar que o escritor Uslar Pietri teria se encontrado
com Bontempelli vindo a ter contato com essa esttica: Provavelmente
desse conjunto de influncias surgiu o emprego da frmula realismo
mgico, que, na origem europeia, nada tinha de semelhante [...] com
a narrativa que surgia ento na Amrica hispnica (RODRIGUES, 1988, p.
53, grifo da autora).
Em comum, escritores europeus e americanos da poca defendiam o
realismo mgico como algo que superava a realidade. Esta deveria ser
misteriosa, enigmtica ou at mesmo negada, o que de certa forma
empobrecia o texto literrio uma vez que apontava a viso do artista
(RODRIGUES, 1988). Alm do fato de que o termo mgico intercepta um
saber que no o literrio um saber que permeia o ocultismo, a magia,
o insondvel, e que tambm vai na contramo das teorias literrias:
Como se v, o problema da implantao do termo realismo mgico na
crtica hispano-americana envolve ora a deficincia metalingustica
(os dados reais so denominados realistas), ora no duplo enfoque da
questo. O primeiro, pelo referente (o real), leva o autor a
indefinir a realidade; como uma faca de dois gumes, essa operao, em
vez de exorcizar o real o postula como necessrio. O segundo, pela
atitude do narrador diante do real, conduz o problema para fora do
texto, centralizando no ato criador o fundamento conceitual do
realismo mgico (CHIAMPI, 2008, p. 23, grifos da autora).
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 43
Ainda que os dois termos atestem uma nova viso diante do real
face acontecimentos importantes que ocorriam na Amrica, destaca-se
que uma das diferenas (indubitavelmente a mais importante) reside
no fato de que ao realismo mgico faltou uma abordagem que
considerasse esse novo realismo hispano-americano (CHIAMPI, 1998,
p. 28) no mais trabalhado fora do texto, mas imbricado com os
elementos textuais. Por ora podemos destacar que a utilizao do
termo realismo mgico tem sido profusa nos ltimos anos, [...]
aprofundando a ambiguidade existente desde o princpio e
aparentemente sem soluo (ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 398). Os
autores, adequadamente, ainda observam que o realismo mgico
tornou-se um rtulo que vem sendo aplicado s obras de vrios artistas
plsticos e escritores latino-americanos, at mesmo como uma sada
utilizada pela crtica para homogeneizar uma produo artstica
multifacetada e heterognea:
Passado, tambm, ao que parece, o desejo homogeneizador que tem
suas razes na utopia de uma grande Amrica, a tendncia que tais
conceitos adquiram outros matizes, mais condizentes com a
multiplicidade dessa realidade cultural (ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010,
p. 413).
Levantadas as bases semnticas do termo realismo mgico, ficamos
mais confortveis para darmos continuidade a este trabalho. No conto
A ilha dos gatos pingados (1989), o leitor pode ficar muito mais
predisposto a aceitar que crianas podem comprar gatos pingados de
ouro aps acompanharem o sofrimento de Cedil e testemunharem a
alegria por ele vivenciada no espao da ilha. Sob esta perspectiva,
o leitor pode se sentir cmplice quando da instaurao do inslito.
Aqui lembramos que, de acordo com os estudos de Tzvetan Todorov, o
fantstico abarca o envolvimento no apenas do narrador, mas tambm
das personagens:
O fantstico implica, pois, uma integrao do leitor com o mundo
dos personagens. [...] A percepo desse leitor implcito se inscreve
no texto com a mesma preciso com que o esto os movimentos dos
personagens (TODOROV, 2004, p. 37).
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 44
A partir desta citao de Todorov podemos identificar alguns traos
em comum entre o fantstico e o realismo mgico, ressaltados no texto
de Irlemar Chiampi (2008, p. 52-53):
Para caracterizar a experincia de leitura do realismo
maravilhoso, o recurso literatura fantstica uma estratgia
duplamente conveniente: j est suficientemente estudada pelos
tericos do relato e os efeitos emotivos que provoca so
neutralizados ou negados no realismo maravilhoso. certo tambm que o
fantstico e o realismo maravilhoso compartilham muitos traos, como
a problematizao da racionalidade, a crtica implcita leitura
romanesca tradicional, o jogo verbal para obter a credibilidade do
leitor e, razo de frequentes confuses da crtica literria,
compartilham os mesmos motivos servidos pela tradio narrativa e
cultural: aparies, demnios, metamorfoses, desarranjos da
causalidade, do espao e do tempo, etc.
Realmente h uma neutralizao dos efeitos emotivos e at mesmo a
inexistncia deles no conto A ilha dos gatos pingados. No h o
suspense ou ativao do medo por conta dos gatos pingados de ouro ou
de algum outro acontecimento fantstico. Por outro lado, o fantstico
e o realismo mgico se interceptam, nesse conto, quando trazem um
espao diferenciado, ou nos dizeres de Chiampi, um espao
desarranjado5.
A ilha representa, muito apropriadamente, um espao que no segue
as leis daquela sociedade. No h um poder paterno ou algum que o
represente, que obrigue as crianas a serem obedientes, do contrrio
elas seriam fisicamente castigadas. Da que gatos pingados de ouro
no so quase nada se comparados situao inslita vivenciada por Cedil
ao sofrer maus tratos do cunhado.
A partir da os meninos se apoderam da ilha. No apenas por
descobrirem e explorarem um lugar que seria o baluarte contra a
violncia, mas pelo fato de que eles deram um nome a um local
virgem, no explorado por mais ningum. Merece destaque o fato de
que, ao darem nome a um local at ento desconhecido e no habitado,
os meninos se apropriam daquele espao. Como bem
5 Fazemos, aqui, uma ressalva uma vez que o Fantstico e o
Realismo Mgico so vertentes literrias distintas. Muito embora haja
pontos em comum entre essas duas vertentes, o Realismo Mgico no
advm do Fantstico.
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 45
observa Agostinho Potenciano de Souza a respeito dos nomes que
figuram nas obras de Veiga:
O jogo entre o conhecido e o desconhecido, o pragmtico e a
fantasia, configura o prazer da inveno, uma forma subjetiva de se
tornar dono de um espao. Um espao que tem reminiscncias de infncia,
como nos nomes de fazendas: Platiplanto, Bom-Tempinho. Chove-Chuva,
Amanhece, Bate-Bate, Samurum, Vaivm, Fartuosa, Samama, Ururu
(SOUZA, 1990, p. 80).
Este espao diferenciado e nomeado por crianas que encontram o
local da topofilia nos possibilita outras leituras que envolvem
importantes questes como linguagem e cultura.
Sabemos que no existem gatos pingados de ouro, da que a
inexistncia deles apontava para um importante aspecto social: o
nome da ilha remetendo a algo que somente poderia ser compactuado
entre meninos que tinham as mesmas regras e normas pautadas pelo
apreo e amizade entre eles: O nome ficava bom, mas s se tivesse os
gatos. Mas como nenhum de ns arranjou outro, ficamos com esse mesmo
por enquanto (VEIGA, 1986, p. 8).
Qual era a real necessidade de Cedil ao se refugiar no espao da
ilha? Alm de dar vazo s brincadeiras tpicas de meninos de sua
idade, Cedil precisava de um lugar no qual no receberia ordens, no
sofreria maus tratos muito menos seria humilhado pelo cunhado. O
interesse de Cedil era encontrar um espao que assinalasse um
contraponto s opresses por ele vivenciadas em sua casa, e era o que
a ilha representava. Natural, portanto, que o nome fosse ao
encontro dessa necessidade, desse local que s existia para Cedil e
para seus amigos queridos que tambm compartilhavam sua tristeza e
sua dor: Eu gostava bem da ilha, mas acho que gostava mais era por
causa de Cedil (VEIGA, 1986, p. 7).
Por fim, o espao da ilha perde seu encanto e magia no momento em
que outros garotos descobrem o local e ateiam fogo nas rudimentares
construes que Cedil e seus amigos haviam feito. A partir da no h
mais ilha, no h espao do refgio e, portanto, o nome ilha dos gatos
pingados fica na memria de garotos que um dia foram felizes naquele
lugar.
Por fim, destacamos, no conto A ilha dos gatos pingados,
manifestaes lingusticas muito prprias de uma determinada
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 46
sociedade, o que nos instiga a pensar nas imposies e coeres
advindas da gramtica normativa. No se pode mais dissociar o aspecto
lingustico do aspecto social, uma vez que a lngua se manifesta nas
sociedades em que ela atua, sofrendo alteraes e mudanas inerentes s
sociedades.
Em se tratando de um trabalho que arrola questes envolvendo
espao e alteridade, faz-se necessrio consubstanciar nossas reflexes
a partir dos estudos de tericos que fomentaram tratados
relacionando o espao marginal e a presena de uma lngua no
normativa. Afinal: Uma variedade lingustica vale o que valem na
sociedade os seus falantes, isto , vale como reflexo do poder e da
autoridade que eles tm nas relaes econmicas e sociais (GNERRE,
1991, p. 6, grifos do autor).
E aqui cabe a pergunta: dominar as regras gramaticais ou falar
de acordo com a norma culta possibilita ascenso social? Antes de
responder, um ponto merece destaque: o que seria a norma culta? Por
que se estabeleceu que o correto seria deixar de ser asno ou deixar
de ser bobo e no desasnar (VEIGA, 1986, p.4), por exemplo? Isso
acontece porque os padres normativos so construes feitas de forma a
atender aos sistemas dominantes de poder. Kathryn Woodward (2009),
em Identidade e diferena, fala em dualismos, no qual um dos
componentes sempre mais valorizado que o outro:
[...] um a norma e o outro o outro visto como desviante ou de
fora. Se pensarmos a cultura em termos de alto e baixo; que tipos
de atividades associamos com alta cultura? pera, bal, teatro? Que
atividades so identificadas, de forma estereotipada, como sendo de
baixa cultura? Telenovelas, msica popular? Este um terreno polmico
e uma dicotomia bastante questionvel nos Estudos Culturais, mas o
argumento consiste em enfatizar que os dois membros dessas divises
no recebem peso igual (2009, p. 51, grifos da autora).
Muito apropriadamente Kathryn Woodward cita certos dualismos
presentes em nossas sociedades. A autora complementa suas observaes
em relao cultura e observa que o que se denomina como baixa cultura
sempre vista de forma estereotipada e estigmatizada. Interessante
perceber que as colocaes de
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 47
Woodward se encaixam em vrias esferas de nossas sociedades, e no
caso especfico de que estamos tratando, cabem nos estudos
lingusticos:
A tendncia para classificar o mundo em uma oposio entre
princpios masculinos e femininos, identificada por Cixous, est de
acordo com as anlises estruturalistas baseadas em Saussure [...].
Mas, enquanto para Saussure essas oposies binrias esto ligadas
lgica subjacente de toda linguagem e de todo pensamento, para
Cixous a fora psquica dessa duradoura estrutura de pensamento
deriva de uma rede histrica de determinaes culturais (WOODWARD,
2009, p. 52).
Dessa forma, acaba-se por privilegiar aqueles que utilizam a
norma culta da lngua em detrimento das pessoas que fazem parte de
um estigmatizado grupo: os que utilizam a lngua de forma tida como
incorreta. E aqui voltamos aos estudos de Woodward quando a autora
defende que as oposies binrias privilegiam uma determinada parte da
sociedade, notadamente a parte considerada como alta cultura.
O que se discute, e que deve ser levado em considerao no conto
de Veiga, a presena de personagens com falares marcados e culturas
prprias que sofrem uma gama de injustias cometidas por pessoas que,
nas palavras de Woodward, estejam do outro lado do sistema binrio.
Temos, em muitos contos de Veiga, a forte presena da linguagem
rural, da linguagem que no faz parte dos grandes centros urbanos,
da linguagem que no se encaixa naqueles que fazem parte da alta
cultura.
Sob esta perspectiva, at mesmo a cultura colocada em discusso. O
que seria, portanto, um smbolo cultural? A quem se destina? Como se
propaga? Um smbolo contm uma pluralidade de sentidos. No
necessariamente ele deve servir para materializar um desejo,
sentido ou anseio, mas ele pode representar algo para uma
sociedade. O exemplo das esculturas de santos bastante emblemtico.
As esculturas no so os santos, mas os representam. Muito
apropriadamente, Benedict Anderson na obra Comunidades Imaginadas
(2008) cita o seguinte exemplo:
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 48
No existem smbolos mais impressionantes da cultura moderna do
nacionalismo do que os cenotfios e tmulos dos soldados
desconhecidos. O respeito a cerimnias pblicas em que se reverenciam
esses monumentos, justamente porque esto vazios ou porque ningum
sabe quem jaz dentro deles, no encontra nenhum paralelo verdadeiro
no passado. Para sentir a fora dessa modernidade, basta imaginar a
reao geral diante do sujeito intrometido que descobre o nome do
soldado desconhecido ou que insiste em colocar alguns ossos de
verdade dentro do cenotfio. Estranho sacrilgio contemporneo! E, no
entanto, esses tmulos sem almas imortais nem restos mortais
identificveis dentro deles esto carregados de imagens nacionais
espectrais (ANDERSON, 2008, p. 35, grifos do autor).
Da que se pode depreender que o que seria um smbolo
representativo para uma comunidade pode no o ser para outra. Muitas
religies no cultuam imagens de santos, por exemplo. Mais ainda:
muito alm dos smbolos, a cultura de uma forma geral tambm seria um
conjunto de construes que envolve rituais, discursos especficos,
lngua, tradio, enfim. Representaes essas que ficam muito explcitas
no conto de Veiga e que marcam costumes e tradies muito prprias de
algumas regies do interior brasileiro, como atestamos no trecho
abaixo:
Era bobinho que s vendo, tinha medo de tudo. No engolia semente
de jenipapo para no virar barata na barriga, no comia rolinha
assada para no dar fome canina, no jogava pedra na casa de Joo
Benedito porque ele furava um ovo com agulha e a gente ficava cego
(eu s joguei uma vez e de longe, porque todo mundo dizia que ele
era feiticeiro infalvel) (VEIGA, 1986, p. 2).
A ttulo de concluso, devemos notar que o domnio dos hbitos
sociais e da identidade, junto com outros domnios como da cultura e
da lngua, contribuem para assinalar que existe um pequeno grupo que
se mantm no poder e tende, a todo custo, manter esse status quo, ou
seja, h pessoas que pretendem dominar a cultura, a lngua e outros
fatores para que possam manter o controle sobre as sociedades
atuais. Tomaz Tadeu da Silva defende que a normalizao um dos
processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da
identidade e da diferena. Normalizar
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 49
significa eleger arbitrariamente uma identidade especfica como o
parmetro (SILVA, 2009, p. 83).
No caso do Brasil, o meio rural torna-se um contraponto aos
avanos tecnolgicos, culturais e sociais advindos das cidades
grandes. ideia de progresso, atrela-se a ideia de desenvolvimento
em reas mais sutis, como a lngua e a cultura. Muito embora o conto
A ilha dos gatos pingados tenha como projeto principal mostrar o
espao como local de refgio contra a violncia e no estamos nos
distanciando desta anlise ao ressaltarmos questes importantes como
lngua e cultura no deixamos de problematizar que o desvio do que se
considera norma pode, sim, segregar pessoas que no se encaixam em
determinados padres lingusticos ou culturais.
Referncias
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a
origem e a difuso do nacionalismo. Traduo de Denise Bottman. So
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BORGES, Jorge Luis. Histria universal da infmia. So Paulo: Cia
das Letras, 2012.
BORGES FILHO, Ozris. Espao e literatura: introduo topoanlise.
Franca: Ribeiro Grfica e Editora, 2007.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. So Paulo: T. A.
Queiroz, 2006. CARROLL, Lewis. Alice no Pas das Maravilhas. So
Paulo:
Martin Claret, 2007.
CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. Mexico: Cia General
de Ediciones S.A., 1967.
_____. A literatura do maravilhoso. Traduo de Rubia Prates
Goldoni e Srgio Molina. So Paulo: Vrtice, 1987.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no
romance hispano-americano. 2. ed. So Paulo: Perspectiva,
-
__________ Fabianna Simo Bellizzi Carneiro e Alexander Meireles
da Silva ___________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 50
2008.
DEFOE, Daniel. As aventuras de Robinson Cruso. So Paulo:
L&PM Editores, 1997.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. 1440 O Liso e o Estriado. In:
______. Mil Plats: Capitalismo e esquizofrenia. Traduo de Peter
PlPelbart e Janice Caiafa. So Paulo: Editora 34, 1997. p. 157-189.
v. 5. (Coleo Trans). EMPRESRIA condenada a pagar indenizao a
adolescente torturada. G1, Goinia, 12 set. 2008. Disponvel em: .
Acesso em: 25 fev. 2013.
ESTEVES, Antonio R.; FIGUEIREDO, Eurdice. Realismo mgico e
realismo maravilhoso. In: FIGUEIREDO, Eurdice (Org.). Conceitos de
literatura e cultura. Niteri: EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010. p.
393-414.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Histria da violncia nas
prises. 22. ed. Traduo de Raquel Ramalhete. Petrpolis: Vozes,
1987.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. Traduo de
Adelaine Resende, urea Regina Sartori e Maurcio Balthazar Leal. 3.
ed. So Paulo: Martins Fontes, 1991.
KHDE, Sonia Salomo. Personagens da literatura infanto-juvenil.
2. ed. So Paulo: Editora tica, 1990. LURKER, Manfred. Dicionrio de
simbologia. Traduo de Mario Krauss e Vera Barkow. 2. ed. So Paulo:
Martins Fontes, 2003.
PRADO, Antonio Arnoni (Org.). Atrs do mgico relance: uma
conversa com J. J. Veiga. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
PROCURADORA acusada de tortura condenada a mais de 8 anos de
priso. G1, Rio de Janeiro, 08 jul. 2010. Disponvel em: .
-
__________ O realismo mgico e o espao como refgio da alteridade
em... _____________
LING. Est. e Pesq., Catalo-GO, vol. 17, n. 1, p. 29-51,
jan./jun. 2013 51
Acesso em: 25 fev. 2013.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantstico. So Paulo: tica,
1988.
SILVA, Tomaz Tadeu (Org.) Identidade e diferena: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrpolis, RJ: Vozes, 2009.
SHAKESPEARE, William. A tempestade. So Paulo: Martin Claret,
2006.
SOUZA, Agostinho Potenciano de. Um olhar crtico sobre nosso
tempo. Uma leitura da obra de Jos J. Veiga. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1990.
TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. 3. ed. Traduo
de Maria Clara C. Castello. So Paulo: Perspectiva, 2008.
VEIGA, Jos J. Os cavalinhos de Platiplanto. Contos. 16. ed. So
Paulo: DIFEL, 1986.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: uma introduo terica e
conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferena: a
perspectiva dos estudos culturais. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes,
2009. p. 7-72.
Recebido em 15/04/2013 Aceito em 01/06/2013