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A harpa do crente, de Alexandre Herculano Texto proveniente de:
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ALEXANDRE HERCULANO
A HARPA DO CRENTE
1837 NDICE A Semana Santa A Voz A Arrbida Mocidade e Morte Deus
A Tempestade O Soldado D. Pedro A Vitria e a Piedade A Cruz
Mutilada
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A SEMANA SANTA Der Gedanke Gott weckt einen frchterlichen
Nachhar auf. Sein Name heisst Richter. SCHILLER I Tbio o sol entre
as nuvens do ocidente, J l se inclina ao mar. Grave e solene Vai a
hora da tarde! O oeste passa Mudo nos troncos da alameda antiga,
Que voz da Primavera os gomos brota: O oeste passa mudo, e cruza o
trio Pontiagudo do templo, edificado Por mos duras de avs, em
monumento De uma herana de f que nos legaram, A ns seus netos,
homens de alto esforo, Que nos rimos da herana, e que insultamos A
Cruz e o templo e a crena de outras eras; Ns, homens fortes, servos
de tiranos, Que sabemos to bem rojar seus ferros Sem nos queixar,
menosprezando a Ptria E a liberdade, e o combater por ela. Eu no!
eu rujo escravo; eu creio e espero No Deus das almas generosas,
puras, E os dspotas maldigo. Entendimento Bronco, lanado em sculo
fundido Na servido de gozo ataviada, Creio que Deus Deus e os
homens livres! II Oh, sim! rude amador de antigos sonhos,
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Irei pedir aos tmulos dos velhos Religioso entusiasmo; e canto
novo Hei-de tecer, que os homens do futuro Entendero; um canto
escarnecido Pelos filhos dest' poca mesquinha. Em que vim peregrino
a ver o mundo, E chegar a meu termo, e reclinar-me branda sombra de
cipreste amigo. III Passa o vento os do prtico da igreja Esculpidos
umbrais: correndo as naves Sussurrou, sussurrou entre as colunas De
gtico lavor: no rgo do coro Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se. IV
Mas porque sou o vento? Est deserto, Silencioso ainda o sacro
templo: Nenhuma voz humana ainda recorda Os hinos do Senhor. A
natureza Foi a primeira em celebrar seu nome Neste dia de luto e de
saudade! Trevas da quarta-feira, eu vos sado! Negras paredes, mudos
monumentos De todas essas oraes de mgoa, De gratido, de susto ou de
esperana. Depositadas ante vs nos dias De fervorosa crena, a vs que
enluta A solido e o d, venho eu saudar-vos. A loucura da Cruz no
morreu toda (1) Aps dezoito sculos! Quem chore Do sofrimento o Heri
existe ainda. Eu chorarei que as lgrimas so d homem Pelo Amigo do
povo, assassinado Por tiranos, e hipcritas, e turbas
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Envilecidas, brbaras, e servas. V Tu, Anjo do Senhor, que
acendes o estro; Que no espao entre o abismo e os cus vagueias,
Donde mergulhas no oceano a vista; Tu que do trovador mente arrojas
Quanto h nos cus esperanoso e belo, Quanto h no abismo tenebroso e
triste, Quanto h nos mares majestoso e vago, Hoje te invoco! oh,
vem! , lana em minha alma A harmonia celeste e o fogo e o gnio, Que
dem vida e vigor a um carme pio. VI A noite escura desce: o Sol de
todo Nos mares se atufou. A luz dos mortos, Dos brandes o claro,
fulgura ao longe No cruzeiro somente e em volta da ara: E pelas
naves comeou rudo De compassado andar. Fiis acodem morada de Deus,
a ouvir queixumes Do vate de Sio. Em breve os monges, Suspirosas
canes aos Cus erguendo, Sua voz uniro voz desse rgo, E os sons e os
ecos reboaro no templo. Mudo o coro depois, neste recinto Dentro em
bem pouco reinar silncio, O silncio dos tmulos, e as trevas Cobriro
por esta rea a luz escassa Despedida das lmpadas. que pendem Ante
os altares, bruxuleando frouxas. Imagem da existncia! Enquanto
passam Os dias infantis, as paixes tuas, Homem, qual ento s, so
dbeis todas. Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso Sobrenadam a
dor e o pranto e o longo
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Gemido do remorso, a qual lanar-se Vai com rouco estridor no
antro da morte, L, onde tudo horror, silncio, noite. Da vida tua
instantes florescentes Foram dois, e no mais: as cs e rugas, Logo,
rebate de teu fim te deram. Tu foste apenas som, que, o ar ferindo,
Murmurou, esqueceu, passou no espao. E a casa do Senhor ergueu-se.
O ferro Cortou a penedia; e o canto enorme Polido alveja ali no
espesso pano Do muro colossal, que era aps era, Como onda e onda ao
desdobrar na areia, Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado. O
ulmo e o choupo no cair rangeram Sob o machado: a trave afeioou-se;
L no cimo pousou: restruge ao longe De martelos fragor, e eis ergue
o templo, Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas. Homem, do que s
capaz! Tu, cujo alento Se esvai, como da cerva a leve pista No p se
apaga ao respirar da tarde, Do seio dessa terra em que s estranho,
Sair fazes as moles seculares, Que por ti, mono, falem; ds na ideia
Eterna durao s obras tuas. Tua alma imortal, e a prova a deste! VII
Anoiteceu. Nos claustros ressoando As pisadas dos monges ouo: eis
entram; Eis se curvaram paru o cho, beijando O pavimento, a pedra.
Oh, sim, beijai-a! Igual vos cobrir a cinza um dia, Talvez em breve
e a mim. Consolo ao morto a pedra do tmulo. S-lo-ia Mais, se do
justo s a herana fora;
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Mas tambm ao malvado dada a campa. E o criminoso dormir quieto
Entre os bons soterrado? Oh, no! Enquanto No templo ondeiam
silenciosas turbas, Exultaro do abismo os moradores, Vendo o
hipcrita vil, mais mpio que eles, Que escarnece do Eterno, e a si
se engana; Vendo o que julga que oraes apagam Vcios crimes. e o
motejo e o riso Dado em resposta s lgrimas do pobre; Vendo os que
nunca ao infeliz disseram De consolo palavra ou de esperana. Sim:
malvados tambm ho-de pisar-lhes Os frios restos que separa a terra,
Um punhado de terra, a qual os ossos Destes h-de cobrir em tempo
breve, Como cobriu os seus; qual vai sumindo No segredo da campa a
humana raa. VIII Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos Do templo
na amplido: s l no escuro De afumada capela o justo as preces Ergue
pio ao Senhor, as preces puras De um corao que espera, e no
mentidas De lbios de impostor, que engana os homens Com seu meneio
hipcrita, calando Na alma lodosa da blasfmia o grito. Ento exultaro
os bons, e o mpio, Que passou, tremer. Enfim, de vivos, Da voz, do
respirar o som confuso Vem confundir-se no ferver das praas, E pela
galil s ruge o vento. Em trevas no, ficou silenciosas O sagrado
recinto: os candeeiros, No gelado ambiente ardendo a custo,
Espalham dbeis raios, que reflectem Das pedras pela alvura; o negro
mocho,
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Companheiro do morto, hrrido pio Solta l da cornija: pelas
fendas Dos sepulcros desliza fumo espesso; Ondeia pela nave, e
esvai-se. Longo Suspirar no se ouviu? Olhai!, l se erguem,
Sacudindo o sudrio, em peso os morros! Mortos, quem vos chamou? O
som da tuba Ainda do Josafat no fere os vales. Dormi, dormi: deixai
passar as eras... IX Mas foi uma viso: foi como cena D' imaginar
febril. Criou-se, acaso Do poeta na mente, ou desvendou-lhe A mo de
Deus o ntimo ver da alma, Que devassa a existncia misteriosa Do
mundo dos espritos? Quem sabe? Dos vivos j deserta, a igreja torva
Repovoou-se, para mim ao menos, Dos extintos, que ao p das santas
aras Leito comum na sonolncia extrema Buscaram. O terror, que
arreda o homem Do limiar do tempo s horas mortas, No vem de crena
v. Se fulgem astros, Se a luz da Lua estira a sombra eterna Da cruz
gigante (que campeia erguida No vrtice do tmpano, ou no cimo Do
coruchu do campanrio) ao longo Dos inclinados tectos, afastai-vos!
Afastai-vos daqui, onde se passam A meia-noite inslitos mistrios;
Daqui, onde desperta a voz do arcanjo Os dormentes da morte; onde
rene O que foi forte e o que foi fraco, o pobre E o opulento, o
orgulhoso e o humilde, O bom e o mau, o ignorante e o sbio,
Quantos, enfim, depositar vieram !unto do altar o que era seu no
mundo, Um corpo nu, e corrompido e inerte.
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X E seguia a viso. Cria ainda achar-me, Alta noite, na igreja
solitria Entre os mortos, que, erectos sobre as campas, Eram pouco
um fumo que ondeava Pelas fisgas do vasto pavimento. Olhei. Do
erguido tecto o pano espesso Rareava; rareava-me ante os olhos,
Como tnue cendal; mais tnue ainda, Como o vapor de Outono em quarto
d'alva, Que se libra no espao antes que desa A consolar as plantas
conglobado Em matutino orvalho. O firmamento Era profundo e amplo.
Envolto em glria, Sobre vagas de nuvens, rodeado Das legies do Cu,
o Ancio dos dias, O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno Parava o
tempo, a imensidade, a vida Dos mundos a escutar. Era esta a hora
Do julgamento desses que se alavam, voz de cima, sobre as
sepulturas? XI Era ainda a viso. Do templo em meio Do anjo da morte
a espada flamejante Crepitando bateu. Bem como insectos, Que flor
de pego pantanoso e triste Se balouavam quando a tempestade Veio as
asas molhar nas guas turvas, Que marulhando sussurraram surgem
Volteando, zumbindo em dana doida, E, lassos, vo pousar em longas
filas Nas margens do paul, de um lado e de outro; Tal o murmrio e a
agitao incerta Ciciava das sombras remoinhando Ante o sopro de
Deus. As melodias Dos coros celestiais, longnquas, frouxas,
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Com frmito infernal se misturavam Em caos de dor e jbilo. Dos
mortos Parava, enfim, o vrtice enredado; E os grupos vagos em
distintas turmas Se enfileiravam de uma parle e de outra. Depois, o
gldio do anjo entre os dois bandos Ficou, nica luz, que se estirava
Desde o cruzeiro ao prtico, e feria De reflexo vermelho os largos
panos Das paredes de mrmore, bem como Mar de sangue, onde inertes
flutuassem De humanos vultos indecisas formas. XII E seguia a viso.
Do templo esquerda, Mestas as faces, inclinada afronte, Da noite as
larvas tinham sobre o solo Fito o espantado olhar, e as dilatadas
Baas pupilas lhes tingia o susto. Mas, como zona lcida de estrelas,
Nessa atmosfera crassa e afogueada Pela espada rubente, refulgiam
Da direita os espritos, banhado De inenarrvel placidez seu gesto.
Era inteiro o silncio, e no silncio Uma voz ressoou: Eleitos,
vinde! Ide, precitos! Vacilava a Terra, E ajoelhando eu me curvei
tremendo. XIII Quando me ergui e olhei, no cu profundo Um rastilho
de luz pura e serena Se ia embebendo nesses mares de orbes
Infinitos, perdidos no infinito, A que chamamos o universo. Um hino
De saudade e de amor, quase inaudvel, Parecia romper desde as
alturas
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De tempo a tempo. Vinha como envolto Nas lufadas do vento, at
perder-se Em sossego mortal. O curvo tecto Do templo, ento, se
condensou de novo, E para a Terra o meu olhar volveu-se. Da direita
os espritos radiosos J no estavam l. Chispando a espaos, Qual o
ferro na incude, a espada do anjo O mortio rubor mandava. apenas,
D'aurora boreal quando se extingue. XIV Prosseguia a viso. Da
esquerda s sombras Ansiava o seio a dor: tinham no gesto Impressa a
maldio, que lhes secara Eternamente a seiva da esperana. Como se v,
em noite estiva e negra, Cintilar sobre as guas a ardentia, Dumas
frontes s outras vagueavam Cerleos lumes no esquadro dos mortos, E
ao estalar das lousas, grito imenso Subterrneo, abafado e
delirante, Inefvel compndio de agonias, Misturado se ouviu com rir
do Inferno, E a viso se desfez. Era ermo o templo: E despertei do
pesadelo em trevas. XV Era loucura ou sonho? Entre as tristezas E
os terrores e angstias, que resume Neste dia e lugar a avita crena,
Irresistvel fora arrebatou-me Da sepultura a devassar segredos,
Para dizer: Tremei! Do altar sombra Tambm h mau dormir de sono
extremo!
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A justia de Deus visita os mortos, Embora a cruz da redeno
proteja A pedra tumular; embora a hstia Do sacrifcio o sacerdote
eleve Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja Rodeiam trevas,
solido e medos, Que a resguardam coas asas acurvadas Da vista do
que vive, a mo do Eterno Separa o joio ao bom gro e arroja Para os
abismos a ruim semente. XVI No! no foi sonho vo, vago delrio De
imaginar ardente. Eu fui levado, Galgando alm do tempo, s tardas
horas, Em que se passam cenas de mistrio, Para dizer: Tremei! Do
altar sombra Tambm h mau dormir de sono extremo! Vejo ainda o que
vi: da sepultura Ainda o hlito frio me enregela O suor do pavor na
fronte; o sangue Hesita imoto nas inertes veias; E embora os lbios
murmurar no ousem, Ainda, incessante, me repete na alma ntima voz:
Tremei! Do altar sombra Tambm h mau dormir de sono extremo! XVII
Mas troa a voz do monge, e, enfim, desperto O corao bateu. Eia,
retumbem Pelos ecos do templo os sons dos salmos. Que em dia de
aflio ignoto vate Teceu (2), banhado em dor. Talvez foi ele O
primeiro cantor que em vrias cordas, sombra das palmeiras da
Idumeia, Soube entoar melodioso um hino. Deus inspirava ento os
trovadores
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Do seu povo querido, e a Palestina, Rica dos meigos dons da
natureza. Tinha o ceptro, tambm, do entusiasmo. Virgem o gnio
ainda, o estro puro Louvava Deus somente, luz da aurora, E ao
esconder-se o Sol entre as montanhas De Bethoron (3). Agora o gnio
morto Para o Senhor, e os cantos dissolutos De lodoso folguedo os
ares rompem, Ou sussurram por paos de tiranos, Asselados de ptrida
lisonja, Por preo vil, como o cantor que os tece. XVIII O SALMO (4)
Quando grande o meu Deus!... T onde chega O seu poder imenso! Ele
abaixou os cus. desceu, calcando Um nevoeiro denso. Dos querubins
nas asas radiosas Librando-se, voou; E sobre turbilhes de rijo
vento O mundo rodeou. Ante o olhar do Senhor vacila a Terra, E os
mares assustados Bramem ao longe, e os montes lanam fumo, Da sua mo
tocados. Se pensou no universo, ei-lo patente Ante a face do
eterno: Se o quis, o firmamento os seios abre, Abre os seios o
Inferno. Dos olhos do Senhor, homem, se podes. Esconde-te um
momento: V onde encontrars lugar que fique Da sua vista isento:
Sobe aos Cus, transpe mares, busca o abismo, L teu Deus hs-de
achar; Ele te guiar, e a dextra sua
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L te h-de sustentar: Desce sombra da noite, e no seu manto
Envolver-te procura... Mas as trevas para ele no so trevas, Nem a
noite escura. No dia do furor, em vo buscaras Fugir ante o Deus
forte, Quando do arco tremendo, irado, impele Seta em que pousa a
morte. Mas o que o teme dormir tranquilo No dia extremo seu, Quando
na campa se rasgar da vida Das iluses o vu. XIX Calou-se o monge:
sepulcral silncio sua voz seguiu-se. Uma toada De rgo rompeu do
coro (5). Assemelhava O suspiro saudoso, e os ais de filha, Que
chora solitria o pai, que dorme Seu ltimo, profundo e eterno sono.
Melodias depois soltou mais doces. O severo instrumento: e
ergueu-se o canto, O doloroso canto do profeta, Da ptria sobre o
fado. Ele, que o vira, Sentado entre runas, contemplando Seu avito
esplendor, seu mal presente, A queda lhe chorou. L na alta noite,
Modulando o Nbel (6), via-se o vate Nos derribados prticos, abrigo
Do imundo stlio (7) e gemedora poupa. Extasiado e a lua cintilando
Na sua calva fronte, onde pesavam Anos e anos de dor. Ao venerando
Nas encovadas faces fundos regos Tinham aberto as lgrimas. Ao
longe, Nas margens do Cdron, a r grasnando (8) Quebrava a paz dos
tmulos. Que tmulo Era Sio! o vasto cemitrio
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Dos fortes de Israel. Mais venturosos Que seus irmos, morreram
pela ptria; A ptria os sepultou dentro em seu seio. Eles, em
Babilnia, aos punhos ferros, Passam de escravos miseranda vida, Que
Deus pesou seus crimes, e. ao pes-los, A dextra lhe vergou. No mais
no templo A nuvem repousara, e os cus de bronze Dos profetas aos
rogos se amostravam. O vate de Anatoth (9) a voz soltara Entre o
povo infiel, de Eloha em nome (10): Ameaas, promessas, tudo intil;
De bronze os coraes no se dobraram. Vibrou-se a maldio. Bem como um
sonho, Jerusalm passou: sua grandeza Somente existe em derrocadas
pedras. O vate de Anatoth, sobre seus restos, Com triste canto
deplorou a ptria. Hino de morte alou: da noite as larvas O som lhe
ouviram: 'squlido esqueleto, Rangendo os ossos, dentre a hera e
musgos Do prtico do templo erguia um pouco, Alvejando, a caveira.
Era-lhe alvio Do sagrado cantor a voz suave Desferida ao luar,
triste, no meio Da vasta solido que o circundava. O profeta gemeu:
no era o estro, Ou o vvido jbilo que outrora Inspirara Moiss (11):
o sentimento Foi sim pungente de silncio e morte, Que da ptria lhe
fez sobre o cadver A elegia da noite erguer e o pranto Derramar da
esperana e da saudade. XX A LAMENTAO (12) Como assim jaz e solitria
e queda Esta cidade outrora populosa!
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Qual viva, ficou e tributria A senhora das gentes. Chorou
durante a noite; em pranto as faces, Sozinha, entregue dor, nas
penas suas Ningum a consolou: os mais queridos Contrrios se
tornaram. Ermas as praas de Sio e as ruas, Cobre-as a verde relva:
os sacerdotes Gemem; as virgens plidas suspiram Envoltas na
amargura. Dos filhos de Israel nas cavas faces Est pintada a
macilenta fome; Mendigos vo pedir, pedir a estranhos, Um po de
infmia eivado. O trmulo ancio, de longe, os olhos Volve a Jerusalm,
dela fugindo: V-a, suspira, cai, e em breve expira Com seu nome nos
lbios. Que horror! mpias as mes os tenros filhos Despedaaram:
brbaras quais tigres, Os sanguinosos membros palpitantes No ventre
sepultaram. Deus, compassivo olhar volve a ns tristes: Cessa de Te
vingar! V-nos escravos, Servos de servos em pas estranho. Tem d de
nossos males! Acaso sers Tu sempre inflexvel? Esqueceste de todo a
nao tua? O pranto dos Hebreus no Te comove? s surdo a seus
lamentos? XXI Doce era a voz do velho: o som do Nablo Sonoro: o cu
sereno: clara a Terra Pelo brando fulgor do astro da noite: E o
profeta parou. Erguidos tinha Os olhos paru o cu, onde buscava Um
raio de esperana e de conforto: E ele calara j, e ainda os
ecos,
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Entre as runas sussurrando, ao longe Iam os sons levar de seus
queixumes. XXII Choro piedoso, o choro consagrado s desditas dos
seus. Honra ao profeta: Oh, margens do Jordo, pas formoso Que
fostes e no sois, tambm suspiro Condodo vos dou. Assim fenecem
Imprios, reinos, solides tornados!... No: Nenhum deste morto: o
peregrino Pra em Palmira e pensa. O brao do homem A sacudiu Terra,
e fez dormissem O seu ltimo sono os filhos dela E ele o veio dormir
pouco mais longe... Mas se chega a Sio treme, enxergando Seus
lacerados restos. Pelas pedras, Aqui e ali dispersas, ainda escrita
Parece ver-se uma inscrio de agouros, Bem como aquela que alertou
um mpio (13), Quando, no meio de ruidosa festa, Blasfemava dos Cus,
e mo ignota O dia extremo lhe apontou dos crimes. A maldio do
Eterno est vibrada Sobre Jerusalm! Quanto terrvel A vingana de
Deus! O Israelita, Sem ptria e sem abrigo, vagabundo, dio dos
homens, neste mundo arrasta Urna existncia mais cruel que a morte,
E que vem terminar a morte e inferno. Desgraada nao! Aquele solo
Onde manava o mel, onde o carvalho, O cedro e a palma o verde ou
claro ou torvo, To grato vista, em bosques misturavam; Onde o lrio
e a cecm nos prados tinham Crescimento espontneo entre as roseiras,
Hoje, campo de lgrimas, s cria Humilde musgo de escalvados cerros
(14).
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XXIII Ide vs a Mambr (15). L, bem no meio De um vale, outrora de
verdura ameno, Erguia-se um carvalho majestoso. Debaixo de seus
ramos largos dias Abrao repousou. Na Primavera Vinham os moos
adornar-lhe o tronco (16) De capelas cheirosas de boninas, E
coreias gentis traar-lhe em roda. Nasceu com o orbe a planta
venervel, Viu passar geraes, julgou seu dia Final fosse o do mundo,
e quando airosa Por entre as densas nuvens se elevava, Mandou o
Nume aos aquiles rugissem. Ei-la por terra! As folhas, pouco a
pouco, Murcharam-se caindo, e o rei dos bosques Serviu de pasto aos
tragadores vermes. Deus estendeu a mo: no mesmo instante A vinha se
mirrou: junto aos ribeiros Da Palestina os pltanos frondosos No
mais cresceram, como dantes, belos: O armento, em vez de relva,
achou nos prados Somente ingratas, espinhosas urzes. No Glgota
plantada, a Cruz clamara (17) Justia! A tal clamor hrrido espectro
No Mori surgiu (18). Era seu nome Assolao. E, despregando um grito,
Caiu com longo som de um povo a campa. Assim a herana de Jud,
outrora Grata ao Senhor, existe s nos ecos Do tempo que j foi, e
que h passado Como hora de prazer entre desditas.
.................................................. XXIV Minha ptria
onde existe? l somente! Oh, lembrana da Ptria acabrunhada
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Um suspiro tambm tu me hs pedido; Um suspiro arrancado aos seios
d'alma Pela ofuscada glria, e pelos crimes Dos homens que ora so, e
pelo oprbrio Da mais ilustre das naes da Terra! A minha triste
ptria era to bela, E forte, e virtuosa!, e ora o guerreiro E o sbio
e o homem bom acol dormem, Acol, nos sepulcros esquecidos, Que a
seus netos infames nada contam Da antiga honra e pudor e eternos
feitos. O escravo portugus agrilhoado Carcomir-se lhes deixa junto
s lousas Os decepados troncos desse arbusto, Por mos deles plantado
liberdade, E por tiranos derribado em breve, Quando ptrias virtudes
se acabaram, Como um sonho da infncia!... O vil escravo, Imerso em
vcios, em bruteza e infmia, No erguer os macerados olhos Para esses
troncos, que destroem vermes Sobre as cinzas de heris, e, aceso em
pejo, No surgir jamais? No h na Terra Corao portugus que mande um
brado De maldio atroz, que v cravar-se Na viglia e no sono dos
tiranos, E envenenar-lhes o prazer por noites De vil prostituio, e
em seus banquetes De embriaguez lanar fel e amarguras? No! Bem como
um cadver j corrupto, A Nao se dissolve: e em seu letargo O povo,
envolto na misria, dorme. XXV Oh, talvez. como o vate, ainda algum
dia Terei de erguer Ptria hino de morte,
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Sobre seus mudos restos vagueando! Sobre seus restos? Nunca!
Eterno, escuta Minhas preces e lgrimas: s em breve, Qual jaz Sio,
jazer deve Ulisseia; Se o anjo do extermnio h-de risc-la Do meio
das naes, que dentre os vivos Risque tambm meu nome, e no me deixe
Na Terra vaguear, rfo de ptria. XXVI Cessou da noite a gro
solenidade Consagrada tristeza e a memorandas Recordaes: os monges
se prostraram, A face unida pedra. A mim, a todos, Correm dos alhos
lgrimas suaves De compuno. Ateu, entra no templo: No temas esse
Deus, que os lbios negam E o corao confessa. A corda do arco Da
vingana, em que a morte se debrua, Frouxa est; Deus bom: entra no
templo. Tu, para quem a morte ou vida forma, Forma somente de mais
puro barro, Que nada crs, e em nada esperas, olha, Olha o conforto
do cristo. Se o clix Da amargura a provar os Cus lhe deram, Ele se
consolou: blsamo santo Piedosa f no corao lhe verte. Deus compaixo
ter! Eis seu gemido: Porque a esperana lhe sussurra em torno: Aqui,
ou l... a Providncia justa. Ateu, a quem o mal fizera escravo, Teu
futuro qual ? Quais so teus sonhos? No dia da aflio emudeceste Ante
o espectro do mal. E a quem alaras O gemente clamor? Ao mar, que as
ondas No altera por ti? Ao ar, que some Pela sua amplido as queixas
tuas? Aos rochedos alpestres, que no sentem,
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Nem sentir podem teu gemido intil? Tua dor, teu prazer, existem,
passam, Sem porvir, sem passado e sem sentido. Nas angstias da
vida, o teu consolo O suicdio s, que te promete Rica messe de gozo,
a paz do nada! E ai de ti, se buscaste, enfim, repouso, No limiar
da morte indo assentar-te! Ali grita uma voz no ltimo instante Do
passamento: a voz aterradora Da conscincia ela. E hs-de escut-la
Mau grado teu: e tremers em sustos, Desesperado aos Cus erguendo os
olhos Irados, de travs, amortecidos; Aos Cus, cujo caminho a
Eternidade Coa vagarosa mo te vai cerrando, Para guiar-te solido
das dores, Onde maldigas teu primeiro alento, Onde maldigas teu
extremo arranco, Onde maldigas a existncia e a morte. XXVII Calou
tudo no templo: o cu puro, A tempestade ameaadora dorme. No espao
imenso os astros cintilantes O rei da criao louvam com hinos, No
ouvidos por ns nas profundezas Do nosso abismo. E aos cantos do
universo, Ante milhes de estrelas, que recamam O firmamento,
ajuntar seu canto Mesquinho trovador? Que vale uma haspa Mortal no
meio da harmonia etrea, No concerto da noite? Oh, no silncio, Eu
pequenino verme irei sentar-me Aos ps da Cruz nas trevas do meu
nada. Assim se apaga a lmpada nocturna Ao despontar do Sol o alvor
primeiro: Por entre a escurido deu claridade; Mas do dia ao nascer,
que j rutila,
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As torrentes de luz vertendo ao longe, Da lmpada o claro
sumiu-se, intil, Nesse flgido mar, que inunda a Terra. NOTAS Eis o
poema da minha mocidade: so os nicos versos que conservo
desse tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de
respirar poesia. Se hoje me dissessem: faz um poema de quinhentos
versos acerca da Semana Santa. eu olharia ao primeiro aspecto esta
proposio como um absurdo: entretanto, eu mesmo h nove anos realizei
esse absurdo. No esta a primeira das minhas contradies, e espero em
Deus, e na minha sincera conscincia, que no seja a ltima.
Quando compus estes versos, ainda eu possua toda a vigorosa
ignorncia da juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificncia
do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava afinada
para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta no
saiu semelhante Semana Santa da religio. O que esta, de feito? Um
poema representado, um drama, cuja essncia um facto universal, o
maior de todos; o que veio mudar ideias, civilizao e destinos do
gnero humano inteiro. Tinha eu foras para o tratar? No por certo:
porque at hoje s houve um Klopstock; talvez s um haver at consumao
dos sculos.
Assim, eu corri as memrias do passado, e as esperanas do futuro;
chorei sobre Jerusalm e sobre a minha ptria: subi aos Cus, e desci
aos Infernos: saudei o Sol, e as trevas da noite; em tudo e em toda
a parte busquei inspiraes, menos onde as devia buscar; porque acima
da minha compreenso estava o meu objecto a redeno e as suas
consequncias. Foi disto justamente que eu no tratei; e era disto
que eu devia tratar, se o Pudesse ou soubesse fazer.
Porque, pois, no acompanharam estes versos os outros da primeira
mocidade no caminho da fogueira'' Porque publico um poema falho na
mesmssima essncia da sua concepo?
Porque tenho a conscincia de que h a poesia; e porque no h
poeta, que, tendo essa conscincia, consinta de bom grado em deixar
nas trevas o fruto das suas viglias.
(1) A loucura da Cruz no morreu toda:
-
Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est. Porque a
palavra da Cruz , na verdade. uma estultcia para os que se
perdem. Paul. ad Corinth. C 1-18 (2) ignoto vate / Teceu: ainda
que os salmos se atribuam geralmente a
David, h cerca disso muita incerteza, e o que, ao menos, parece
indubitvel que alguns lhe no pertencem, por falarem no cativeiro de
Babilnia e trazerem aluses a pocas mais recentes. Verdade que se
chegou a crer hertica semelhante opinio; mas os padres gregos, e
com eles Santo Hilrio e S. Jernimo, julgam absurdo atribu-los todos
a David. Esdras, voltando do cativeiro, foi quem reuniu estes
hinos, e nessa coleco provvel fizesse entrar todas as poesias
hebraicas deste gnero lrico e religioso.
(3) E ao esconder-se o Sol entre as montanhas / De Bethoron:
Bethoron
inferior, cidade situada perto da Gadara, ou Gazara, e de
Bethel, e todas elas em uma srie de montanhas no extremo de trbo de
Efraim, ao ocidente de Jerusalm. Cumpre no a confundir com a outra
Bethoron, ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalm para o norte, no
caminho de Siqum, ou Naplusa.
(4) O SALMO: Commota est, et connemuit terra: iundamenta montium
cunturbata sunt,
et commota sunt, quoniam iratus est eis. Ascendit fumus in ira
ejus: et ignis a facie ejus exarsit: carbones
succensi sunt ab eo. Inclinavit coelos et descendit: et caligo
sub pedibus ejus. Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit
super pennas ventorum. Comoveu-se a Terra e tremeu: os fundamentos
dos montes
estremeceram e se abalaram, porque se indignou contra eles.
Subiu fumo na ira dele, e saiu fogo ardente do seu rosto; por ele
foram
incendidos carves. Inclinou os Cus e desceu: e obscuridade
debaixo dos seus ps. E subiu sobre querubins, e voou; voou sobre as
asas dos ventos.
-
Salmo 17 V. 8-9-10-11 Quo ib a Spiritu tuo? et quo a facie tua
fugiam? Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in
infernum, ades. Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in
extremis maris: Ete nim illuc manus tua deducet me: et tenebit me
dextera tua. Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox
illuminatio mea in
deliciis meis; Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox
sicut dies illuminabitur
sicut tenebrae ejus, sicutet lumen ejus. Como me irei do teu
Esprito? e para onde fugirei da tua presena? Se subir ao Cu, tu ali
te achas: se descer ao Inferno, presente nele
ests. Se eu tomar as minhas asas, ao romper da alva, e for
habitar nas
extremidades do mar: Ainda l me guiar a tua mo e me suster a tua
direita. E disse: Talvez me ocultaro as trevas; mas a noite se
converte em
claridade para me descobrir, entregue s minhas delcias; Porque
as trevas no sero escuras para ti, e a noite ser iluminada
como o dia; como as trevas daquela, assim so tambm a luz deste.
Salmo 138 V. 7-8-9-10-11-12 ...arcum suum tetendit et paravit
illum. Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus
effecit. ...armou o seu arco e o tem pronto.. J ps nele os
instrumentos da morte; j preparou as suas setas ardentes. Salmo 7
V. 13-14
-
(5) sua voz seguiu-se. Uma toada / De rgo rompeu do coro.
Assemelhava: o rgo um instrumento propissimo para acompanhar os
hinos religiosos. Os protestantes, apartando-se da comunho romana,
e fazendo voltar o culto quase simplicidade primitiva, conservaram
nos seus templos este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao
mesmo tempo severos, se adaptam to bem s ideias que suscitam os
cantos da Igreja. O primeiro rgo que se viu no Ocidente da Europa
foi o que mandou, em 758, Constantino Coprnimo, imperador de
Constantinopla a Pepino, pai de Carlos Magno. Depois o seu uso se
tornou quase exclusivo nos templos. [Os versos em epgrafe so
variantes dos que se lem n'A Harpa (A sua voz seguiu-se: e um som
soturno / De rgo partiu-o; som que assemelhava). A alterao ao texto
original no implica a sucesso da nota, porque a palavra que a
origina (rgo) mantm-se.]
(6) Modulando o Nbel: o Nbel, que os Gregos traduzem por
Psalterion, ou Nablon, era entre os Hebreus um instrumento prprio
da msica religiosa, como entre os cristos o rgo.
A sua forma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com
que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica Nbel, umas vezes por
lira, outras por ctara, sem ser nenhuma das duas coisas. Veja-se a
Dissertao de Calmet acerca da msica dos Hebreus.
Do imundo stlio: O estlio o lagarto da primeire espcie, ou a
salamandra de Lacepede.
Stellio manibus nititur et moratur in aedibus regis. Migale, et
chamaeleon, et stellio, et lacerta, et talpa. A saramntiga, que se
sustm nas suas mos, e que mora no palcio dos
reis. Prov. 30 V. 28 O musaranho, o camaleo, a saramntiga, a
lagartixa e a toupeira. Levit. 11 V. 30
-
(8) Nas margens do Cdron, a r grasnando: a torrente do Cdron,
que passa entre Jerusalm e o monte Olivete, ao oriente da cidade,
seca inteiramente no Estio, e no Inverno as suas guas so torvas e
avermelhadas. Da o seu nome, que soa como Torrente da Tristeza.
Algum lhe chamou Torrente dos Cedros, tomando a palavra hebraica
Kedron pelo plural grego Kedron.
(9) O vate de Anatoth: Jeremias era natural de Anatoth, cidade
sacerdotal na tribo de
Benjamim. er Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt
in Anatoth, in terra Benjamim.
Palavras de Jeremias, filho de Helcias, um dos sacerdotes que
viviam
em Anatoth, na terra de Benjamim. Jerem. I V. 1 (10) Entre o
povo infiel, de Eloha em nome: Eloha, ou Elah, nome de
Deus em hebraico, ou antes caldaico, e palavra assaz comum na
Bblia. O autor do Gnesis usa do plural Elohim, ou Elahim, para
significar ora o Deus uno, ora os deuses dos pagos. Consulte-se
Volney, Recherches sur l'Histoire Ancienne, cap. XVII.
(11) Inspirara Moiss: aluso ao cntico depois da passagem do
mar
Roxo. (12) LAMENTAO: Quomodo sedet sola civitas plena populo!
Facta est quasi vidua
Domina Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo.
Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non
est qui
consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus
spreverunteam, et facti sunt ei inimici.
Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem:
omnes
portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus
squallidae, et ipsa oppressa amaritudine.
-
Como assim, solitria, est assentada uma cidade, cheia de
povo;
chegou a ser uma como viva a senhora das gentes; a princesa das
provncias ficou sujeita ao tributo.
Chorou, sem cessar, durante a noite, e as suas lgrimas correm
pelas
suas faces: no h quem a console, entre todos os seus amados;
todos os seus amigos a desprezaram e se lhe tomaram inimigos.
As ruas de Sio choram, porque no h quem venha s solenidades;
todas as suas portas se acham destrudas; os seus sacerdotes
gemendo; as suas virgens esqulidas, e ela, oprimida de
amargura.
Threni C. I V. 1-2-4 Omnis populus ejus gemens, et quaerens
panem: dederunt pretiosa
quaeque pro cibo ad refocilandum animam. Todo o seu povo est
gemendo e mendigando po; eles deram tudo o
que tinham de precioso a troco de alimento, para sustentar a
vida. Threni C. I V. 11 Aegypto dedimus manum, et Assyriis ut
saturaremur pane. Jacuerunt in terra foris puer, et senex. Ao
Egipto demos a mo, e aos Assrios, para sermos fartos de po. Ficaram
nas ruas, estendidos por terra, o moo e o velho. Threni C. 2 V.
21
-
Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt
cibus carum in contritione filliae populi mei.
As mos das mulheres compassivas cozeram os seus filhos,
serviram-
lhes de mantimento na runa da filha do meu povo. Threni C. 4 V.
10 Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice
oppobrium
nostrum. Hereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad
extraneos. Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de
manu eorum. Quare in perpetuum oblivisceris nostri? derelinques nos
in longitudine
dierum? Lembra-te, Senhor, do que nos tem acontecido; considera
e olha para o
nosso oprbio. A nossa herana passou a forasteiros, as nossas
casas a estranhos. Os servos nos dominaram; no houve quem nos
resgatasse da mo
deles. Por que razo te esquecers tu de ns para sempre? Nos
desamparars
tu pela longura de dias? Oratio Jerem. C. 5 V. 1-2-8-20 (13) Bem
como aquela que aterrou um mpio: Balthasar rex fuit grande
convivium optimatibus suis milli: et
unusquisque secundum suam bibebat aetatem. Praeepit ergo jam
temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae asportaverat
Nabuchodonosor
-
pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis
rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc allata
sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod
fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus,
uxores et concubinae illius. Bibebant vinum et laudabant deos suos
aureos, et argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In
eadem hora aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra
candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat
articulos manus scribentis. Tunc facies commutata est, et
cogitationes ejus conturbabant eum; et compages renum ejus
solvebantur; et genua ejus ad se invicem collidebantur. Haec est
autem scriptura, quae digesta est: Mane, Thecel, Phares. Et haex
est interpretatio sermonis: Mane: numcravit Deus regnum tuum et
complevit illud. Thecel: appensus es in statera, et inventus es
minus habens. Phares: divisum est regnum tuum, et datum est Medis,
et Persis.
O rei Baltasar deu um grande banquete a mais de mil grandes da
sua
corte, e cada um bebia nele conforme d sua idade. Estando, pois,
j bem cheio de vinho, mandou que lhe trouxessem os
vasos de ouro e de prata que Nabucodonosor, seu pai, tinha
transportado do templo de Jerusalm, para beberem por eles o rei e
os grandes da sua corte, e as mulheres dele e concubinas.
No mesmo ponto, foram trazidos os vasos de ouro e de prata que
tinha transportado do templo de Jerusalm, e por eles beberam o rei
e os grandes da sua corte, as mulheres dele e concubinas.
Eles bebiam o vinho, e louvavam os seus deuses de ouro e de
prata, de metal, de ferro, de pau e de pedra.
Na mesma hora, apareceram uns dedos, como de mo de homem, que
escrevia defronte do candeeiro, na superfcie da parede da sala do
rei; e o rei via os movimentos das juntas dos dedos da mo que
escrevia.
Ento o semblante do rei se mudou, e os seus pensamentos o
perturbavam; e as juntas dos seus rins se relaxaram, e os seus
joelhos batiam um no outro.
Esta pois a escritura que ali est disposta: Man, Tcel, Fares. E
esta a interpretao das palavras: Man: Deus contou os dias do teu
reinado, e lhes ps termo. Tcel: tu foste pesado na balana, e
achou-se que tinhas menos de
peso. Fares: o teu reino se dividiu, e foi dado aos Medos e aos
Persas.
-
Danielis Proph. C. 5 V. 1 a 6 e 25 a 28 (14) Hoje, campo de
lgrimas, s cria / Humilde musgo de escalvados
cerros: vrios passos, cem vezes citados, de Tcito e de outros
escritores gravssimos da antiguidade nos provam que a Judeia foi um
pas feracssimo. Os viajantes modernos no-la descrevem como uma
regio rida e inculta. O despotismo, que h sculos tem oprimido a
Sria, e a rapacidade dos rabes so em grande parte causa da
aniquilao da agricultura na Palestina; porm, a sua esterilidade no
se pode atribuir, por certo, a uma causa poltica. Os sectrios do
Crucificado no podem deixar de ver neste fenmeno os efeitos da
maldio de Deus sobre a Tema que bebeu o sangue do Filho do
Homem.
(15) Ide vs a Mambr: o vale de Mambr estava situado junto de
Kariath-Arb (Hbron), na tribo de Jud, e ao Meio-Dia de Jerusalm.
O carvalho, ou terebinto de Abrao, que, segundo o testemunho de S.
Jernimo, ainda existia no tempo de Constantino, o tomava notvel.
Acerca desta rvore clebre existem muitas tradies entre os Judeus; e
at para os cristos dos primeiros sculos era o vale de Mambr um
lugar de devoo e romagem. Sozomeno nos descreve o vale de Terebinto
como um stio de festivas reunies, e foi a sua narrao quem suscitou
este pedao de poema.
(16) ...na primavera, / Vinham os moos adornar-lhe o tronco:
aqui
(em Mambr) h um lugar que hoje chamam Terebinto, distante de
Cbron que lhe fica ao Meio-Dia, quinze estdios, e de Jerusalm quase
duzentos e cinquenta. Os habitantes deste stio, no tempo do Estio,
fazem uma feira, a que concorrem os vizinhos do vale, e ainda povos
mais remotos, como os Palestinos, os rabes e os Fencios, Sozomeno,
Histria Eclesistica.
(17) No Glgota plantada, a Cruz clamara: o monte Glgota, ou
Calvrio foi o lugar onde crucificaram J. C. Esta palavra
significa: lugar onde repousam os crnios dos mortos.
(18) No Mori surgiu: o monte Mori, onde estava o templo de
Salomo, levantava-se no meio de Jerusalm, e ficava-lhe ao norte
o monte Sio. Diz-se que neste lugar estivera Abrao para sacrificar
seu filho. (Calmet, Diction.).
-
A VOZ to suave ess'hora, Em que nos foge o dia, E em que suscita
a Lua Das ondas a ardentia, Se em alcantis marinhos, Nas rochas
assentado, O trovador medita Em sonhos enteado! O mar azul se
encrespa Coa vespertina brisa, E no casal da serra A luz j se
divisa. E tudo em roda cala Na praia sinuosa, Salvo o som do
remanso Quebrando em furna algosa. Ali folga o poeta Nos desvarios
seus, E nessa paz que o cerca Bendiz a mo de Deus. Mas despregou
seu grito A alcone gemente, E nuvem pequenina Ergueu-se no
ocidente: E sobe, e cresce, e imensa Nos cus negra flutua, E o
vento das procelas J varre a fraga nua. Turba-se o vasto
oceano.
-
Com hrrido clamor; Dos vagalhes nas ribas Expira o vo furor E do
poeta a fronte Cobriu vu de tristeza; Calou, luz do raio, Seu hino
natureza. Pela alma lhe vagava Um negro pensamento, Da alcone ao
gemido, Ao sibilar do vento. Era blasfema ideia, Que triunfava
enfim; Mas voz soou ignota, Que lhe dizia assim: Cantor, esse
queixume Da nncia das procelas, E as nuvens, que te roubam Mirades
de estrelas, E o frmito dos euros, E o estourar da vaga, Na praia,
que revolve, Na rocha, onde se esmaga, Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso, Enquanto do ter puro Descia o Sol radioso,
Tipo da vida do homem, do universo a vida: Depois do af repouso,
Depois da paz a lida. Se ergueste a Deus um hino
-
Em dias de amargura; Se te amostraste grato Nos dias de ventura,
Seu nome no maldigas Quando se turba o mar: No Deus, que pai,
confia, Do raio ao cintilar. Ele o mandou: a causa Disso o universo
ignora, E mudo est. O nume, Como o universo, adora! Oh, sim, torva
blasfmia No manchar seu canto! Brama a procela embora; Pese sobre
ele o espanto; Que de sua harpa os hinos Derramar contente Aos ps
de Deus, qual leo Do nardo recendente.
-
A ARRBIDA I Salve, vale do sul, saudoso e belo! Salve, ptria da
paz, deserto santo, Onde no ruge a grande voz das turbas! Solo
sagrado a Deus, pudesse ao mundo O poeta fugir, cingir-se ao ermo,
Qual ao freixo robusto a frgil hera, E a romagem do tmulo
cumprindo, S conhecer, ao despertar na morte, Essa vida sem mal,
sem dor, sem termo, Que ntima voz contnuo nos promete No trnsito
chamado o viver do homem. II Suspira o vento no lamo frondoso; As
aves soltam matutino canto; Late o lebru na encosta, e o mar
sussurra Dos alcantis na base carcomida: Eis o rudo de ermo! Ao
longe o negro, Insondado oceano, e o cu cerleo Se abraam no
horizonte. Imensa imagem Da eternidade e do infinito, salve! III
Oh, como surge majestosa e bela, Com vio da criao, a natureza No
solitrio vale! E o leve insecto E a relva e os matos e a fragrncia
pura Das boninas da encosta esto contando Mil saudades de Deus, que
os h lanado, Com mo profusa, no regao ameno Da solido, onde se
esconde o justo. E l campeiam no alto das montanhas
-
Os escalvados pncaros, severos, Quais guardadores de um lugar
que santo; Atalaias que ao longe o mundo observam, Cerrando at o
mar o ltimo abrigo Da crena viva, da orao piedosa, Que se ergue a
Deus de lbios inocentes. Sobre esta cena o sol verte em torrentes
Da manh o fulgor; a brisa esvai-se Pelos rosmaninhais, e inclina os
topos Do zimbro e alecrineiro, ao rs sentados Desses tronos de
fragas sobrepostas, Que alpestres matas de medronhos vestem; O
rocio da noite branca rosa No seio derramou frescor suave, E inda
existncia lhe dar um dia. Formoso ermo do sul, outra vez, salve! IV
Negro, estril rochedo, que contrastas, Na mudez tua, o plcido
sussurro Das rvores do vale, que vicejam Ricas dencantos, coa estao
propcia; Suavssimo aroma, que, manando Das variegadas flores,
derramadas Na sinuosa encosta da montanha, Do altar da solido
subindo aos ores, s digno incenso ao Criador erguido; Livres aves,
filhas da espessura, Que s teceis da natureza as hinos, O que cr, o
cantor, que foi lanado, Estranho no mundo, no bulcio dele, Vem
saudar-vos, sentir um gozo puro, Dus homens esquecer paixes e
oprbio, E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes, O Sol, e uma s
vez puro saudar-lha. Convosco eu sou maior; mais longe a mente
-
dos cus se imerge livre, E se desprende de mortais memrias Na
solido solene, onde, incessante, Em cada pedra, em cada flor se
escuta Do Sempiterno a voz, e v-se impressa A dextra sua em
multiforme quadro. V Escalvado penedo, que repousas L no cimo do
monte, ameaando Runa ao roble secular da encosta, Que sonolento
move a coma estiva Ante a aragem do mar, foste formoso; J te
cobriram cespedes virentes; Mus o tempo voou, e nele envolta A
formosura tua. Despedidos Das negras nuvens o chuveiro espesso E o
granizo, que o solo fustigando Tritura a tenra lanceolada relva,
Durante largos sculos, no Inverno, Dos vendavais no dorso a ti
desceram. Qual amplexo brutal de ardos grosseiro, Que, maculando
virginal pureza. Do pudor varre a aurola celeste, E deixa, em vez
de um serafim m Terra, Queimada flor que devorou o raio. VI Caveira
da montanha, ossada imensa, tua campa o Cu: sepulcro o vale Um dia
te ser. Quando sentires Rugir com som medonho a Terra ao longe, Na
expanso dos vulces, e o mar, bramindo, Lanar praia vagalhes
cruzados; Tremer-te a larga base, e sacudir-te De sobre si, o fundo
deste vale Te vai servir de tmulo; e os carvalhos Do mundo
primognitos, e os sobros,
-
Arrastados por ti l da colina, Contigo ho-de jazer. De novo a
terra Te cobrir o dorso sinuoso: Outra vez sobre ti nascendo os
lrios, Do seu puro candor ho-de adornar-te; E tu, ora medonho e nu
e triste, Ainda belo sers, vestido e alegre. VII Mais que o homem
feliz! Quando eu no vale Dos tmulos cair; quando uma pedra Os ossos
me esconder, se me for dada, No mais reviverei; no mais meus olhos
Vero, ao pr-se, o Sol em dia estivo, Se em turbilhes de prpura, que
ondeiam Pelo extremo dos cus sobre o ocidente. Vai provar que um
Deus h o estranhos povos E alm das ondas trmulo sumir-se; Nem,
quando, l do cimo das montanhas, Com torrentes de luz inunda as
veigas: No mais verei o refulgir da Lua No irrequieto mar, na paz
da noite, Por horas em que vela o criminoso, A quem ntima voz rouba
o sossego. E em que o justo descansa, ou, solitrio, Ergue ao Senhor
um hino harmonioso. VIII Ontem, sentado num penhasco, e perto Dos
guas, ento quedas, do oceano, Eu tambm o louvei sem ser um justo: E
meditei, e a mente extasiada Deixei correr pela amplido das ondas.
Como abrao materno era suave A aragem fresca do cair das trevas.
Enquanto, envolta em glria, a clara Lua Sumia em seu fulgor milhes
destrelas.
-
Tudo calado estava: o mar somente As harmonias da criao soltava,
Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto Se agitava, gemendo e
murmurando. Ante o sopro de oeste: ali dos olhos O pranto me
correu, sem que o sentisse. E aos ps de Deus se derramou minha
alma. IX Oh, que viesse o que no cr, comigo, vicejante Arrbida de
noite, E se assentasse aqui sobre estas fragas, Escutando o
sussurro incerto e triste Das movedias ramas, que povoa De saudade
e de amor nocturna brisa; Que visse a lua, o espao opresso de
astros, E ouvisse o mar soando: ele chorara, Qual eu chorei, as
lgrimas do gozo, E, adorando o Senhor, detestaria De uma cincia v
seu vo orgulho. X aqui neste vale, ao qual no chega Humana voz e o
tumultuar das turbas, Onde o nada da vida sonda livre O corao, que
busca ir abrigar-se No futuro, e debaixo do amplo manto Da piedade
de Deus: aqui serena Vem a imagem da campa, como a imagem Da ptria
ao desterrado; aqui, solene, Brada a montanha, memorando a morte.
Essas penhas, que, l no alto das serras Nuas, crestadas, solitrias
dormem, Parecem imitar da sepultura O aspecto melanclico e o
repouso To desejado do que em Deus confia.
-
Bem semelhante paz. que se h sentado Por sculos, ali, nas
cordilheiras o silncio do adro, onde renem Os ciprestes e a Cruz, o
Cu e a Terra. Como tu vens cercado de esperana, Para o inocente,
plcido sepulcro! Junto das tuas bordas pavorosas O perverso recua
horrorizado: Aps si volve os olhos; na existncia Deserto rido s
descobre ao longe. Onde a virtude no deixou um trilho. Mas o justo,
chegando meta extrema, Que separa de ns a eternidade, Transpe-na
sem temor, e em Deus exulta.. O infeliz e o feliz l dormem ambos,
Tranquilamente: e o trovador mesquinho, Que peregrino vagueou na
Terra, Sem encontrar um corao ardente Que o entendesse, a ptria de
seus sonhos, Ignota, por l busca; e quando as eras Vierem junto s
cinzas colocar-lhe Tardios louros, que escondera a inveja, Ele no
erguer a mo mirrada, Para os cingir na regelada fronte. Justia,
glria, amor, saudade, tudo, An p da sepultura, som perdido De harpa
elia esquecida em brenha ou selva: O despertar um pai, que saboreia
Entre os bruos da morte o extremo sono, J no dado ao filial
suspiro; Em vo o amante, ali, da amada sua De rosas sobre a c'roa
debruado, Rega de amargo pranto as murchas flores E a fria pedra: a
pedra sempre fria. E para sempre as flores se murcharam. XI
-
Belo ermo!, eu hei-de amar-te enquanto esta alma, Aspirando o
futuro alm da vida E um hlito dos Cus, gemer atada coluna do exlio,
a que se chama Em lngua vil e mentirosa o mundo. Eu hei-de amar-te,
vale, como um filho Dos sonhos meus. A imagem do deserto
Guard-la-ei no corao, bem junto Com minha f, meu nico tesouro. Qual
pomposo jardim de verme ilustre, Chamado rei ou nobre, h-de contigo
Comparar-se, deserto? Aqui no cresce Em vaso de alabastro a flor
cativa, Ou rvore educada por mo de homem, Que lhe diga: s escrava,
e erga um ferro E lhe decepe os troncos. Como livre A vaga do
oceano, livre no ermo A bonina rasteira ou freixo altivo! No lhes
diz: Nasce aqui, ou l no cresas. Humana voz. Se baqueou o freixo,
Deus o mandou: se a flor pendida murcha, que o rocio no desceu de
noite, E da vida o Senhor lhe nega a vida. Cu livre, Terra livre, e
livre a mente, Paz ntima, e saudade, mas saudade Que no di, que no
mirra, e que consola, So as riquezas do ermo, onde sorriem Das
procelas do mundo os que o deixaram. XII Ali naquela encosta, ontem
de noite, Alvejava por entre os medronheiros Do solitrio a habitao
tranquila: E eu vagueei por l. Patente estava O pobre albergue do
eremita humilde, Onde jazia o filho da esperana
-
Sob as asas de Deus, luz dos astros, Em leito, duro sim, no de
remorsos. Oh, com quanto sossego o bom do velho Dormia! A leve
aragem lhe ondeava As raras cs na fronte, onde se lia A bela
histria de passados anos. De alto choupo atravs passava um raio Da
Lua astro de paz, astro que chama Os olhos para o cu, e a Deus a
mente E em luz plida as faces lhe banhava: E talvez neste raio o
Pai celeste Da ptria eterna, lhe enviava a imagem, Que o sorriso
dus lbios lhe fugia, Como se um sonho de ventura e glria Na Terra
de antemo o consolasse. E eu comparei o solitrio obscuro Ao
inquieto filho das cidades: Comparei o deserto silencioso Ao
perptuo rudo que sussurra Pelos palcios do abastado e nobre, Pelos
paos dos reis; e condo-me Do corteso soberbo, que s cura De honras,
haveres, glria, que se compram Com maldies e perenal remorso.
Glria! A sua qual ? Pelas campinas, Cobertas de cadveres, regadas
De negro sangue, ele segou seus louros; Louros que vo cingir-lhe a
fronte altiva Ao som do choro da viva e do rfo; Ou, dos sustos
senhor, em seu delrio, Os homens, seu irmos, flagela e oprime. L o
filho do p se julga um nume, Porque a Terra o adorou; o desgraado
Pensa, talvez, que o verme dos sepulcros Nunca se h-de chegar para
trag-lo Ao banquete da morte, imaginando Que uma ljea de mrmore,
que esconde O cadver do grande, mais durvel Do que esse cho sem
inscrio, sem nome. Por onde o opresso, o msero, procura
-
O repouso, e se atira aos ps do trono Do Omnipotente, a demandar
justia Contra os fortes do mundo, os seus tiranos. XIII cidade,
cidade, que transbordas De vcios, de paixes e de amarguras! Tu l
ests, na tua pompa envolta, Soberba prostituta, alardeando Os
teatros, e os paos, e o rudo Das carroas dos nobres recamadas De
ouro e prata, e os prazeres de uma vida Tempestuosa, e o tropear
contnuo Dos frvidos ginetes, que alevantam O p e o lodo corteso das
praas; E as geraes corruptas de teus filhos L se revolvem, qual
monto de vermes Sobre um cadver ptrido! Cidade, Branqueado
sepulcro, que misturas A opulncia, a misria, a dor e o gozo, Honra
e infmia, pudor e impudcia Cu e inferno, que s tu? Escrnio ou glria
Da humanidade? O que o souber que o diga! Bem negra avulta aqui, na
paz do vale, A imagem desse povo, que reflui Das moradas rua, praa,
ao templo; Que ri, e chora, folga, e geme, e morre, Que adora Deus,
e que o pragueja, e o teme; Absurdo misto de baixeza extrema E de
extrema ousadia; vulto enorme, Ora aos ps de um vil dspota
estendido, Ora surgindo, e arremessando ao nada As memrias dos
sculos que foram, E depois sobre o nada adormecendo. V-lo, rico de
oprbrio, ir assentar-se Em joelhos nos trios dos tiranos. Onde,
entre o lampejar de armas de servos,
-
O servo popular adora um tigre ? Esse tigre o dolo do povo!
Saudai-o; que ele o manda: abenoai-lhe O frreo ceptro: ide folgar
em roda De cadafalsos, povoados sempre De vtimas ilustres, cujo
arranco Seja como harmonia, que adormente Em seus terrores o senhor
das turbas. Passai depois. Se a mo da Providncia Esmigalhou a
fronte tirania; Se o dspota caiu, e est deitado No lodaal da sua
infmia, a turba L vai buscar o ceptro dos terrores, E diz: meu; e
assenta-se na praa, E envolta em roto manto. e julga, e reina. Se
um mpio, ento, na afogueada boca De vulco popular sacode um facho,
Eis o incndio que muge, e a lava sobe, E referve, e trasborda, e se
derrama Pelas ruas alm: clamor retumba De anarquia impudente, e o
brilho de armas Pelo escuro transluz, como um pressgio De assolao,
e se amontoam vagas Desse mar d'abjeco, chamado o vulgo; Desse
vulgo, que ao som de infernais hinos Cava fundo da Ptria a
sepultura, Onde, abraando a glria do passado E do futuro a ltima
esperana, As esmaga consigo, e ri morrendo. Tal s, cidade,
licenciosa ou serva! Outros louvem teus paos sumptuosos, Teu ouro,
teu poder: sentina impura De corrupes, teus no sero meus hinos! XIV
Cantor da solido, vim assentar-me Junto do verde cspede do vale, E
a paz de Deus do mundo me consola.
-
Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo, Um pobre conventinho.
Homem piedoso O alevantou h sculos, passando, Como orvalho do cu,
por este stio, De virtudes depois to rico e frtil. Como um pai de
seus filhos rodeado, Pelos matos do outeiro o vo cercando Os
tugrios de humildes eremitas, Onde o cilcio e a compuno apagam Da
lembrana de Deus passados erros Do pecador, que reclinou a fronte
Penitente no p. O sacerdote Dos remorsos lhe ouviu as amarguras; E
perdoou-lhe, e consolou-o em nome Do que expirando perdoava, o
Justo, Que entre os humanos no achou piedade. XV Religio! do msero
conforto, Abrigo extremo de alma, que h mirrado O longo agonizar de
uma saudade. Da desonra, do exlio, ou da injustia, Tu consolas
aquele, que ouve o Verbo. Que renovou o corrompido mundo, E que mil
povos pouco a pouco ouviram. Nobre, plebeu, dominador, ou servo, O
rico, o pobre, o valoroso, o fraco, Da desgraa no dia ajoelharam No
limiar do solitrio templo. Ao p desse portal, que veste o musgo,
Encontrou-os chorando o sacerdote, Que da serra descia meia-noite,
Pelo sino das preces convocado: A os viu ao despontar do dia, Sob
os raios do Sol, ainda chorando, Passados meses, o burel grosseiro,
O leito de cortia, e a fervorosa
-
E contnua orao foram cerrando Nos coraes dos mseros as chagas,
Que o mundo sabe abrir, mas que no cura. Aqui, depois, qual hlito
suave. Da Primavera, lhes correu a vida, At sumir-se no adro do
convento, Debaixo de uma ljea tosca e humilde, Sem nome, nem
palavra, que recorde O que a terra abrigou no sono extremo.
Eremitrio antigo, oh, se pudesses Dos anos que l vo contar a
histria; Se ora, voz do cantor, possvel fosse Transudar desse cho,
gelado e mudo, O mudo pranto, em noites dolorosas, Por nufragos do
mundo derramado Sobre ele, e aos ps da Cruz!... Se vs pudsseis,
Broncas pedras, falar, o que direis! Quantos nomes mimosos da
ventura, Convertidos em fbula das gentes. Despertariam o eco das
montanhas, Se aos negros troncos do sobreiro antigo Mandasse o
Eterno sussurrar a histria Dos que vieram desnudar-lhe o cepo, Para
um leito formar, onde velassem Da mgoa, ou do remorso, as longas
noites! Aqui veio, talvez, buscar asilo Um poderoso, outrora anjo
da Terra, Despenhado nas trevas do infortnio; Aqui gemeu, talvez, o
amor trado, Ou pela morte convertido em cancro De infernal
desespero; aqui soaram Do arrependido os ltimos gemidos, Depois da
vida derramada em gozos, Depois do gozo convertido em tdio. Mas
quem foram? Nenhum, depondo em terra Vestidura mortal, deixou
vestgios De seu breve passar. E isso que importa, Se Deus o viu; se
as lgrimas do triste
-
Ele contou, para as pagar com glria? XVI Ainda em curvo outeiro,
ao fim da senda Que serpeia do monte ao fundo vale, Sobre o marco
de pedra a cruz se eleva, Como um farol de vida em mar de escolhos:
Ao cristo infeliz acolhe no ermo. E consolando-o, diz-lhe: A ptria
tua l no Cu: abraa-te comigo. Junto dela esses homens, que passaram
Acurvados na dor, as mos ergueram Para o Deus, que perdoa, e que
conforto Dos que aos ps deste smbolo da esp'rana Vm derramar seu
corao aflito: do deserto a histria, a cruz e a campa; E sobre tudo
o mais pousa o silncio. XVII Feliz da Terra, os monges no maldigas;
Do que em Deus confiou no escarneas: Folgando segue a trilha, que h
juncado, Para teus ps, de flores a fortuna. E sobre a morta crena
em paz descansa. Que mal te faz. Que gozo vai roubar-te O que
ensanguenta os ps no tojo agreste, E sobre a fria pedra encosta a
fronte? Que mal te faz uma orao erguida, Nas solides, por voz
sumida e frouxa, E que, subindo aos Cus, s Deus escuta? Oh, no
insultes lgrimas alheias, E deixa a f ao que no tem mais nada!... E
se estes versos te contristam, rasga-os. Teus menestris te vendero
seus hinos, Nos banquetes opparos, enquanto O negro po repartir
comigo, Seu trovador, o pobre anacoreta,
-
Que no te inveja as ditas, como as c'roas Do prazer ao cantor eu
no invejo; Tristes coroas, sob as quais s vezes Est gravada uma
inscrio d'infmia.
-
MOCIDADE E MORTE Solevantado o corpo, os olhos fitos, As magras
mos cruzadas sobre o peito, Vede-o, to moo, velador de angstias,
Pela alta noite em solitrio leito. Por essas faces plidas, cavadas,
Olhai, em fio as lgrimas deslizam; E com o pulso, que apressado
bate, Do corao os estos harmonizam. que nas veias lhe circula a
febre: que a fronte lhe alaga o suor frio; que l dentro dor, que o
vai roendo, Responde horrvel ntimo cicio. Encostando na mo o rosto
aceso, Fitou os olhos hmidos de pranto Na lmpada mortal ali
pendente, E l consigo modulou um canto. um hino de amor e de
esperana? orao de angstia e de saudade? Resignado na dor, sada a
morte, Ou vibra aos cus blasfmia d'impiedade? isso tudo,
tumultuando incerto No delrio febril daquela mente, Que, balouada
borda do sepulcro, Volve aps si a vista longamente. a poesia a
murmurar-lhe na alma ltima nota de quebrada lira; o gemido do
tombar do cedro; triste adeus do trovador que expira.
DESESPERANA
-
Meia-noite bateu, volvendo ao nada Um dia mais, e caminhando eu
sigo! Vejo-te bem, campa misteriosa... Eu vou, eu vou! Breve serei
contigo! Qual tufo, que ao passar agita o pego, Meu plcido existir
turvou a sorte: Hlito impuro de pulmes ralados Me diz que neles se
assentou a morte: Enquanto mil e mil no largo mundo Dormem em paz
sorrindo, eu velo e penso, E julgo ouvir as preces por finados, E
ver a tumba e o fumegar do incenso. Se dormito um momento, acordo
em sustos; Pulos me d o corao no peito, E abrao e beijo de uma vida
extinta O ltimo scio, o doloroso leito. De um abismo insondado s
agras bordas Insanvel doena me h guiado, E disse-me: No fundo o
esquecimento: Desce; mas desce com andar pausado. E eu lento vou
descendo, e sondo as trevas: Busco parar; parar um s instante! Mas
a cruel, travando-me da dextra, Me faz cair mais fundo, e grita:
Avante! Porque escutar o trnsito das horas? Alguma delas trar-me-
conforto? No! Esses golpes, que no bronze ferem, So pura mim como
dobrar por morto. Morto!, morto! me clama a conscincia: Diz-mo este
respirar rouco e profundo. Ai!, porque fremes, corao de fogo,
Dentro de um seio corrompido e imundo?
-
Beber um ar difano e suave, Que renovou da tarde o brando vento,
E convert-lo, no aspirar contnuo, Em bafo apodrecido e peonhento!
Estender para o amigo a mo mirrada, E ele negar a mo ao pobre
amigo; Querer uni-lo ao seio descarnudo, E ele fugir, temendo o seu
perigo! E ver aps um dia ainda cem dias, Nus d'esperana, frteis de
amargura; Socorrer-me ao porvir, e ach-lo um ermo, E s, bem l no
extremo, a sepultura! Agora!... quando a vida me sorria: Agora!...
que meu estro se acendera; Que eu me enlaava a um mundo
d'esperanas, Como se enlaa pelo choupo a hera, Deixar tudo, e
partir, sozinho e mudo; Varrer-me o nome escuro esquecimento: No
ter um eco de louvor, que afague Do desgraado o humilde monumento!
tu, sede de um nome glorioso, Que to fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste, e s me resta a pobre herana De ver a luz do Sol mais
alguns dias. Vestem-se os campos do verdor primeiro: J das aves
canes no bosque ecoam: No para mim, que s escuto atento Funreos
dobres que no templo soam! Eu que existo, e que penso, e falo, e
vivo, Irei to cedo repousar na terra?! Oh, meu Deus, oh, meu Deus!,
um ano ao menos; Um louro s... e meu sepulcro cerra!
-
E to bom respirar, e a luz brilhante Do sol oriental saudar no
outeiro! Ai, na manh saud-la posso ainda; Mas ser este Inverno o
derradeiro! Quando de pomos o vergel for cheio; Quando ondear o
trigo na planura; Quando pender com ureo fruto a vide, Eu tambm
penderei na sepultura. Dos que me cercam no turbado aspecto, Na voz
que prende desusado enleio, No pranto a furto, no fingido riso
Fatal sentena de morrer eu leio. Vistes vs criminoso, que ho lanado
Seus juzes nos trances da agonia, Em oratrio estreito, onde no
entra Suavssima luz do claro dia; Diante a cruz, ao lado o
sacerdote, O cadafalso, o crime, o algoz na mente, O povo
tumultuando, o extremo arranco, E Cu, e Inferno, e as maldies da
gente? Se adormece, l surge um pesadelo, Com os martrios da sua
alma acorde; Desperta logo, e terra se arremessa, E os punhos
cerra, e delirante os morde. Sobre as ljeas do duro pavimento De
verges e de sangue o rosto cobre. Ergue-se e escuta com cabelos
hirtos Do sino ao longe o compassado dobre. Sem esperana!... No! Do
cadafalso Sobe as escudas o perdo s vezes; Porm a mim... no me
diro: s salvo! E o meu suplcio durar por meses.
-
Dizer posso: Existi: que a dor conheo! Do gozo a taa s provei
por horas: E serei teu, calado cemitrio, Que engenho, glria, amor,
tudo devoras. Se o furaco rugiu, e o dbil tronco De rvore tenra
espedaou passando, Quem se doeu de a ver jazendo em terra? Tal o
meu destino miserando! Nmen de santo amor, mulher querida, Anjo do
Cu, encanto da existncia. Ora por mim a Deus, que h-de escutar-te.
Por ri me salve a mo da Providncia. Vem: aperta-me a dextra... Oh,
foge, foge! Um beijo ardente aos lbios teus voara: E neste beijo
venenoso a morte Talvez este infeliz s te entregara! Se eu pudesse
viver... como teus dias Cercaria de amor suave e puro! Como te fora
plcido o presente; Quanto risonho o aspecto do futuro! Porm,
medonho espectro ante meus olhos, Como sombra infernal perptuo
ondeia, Bradando-me que vai partir-se o fio Com que da minha vida
se urde a teia. Entregue seduo enquanto eu durmo, No turbilho do
mundo hei-de deixar-te! Quem velar por ti, pomba inocente? Quem do
perjrio poder salvar-te? Quando eu cerrar os olhos moribundos Tu
verters por mim pranto saudoso; Mas quem me diz que no vir o riso
Banhar teu rosto triste e lacrimoso?
-
Ai, o extinto s herda o esquecimento! Um novo amor te agitar o
peito: E a dura ljea cobrir meus ossos Frios, despidos sobre trreo
leito!... Deus, porque este clix de agonia At as bordas de amargor
me encheste? Se eu devia acabar na juventude, Porque ao mundo e a
seus sonhos me prendeste? Virgem do meu amor, porque perd-la?
Porque entre ns a campa h-de assentar-se? Tua suprema paz com gozo
ou dores Do mortal, que em ti cr, pode turbar-se? No haver quem me
salve! e vir um dia Em que de minha o nome ainda lhe desse! Ento,
Senhor, o umbral da eternidade, Talvez sem um queixume,
transpusesse. Mas, qual flor em boto pendida e murcha, Sem de
fragrncias perfumar a brisa, Eu poeta, eu amante, ir esconder-me
Sob uma lousa desprezada e lisa! Porqu? Qual foi meu crime, Deus
terrvel? Em te adorar que fui, seno insano?... O teu fatal poder
hoje maldigo! O que te chama pai, mente: s tirano. E se aos ps de
teu trono os ais no chegam; Se os gemidos da terra os ares somem;
Se a Providncia crena v, mentida, Porque geraste a inteligncia do
homem? Porque da virgem no sorrir puseste Santo pressgio de suprema
dita, E apontaste ao poeta a imensidade Na nsia de glria que em sua
alma habita?
-
A imensidade!... E que me importa herd-la, Se na Terra passei
sem ser sentido? Que vale eterno vaguear no espao, Se nosso nome se
afundou no olvido? O ANJO-DA-GUARDA mpio, silncio! A tua voz
blasfema Da noite a paz perturba. Verme, que te rebelas Sob a mo do
Senhor, Vs os milhes d'estrelas De ntido fulgor, Que, em ordenada
turba, A Deus entoam incessantes hinos? Quantas vezes apaga Do
livro da existncia Um orbe a mo do Eterno! E o belo astro que
expira Maldiz a Providncia, Maldiz a mo que o esmaga? Acaso pra o
cntico superno? Ou apenas suspira O moribundo, Que se chamava um
mundo? Quem vai pr uma campa sobre os restos Desse inerte planeta,
Que o destrutor cometa Incinerou na rpida passagem? E tu, tomo
obscuro, Que varre tarde a aragem, Soltas do seio impuro Maldio
insensata, Porque o teu Deus te evoca eternidade? Que o viver? O
umbral, a que um momento O esprito, surgindo Das solides do nada
voz do Criador, se encosta, e atento
-
Contempla a luz e o cu; donde desata Seu voo imensidade. Geme
acaso o passarinho De saudade, Quando as asas expande, e deixa o
ninho A vez primeira, a mergulhar nos ares? Volve olhos lacrimosos
Aos mares tormentosos O navegante, quando aproa s plagas Da ptria
suspirada? Porque morres?! Pergunta Providncia Porque te fez
nascer. Qual era o teu direito a ver o mundo; Teu jus existncia?
Olha no Outono o ulmeiro Que o vendaval agita, E cujas tnues folhas
Aos centos precipita. So a folha do ulmeiro o nome e a fama, E o
amar dos humanos: Ao nada do que foi assim se atiram No vrtice dos
anos. Que a glria na Terra? Um eco frouxo, Que somem mil rudos. E a
voz da Terra o que , na voz imensa Dos orbes reunidos? Amor!, amor
terreno!... Ai, se pudesses Compreender a amargura, Com que te
choro, alma transviada! Eu, que te amei do bero, e qual doura H no
afecto que liga o anjo ao homem, Rindo despiras esse corpo enfermo,
Paru te unir a mim, para aspirares O gozo celestial de amor sem
termo! Alma triste, que mesquinha Te debruas sobre o Inferno, Ouve
o anjo, pobrezinha; Vem ao gozo sempiterno. Resigna-te e espera, e
os dias de prova Sero para o crente quais breves instantes.
-
Tomar-te-ei nos braos no trance da morte, Fendendo o infinito
coas asas radiantes. Depois, das alturas teu trreo vestido Sorrindo
veremos na Terra guardar E ao hino de Hossana nos coros celestes A
voz de um remido iremos juntar. A GRAA Que harmonia suave esta, que
na mente Eu sinto murmurar, Ora profunda e grave, Ora meiga e
cadente, Ora que faz chorar? Porque da morte a sombra, Que para mim
em tudo Negra se reproduz, Se aclara, e desassombra Seu gesto
carrancudo, Banhada em branda luz? Porque no corao No sinto pesar
tanto O frreo p da dor, E o hino da orao, Em vez de irado canto, Me
pede ntimo ardor? s tu, meu anjo, cuja voz divina Vem consolar a
solido do enfermo, E a contemplar com placidez o ensina De curta
vida o derradeiro termo? Oh, sim!, s tu, que na infantil idade,. Da
aurora frouxa luz, Me dizias: Acorda, inocentinho, Faz o sinal da
Cruz. s tu, que eu via em sonhos, nesses anos De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e prpura descendo
-
Coas roupas a alvejar. s tu, s tu!, que ao pr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente, Me contavas mistrios, harmonias Dos Cus,
do mar dormente. s tu, s tu!, que, l, nesta alma absorta Modulavas
o canto, Que de noite, ao luar, sozinho erguia Ao Deus trs vezes
santo. s tu, que eu esqueci na idade ardente Das paixes juvenis, E
que voltas a mim, sincero amigo, Quando sou infeliz. Sinta a tua
voz de novo, Que me revoca a Deus: Inspira-me a esperana, Que te
seguiu dos Cus!... RESIGNAO No teu seio, reclinado Dormirei,
Senhor, um dia, Quando for na terra fria Meu repouso procurar;
Quando a lousa do sepulcro Sobre mim tiver cado, E este esprito
afligido Vir a tua luz brilhar! No teu seio, de pesares O existir
no se entretece; L eterno o amor florece; L florece eterna paz: L
bramir junto ao poeta No iro paixes e dores, Vos desejos, vos
temores Do desterro em que ele jaz.
-
Hora extrema, eu te sado! Salve, trevas da jazida, Donde espera
erguer-se vida Meu esprito imortal! Anjo bom, no me abandones Neste
trance dilatado; Que contrito, resignado, Me achars na hora fatal.
E depois... perdoa, anjo, Ao amor do moribundo, Que s deixa neste
mundo Pouco p, muito gemer. Oh... depois... diz mesquinha Um
segredo de doura: Que na ptria o amor se apura, Que o desterro viu
nascer. Que o Cu a ptria nossa; Que o mundo exlio breve; Que o
morrer cousa leve; Que princpio, no fim: Que duas almas que se
amaram Vo l ter nova existncia, Confundidas numa essncia, A de um
novo querubim.
-
DEUS Nas horas de silncio, meia-noite, Eu louvarei o Eterno!
Ouam-me a terra, e os mares rugidores, E os abismos do Inferno.
Pela amplido dos cus meus cantos soem, E a Lua resplendente Pare em
seu giro, ao ressoar nest'harpa O hino do Omnipotente. Antes de
tempo haver, quando o infinito Media a eternidade, E s do vcuo as
solides enchia De Deus a imensidade, Ele existia, em sua essncia
envolto, E fora dele o nada: No seio do criador a vida do homem
Estava ainda guardada; Ainda ento do mundo os fundamentos Na mente
se escondiam De Jeov, e os astros fulgurantes Nos cus no se
volviam. Eis o Tempo, o Universo, o Movimento Das mos solta o
Senhor. Surge n Sol, banha a Terra, desabrocha Nesta a primeira
flor; Sobre o invisvel eixo range o globo; O vento o bosque ondeia;
Retumba ao longe o mar; da vida a fora A natureza anseia! Quem,
dignamente, Deus, h-de louvar-Te, Ou cantar Teu poder? Quem dir de
Teu brao as maravilhas, Fonte de todo o ser, No dia da Criao;
quando os tesouros Da neve amontoaste; Quando da Terra nos mais
fundos vales
-
As guas encerraste?! E eu onde estava. quando o Eterno os
mundos, Com dextra poderosa, Fez, por lei imutvel, se livrassem Na
mole ponderosa? Onde existia ento ? No tipo imenso Das geraes
futuras; Na mente do meu Deus. Louvor a Ele Na Terra e nas alturas!
Oh, quanto grande o rei das tempestades, Do raio, e do trovo! Quo
grande o Deus, que manda, em seco estio, Da tarde a virao! Por Sua
providncia nunca, embalde, Zumbiu mnimo insecto; Nem volveu o
elefante, em campo estril, Os olhos inquieto. No deu Ele avezinha o
gro da espiga, Que ao ceifador esquece: Do norte ao urso o sol da
Primavera, Que o reanima e aquece? No deu Ele gazela amplos
desertos, Ao certo a amena selva, Ao flamingo os pauis, ao tigre o
antro, No prado ao touro a relva? No mandou Ele ao mundo, em luto e
trevas, Consolao e luz? Acaso em vo algum desventurado Curvou-se
aos ps da Cruz? A quem no ouve Deus? Somente ao mpio No dia da
aflio, Quando pesa sobre ele, por seus crimes. Do crime a punio.
Homem, ente imortal, que s tu perante A face do Senhor? s a juna do
brejo, harpa quebrada Nas mos do trovador! Olha o velho pinheiro,
campeando
-
Entre as neves alpinas: Quem ir derribar o rei dos bosques Do
trono das colinas? Ningum! Mas ai do abeto, se o seu dia Extremo
Deus mandou! L correu o aquilo: fundas razes Aos ares lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem Do caudaloso Nilo, O corpo
monstruoso ao sol voltando, Medonho crocodilo. De seus dentes em
roda o susto habita: V-se a morte assentada Dentro em sua garganta,
se descerra A boca afogueada: Qual duro arns de intrpido guerreiro
seu dorso escamoso; Como os ltimos ais de um moribundo Seu grito
lamentoso: Fumo e fogo respira quando irado; Porm, se Deus mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa, Assim ele passou! Teu nome
ousei cantar! Perdoa, Nume; Perdoa ao teu cantor! Dignos de ti no
so meus frouxos hinos, Mas so hinos de amor. Embora vis hipcritas
te pintem Qual brbaro tirano: Mentem, por dominar com frreo ceptro
O vulgo cego e insano. Quem os cr um mpio! Recear-te maldizer-te,
Deus; o trono dos dspotas da Terra Ir colocar nos Cus. Eu, por mim,
passarei entre os abrolhos Dos males da existncia Tranquilo, e sem
temor, sombra posto Da Tua Providncia.
-
A TEMPESTADE Sibila o vento: os torrees de nuvens Pesam nos
densos ares: Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas Pela
extenso dos mares: A imensa vaga ao longe vem correndo Em seu
terror envolta; E, dentre as sombras, rpidas centelhas A tempestade
solta. Do sol no ocaso um raio derradeiro, Que, apenas fulge,
morre, Escapa nuvem, que, apressada e espessa, Para apag-lo corre.
Tal nos afaga em sonhos a esperana, Ao despontar do dia, Mas, no
acordar, l vem a conscincia Dizer que ela mentia! As ondas
negro-azuis se conglobaram; Serras tornadas so, Contra as quais
outras serras, que se arqueiam, Bater, partir-se vo. tempestade! Eu
te sado, nume Da natureza aoite! Tu guias os bulces, do mar
princesa, E teu vestido a noite! Quando pelos pinhais, entre o
granizo, Ao sussurrar das ramas, Vibrando sustos, pavorosa ruges E
assolao derramas, Quem porfiar contigo, ento, ousara De glria e
poderio; Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio?
Quem me dera ser tu, por balouar-me Das nuvens nos castelos, E ver
dos ferros meus, enfim, quebrados
-
Os rebatidos elos. Eu rodeara, ento o globo inteiro; Eu
sublevara as guas; Eu dos vulces com raios acendera Amortecidas
frguas; Do robusto carvalho e sobro antigo Acurvaria as frontes;
Com furaces, os areais da Lbia Converteria em montes; Pelo fulgor
da Lua, l do norte No plo me assentara, E vira prolongar-se o gelo
eterno, Que o tempo amontoara. Ali, eu solitrio, eu rei da morte,
Erguera meu clamor, E dissera: Sou livre, e tenho imprio; Aqui, sou
eu senhor! Quem se pudera erguer, como estas vagas, Em turbilhes
incertos, E correr, e correr, troando ao longe, Nos lquidos
desertos! Mas entre membros de lodoso barro A mente presa est!...
Ergue-se em vo aos cus: precipitada, Rpido, em baixo d. morte,
amiga morte! sobre as vagas, Entre escarcus erguidos, Que eu te
invoco, pedindo-te feneam Meus dias aborridos: Quebra duras prises,
que a natureza Lanou a esta alma ardente; Que ela possa voar, por
entre os orbes, Aos ps do Omnipotente. Sobre a nau, que me
estreita, a prenhe nuvem Desa, e estourando a esmague, E a grossa
proa, dos tufes ludbrio, Solta, sem rumo vague!
-
Porm, no!... Dormir deixa os que me cercam O sono do existir;
Deixa-os, vos sonhadores de esperanas Nas trevas do porvir. Doce me
do repouso, extremo abrigo De um corao opresso, Que ao ligeiro
prazer, dor cansada Negas no seio acesso, No despertes, oh no! os
que abominam Teu amoroso aspeito; Febricitantes, que se abraam,
loucos, Com seu dorido leito! Tu, que ao msero ris com rir to
meigo, Caluniada morte; Tu, que entre os braos teus lhe ds asilo
Contra o furor da sorte; Tu, que esperas s portas dos senhores, Do
servo ao limiar, E eterna corres, peregrina, a terra E as solides
do mar, Deixa, deixa sonhar ventura os homens; J filhos teus
nasceram: Um dia acordaro desses delrios, Que to gratos lhes eram.
E eu que velo na vida, e j no sonho Nem glria nem ventura; Eu, que
esgotei to cedo, at s fezes, O clix da amargura: Eu, vagabundo e
pobre, e aos ps calcado De quanto h vil no mundo, Santas inspiraes
morrer sentindo Do corao no fundo, Sem achar no desterro uma
harmonia De alma, que a minha entenda, Porque seguir, curvado ante
a desgraa, Esta espinhosa senda? Torvo o oceano vai! Qual dobre,
soa Fragor da tempestade, Salmo de mortos, que retumba ao longe,
Grito da eternidade!...
-
Pensamento infernal! Fugir covarde Ante o destino iroso?
Lanar-me, envolto em maldies celestes, No abismo tormentoso? Nunca!
Deus ps-se aqui para apurar-me Nas lgrimas da terra; Guardarei
minha estncia atribulada, Com meu desejo em guerra. O fiel
guardador ter seu prmio, O seu repouso, enfim, E atalaiar o sol de
um dia extremo Vir outro aps mim. Herdarei o morrer! Como suave Bno
de pai querido. Ser o despertar, ver meu cadver, Ver o grilho
partido. Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador: Deus
lhe deixou, nas trevas da existncia, Doce amizade e amor. Tudo o
mais sepulcro branqueado Por embusteira mo; Tudo o mais vos
prazeres que s trazem Remorso ao corao. Passarei minha noite a luz
to meiga, At o amanhecer; At que suba ptria do repouso, Onde no h
morrer.
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O SOLDADO I Veia tranquila e pura De meu paterno rio, Dos
campos, que ele rega, Mansssimo armentio. Rocio matutino, Prados to
deleitosos, Vales, que assombravam selvas De sinceirais frondosos,
Terra da minha infncia, Tecto de meus maiores, Meu breve
jardinzinho, Minhas pendidas flores, Harmonioso e santo Sino do
presbitrio, Cruzeiro venerando Do humilde cemitrio, Onde os avs
dormiram, E dormiro os pais; Onde eu talvez no durma, Nem reze,
talvez, mais, Eu vos sado!, e o longo Suspiro amargurado Vos mando.
E quanto pode Mandar pobre soldado. Sobre as cavadas ondas Dos
mares procelosos, Por vs j fiz soar Meus cantos dolorosos.
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Na proa ressonante Eu me assentava mudo, E aspirava ansioso O
vento frio e agudo; Porque em meu sangue ardia A febre da saudade,
Febre que s minora Sopro de tempestade; Mas que se irrita, e dura
Quando tranquilo o mar; Quando da ptria o cu Cu puro vem lembrar;
Quando, no extremo ocaso, A nuvem vaporosa, frouxa luz da tarde, Na
cor imita a rosa; Quando, do Sol vermelho O disco ardente cresce, E
paira sobre as guas, E enfim desaparece; Quando no mar se estende
Manto de negro d; Quando, ao quebrar do vento, Noite e silncio s;
Quando sussurram meigas Ondas que a nau separa, E a rpida ardentia
Em torno a sombra aclara. II Eu j ouvi, de noite, Entre o pinhal
fechado, Um frmito soturno
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Passando o vento irado: Assim o murmrio Do mar, fervendo proa,
Com o gemer do aflito, Sumido, acorde soa; E o cintilar das guas
Gera amargura e dor, Qual lmpada, que pende No templo do Senhor, L
pela madrugada, Se o leo lhe escasseia, E a espaos expirando.
Afrouxa e bruxuleia. III Bem abundante messe De pranto e de saudade
O foragido errante Colhe na soledade! Para o que a ptria perde o
universo mudo; Nada lhe ri na vida; Mora o fastio em tudo; No meio
das procelas, Na calma do oceano, No sopro do galerno, Que enfuna o
largo pano. E no entestar coa terra Por abrigado esteiro, E no
pousar sombra Do tecto do estrangeiro. IV
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E essas memrias tristes Minha alma laceraram, E a senda da
existncia Bem agra me tornaram: Porm nem sempre frreo Foi meu
destino escuro; Sufocou de luz um raio As trevas do futuro. Do meu
pas querido A praia ainda beijei, E o velho e amigo cedro No vale
ainda abracei! Nesta alma regelada Surgiu ainda o gozo, E um sonho
lhe sorriu Fugaz, mas amoroso. Oh, foi sonho da infncia Desse
momento o sonho! Paz e esperana vinham Ao corao tristonho. Mas o
sonhar que monta, Se passa, e no conforta? Minh'alma deu em terra,
Como se fosse morta. Foi a esperana nuvem, Que o vento some tarde:
Facho de guerra aceso Em labaredas arde! Do fratricdio a luva Irmo
a irmo lanara, E o grito: ai do vencido! Nos montes retumbara.
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As armas se ho cruzado: O p mordeu o fone; Caiu: dorme
tranquilo: Deu-lhe repouso a morte. Ao menos, nestes campos
Sepulcro conquistou, E o adro dos estranhos Seus ossos no guardou.
Ele herdar, ao menos, Aos seus honrado nome; Paga de curta vida
Ser-lhe- largo renome. V E a bala sibilando, E o trom da
artilharia, E a tuba clamorosa, Que os peitos acendia, E as ameaas
torvas, E os gritos de furor, E desses que expiravam Som cavo de
estertor, E as pragas do vencido, Do vencedor o insulto. E a
palidez do morto, Nu, sanguento, insepulto, Eram um caos de dores
Em convulso horrvel, Sonho de acesa febre, Cena tremenda e incrvel!
E suspirei: nos olhos Me borbulhava o pranto,
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E a dor, que trasbordava, Pediu-me infernal canto. Oh, sim!,
maldisse o instante, Em que buscar viera, Por entre as tempestades,
A terra em que nascera. Que , em fraternas lides, Um canto de
vitria? delirar maldito; triunfar sem glria. Maldito era o triunfo,
Que rodeava o horror, Que me tingia tudo De sanguinosa cor! Ento
olhei saudoso Para o sonoro mar; Da nau do vagabundo Meigo me riu o
arfar. De desespero um brado Soltou, mpio, o poeta, Perdo! Chegara
o msero Da desventura meta. VI Terra infame! de servos aprisco,
Mais chamar-me teu filho no sei; Desterrado, mendigo serei: De
outra terra meus ossos sero! Mas a escravo, que pugna por ferros,
Que herdar desonrada memria, Renegando da terra sem glria, Nunca
mais darei nome de irmo!
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Onde livre tem ptria o poeta, Que ao exlio condena mpia sorte.
Sobre os plainos gelados do norte Luz do Sol tambm desce do cu;
Tambm l se erguem montes. e o prado De boninas, em Maio. se veste;
Tambm l se meneia o cipreste Sobre o corpo que terra desceu. Que me
importa o loureiro da encosta? Que me importa da fonte o rudo? Que
me importa o saudoso gemido Da rolinha sedenta de amor? Que me
importam outeiros cobertos Da verdura da vinha, no Estio? Que me
importa o remanso do rio, E, na calma, da selva o frescor? Que me
importa o perfume dos campos, Quando passa da tarde a bafagem, Que
se embebe, na sua passagem, Na fragrncia da rosa e alecrim? Que me
importa? Pergunta insensata! meu bero: a minha alma est l... Que me
importa... Esta boca o dir?! Minha ptria, estou louco... menti!
Eia, servos! O ferro se cruze, Assobie o pelouro nos ares; Estes
campos convertam-se em mares, Onde o sangue se possa beber! Larga a
vala!, que, aps a peleja, Todos ns dormiremos unidos! L, vingados,
e do dio esquecidos, Paz faremos... depois do morrer!
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VII Assim, entre amarguras, Me delirava a mente; E o Sol ia
fugindo No termo do Ocidente. E os fortes l jaziam Coa face ao cu
voltada; Sorria a noite aos monos, Passando sossegada. Porm, a
noite deles No era a que passava! Na eternidade a sua Corria, e no
findava. Contrrios ainda h pouco, Irmos, enfim, l eram! O seu
tesouro de dio, Mordendo o p, cederam. No limiar da morte Assim
tudo fenece: Inimizades calam, E at o amor esquece! Meus dias
rodeados Foram de amor outrora; E nem um vo suspiro Terei,
morrendo, agora, Nem o apertar da dextra Ao desprender da vida, Nem
lgrima fraterna Sobre a feral jazida! Meu derradeiro alento No
colhero os meus. Por minha alma aterrada
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Quem pedir a Deus? Ningum! Aos ps o servo Meus restos calcar, E
o riso mpio, odiento, Mofando soltar. O sino lutuoso No lembrar meu
fim: Preces, que o morto afagam, No se erguero por mim! O filho dos
desertos, O lobo carniceiro, H-de escutar alegre Meu grito
derradeiro! morte, o sono teu S sono mais largo; Porm, na
juventude, o dormi-lo amargo: Quando na vida nasce Essa mimosa
flor, Como a cecm suave, Delicioso amor; Quando a mente acendida Cr
na ventura e glria; Quando o presente tudo. E inda nada a memria!
Deixar a cara vida, Ento doloroso, E o moribundo Terra Lana um
olhar saudoso. A taa da existncia No fundo fezes tem; Mas os
primeiros tragos
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Doces, bem doces, vem. E eu morrerei agora Sem abraar os meus,
Sem jubiloso um hino Alevantar aos Cus? Morrer, morrer, que
importa? Final suspiro, ouvi-lo H-de a ptria. Na terra Irei dormir
tranquilo. Dormir? S dorme o frio Cadver, que no sente; A alma voa
a abrigar-se Aos ps do Omnipotente. Reclinar-me-ei sombra Do amplo
perdo do Eterno; Que no conheo o crime, E erros no pune o Inferno.
E vs, entes queridos, Entes que tanto amei, Dando-vos liberdade
Contente acabarei. Por mim livres chorar Vs podereis um dia, E s
cinzas do soldado Erguer memria pia.
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D. PEDRO Pela encosta do Lbano, rugindo, O noto furioso Passou
um dia, arremessando terra O cedro mais frondoso; Assim te sacudiu
da morte o sopro Do carro da vitria, Quando, brio de esperanas, tu
sorrias, Filho caro da glria. Se, depois de procela em mar de
escolhos, A combatida nave V terra e vento abranda, o porto aferra,
Com jbilo suave. Tambm tu demandaste o Cu sereno, Depois de uma
rdua lida: Deus te chamou: o prmio recebeste Dos mritos da vida.
Que esta? Um ermo de espinhais cortado, Donde foge o prazer: Para o
justo ela existe alm da campa: Teme o mpio o morrer. Plante-se a
accia, o smbolo do livre, Junto s cinzas do forte: Ele foi rei e
combateu tiranos Chorai, chorai-lhe a morte! Regada pelas lgrimas
de um povo, A planta crescer; E sombra dela a fronte do guerreiro
Plcida pousar. Essa fronte das balas respeitada, Agora a traga o p:
Do valente, do bom, do nosso Amigo Restam memrias s; Mas estas,
entre ns, com a saudade Perenes vivero, Enquanto, voz de ptria e
liberdade. Ansiar um corao. Nas orgias de Roma, a prostituta,
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Folga, vil opressor: Folga com os hipcritas do Tibre; Morreu teu
vencedor. Envolto em maldies, em susto, em crimes Fugiste,
desgraado: Ele, subindo ao Cu, ouviu s gueixas, E um choro no
comprado: Encostado na borda do sepulcro, O olhar atrs volveu, As
suas obras contemplou passadas, E em paz adormeceu: Os teus dias
tambm sero contados, Covarde foragido; Mas ser de remorso tardo e
intil Teu ltimo gemido: Do passamento o clix lhe adoaram Uma filha,
urna esposa: Quem, tigre cru, te cercar o leito, Nessa hora
pavorosa? Deus, tu s bom: e o virtuoso em breve Chamas ao gozo
eterno, E o mpio deixas saciar de crimes, Para o sumir no Inferno?
Alma gentil, que assim nos hs deixado, Entregues alta dor, Anjo das
preces nos sers, perante O trono do Senhor: E quando, c na Terra, o
poderoso As Leis aos ps calcar, Junto do teu sepulcro ir o opresso
Seus males deplorar: Assim, no Oriente, de Albuquerque s cinzas O
desvalido indiano Mais de urna vez foi demandar vingana De um
dspota inumano. Mas quem ousar ptria tua e nossa Curvar nobre
cerviz? Quem roubar ao lusitano povo Um povo ser feliz? Ningum! Por
tua glria os teus soldados
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Juram livres viver. Ai do tirano que primeiro ousasse Do voto
escarnecer! Nesse abrao final, que nos legaste, Legaste o gnio teu:
Aqui no corao ns o guardmos; Teu gnio no morreu. Jaz em paz: essa
terra, que te esconde, O monstro abominado S pisar ao baquear sobre
ela Teu ltimo soldado. Eu tambm combati: nus ptrias lides Tambm
colhi um louro: O prantear o Companheiro extinto No me ser
desdouro. Para o Sol do Oriente outros se voltem, Calor e luz
buscando: Que eu pelo belo Sol, que jaz no ocaso, C ficarei
chorando.
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A VITRIA E A PIEDADE I Eu nunca fiz soar meus pobres cantos Nos
paos dos senhores! Eu jamais consagrei hino mentido Da terra dos
opressores. Mal haja o trovador que vai sentar-se porta do
abastado, O qual com ouro paga a prpria infmia, Louvor que foi
comprado. Desonra quele, que ao poder e ao ouro Prostitui o alade!
Deus poesia deu por alvo a ptria, Deu a glria e a virtude. Feliz ou
infeliz, triste ou contente, Livre o poeta seja, E em hino isento a
inspirao transforme Que na sua alma adeja. II No despontar da vida,
do infortnio Murchou-me o sopro ardente; E saudades curti em longes
terras Da minha terra ausente. O solo do desterro, ai, quanto
ingrato para o foragido, E nevoado o cu, rido o prado, O rio
adormecido! E l chorei, na idade da esperana, Da ptria a dura
sorte; Esta alma encaneceu; e antes de tempo Ergueu hinos morte;
Que a morte para o msero risonha, Santa da campa a imagem Ali que
se aferra o porto amigo, Depois de rdua viagem.
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III Mas quando o pranto me sulcava as faces, Pranto de atroz
saudade, Deus escutou do vagabundo as preces, Dele teve piedade.
Armas, bradaram no desterro os fortes, Como bradar de um s:
Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os Indissolvel n. Com seus
irmos as sacro