A grafia psíquica da verdade no Diálogo Fedro The psichic speeling of truth in dialog Phaedrus Michelle Belatto 1 Resumo: No começo do Diálogo Fedro, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”. Entretanto, o “remédio” descoberto pelo menino Fedro, capaz de tirar o filósofo da cidade, de onde este não costuma sair, é um discurso escrito. Vista, inicialmente, como atividade reprovável em relação à fala, a escrita passa a ser compreendida, também, como um meio eficaz à grafia psíquica da verdade. Neste artigo, temos o objetivo de analisar qual o discurso mais adequado a ser escritor do verdadeiro na alma: o falado ou o escrito? Palavras-chave: Discurso. Escritura. Verdade. Alma. Abstract: In the beginning of the dialog Phaedrus, Socrates proclaims himself a “sick for to listen discourses”. However, the “remedy” discovered by the boy Phaedrus, able to take the philosopher out from the city, from where Socrates do not usually go out, is a written discourse. Considered initially as reprehensible activity in relation to speech, the writting is understood also as an effective means to psychic speeling of truth. In this article, we aim analyse which is the discourse more adequate to be the writer of truth in the soul: the spoken or the written? Keywords: Discourse. Writting. Truth. Soul. * * * Em nossos dias, deparamo-nos com as mais diversas formas de discursos: impressos em jornais, revistas, livros; em áudio, veiculados pelas emissoras de rádio; audiovisuais, transmitidos pelas televisões e em circulação nos cinemas; eletrônicos, que misturam todos de maneiras bem peculiares, de acordo com as redes às quais pertencem; sem nos esquecermos daqueles face a face, que nos acompanham desde que nascemos e são a origem dos demais. Mas esses discursos sabem o que dizem e como dizer o que dizem? Sabem a quem falam e estão adequados a seus destinatários? Essas questões parecem-nos bastante significativas, se pensarmos na abrangência de uma sociedade globalizada – sociedade da informação – em que o tempo e o espaço, de modo geral, deixaram de ser limitadores comunicacionais. 1 Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, sob orientação da Profª Dra. Cláudia Drucker. E-mail: [email protected]
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A grafia psíquica da verdade no Diálogo Fedro
The psichic speeling of truth in dialog Phaedrus
Michelle Belatto1
Resumo: No começo do Diálogo Fedro, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”.
Entretanto, o “remédio” descoberto pelo menino Fedro, capaz de tirar o filósofo da cidade, de
onde este não costuma sair, é um discurso escrito. Vista, inicialmente, como atividade
reprovável em relação à fala, a escrita passa a ser compreendida, também, como um meio eficaz
à grafia psíquica da verdade. Neste artigo, temos o objetivo de analisar qual o discurso mais
adequado a ser escritor do verdadeiro na alma: o falado ou o escrito?
Em 370 a.C., Platão já manifestava a relevância de tais questionamentos, em seu
Diálogo Fedro, ao analisar discursos produzidos em sua época. Preocupado com a
constituição do conteúdo discursivo e seu direcionamento, o filósofo refere-se a um tipo
diferente daquela escrita dos livros e por que não dizer, hoje em dia, daquela diferente
da dos órgãos impressos, do divulgado nos meios audiovisuais, daquilo que percorre as
redes de comunicação e do que se passa em determinadas interações pessoais, caso
esses sistemas demonstrem, genericamente, descompromisso com os assuntos tratados e
com seus interlocutores: uma grafia psíquica da verdade, efetivada por meio de
discursos filosóficos.
No início do Diálogo platônico, Sócrates se diz um “doente por ouvir discursos”
(PLATÃO, 2009, 228b), mas atentemo-nos para que o “remédio” (phármakon), o qual
Fedro descobre, capaz de tirar o filósofo da cidade, de onde este não costuma sair, é um
discurso escrito (PLATÃO, 2009, 230d). Com isso, notamos que a questão sobre a qual
proporemos refletir, neste artigo, já se anuncia, de algum modo, nas primeiras cenas do
Diálogo, embora nos pareça que Sócrates a apresenta a Fedro bem mais tarde, após a
exposição das exigências do que respeita à arte e sua ausência nos discursos, quando lhe
pergunta qual o melhor meio de agradar os deuses nessa matéria (PLATÃO, 2009,
274b). Tomemos, então, a indagação de Sócrates como base, a fim de analisarmos qual
o discurso mais adequado à escritura da verdade na alma: o falado ou o escrito?
Em A farmácia de Platão, Derrida (2005, p. 15), em quem nos ampararemos
nesta análise, afirma que um discurso pronunciado em pessoa não produziria o mesmo
efeito em Sócrates que um escrito. Somente as letras ocultadas em um objeto poderiam
fazer o filósofo desviar-se de seu caminho. Se as palavras fossem desveladas, não o
seduziriam. Que poder de sedução teria esse “remédio”, mencionando o termo que ele
próprio utiliza para referir-se ao texto – motivo pelo qual aceita passear para fora dos
muros com Fedro – a ponto de afastar-se de seu lugar de aprendizagem? (PLATÃO,
2009, 230d). Talvez, encontremos uma resposta no Mito de Theuth, uma tradição que o
filósofo ouviu dos antigos e a narra para tornar declarado o tema da conveniência ou da
inconveniência da escrita (PLATÃO, 2009, 274c).
Theuth – divindade responsável pela invenção da ciência do número e do
cálculo, da geometria, da astronomia, do jogo de damas e, sobretudo, da escrita – vai até
o palácio do rei egípcio, Tamos, e apresenta-lhe seus inventos, dizendo que precisam ser
distribuídos à população. O rei questiona a utilidade de cada um e, de acordo com as
explicações do deus, conforme lhe pareçam bem ou mal formuladas, censura-as ou
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louva-as. Ao chegar a vez da escrita, Theuth argumenta ser este um ramo do
conhecimento que tornará os egípcios mais sábios e com melhor memória. No entanto,
Tamos o adverte de que a descoberta provocará, nas almas, o esquecimento de quanto
aprendem, devido, justamente, à falta de exercício da memória: confiadas na escrita, não
obterão as recordações por si mesmas, mas por meio de algo externo. Desse modo,
seguidores de Theuth considerar-se-ão grandes sabedores sendo, na realidade,
ignorantes, tornando-se aparentemente sábios, sem o serem efetivamente e, por isso, de
trato difícil (PLATÃO, 2009, 274c-275b).
Assim como Sócrates diz que Fedro descobre o remédio que o arrasta ao
inabitual (PLATÃO, 2009, 230d), é como remédio – pois sendo tal, só pode ser
benéfico – à memória que Theuth – o deus da escritura – apresenta a escrita a Tamos – o
pai da fala (PLATÃO, 2009, 274e; DERRIDA, 2005, p. 50). Retomemos a lembrança
de Fedro enquanto Sócrates e ele procuram um lugar agradável para que o menino lhe
leia o manuscrito de Lísias: a história do rapto de Orítia por Bóreas, a qual morre
enquanto brinca com Farmaceia (PLATÃO, 2009, 229b-c). O termo “farmaceia”
significa administração do phármakon, da droga, remédio ou veneno (DERRIDA, 2005,
p. 14). Se Orítia morre ao brincar com Farmaceia – e este termo quer dizer, também,
administração do veneno – a escrita pode ser entendida como um veneno fatal que leva
a ninfa à morte.
Theuth mostra o contrário da perspicácia da escrita, ignorando sua ambivalência
por ingenuidade, como Orítia que – supomos – não sabia que brincar com Farmaceia
poderia acarretar-lhe seu fim, ou por astúcia, já que é, também, o deus da morte, do
exterior ao vivo, da aparência (DERRIDA, 2005, p. 36). Inventada pelo deus da
aparência, a escrita aparenta o que não é. Isto a torna semelhante à pintura, segundo
Sócrates: ambas parecem vivas estando mortas, sempre caladas e imóveis com seus
interagentes.
Quanto aos discursos escritos, especificamente, parece que o pensamento anima
o que dizem, no entanto se forem interrogados por quem pretende aprender sobre o que
falam, revelam sempre o mesmo: aquilo que neles já está impresso (PLATÃO, 2009,
275d). Nesse sentido, Sócrates afirma que, aquele que julga transmitir uma arte por
meio da escrita e aquele que a recebe, como se dela pudesse derivar algo de certo e
seguro, demonstram muita ingenuidade por acreditarem que os discursos escritos são
algo mais do que um meio de fazer recordar, a quem já sabe, as matérias ali tratadas
(PLATÃO, 2009, 275c-275d).
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1. Memória e recordação, fala e escrita
O Mito de Theuth (PLATÃO, 2009, 274c-275b) nos traz indicações do que
Platão entende por recordação e memória: ele faz uma distinção entre as duas,
caracterizando a recordação como a ação de trazer à tona certas memórias. A memória é
a própria compreensão viva dentro da alma; nela, guarda-se o conhecimento. Apenas é
possível a recordação de algo que já se sabe e quando o assunto é o saber, é impossível
apoiar-se em caracteres exteriores a si mesmo, pois o único lugar onde há clareza e
segurança quanto a isso é no interior da própria alma.
De acordo com essa distinção, parece-nos que a memória está mais relacionada
com a verdade que a recordação, pois o movimento da verdade é um desdobramento de
memória viva, como vida psíquica na medida em que apresenta-se a si mesma, na
reminiscência de alguma realidade supraceleste despertada por um objeto sensível que a
imite – sempre imperfeitamente. A recordação, por estar ligada à escrita, já que esta é
um meio de fazer recordar, aumenta o domínio da não-verdade, do não-saber, uma vez
que torna as almas esquecidas por confiarem no que lhes está fora.
A memória é viva e, como todo o ser vivo, limitada e finita. Ela tem necessidade
de algo para lembrar-se do que não está presente a si, deixando contaminar-se por um
suplente sensível: a escrita. Nas palavras de Derrida (2005, p. 56-58), há um limite
quase imperceptível entre a memória e seu suplemento: ambos os casos se tratam de
“repetição”. A memória viva repete a presença das realidades inteligíveis e a verdade é
“a possibilidade da repetição na lembrança”. Na repetição, no movimento reminiscente
da verdade, o repetido deve apresentar-se como o que ele é em sua inteligibilidade,
quando presenciado, pela alma, no supraceleste. A escritura é a possibilidade de algo
repetir-se sozinho, sem alma viva para mantê-lo e assisti-lo em sua repetição, sem ter
em si a apresentação da verdade.
O escrito, ao repetir-se e permanecer idêntico a si no seu formato, não se dobra
às diferenças entre os presentes e as necessidades de suas almas. O falante, ao contrário,
não se submete a esquemas preestabelecidos: conduz melhor seu discurso, acentuando-
o, retendo-o ou liberando-o, segundo os requisitos da ocasião oferecida pelo
interlocutor. Assistindo sua fala em sua operação, aquele que age pela voz penetra mais
facilmente na alma do ouvinte para produzir nela efeitos sempre singulares,
conduzindo-a, como se nela habitasse, aonde bem entender (DERRIDA, 2005, p. 60). É
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como age Sócrates que, conhecendo a alma de Fedro, adapta-lhe seus proferimentos,
ainda que, inicialmente, considere necessário ofender o deus Amor para isso (PLATÃO,
2009, 237b-241d).
Esse comprometimento, característico do discurso oral, solicita a constante
participação dos interlocutores no diálogo, fazendo com que concordem, contestem,
complementem o assunto para que a discussão siga. Assim, há um envolvimento direto
com a questão proposta, tornando qualquer ação intelectual de distanciamento mais
difícil, no sentido em que a atenção dos participantes é requerida. Entretanto, a
possibilidade de discutir passagens de um texto lido restringe-se aos limites da
memória. Um escrito, à mão, permite a quantidade de revisões necessárias a sua suposta
compreensão por seus leitores.
Observamos um exemplo quando Sócrates pede a Fedro que leia o começo do
manuscrito de Lísias novamente, ao falarem sobre o que é um discurso composto com
arte (PLATÃO, 2009, 263d). A releitura do texto lhes traz as palavras exatas que a
memória, por si só, dificilmente lhes traria, mas não podemos afirmar ou negar – de
imediato – que esse fato prejudica ou beneficia a análise do discurso em questão: isso
depende da finalidade e do desempenho dos interlocutores no exercício analítico.
Sócrates solicita que o manuscrito seja relido, porque sabe que este está presente, se não
estivesse, a análise do discurso seria feita do mesmo jeito – imaginamos – como são
feitas as análises dos proferimentos socráticos, que não são escritos.
Retornemos ao Mito de Theuth (PLATÃO, 2009, 274c-275b), personagem que
atribui à escrita a virtude de aumentar a possibilidade de armazenagem de conhecimento
para além da capacidade da memória convencional, ao prover o ser humano de um
aparato de registros da fala e do pensamento. A fala vincula-se à situação concreta na
qual é enunciada. Sua existência é ocasional na medida em que a mensagem não
sobrevive às circunstâncias de sua origem. Ela é breve, nunca se repete da mesma
maneira, submetendo-se à instabilidade da memória – falível por natureza. Mesmo um
texto decorado sofre alterações, dependendo da forma e do contexto em que é expresso
pelo locutor.
A excelência que a escrita possui, então, em relação à fala é o caráter,
aparentemente, permanente que o conhecimento adquire ao ser salvo de uma existência
passageira e particular. Porém, para Tamos, a atenção despendida com a escrita causará
desatenção com a memória verdadeira e dará aparência de sábio a quem não o é de fato
– pensamos que isso serve tanto para escritores, quanto para leitores: “Enquanto o sábio
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socrático sabe que nada sabe, aquele tolo não sabe que já sabe o que acredita aprender
da escritura, e que não faz mais que se repor em memória pelos tipos” (DERRIDA,
2005, p. 85). Não se trata de rememorar-se, por reminiscência, da realidade
contemplada antes da queda da alma no corpo, mas de lembrar-se, com o auxílio de um
acessório que não está dentro de si, de algo cujo saber já se possui (PLATÃO, 2009,
275d).
Apresentadas vantagens e desvantagens da escrita, interroguemo-nos, aqui, sobre
sua “decência” ou “indecência” – usando os termos de Derrida (2005, p. 12). É decente
escrever?
Ao ser compreendida como instrumento de persuasão do ouvinte, a fim de que
seus autores possam, por meio dela, serem enaltecidos, a escrita aparece como uma
atividade reprovável, conforme percebemos na seguinte frase socrática, ao referir-se aos
discursos dos políticos vaidosos da época: “[...] acaso te parece que semelhante
composição é outra coisa que não seja um discurso escrito?” (PLATÃO, 2009, 258a).
Sua conveniência - ou inconveniência - apesar de ainda não declarada no Diálogo,
começa a ser discutida quando Fedro lembra que Lísias, o qual podemos dizer que está
entre os tais políticos vaidosos, é acusado de logógrafo (PLATÃO, 2009, 257c). O
logógrafo é aquele que redige discursos que ele próprio não pronuncia, que não assiste
pessoalmente, cujos efeitos são produzidos em sua ausência. Ele ocupa a posição do
sofista: “o homem da não-presença e da não-verdade” (DERRIDA, 2005, p. 12).
Lísias exemplifica esse homem, pois emprestando seu manuscrito a Fedro, ele
substitui “a reanimação ativa do saber, sua reprodução presente, pelo ‘de cor’ mecânico
e passivo” (DERRIDA, 2005, p. 55). O garoto deseja saber o texto de cor para recitá-lo
a Sócrates e tentaria fazê-lo, se o filósofo não percebesse que ele o traz escondido
(PLATÃO, 2009, 228a-e). Podemos dizer, com isso, que o espaço aberto pela
substituição à qual nos referimos - da “reprodução presente do saber” pelo “de cor
mecânico” - marca a diferença entre memória e recordação, tendo em mente nossas
considerações anteriores a tal respeito. A escrita funciona somente como um
“recordatório” e não como um remédio à memória, não podendo ser confundida com o
processo de reminiscência interno à alma, detendo-a em seu estágio atual de
aprendizagem.
A propriedade que o discurso ganha, ao ser escrito e circular indistintamente
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entre as pessoas, contraria a necessidade retórico-psicagógica2 de que ele deve
direcionar-se a cada gênero de alma, de acordo com seu grau de esquecimento. Ele é um
sinal exterior que, talvez, ajude a atividade da reminiscência a realizar-se (PLATÃO,
2009, 270a-272b). Admitirmos a possibilidade de a escrita auxiliar na reminiscência da
alma significa admitirmos, a ela, um caráter reminiscente, levando em conta, também,
as posições atribuídas a Theuth e a Tamos, as quais mencionamos anteriormente.
Pensemos a respeito de sua ambivalência ou – se quisermos – ambiguidade,
ignorada por Theuth, mas, de determinada maneira, confirmada por Tamos ao opor-se a
seu criador. A escrita pode atuar em dois papeis no que se refere à reminiscência:
obstruí-la ou promovê-la, já que, sendo um phármacon, não podemos deduzir,
antecipadamente, o efeito de sua aplicação nos corpos ou – neste caso – nas almas em
geral. Sua eficácia ou ineficácia depende do estado de instrução da alma à qual é
aplicada e não pode ser avaliada abstratamente.
Desse modo, parece-nos que a conveniência da escrita é construída de acordo
com o gênero de alma com o qual ela estabelece relação, conforme o previsto pela
retórica filosófica. Existem tipos de discursos escritos, segundo a possibilidade que cada
um possui de remeter a alma ao que presenciou no suprassensível. Seu critério definidor
é a aproximação que cada discurso desenvolve com os tipos de alma aos quais se dirige.
Vemos que não é o caso do manuscrito de Lísias (PLATÃO, 2009, 231a-234c). Ele o
constrói pensando no propósito exclusivo de satisfazer seu desejo por Fedro, ignorando
as condições da alma do menino, impondo a este a realidade conveniente a sua meta. O
orador usa a retórica com o único objetivo de persuadi-lo, dissimulando o conhecimento
da verdade, ao insultar o Amor que, sendo um deus, não pode ser mau.
A construção de uma conveniência da escrita, e podemos dizer também da fala,
pressupõe o conhecimento da verdade na mente do autor (PLATÃO, 2009, 259d). A
verdade, a dialética3, a filosofia são os outros nomes do phármakon necessários à
oposição do phármakon dos sofistas: os homens da ”não-verdade”. A filosofia opõe à
sofística uma mudança do veneno que a escritura tem em sua potência em contraveneno.
Essa operação somente é possível, porque o phármakom abriga, nele mesmo, uma
cumplicidade dos valores contrários: dando-se como remédio, que pode corromper-se
2 Psicagogia é a condução da alma por palavras (PLATÃO, 2009, 271c). 3 A dialética é o método socrático a partir do qual os discursos devem ser elaborados, começando com a
definição do objeto a ser tratado, separando-o em sua multiplicidade sensível (objetos terrenos), até
chegar à sua unidade inteligível (verdades suprassensíveis). Porém, esse método não é suficiente a uma
grafia psíquica da verdade, já que não leva em conta o invisível de cada um: as particularidades de cada
alma.
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em veneno ou como veneno, que pode verificar-se remédio, conforme constatamos no
Mito de Theuth (DERRIDA, 2005, p. 72-73). Sócrates chega a tempo de evitar que a
contaminação causada pelo escrito de Lísias atinja fatalmente Fedro. O filósofo não
permite que o garoto se prenda à estagnação do texto, invertendo seu sentido
dissimulador com o antídoto encontrado em seu segundo proferimento, proclamando os
benefícios do Amor e encaminhando seu ouvinte da falsidade à verdade, com uma