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A FUNO DO ESTTICO
J. A. ENCARNAO REIS
1. O problema em Kant
"Forma final de um objecto sem representao de fim " ou,
maissimplesmente , " finalidade sem fim ", como Kant define o
esttico no"terceiro momento" da sua " Analtica do belo" 1. E j o
havia caracte-rizado, no "primeiro momento" 2 e no "segundo " 3,
respectivamente como"desinteressado " e como "universal sem
conceito ". No entanto, estascaracterizaes referem - se a algo . O
que se diz desinteressado , universalsem conceito , e se define em
termos de finalidade sem fim? Kant,evidentemente , no esquece o
sujeito desta caracterizao e apresenta-omesmo com bastante nfase,
dedicando -lhe o primeiro pargrafo. Mas,como inclui tal pargrafo no
primeiro momento, que dedica ao ponto devista da qualidade , tal
sujeito , que depois caracterizado como desin-teressado , universal
sem conceito , finalidade sem fim e necessrio , podesem dvida
passar um tanto despercebido . Da a ateno que precisoter para com
esse texto, que em rigor no deveria fazer parte do primeiromomento
da Analtica , mas ser antes uma introduo ou um momentoprvio aos
efectivos quatro momentos da anlise.
Trata-se, como bvio, da afirmao de que o esttico sentimentoe no
conhecimento. Tal dito logo no prprio ttulo do pargrafo:"O juzo de
gosto esttico". Esttico, com efeito, significa , de acordocom o
respectivo texto, algo de subjectivo ; e mesmo de to subjectivoque
nem as prprias qualidades segundas , com toda a sua tradiosobretudo
moderna de simples produtos do sujeito a partir das qualidades
Kritik der Urteilskraft (KU), 10-17.2 Ibid. 1-5.3 Ibid. 6-9.4
Para o quarto momento , ibid. 18-22.
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primeiras, so to subjectivas. Elas podem ainda, graas s formas
priorido sujeito (nomeadamente o espao e depois as categorias),
seremobjectivas: "a cor verde dos prados", dir Kant um pouco mais
adiante 5," uma sensao objectiva enquanto percepo de um objecto
dossentidos, ao passo que o seu carcter agradvel uma sensao
subjectiva,pela qual nenhum objecto representado". S os sentimentos
podem serverdadeiramente, posto que exclusivamente, subjectivos; s
eles so, pelasua prpria- natureza, de quem os tem, e no podem
portanto ser algo deobjectivo, que a esteja para as diversas
conscincias deles tomaremconscincia. No alis outra coisa o que j
Descartes dizia nasMeditaes, ao perguntar se, na verdade, "h coisa
mais ntima ou maisinterior que a dor" 6. O esttico portanto, para
Kant, antes de tudo, osentimento de prazer e de dor do sujeito.
Como ele prprio escreve,resumindo tudo: "Esttico significa aquilo
cujo princpio determinante nopode ser seno subjectivo. Toda a relao
das representaes, mesmo adas sensaes, pode ser objectiva (esta
relao significa neste caso: o que real numa representao emprica);
mas no a relao das representaesao sentimento de prazer e de dor,
que no designa nada no objecto e naqual o sujeito sente como
afectado pela representao" 7. E pois osentimento que est na base da
esttica de Kant e que depois caracterizado como desinteressado,
universal sem conceito, finalidade semfim e necessrio.
E assim caracterizado, com efeito, porque o esttico em Kant
semdvida, antes de tudo, sentimento, prazer, mas no um sentimento,
umprazer qualquer. Tambm o "agradvel", ao nvel dos sentidos, e o
"bom",ao nvel quer do "til" quer do "perfeito", so ocasio de uma
satisfao,de um comprazimento, e nem por isso eles so o esttico.
preciso, sese quer definir o esttico enquanto tal, e aps
determinada a sua essncianuclear e mais ntima, saber como esta se
sobre-determina, diferenciando-se daqueles dois domnios, aos quais
- sob o puramente sensvel, pelo ladodos empiristas, e sob o simples
racional, da tradio de Baumgarten -tendia a reduzir-se nas grandes
correntes estticas do sc. XVIII 8. Da aanlise subsequente do
esttico - j determinado como sentimento - doponto de vista,
sucessivamente, da qualidade, da quantidade, da relaoe da
modalidade. Dessa anlise resultar a descoberta de uma nova
5 Ibid. 3.6 Mditations Mtaphysiques , Paris, Classiques Larousse
, s.d. p. 82.KU,1.
s Cf. J. PLAZAOLA, Introduccin a la esttica . Histria , teoria,
textos , Madrid.Biblioteca de Autores Cristianos , 1973, pp. 88-97
e 103-113.
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faculdade, justamente a faculdade de julgar esttica, a meio
caminho entreo sensvel e o inteligvel, ao ponto de, segundo o mesmo
Kant, nem ossimples animais nem os anjos terem acesso ao
esttico.
O prazer esttico , assim, desinteressado, isto , no sugere a
possedo objecto e nem mesmo a sua existncia , bastando a sua
simplesrepresentao. E, ao contrrio, o agradvel implica o interesse,
porque criauma tendncia, do mesmo modo que o bom igualmente
interessado, masno seu caso atravs do conceito 9. Do ponto de vista
da quantidade, porsua vez, apresenta-se com pretenses
universalidade, apesar de no terconceito e de ser mesmo um
sentimento, pelo que irredutivelmentesubjectivo. Kant, neste
segundo momento, deduz esta universalidade dodesinteresse
descoberto no primeiro momento: "aquele que temconscincia de que a
satisfao produzida por um objecto isenta deinteresse no pode fazer
outra coisa seno julgar que este objecto deveconter um princpio de
satisfao para todos" 10. Mas evidentemente queesta no uma prova
positiva: antes a simples possibilidade de que, seeu no estou
particularmente interessado no objecto, e o mesmo acontecea todo e
qualquer sujeito, tal objecto pode ser para todos. A
verdadeiraprova da universalidade vir conjuntamente com a da
necessidade, e istoporque, depois do terceiro momento, Kant j sabe
que o prazer esttico o resultado da harmonia de duas faculdades
priori e, portanto, algoque pode efectivamente ter pretenses
verdadeira universalidade e verdadeira necessidade (que no se
passam, como sabido, ao nvel dasimples generalidade emprica): ainda
que se trate s de uma necessidadeexemplar, "solicita-se a adeso de
cada um, porque se possui um princpioque comum a todos" 11. E deste
modo o terceiro momento da anlisekantiana sem dvida o mais
importante, porque nele no se caracterizas o prazer esttico, mas
define-se o que ele na sua essncia, enquantoo resultado da harmonia
das faculdades. Mas, antes, concluamos ossegundo e quarto momentos,
contrapondo dessa perspectiva o belo aoagradvel e ao bom. Se o belo
um prazer universalmente necessrio semconceito, o agradvel,
pertencendo ordem dos sentidos, sem conceitotambm mas particular e
contingente, ao passo que o bom pode semdvida ser universal e
necessrio, mas porque possui conceito.
A imaginao, na sua liberdade, apresenta a matria ao
entendimento;havendo harmonia, isto , servindo essa matria s formas
daquele,gera-se um sentimento de prazer. isso o prazer esttico: o
resultado da
9 Cf. ibid. p. 115.10KU.6.11 Ibid. 19.
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harmonia da imaginao e do entendimento. A imaginao apresenta
amatria porque, embora constituindo a parte mais alta da
sensibilidade,ela ainda claramente do lado desta e justamente cabe
sensibilidade,segundo o modo como Kant entende o conhecimento desde
a Crtica daRazo Pura, a apresentao da matria 12. Mas apresenta-a na
sualiberdade, no s porque ela a parte mais alta da sensibilidade e
porisso j est prxima do entendimento de cuja espontaneidade de
algummodo participa, mas tambm porque se trata da faculdade
especfica daArte, a qual, segundo a tradio, sempre foi a imaginao.
Trata-se assim- na definio do prazer do belo - do prazer que
resulta de poder haverconhecimento. No que haja efectivamente
conhecimento; se estivssemosnesta ltima atitude, teramos um objecto
com as suas determinaes, eno um sentimento; na atitude do
sentimento que se est. Essa umaafirmao que, desde o incio, quase
est em cada pgina. No hsubsumpo das intuies sob conceitos. Neste
caso, sim, haveriaconhecimento. Mas h simplesmente subsumpo da
prpria imaginaosob o prprio entendimento. Como diz expressamente
Kant: "O gosto,enquanto faculdade de julgar subjectiva, compreende
um princpio desubsumpo, no das intuies sob conceitos, mas da
faculdade dasintuies ou apresentaes (a imaginao ) sob a faculdade
dos conceitos(o entendimento), na medida em que a primeira na sua
liberdade se acordacom a segunda na sua legalidade" 13. De modo que
"o juzo de gostorepousa sob a simples sensao da animao recproca da
imaginao (...)e do entendimento (...)", como constituintes da
"faculdade deconhecer" 14. Alis Kant diz isto mesmo em muitos
outros passos 15 e atnum pargrafo que ainda anterior ao terceiro
momento mas que o pre-cede imediatamente e o prepara, onde
nomeadamente escreve: "A uni-versal comunicabilidade subjectiva do
modo de representao num juzode gosto, que deve produzir-se sem
pressupor um conceito determinado,no pode ser outra coisa seno o
estado de esprito no livre jogo daimaginao e do entendimento (na
medida em que estes se acordam entresi como requerido para um
conhecimento em geral)" 16. O prazeresttico no pois conhecimento -
justamente prazer - mas resulta dafaculdade de conhecer, resulta no
fundo de poder haver conhecimento.No , por fim, seno isto o que
Kant diz da prpria perspectiva dosublime. Este, com efeito, comea
por ser dor, e s depois prazer, alis
12 Cf. Critik der reinen Vernunft nomeadamente no incio da Lgica
transcendental.13 KU, 35.14 Ibid. 35.15 Ibid. 37-39.16 Ibid. 9. O
sublinhado nosso.
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tanto maior quanto deriva daquela dor 17. E dor ( esse o ponto -
e isto por demais evidente pelo menos no sublime matemtico) porque
aimaginao, como faculdade finita que , no capaz de fornecer amatria
suficiente para conhecer a Ideia de infinito: "o sentimento
dosublime", diz Kant, " um sentimento de dor, suscitado pela
insuficinciada imaginao na avaliao esttica da grandeza em ordem
suaavaliao pela razo ; mas ao mesmo tempo h nisto uma
alegriadespertada pelo acordo entre as Ideias e este juzo sobre a
insuficinciada mais poderosa faculdade sensvel, na medida em que
para ns umalei tender para essas Ideias" 18. Tambm, pois, o sublime
se pe a partirda nossa faculdade de conhecer; no caso, a partir de
no poder haverconhecimento. Harmonia , ou desarmonia (com uma
harmonia mais alta),das nossas faculdades, eis o que o esttico na
sua essncia maisprofunda. prazer, sem dvida, e no conhecimento,
mesmo o dessaharmonia (ou desarmonia). Mas a essncia de tal prazer
essa prpriaharmonia (ou a desarmonia, seguida de uma harmonia mais
alta).
S um tal prazer, de resto, poderia ser desinteressado e
universalmentenecessrio. Porque, repitamo-lo, o agradvel sempre
interessado, par-ticular e contingente, e o bom, se pode ser
universal e necessrio, interessado (ainda que atravs do conceito).
S portanto um prazer "dereflexo", mas de reflexo simplesmente
"formal", "sem fim", pode, destemodo, constituir uni domnio prprio,
distinto no s da esfera doconhecimento, mas tambm quer dos
interesses sensveis quer dosinteresses da faculdade de desejar em
geral. O que significa, obviamente,que estava enfim alcanada a
autonomia do esttico. Por esse motivo,Kant o grande marco da
histria destas ideias, o grande marco dahistria da Esttica: o ponto
de chegada - a essa autonomia - e o pontode partida - para
ulteriores aprofundamentos. Mesmo quando se rejeita omodo kantiano
de pensar o esttico, como acontece por exemplo e comoadiante
veremos em Gadamer, ainda contra tal ponto de referncia queisso se
faz; e se faz, como a veremos de igual modo, at sem
recusarinteiramente o sentimento como o distintivo do esttico
enquanto tal. Kant bem o grande marco, o "pai" da Esttica l9. Sendo
algo em si mesmomas no possuindo nenhum fim determinado, sendo o
que deve ser masno se sabendo o que deve ser (porque justamente
carece de interessesensvel e de interesse racional) 21, o esttico
no s, assim , uma esfera
17 Ibid. 23.18 Ibid. 27.19 Cf. em J. PLAZAOLA, o.c. justamente
as grandes divises da histria da esttica
em termos de Gestao , Nascimento e Crise de crescimento.20 Ibid.
p. 116.
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autnoma mas tambm uma esfera que "no serve para nada", uma
esferaque no tem qualquer funo, uma esfera que se esgota sendo o
que ,uma "esplndida inutilidade". No tem alis outro sentido,
acres-centemo-lo para terminar, a clebre distino kantiana entre
beleza vagae beleza aderente (pulchritudo vaga e pulchritudo 21:
mesmoquando se trata da aderente, ela no est naquilo a que adere
(sejaconceito ou, como tambm se diz antes 22, nos atractivos ou na
emoo)alas nela mesma.
No entanto, tambm aqui h o outro lado da lua. Mesmo em Kant,
oesttico tem vrias funes. Tem, desde logo, unia funo de
unificaosistemtica, em relao aos dois mundos sados das suas
anterioresCrticas: o mundo da natureza, do fenmeno, da legalidade,
por uni lado,e o mundo do esprito, do nmeno, da liberdade, por
outro. Kant, como sabido, di-lo expressamente. "Na introduo Crtica
da faculdade dejulgar", escreve com efeito Plazaola, "Kant revela o
motivo do livro: quisencontrar uma sntese entre o entendimento e a
razo por meio do juzo.O ter sentido por muito tempo a necessidade
de colmatar o fosso "entreo mundo sensvel do conceito de natureza e
o supra-sensvel do conceitode liberdade" o que est na raiz da
Crtica do Juzo" 23. Justamente estaIntroduo , no conjunto dos
escritos de Kant, o lugar onde ele maisreflecte sobre os problemas
deixados pelas suas duas anteriores Crticas:nomeadamente o
"incomensurvel abismo" entre o mundo da natureza eo mundo da razo,
onde "nenhuma passagem possvel" - mas onde "oltimo tem de ter uma
influncia sobre o primeiro [pois] o conceito deliberdade tem de
realizar no mundo sensvel o fim imposto pelas suasleis" - 24, e o
problema da finalidade objectiva da natureza, que no erauma
categoria do entendimento mas que era precisa para o estudocompleto
da natureza, e que enfim descoberta, dando origem segundaparte da
Crtica, a faculdade de julgar teleolgica 25.
E tem, depois, uma funo claramente tica, quer ao nvel do
beloquer ao nvel do sublime. Como diz Plazaola: "pela
agradabilidadeimediata (sem conceito) que o belo produz, pelo seu
desinteresse, pelaconcrdia que estabelece entre as faculdades, pela
sua universalidade, abeleza tem uma estreita analogia com a moral"
26. E Kant inequvoco:"O belo o smbolo do bem moral" 27. , alis, por
essa razo, continua
21 KU, 16.22 Ibid. 13-14.223 J. PLAZAOLA, o.c. p. 114, nota 7.24
KU, Introduo , sec. H.25 Ibid . sec. VIII.26 J. PLAZAOLA, o.c. pp.
120-121.27 KU, 59.
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A Funo do Esttico 91
Kant, que "ns designamos muitas vezes os objectos belos da
naturezaou da arte com nomes que parecem tirados de uma apreciao
moral.Dizemos, ao falar de edifcios e rvores, que so magestosos e
magnficos,ou dos campos, que so ridentes e alegres; as prprias
cores se dizeminocentes, modestas, ternas (...)". E o filsofo
conclui: "O gosto torna porassim dizer possvel, sem salto demasiado
brusco, a passagem da atracosensvel ao interesse moral habitual,
dado que representa a imaginaona sua prpria liberdade como
determinvel de um modo final em relaoao entendimento, e ensina a
encontrar uma livre satisfao at nosobjectos dos sentidos, sem
atraco sensvel" 21.
Mas em relao ao sublime que o esttico ainda mais funo dotico. Se
no belo a imaginao se orientava, digamos, de modo natural,para o
entendimento, agora ela "como que violada" 29 (porque se tratada
razo), mas para um fim mais alto. O sublime a apresentao, aprpria
descoberta do tico, ainda que (porque esttico) sempre em termosde
sentimento. , o que Kant claramente diz ao definir o
sublimematemtico: "E sublime o que, por isso s que se pode
pensc-lo,demonstra uma faculdade da alma que ultrapassa toda a
medida dossentidos" 31. A imaginao, ao pretender dar a matria
suficiente paraconhecer a Ideia de infinito, soobra na sua empresa,
e da a dor numprimeiro momento; mas logo a alegria nos invade
porque este colapso dosensvel justamente a mostrao, a demonstrao, a
descoberta da nossafaculdade das Ideias. "A nossa imaginao, mesmo
na sua suprema tenso(...), prova os seus limites e a sua impotncia,
mas ao mesmo tempotambm o seu destino, que o acordo com essas
Ideias" 31. E deste modo,escreve Kant mais adiante, "assim como a
imaginao e o entendimento,pela sua unio no juzo sobre o belo,
produziam uma finalidadesubjectiva, assim agora a imaginao e a razo
a produzem pelo seuconflito: isto , atravs do sentimento de que
possumos uma razo pura,independente (...), cuja eminncia no poderia
tornar-se sensvel denenhum modo, a no ser pela deficincia da prpria
faculdade que notem limites na apresentao das grandezas [a
imaginao]" 32. E o mesmoacontece em relao ao sublime dinmico.
Representando-nos vivamentesituaes de risco para a nossa parte
sensvel, aparece, por oposio einclume a essas situaes, a nossa
parte supra-sensvel. "A disposiodo esprito", escreve com efeito
Kant, "pressuposta pelo sentimento do
28 Ibid . no fim do mesmo pargrafo.29 Ibid. 23.30 Ibid. 25, no
fim.31 Ibid. 27.32 Ibid. 27.
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sublime exige uma abertura deste s Ideias; na inadequao da
naturezaa elas, e por conseguinte s sob a pressuposio das Ideias e
do esforoda imaginao para tratar a natureza como um esquema para
elas, queconsiste o que assustador para a sensibilidade e contudo
ao mesmotempo atraente : que nisto a razo exerce com violncia o seu
podersobre a sensibilidade , a fim de a alargar medida do seu
domnio prprio,que prtico (...)" 33. Indo mesmo Kant, logo a seguir
, ao ponto de dizerque, " sem o desenvolvimento das Ideias ticas,
aquilo que , preparadospela cultura , ns chamamos sublime no seria
seno medonho para ohomem inculto , (...) que mais no seria que uni
prisioneiro de taiscircunstncias " 34. Ou seja, a funo do sublime
levar - nos ao domniotico - Kant chega a escrever que o sublime
"nos obriga a pensarsubjectivamente a prpria natureza na sua
totalidade como a apresentaodo supra -sensvel" 35 - e, mais do que
levar - nos a ele, depende at, dealgum modo , desse prprio
tico.
Em resumo : o esttico, em Kant, embora se ponha como aquilo
queno pode ter nenhum fim determinado , nem subjectivo nem
objectivo,como uma "finalidade sem fim", e por isso mesmo como
constituindo umdomnio autnomo no s em relao ao conhecimento mas
tambm emrelao ao tico, tem no entanto, claramente , uma funo tica,
e mesmode conhecimento , enquanto fornecedor do princpio de
finalidade para oestudo da natureza . Como de resto no poderia ser
de outra maneira,porque o homem - que contempla o belo, que conhece
, e que age moral-mente - o mesmo. S se os sujeitos destes domnios
fossem diferentes,ou se , sendo o mesmo, ele estivesse dividido em
compartimentosestanques, ento cada domnio seria em absoluto autnomo
, sem nenhumaincidncia sobre os demais. Como no assim,
evidentemente h umamtua influncia . No entanto , deve sublinhar -se
que, no que respeita aoesttico, que o domnio que aqui nos interessa
, ele no deixa de ser oque , ele no perde a sua essncia, por se pr
ao servio do tico. Porqueele sempre o sentimento que (quer ao nvel
do belo quer ao nvel dosublime ) e no um conhecimento (qualquer que
ele seja) ou umimperativo ( a qualquer nvel ). Se se pe o problema
de uma hierar-quizao de valores , a, sim , na perspectiva de Kant,
o esttico ficar semdvida a perder em relao ao tico. Mas, em
primeiro lugar, se naverdade acontece assim em Kant , tal no
aconteceu sempre: em Schiller,
33 Ibid. 29.34 Ibid. 29.35 Ibid. "Nota geral exposio dos juzos
estticos de reflexo" (a seguir ao
29).
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A Funo do Esttico 93
por exemplo ( e depois em toda a tendncia esteticista do sc .
XIX) 36,h justamente a tendncia contrria para valorizar mais o
esttico e delefazer depender o tico e o poltico. E depois, se sem
dvida a tendnciageneralizada aquela de valorizar mais o tico do que
o esttico -pensemos nomeadamente em Plato e no prprio Aristteles ou
emPlotino, e nos nossos dias, em Gadamer , em M. Dufrenne ou num
LpezQuints -, justamente a questo que, ao menos em Kant , no se
perdeaquela determinao - que a primeira e mais essencial - do
estticocomo sentimento , pelo que, ainda que subordinado
hierarquicamente aotico, jamais perde a sua autonomia prpria. De
resto, perde-a - se quealguma vez a ganhou - nesses prprios autores
? neles que agora vamospassar a analisar o problema , para
concluirmos com alguma concretude,ainda que necessariamente de
forma geral , acerca do problema da funodo esttico. Veremos quais
as tendncias da hierarquizao dos valorese at que ponto o sentimento
est ou no presente. Porque, repitamo-lo,o que o problema da funo do
esttico antes de mais implica , em nossaopinio, esse mesmo duplo
aspecto: saber como se faz a respectivahierarquizao e se se mantm
ou no a prpria essncia do esttico.
2. O problema em Schiller
Depois do Sturm und Dratlg dos seus primeiros melodramas, e
atravsquer da influente amizade de Gothe, que entretanto se havia
convertidoao classicismo depois da viagem a Itlia, quer do estudo
da filosofia deKant, Schiller dedica-se, de 1784 a 1796, a uma
notvel reflexo sobreesttica terica , que alcana a sua mais alta
expresso nas Cartas sobrea educao esttica do homem 37. O seu
objectivo, ao escrev-las, mostrar "que as questes estticas tm um
interesse prtico, um interessede actualidade poltica . Quer provar
que as suas especulaes estticaspodem servir para a reforma do
Estado e contribuir para a felicidade dahumanidade" 31. E, por a,
parece imediatamente que a posio de Schiller afinal semelhante de
Kant: que os grandes valores so o tico e opoltico e que o esttico,
estando-lhes subordinado, mais no faz do queservi-los. E tanto
assim, alis, que a obra comea por uma primeira parte
36 Cf. sobre este terna e para a respectiva influncia em
Portugal , J. ENES,A autonomia da arte, Lisboa, Unio Grfica , s.d.
nomeadamente pp. 95-111.
31 Utilizaremos a edio bilingue Lettres sur l'ducation esthtique
de l'homme,traduo e introduo de R. LEROUX, Paris, Aubier
-Montaigne, 1943.
38 Ibid . Introduo, p. 5.
Revista Filosfica de Coimbra - n. 3 - vol. 2 (1993) pp.
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(Cartas 2-9) dedicada a "resolver o problema da liberdade
poltica" 39. Sque o que acontece que Schiller atribui tanta
importncia ao esttico,que ele no mais um simples elemento que se
articula com os outros ese lhes funcionaliza mas, ao contrrio, o
eixo, o fulcro dessa articulao,de tal modo que o moral e o poltico,
longe de se verem servidos peloesttico, derivam antes dele.
Schiller, com efeito, pretende a realizao de uma
"humanidadeideal", que ser justamente a beleza ideal. Nas cartas
11-14 - e na linhamais de Fichte do que de Kant 411 - pe os
princpios simultaneamentepsicolgicos e metafsicos da sua doutrina.
O homem constitudo porduas "naturezas" fundamentais, a sensvel e
fenomenal, que se passa narelatividade do espao e do tempo, e a
racional e absoluta, que assisteimutvel s mudanas da parte sensvel
e as enforma dotando-as deuniversalidade e necessidade 41. Ora, se
esta a natureza humana, a tarefade cada indivduo ser ento a de
"obedecer s duas exigncias opostasdo seu ser sensvel e racional"
42. O homem ser tanto mais homemquanto mais desenvolver essas suas
duas capacidades. Ele possui, alis,at dois instintos 43 que o
impelem nesse sentido, um, com efeito, a tersensaes, vivendo
intensamente o tempo, o outro, a sobrevoar essamultiplicidade
efmera e por isso permanentemente perdida, em direco verdade e
prpria espcie humana. O que significa que ele , assim,esses prprios
dois impulsos que o levam a realizar-se dessa duplamaneira.
Simplesmente, os dois impulsos so contrrios 44, um tende amergulhar
o homem no tempo e o outro, na eternidade; se se
desenvolveexclusivamente o primeiro, fica-se apenas um ser sensvel,
se sedesenvolve exclusivamente o segundo, fica-se apenas um ser
racional.Parece que um obstculo essencial vem impedir a realizao
completa dohomem, a realizao da precisa unidade na precisa
multiplicidade. Seja,porm, como for, ao menos uma coisa desde j
certa e, por isso, deveser bem assinalada: "a limitao de cada um
dos dois instintos no deve(...) em nenhum caso resultar da
respectiva fraqueza; ao contrrio, deve
39 Ibid. Introduo, p. 6.40 Cf. H-G. GADAMER, Verdad y mtodo.
Fundamentos de una hermenutica
filosfica, trad. de A. A. APARICIO e R. de AGAPITO, Salamanca,
Sgueme, 1977, p.122, onde com efeito se diz: "O livre jogo da
capacidade de conhecimento, em que Kanttinha baseado o a priori do
gosto e do gnio, entende-se em Schiller antropologicamentea partir
da teoria dos instintos de Fichte".
41 Lettres, o.c. Introduo, p.6.42 Ibid. Introduo, p. 7.43 Ibid.
Carta 12.44 Ibid. Carta 13.
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ser o efeito da fora do outro : o instinto sensvel deve ser
limitado edetido no pela sua impotncia mas pela liberdade moral do
instinto for-mal, tal como este deve ser detido no pela sua preguia
em pensar equerer , mas por uma abundncia de sensaes que resista
invaso daalma pelo esprito" 45
Esse obstculo , contudo , superado . Porque, para alm desses
doisinstintos, h um terceiro, o instinto de jogo 46 . Ou antes,
deve haver,porque este instinto no seno o resultado do "estado
esttico".Justamente , o papel da beleza abolir aquela dupla oposio
. "Desde queos dois instintos antagnicos , plenamente desenvolvidos
, passam, sob ainfluncia da beleza , a serem simultaneamente
activos e a limitarem-semutuamente , a necessidade d lugar(...)
liberdade, posto que cada umdos dois instintos impede o outro da
sua opresso .(...) Assim nasce naalma humana uni estado de
indeterminao que possibilidade de serlivre, isto , possibilidade de
o pensamento e a vontade se manifestaremna sua autonomia " 47.O
estado de natureza assim ultrapassado e ohomem , enfim , plenamente
homem . H, sem dvida , antes de mais, umaliberdade simplesmente
racional. Mas tal liberdade , para o homem que um composto de
esprito e matria , vazia . S uma liberdade que tenhaem conta a sua
natureza mista , uma liberdade que se manifeste no seioda vida
sensvel - "quando ele age racionalmente nos limites da matriae
materialmente segundo as leis da razo" 48 - uma verdadeira
liberdade,uma liberdade positiva . Ora, tal liberdade que se deve
beleza. Oinstinto de jogo que dela resulta justamente jogo, porque
se trata deadquirir uma " ausncia de constrangimento, dado que, ao
partilhar a almaentre a lei e a necessidade , tal instinto a
subtrai ao determinismo tantode uma como da outra" 49. Agora , sim,
a verdadeira liberdade pode existir,porque ela "tem por condio a
aco simultnea das (...) duas naturezasplenamente desenvolvidas"
50.
E, evidentemente , a beleza pode ter estes efeitos sobre a
naturezahumana , porque ela , nela mesma , uma sntese daqueles dois
primeirosinstintos: uma "forma viva". Viva, do sensvel ; forma , do
racional."O objecto belo, para estabelecer entre as nossas duas
naturezas o acordoe a harmonia que so as condies do prazer esttico,
tem de ser, ele
45 Ibid. Introduo , pp. 7-8.46 Ibid. Cartas 14-15.47 Ibid.
Introduo, p. 9.48 Ibid. Carta 19, nomeadamente nota final.49 Ibid.
Introduo, p. 10.51 Ibid. Introduo, p. 10.
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prprio, associao e equilbrio perfeitos de matria e forma" 51. A
beleza assim , simultaneamente, forma que contemplamos e vida que
sentimos,actividade e passividade , sinal de que a vida fsica no
suprime aliberdade moral e de que o infinito se pode realizar no
finito 52.
No que, deste modo, o tico se reduza ao esttico. A partir
dapoderosa influncia de Kant, Schiller afirma que, na deciso de
agir pordever, a lei moral que se impe vontade, tal como, na
descoberta daverdade, a pura forma lgica que se impe inteligncia
13. "Mas aaco indirecta da arte sobre a moralidade considervel,
posto que - eaqui Schiller separa-se de Kant - a arte possibilita o
acto de auto-determinao pelo qual o homem impe a sua forma
inteligncia e vontade" 54. O belo condio do bom e do verdadeiro.
Sem esta auto-determinao, o homem seria, na prtica, exclusivamente
sensvel e, porisso (exclusivamente passivo), incapaz de se
auto-determinar. a belezaque lhe devolve a auto-determinao. E ento,
sim, ele pode passar"facilmente do estado esttico ao estado lgico e
moral" 55. Como diz R.Leroux, "no total, Schiller julga (Carta 22)
que o estado esttico, se nogera directamente nenhum pensamento nem
nenhuma aco precisa, contudo entre todos os estados da alma humana
o mais fecundo para oconhecimento e a moralidade" 56. "Desde que a
razo pronunciou: umahumanidade e um instinto de jogo devem existir,
ela simultaneamente psa ttulo de imperativo: tm de existir objectos
belos que sejam a condiodessa humanidade" 57. Se so a condio, de um
certo ponto de vista, semdvida, orientam-se para o tico e para o
conhecimento, que so, estes,no o meio mas o fim; mas de um outro
ponto de vista, se so a condio,estes no podero existir sem aqueles
objectos belos, em ltima anliseo bom e o verdadeiro dependem do
belo.
De resto, onde se v ainda melhor esta predominncia do esttico,
na sua relao ao poltico. o que ntido logo na Carta 2. "Se a edu-cao
esttica (escreve a Schiller em substncia) confere ao homem
acapacidade de agir como ser moral, s a faculdade de agir como ser
morallhe d o direito liberdade - compreendamos, liberdade fsica e
pol-tica". E acrescenta Leroux, precisando a ideia: "sem beleza, os
caractereshumanos no se enobrecero; se no se enobrecerem, os homens
no sero
51 Ibid . Introduo , p. 11. Ver carta 16.52 Ibid. Introduo , p.
11. Ver carta 25.53 Ibid . Carta 23.54 Ibid . Introduo, p. 14.55
Ibid. Introduo, p. 14.56 Ibid . Introduo, p. 14.57 Ibid. Introduo ,
p. 12. O sublinhado nosso.
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A Funo do Esttico 97
capazes de moralidade ; enquanto no forem morais, nem se poder
pra questo de lhes outorgar a liberdade no Estado". Concluindo:
"aliberdade poltica o ltimo presente prometido aos homens , para
quandoeles forem , por uma longa educao esttica, feitos dignos de
areceber " 58. Tudo est feito com a adquirida educao esttica : a
liberdadepoltica um prmio liberdade j efectivamente realizada .
Como quasetodos os tericos polticos do sc . XVIII , tambm Schiller
pensa que ohomem comeou por viver num estado de natureza (Carta 3),
o qual, deresto, no existiu efectivamente (Carta 24) porque,
impelidos pelanecessidade de escapar ao isolamento e impotncia ,
cedo os homensestabeleceram entre si um contrato fundador do Estado
. Mas tal Estadono passava daquilo que Schiller chama o Estado da
necessidade(Notst(icit), que apenas limitava pela violncia a
violncia dos indivduos,impedindo que se destruissem mutuamente .
preciso transformar esseEstado num Estado moral . para isso que
serve a beleza. "Na cidadeesttica do futuro", escreve em resumo
Leroux , "no haver nemcesarismo nem escravido ; os governantes no
necessitaro de cons-tranger ; eles podero outorgar a liberdade
poltica , porque a beleza tergerado a liberdade moral e esta ter
dado direito liberdade civil epoltica " 59. Alis, para Schiller , o
Estado orgnico composto de cidadosestticos no um puro ideal , uma
vez que j existiu na histria, naantiguidade grega 60. Se o nosso
sculo estranho s preocupaes daarte, se a necessidade rainha e
senhora, se a utilidade o dolo do tempo(Carta 2), mais uma razo ,
justamente , para sublinhar a sua importncia."A arte nobre, tal
como os Gregos nos deixaram os modelos , ajudar osmodernos a
restaurar a natureza nobre, a renovar os caracteres e os cos-tumes.
At l, o Estado racional esttico s poder existir nas almas; ouantes,
s poder , como a pura Igreja e a pura Repblica, ter realidade
emalgumas comunidades de elite (Carta 27),161.
Em concluso : no que se refere hierarquizao dos vrios
domnioshumanos, o esttico bem, em Schiller , o mais importante,
porque ele a condio (para no dizer a prpria realidade ) dos outros
. E, no querespeita constituio da prpria essncia do esttico, h sem
dvida,neste autor , uma certa "objectivao " do belo em relao pura
"subjec-tividade" kantiana : Schiller "declara que o objecto belo
deve ser regular(Kallias), que deve ter uma "arquitectnica" natural
( Ueber Anmut un
58 Ibid. Introduo, p. 17.59 Ibid. Introduo, p. 21.60 Ibid. Carta
6.61 Ibid. Introduo, p. 23.
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Wrde) e que deve ser (nas Cartas) uma incarnao e uma irradiao
dosupra - sensvel no sensvel " 62; o que quer dizer que Schiller no
se atmexclusivamente ao sentimento. Mas evidente que este no est
ausente.Ele fala por toda a parte , expressamente , no "prazer
esttico" e, como bvio, nem poderia ser de outra maneira , porque
ele prprio um artistae vem directamente de Kant . O que acontece,
neste ponto, que Schillerest interessado na "utilidade " do esttico
para a formao humana emgeral e da que no se limite a dizer que ele
um simples sentimento,antes importa-lhe enunciar e sublinhar os
elementos que o integram, emordem a mais facilmente explicar essa
sua "utilidade". O esttico serveassim ao tico, ao poltico, e ao
prprio conhecimento , mas no deixa deser antes de tudo um
"sentimento" (que se tem na "contemplao") e porisso um domnio
prprio em relao aos demais.
3. O problema em Plato, Aristteles e Plotino
O esttico como sentimento no aparece , contudo, s depois de
Kant.Ele j exactamente isso antes, ainda que de uni modo apenas
implcito,se tivermos por termo de comparao a afirmao clara e
sistemtica doautor da Crtica a que fizemos referncia . E -o, em
termos decontemplao e articulando-se naturalmente com os demais
domnioshumanos. Acontece tal, nomeadamente, em Plato, Aristteles e
Plotino.
Plato, sem dvida, de um certo ponto de vista, parece no ter
estticanenhuma. No Hpias Maior, depois de se perguntar o que o belo
- se o "conveniente", o "til", o "agradvel" - chega concluso de que
no nenhuma destas hipteses , tal como no tambm o "bom". Ou
seja,parece que de facto alguma coisa , mas, quando se vai ver o
que , nadaaparece. E se alguma coisa aparece - no fundo, h uma
certa tendnciapara o identificar com o bom - ento o belo justamente
reduz-se ao bom 63e no em definitivo, como belo, coisa alguma.
Depois, na Repblica,os poetas so expulsos da cidade 64. Nem todos,
certo; so expulsossobretudo os modos musicais langorosos e
lamentosos ("perniciosos atpara as mulheres "), os quais levam os
cidados moleza e preguia 65,ficando os que levam coragem e
constncia , na guerra e na paz 66
62 Ibid. Introduo, p. 41.63 Cf. J. PLAZAOLA, o.c. p. 12.64 Rep.
III, 395-403.65 Ibid. 398 e.66 Ibid. 399 b.
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A Funo do Esttico 99
Mas so aqueles que mais arte so porque mais nos
emocionam,constituindo um perigo para todos , cidados e guardies
67. Alis, e emterceiro lugar , toda a arte, sem distines, uma
imitao e esta - ammesis - no passa , para usarmos a conhecida
expresso de Collingwood,de um "erro de terceiro grau " 68; Plato,
do ponto de vista da sua teoriadas Ideias - e tambm sem dvida em
virtude da menor qualidade dasobras do seu tempo 69 - levado at
desvalorizao ontolgica da arte.E, finalmente , a sua tendncia para
, sob a influncia pitagrica, pr abeleza em termos de harmonia 70
leva -o, ainda por esta razo , a perder osentimento mesmo; pois,
dado que a beleza se define exclusivamente emtermos numricos , ela
consistir apenas nessas prprias proporesmatemticas e parece que no
h mais lugar para o sentimento . Por todasestas razes, parece que
no h, na verdade , em Plato , lugar para oefectivo sentimento
esttico e, consequentemente , para uma esttica.
Simplesmente , ao ler Plato , o sentimento est por toda a parte
e eleprprio um extraordinrio artista. porque, como escreve
Plazaola,"Plato (como mais tarde Sto. Agostinho) sente a enorme
atraco que aarte exerce sobre o homem que ele adverte o perigo que
ela pode criar moral" 71. Da, a expulso dos poetas da cidade. Se
ele no tivessesensibilidade para a arte, se ele prprio se no
sentisse arrastado por todaa sorte de poesia - e msica e pintura e
escultura e arquitectura - ele nose teria apercebido da poderosa
influncia que em ns ela exerce e noteria tomado tais precaues. A
prpria expulso dos poetes da cidade ,pois, a mais segura e
eloquente prova do sentimento esttico em Plato.Alis, ele prprio o
refere expressamente em muitos passos 72 , entre osquais me permito
evidenciar um, que me parece mais elucidativo porque,a par com a
franca admisso do prazer , vem justamente a razo pela qualo
sentimento produzido pela arte no pode ser admitido na cidade:
"Se"- diz Scrates - "a poesia imitativa, que tem por objecto o
prazer, podeprovar de algum modo que deve ter lugar na cidade bem
ordenada, nslho concederemos de bom grado; porque temos conscincia
do encantoque sobre ns ela exerce; mas seria mpio trair o que nos
parece averdade. Tu prprio, meu amigo, no sentes o encanto da
poesia,sobretudo quando se trata de Homero? - Sim, sinto-o
vivamente",
67 Teet. 158 a; Leis, 719 c-d; Tim. 19 d; Rep. X, 605-608. ,68
R. COLLINGWOOD, Plato's Philosophy ofArt, in Mind 34 (1925) pp.
154-172.69 Cf. J.PLAZAOLA, o.c. p. 14. Ver a respectiva
referncia.70 Ver nomeadamente: Gorg. 508; Soph. 228 a-d; Filebo, 51
c-d; todo o Timeu.71 J. PLAZAOLA, o.c. p. 15.72 Nomeadamente: Rep.
X, 606 d; Fedro, 249 d-251; Banq. 210 e-211 d; Leis, 790.
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responde Glaucon 73. E a mesma coisa acontece em relao ao
estticoem termos de harmonia. Se Plato parece reduzir o belo a
estadeterminao, isto s porque, no tendo ainda havido Kant a pr
(soba influncia do sec. XVIII) o esttico em termos de sentimento,
este passaum tanto despercebido. Mas claro, nos respectivos
contextos, que aharmonia s interessa para tornar o objecto "belo",
quero dizer, para osentimento de prazer que sentimos perante tal
objecto. Se este tivesse todaa harmonia do mundo mas nos deixasse
frios perante ele, ningum diriaque tal objecto era belo. Alis,
repilamo-lo, Plato - e depois Aristteles,como veremos de seguida -
esto constantemente a falar no prazer dascoisas belas. Se ao
teorizar o objecto belo, depois, esquecem esse prazere ficam s com
as suas determinaes objectivas, porque no houveainda Kant (e tudo o
que h at l). Mas ao menos - isso bem ntido -no h beleza sem prazer,
sem sentimento, e o objecto, com a suaharmonia (ou a sua perfeio,
como ir ser dito por Aristteles), no serveseno para causar esse
prazer. Ou seja, em resumo, o objecto esttico,em Plato, j
fundamentalmente prazer, sentimento - apesar de isso, parao
dizermos deste modo, no ter ainda nome, e apesar de, na
articulaocom os outros domnios do homem, a ateno ir
predominantemente parao tico e para o conhecimento (a harmonia). De
resto, Plato evolui e nosltimos dilogos faz da razo - que no Fedro
era um auriga a controlaros seus dois cavalos - "um fio dbil que no
pode governar a marionetahumana sem a cooperao dos fios do prazer"
74.
E, neste contexto, o papel de Aristteles vai ser o de dar uma
certaindependncia ao esttico em relao ao tico, de dois pontos de
vistadiferentes. Em primeiro lugar, do ponto de vista da definio
dosrespectivos conceitos, no clebre passo da Metafsica: "o bom s
seencontra no mundo da aco, enquanto o belo se encontra tambm
nosseres imveis (...) uma vez que as formas mais altas do belo so a
ordem,a simetria e a finitude" 75. Com efeito, parece estar aqui ao
menos oesboo da distino kantiana (e j humiana) do bom como
"interessado"(ou "til") e do belo como "desinteressado", ao qual
basta apenas a"representao", sem necessidade da existncia efectiva
no tempo. E certoque a perspectiva do bom ou interessado em
Aristteles se peexclusivamente em termos de "aco" e portanto de
"movimento" 76 e,
73 Rep . X, 607 e . Os sublinhados so nossos.74 J. PLAZAOLA,
o.c. p. 16 . Ver Leis, VII, 803 c-e.75 Metaph . M, 3, 1078 a 30-b
6.76 Cf. Metaph . B, 2, 996 a 27 e toda a teoria aristotlica do
prazer em Eth. Nic.
VII, 11-14 e X, 1-5.
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A Funo do Esttico 101
por outro lado, que no h nesta aco pelo menos o relevo que
Kantdepois dar ao carcter "voluntrio" do acto moral 77 e que
justamente ofaz "interessado" face pura "contemplao" do esttico.
Mas, no quese refere ao primeiro ponto, esse "activismo" da tica
aristotlica no seno o resultado da perspectiva predominantemente
biolgica do seupensamento 78; e, no que respeita ao segundo, se a
dimenso subjectivahumana ainda precisar de muito tempo para se
desenvolverconvenientemente, isso no significa que no haja j em
toda a acohumana o seu aspecto "voluntrio", que a pe como aquilo
que o homem"quer", e quer "realizado", "existente". E assim, se no
h j, neste passoaristotlico, a clareza da distino kantiana do belo
e do bom, h pelomenos sem dvida os seus princpios.
E, em segundo lugar, Aristteles vai dar uma certa independncia
aoesttico em relao ao tico, do ponto de vista da sua teoria da
arte, naPotica. que, como se l na sua clebre definio da tragdia,
estadestina-se, sem dvida, a, "suscitando a piedade e o temor,
fazer apurificao destas emoes" 79, o que parece p-1a claramente ao
servioda tica. S que esta uma concluso nossa. O que vai citado tudo
oque Aristteles diz da funo da tragdia - e depois da epopeia 80 -
eportanto, em geral, da arte. Embora esta funo tenha
naturalmenteconsequncias ticas, elas no so sequer tiradas. Ao
contrrio, semprese vinca o carcter imitativo da arte 81 e o carcter
particular do seuprazer, que deriva dessa imitao 82. Parece que
Aristteles se coloca, naverdade, na tradio dos sofistas, que
tomavam o esttico como uma outraesfera ao lado do tico. Tudo se
passa - a uma leitura despreconcebidados textos da Potica - como se
se tratasse de um mundo estanque: has imitaes e o prazer delas
tirado e parece tudo. E digo bem, o prazer,porque quanto a este
ponto, quanto ao objecto esttico em termos desentimento, no h
evidentemente a mais pequena dvida. Podamosmesmo dizer que a
substncia desta obra, a sua carne , so os sentimentos,o prazer e a
dor, as emoes e comoes, o "pathos". Quase no h uma
77 Em toda a Crtica da Razo Prtica, com efeito, a aco tica a que
se segue auma vontade: no se trata de uma simples aco, mas de uma
aco enquanto queridapela vontade.
18 Cf. nomeadamente Metaph. Th, 6, 1048 b 18-35, com os
comentrios de J. TRI-COT, La Mtaphysique, Paris, J. Vrin, 1964, II
vol. pp. 501-503.
79 Poet. 6, 1449 b 24-28. Cf. para o problema histrico da
interpretao da catarse,a Introduo de J. HARDY, Potique, Paris,
Belles Lettres, 1952, pp. 16-22.
80 Poet. 23 e ss.81 Cf. Potique, trad. cit. pp. 12-13.82 Poet.
14. 1453 b 1-14.
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102 J. A. Encarnao Reis
pgina onde isto no aflore 83. Que me seja permitido pr em relevo
trs.No fim do cap. 11, ao acrescentar o "evento pattico" peripcia e
aoreconhecimento, diz: "o evento pattico uma aco que faz morrer
ousofrer , como por exemplo, as agonias expostas em cena, as
doreslancinantes, as feridas e todos os outros factos deste gnero"
84. No cap.14, para que o efeito trgico seja o mais intenso , exige
que as personagenssejam "amigas ", por exemplo "um irmo que mata o
irmo" ou "Medeiamatando os seus filhos" 15. No Cap. 17, ao tratar
da natureza do poeta,diz que, "pois que os poetas so da mesma
natureza que ns, eles serotanto mais persuasivos quanto mais se
adentrarem nas paixes, de talmodo que parecer verdadeiramente
triste aquele que se entregar tristezae colrico aquele que se
entregar colera. Por isso a arte da poesiapertence a homens
naturalmente bem dotados ou a exaltados: no primeirocaso estaro
aptos a transformarem-se sua vontade em personagens, nosegundo a
abandonarem-se ao delrio potico" 81. Ou seja, em concluso:mais
ainda do que em Plato, o esttico em Aristteles
inequivocamenteprazer, e tende-se mesmo a distinguir formalmente o
seu domnio, que o da contemplao, do do tico, que o da aco.
Quanto a Plotino, est, apesar de uma certa ambiguidade, ainda
maisno caminho que ir dar a Kant, no s ao acentuar a distino entre
obelo e o bom, mas ainda ao pr em relevo o aspecto subjectivo
daexperincia esttica. certo que a beleza se apresenta, antes de
mais,como algo objectivo: ela idntica ao Uno, o resplendor da sua
essncia,e depois - de um modo que ns j podemos comear a compreender
- oresplendor do bem 87. O que significa que Plotino, por um lado,
identificao belo ao bem e ambos ao Uno 88 mas, por outro,
estabelece uma certadistino no s entre o belo e o bem mas tambm
entre ambos e o Uno.Tal como estabelece a mesma identidade e
distino entre o belo e o bem,por um lado, e a inteligncia por
outro: "sem dvida que a inteligncia bela; mas essa beleza inerte
enquanto a luz do bem no a ilumina" 19.
83 Nomeadamente : Ibid. 4, 1448 b 8-14; 5, 1449 a 31-36; 6, 1449
b 27; 1450 a 15-20;1450 b 18; 9, 1452 a 1-5; 11, 1452 b 1-3; 13,
1452 b 28-1453 a 12; 19, 1456 a 37-b 2;1456 b 11-12; 23, 1459 a 21;
24, 1459 b 11; 1460 a 17-18; 26, 1462 a 15-16; 1462 b12-13.
14 Ihid. 11, 1452 b 11-13.15 Ibid. 14, 1453 b 15-1454 a 15.86
Ibid. 17, 1455 a 31-35.87 En, 1,6,6. Cf. J. PLAZAOLA, o.c. pp.
27-28, com as respectivas referncias.88 En . V, 8, 9: "No pode
haver beleza sem ser, nem ser sem beleza: esvaziado da
beleza, o ser perde algo da sua essncia".89 Ibid . VI, 7, 22. Ou
(a mesmo ): "cada inteligvel por si mesmo o que ; mas no
se converte em objecto de desejo seno quando o bem o faz
brilhar".
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A Funo do Esttico 103
Temos assim a identidade dos transcendentais e a sua diferena. O
ser,ao nvel da inteligncia-inteligvel , , porque ser, a prpria
essncia dobelo e do bom, sem o qual estes nada seriam; mas a prpria
essncia doser o belo e o bom; e o belo, em relao ao bom, , por sua
vez, o seuresplendor, a sua manifestao, e por isso aquilo mesmo que
se podecontemplar. O bom seria assim o ncleo do ser, a sua essncia
ntima -ao nvel naturalmente j do valor, porque j no se trata do
simples ser -e o belo seria a irradiao desse ncleo, o seu
resplendor, a suamanifestao e, porque manifestao, o que a est por
definio paracontemplao. Teramos ento aqui, justamente , a distino
entre o beloe o bom: este ltimo no o que se manifesta , o
objectivo, o que secontempla, mas, ao contrrio, o que simplesmente
move o sujeito,situando-o ao nvel da aco e do interesse (por
conceito); o belo, o que,pondo-se como manifestao do bom e, por
isso, sem mais, como o quepode e deve ver-se, simplesmente um
objecto que nem sequer evoca osujeito (tal como acontece nas nossas
contemplaes do belo).
Mas, evidentemente, este sujeito - e o segundo aspecto da
estticaplotiniana - est l e mesmo posto em relevo . Simplesmente ,
ao nvelesttico, ele prprio j uma manifestao, uma "esttua viva",
como elediz `0, e no uni sujeito de aco, tico. E Plotino no esquece
tal sujeito,por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a partir do
helenismo deAlexandre o cidado grego se sente perdido no vasto
mundo e ento slhe resta voltar-se para si prprio tentando ao menos
salvar-se a si - oque naturalmente est na linha da descoberta do
sujeito que do mundoclssico vem dar ao mundo moderno -. E depois
porque, do exclusivoponto de vista de Plotino, como a verdadeira
realidade no a exteriormas a interior , para a converso habitual da
alma que preciso reparar- preciso tomar ateno realizao da esttua -
a fim de que, aocontemplar o mundo exterior, ela veja o que deve
ver e no a puraexterioridade material, que nada . Por isso, a
doutrina da representaoda tradio atinge nele a densidade e a
viragem de perspectiva que atinge:o ver no mais funo do objecto,
mas o objecto funo do ver; " nuncaa vista veria o sol se no tomasse
antes a sua forma; do mesmo modo aalma no poder ver a beleza se
antes no se fizer bela ela prpria" 91.
Pelo relevo dado assim ao subjectivo na experincia esttica 92 e
pelaacentuao da distino entre o belo e o bom, Plotino est pois bem
nocaminho que vai dar a Kant. E mesmo preciso dizer que, se na
vo En. I, 6. 9.vt Ibid . 1, 6, 9.92 Cf. J. PLAZAOLA, o.c. p.
32.
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articulao que se estabelece entre o esttico e o tico parece,
primeiravista, que o primeiro se pe ao servio do segundo - porque a
beleza domundo sensvel o princpio do caminho de regresso nossa
verdadeiraPtria 93 - a verdade que at o tico que mais se subordina
ao esttico,porque tudo se faz, no mundo de Plotino, em ltima anlise
para acontemplao. Ou seja, parece at que Plotino ultrapassa Kant e
vai dara Schiller, se bem que sua maneira.
4. O problema em Gadamer, I)ufreune e Lpez Quinis
Kant e Schiller, que Gadamer rejeita. O primeiro, porque perde a
obrade arte a favor de uma pura subjectividade e o segundo, porque
perde arealidade a favor de uma pura aparncia. Com efeito, a
principal crticaque Gadamer dirige esttica Kantiana a de que nela
os objectosestticos no tm qualquer autonomia ou validade em si
mesmos, antesso reduzidos ao puro sentimento do sujeito, posto que
s tm sentidoenquanto objectos da faculdade de julgar esttica. E o
que o autor deVerdade e mtodo diz sem sombra para dvidas, ao
analisar o papel dognio na esttica de Kant: "a nica coisa que o
conceito de gnioconsegue nivelar esteticamente os produtos das
belas artes com a belezanatural . Tambm a arte considerada
esteticamente, isto , tambm elarepresenta um caso para a faculdade
de julgar reflexa". E Gadamer precisaa sua ideia: "Aquilo que se
produz deliberadamefte, e portanto com vistaa algum objectivo, no ,
apesar disso, referido a um conceito, antes sintenta comprazer no
seu mero juzo, exactamente como a beleza natu-ral". O que quer
dizer que, efectivamente, "a autonomia da faculdade dejulgar
esttica no funda, de modo nenhum, um mbito de validadeautnoma para
os objectos belos" 94. Estes, que so na verdade a realidadeque so,
perdem-se e fica s o puro sentimento do sujeito. E, quanto
aSchiller, Gadamer em substncia diz que o acordo alcanado pela arte
um acordo ao nvel da "aparncia" e, por isso, que no s no resolve
oconflito real entre a natureza e a liberdade, mas ao contrrio vem
mesmocavar um novo abismo entre as experincias estticas, por um
lado, e asnaturais e tico-polticas, por outro 95. Trata-se, em
sntese (a esttica deSchiller, para Gadamer), de uma esttica fundada
no "preconceitonominalista", que leva prpria alienao da realidade,
o que se patenteiano s nas "puras obras de arte" como correlatos da
"consciencia esttica"
91 En.V,9,1;I,6,8.94 H-G. GADAMER, o.c. p. 90.95 Ibid. pp.
122-123.
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mas mesmo na criao desses lugares - " museus", "bibliotecas", "
salasde concerto" - onde as raizes espcio-temporais da arte pura
esimplesmente desaparecem 96.
Ora, justamente contra esta alienao e contra a pura
subjectividadede Kant que Gadamer pensa o seu objecto esttico como
uma forma deconhecimento 97, como um "pr em obra a verdade" 98. A
partir da essn-cia de jogo, como a essncia da obra de arte 99, esta
revela- se no s comouma efectiva experincia, alargando assim o
moderno conceito da expe-rincia cientfica , mas ainda como uma
experincia em que se experi-menta a essencial finitude humana e,
por isso , em que a experinciaenquanto tal passa a ser olhada de
uma outra maneira . No jogo, saparentemente ns somes os sujeitos
activos . Apanhados pelas suas ma-lhas, submetidos s possibilidades
e riscos que ele nos oferece, somosantes jogados pelo prprio jogo;
este que nos atrai e fascina e nosdomina prescrevendo-nos as suas
regras. "O verdadeiro sujeito do jogo",diz Gadamer, "no o jogador
mas o prprio jogo. este que mantmenfeitiado o jogador, que o enreda
e mantm nele " 100. E j havia ditoHeidegger: "Fazer unia
experincia, seja de unia coisa, de um homem oude um deus, significa
que algo nos acontece, nos encontra, nos sobrevm,nos derruba e
transforma. Falar em "fazer" no significa nesta acepo,em rigor, que
ns efectuemos por ns prprios a experincia; aqui fazersignifica
suportar, sofrer, receber o que vem ao nosso encontro,submetendo -
nos" 101.
E assim, sem dvida, os objectos estticos em Gadamer tm antes
detudo uma funo de conhecimento: so, eles prprios, uma forma
deconhecimento e orientam-se - antes da "conscincia exposta
eficciahistrica" (o "wirkungsgesclliclitliclies Bewusstsein", na
traduo deRicoeur) e da ontologia da linguagem - para a elucidao
metdica deuma Hermenutica . Mas, evidentemente , e aqui voltamos a
Kant, no souma forma de conhecimento qualquer , indiscernvel das
outras. Elescontinuam a definir-se pela contemplao e pelo prazer.
Eles sojustamente "jogo", e o jogo "atrai e fascina". certo que o
jogo , suamaneira, coisa sria, porque leva o jogador a
entregar-se-lhe; mas
96 Ibid. pp. 123-129.97 Ibid. p. 70.98 M. HEIDEGGER, L'origine
de l'Oeuvre d'Art, in Chemins qui ne inanent nulle
part (trad. de Holzwege por W. BROKMEIER), Paris, Gallimard ,
1976, p. 30.99 H-G. GADAMER, o.c. p. 143 e ss.100 Ibid. pp.
149-150.101 M. HEIDEGGER, Acheminement vers Ia parole (trad. de
Untenvegs zur Sprache
por J. BEAUFRET, W. BROKMEIER e F. FEDIER), Paris, Gallimard,
1976. p. 143.
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suspende a sua existncia comprometida no quotidiano, fazendo-o
entrarnum outro espao, o do jogo 102. E certo que o fascnio que o
jogoexerce sobre o jogador parece ditado s pelas suas regras , de
tal modoque, embora o jogador sinta "atraco e fascnio", parece que
nada a hde sentimento, de prazer e dor. Mas s aparentemente assim.
Porque,de toda a evidncia, no se trata de ficar preso ao jogo como
os corposesto presos uns aos outros pela gravidade. A atraco de que
se trata aquino a atraco fsica, que do ponto de vista do sentimento
nada ; aocontrrio, nada tem de fsico (ou daquilo que desta maneira
se quer dizer)e toda a sua essncia est no prazer e na dor. Ou seja,
o objecto estticocontinua a ser, em t;adamer, inteiramente
sentimento. Que este sejaentendido em termos subjectivos ou
objectivos, isso no tem qualquerimportncia; alis, na Hermenutica .
"subjectivo" e "objectivo" passa asignificar sobretudo "actividade"
ou "passividade" por parte do sujeito.O que importante, do ponto de
vista esttico, que o respectivo objectocontinua a ser sentimento
para uma contemplao, isto , como em Kant,um sentimento
desinteressado.
Tal como o continua a ser para Dufrenne e para Lpez Quints.O
primeiro, com efeito, parte 103 da separao da arte em relao aomundo
real. Separao, no s porque desde a Renascena ela
seinstitucionalizou como domnio prprio, como o domnio das Belas
Artes,mas tambm e principalmente porque a arte pe o mundo real
entreparnteses, construindo o seu prprio espao de liberdade 104.
Decerto,para no perder este mundo real; antes para falar dele
"enquanto grvidodo possvel", enquanto "ainda lastrado de imaginrio"
105. E justamenteneste quadro que entra o ncleo do seu pensamento.
Assim como "a tica v, ou pelo menos insuficiente , se no desemboca
no poltico", assimtambm "v a esttica, se s recomenda "esthese"
prazeres refinadose no denuncia a fealdade do mundo social" 106. A
funo do esttico assim , claramente, o tico-poltico. E o meio
poderoso que ele tem parao realizar precisamente o prazer "vivo e
intenso" que o constitui, tantoao nvel da fruio como da criao
107.
102 H-G . GADAMER , o.c. p. 144.103 Utilizaremos como texto de
base do autor da j clssica Phnomnologie de
l'erprience esthtique ( 1. L'objet esthtique . 11. La perception
esthtique , Paris, 1953) oartigo : Vie de l'art, art de Ia vie,
publicado na Encyclopdie Philosophique Universelle.1. L' Univers
Philosophique , Paris, PUF, 1989, pp. 648 - 655. A sua grande obra
nestedomnio especfico , como sabido , Art et politique , Paris.
UGE, 1974.
101 Art . cit. p. 648.105 Ibid . p. 649.106 Ibid . p. 651.117
Ibid. p. 651.
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Importa, contudo, perceber como se faz esta articulao entre
oesttico e o tico-poltico. Porque h muitos modos, e j vimos
justamenteo de Schiller, no qual o esttico s prepara o poltico
enquanto se constituicomo um mundo prprio e, portanto, no qual
acaba efectivamente porhaver uma certa reduo do tico-poltico ao
esttico. Em Dufrenne, ascoisas no se pem desta maneira. Ele recusa,
como Souriau, "todo oesteticismo" 101. E mesmo mais: ele no quer
ficar at ao simples nveltico justamente de um Souriau ou de um
Gilson. Ele quer o nvelpoltico: "o sujeito moral deve ter o cuidado
do outro"; "trabalha na tuasalvao, sim, mas trabalhando na salvao
dos outros" 109. E, assim, preciso que a arte deixe os altos
lugares em que se instalou e venhareintegrar o quotidiano; preciso
que a "vida da arte", no seu mundoretirada aps a Renascena, se
transforme na prpria "arte da vida" 110.Como?
Dufrenne enumera alguns pontos. Em primeiro lugar, assinala o
quea escola de Frankfurt chama a funo crtica da arte: "mesmo quando
acrtica no explcita, basta que a obra abra uni mundo outro
parasensibilizar aqueles que, abrindo-se a ela, so ainda capazes de
vibrarperante o que de feio, de absurdo, de oprimente ou de
deprimente h noreal" 111. Depois, ela provoca o prazer, e o prazer
" j subversivo", poisque "arranca o indivduo morosidade do mundo
administrado e oreconcilia uni momento consigo prprio, com o seu
semelhante e at como naturante que o naturado oculta ou perverte"
112. Em terceiro lugar,alguma arte pode ser, ela prpria, tica e
poltica. o caso da ginstica,da equitao, da esgrima, por um lado, e
da dana, do canto, dos ritosdas boas maneiras, por outro. O
primeiro conjunto (que bem merece onome de arte, posto que nos
admiramos quando assistimos a essesespectculos) cultiva o corpo do
homem e o primeiro domnio de si; osegundo (Dufrenne pensa na "dana
campesina e no no ballet") cultivaj as relaes sociais e completa o
domnio de Si 113. As prprias artesplsticas, a escultura, a pintura
e o desenho, aparentemente habitando nomundo das nuvens, desligadas
do real, no seriam "um luxo" mas teriampor funo "fazer do homem o
espectador das suas prprias tempestades"e, dessa maneira, de ele
cultivar - repetidamente, persistentemente - o seuprprio ideal de
homem 114 Mas Dufrenne no pra ainda aqui. Ele vai
108 Ibid. p. 650.109 Ibid. p. 650-651.110 Ibid. P. 650.111 Ibid.
p. 651.112 Ibid. p. 651.113 Ibid. p. 651.114 Ibid. p. 651.
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108 J. A. Encarnao Reis
mesmo ao ponto de atribuir arte um papel activo de colaborao
nessa"mudana dos costumes, dos comportamentos, das opinies",
quepossibilitar um dia "a vinda de um novo Ado num novo mundo" e
quepermitir, por desnecessrio, o "fim do poltico": atravs do seu
carcter"ldico", ela pode libertar o indivduo do constrangimento
quotidiano,situando-o num espao de jogo onde sero possveis a
"imaginao"(para a abertura a novas possibilidades), a
"sensibilidade" ("ao que h deintolervel na misria e no sofrimento
dos outros") e a "utopia"; "semarte", escreve, "no h utopia; ela
que liberta no homem as capacidadesdo sentimento e da imaginao"
115. E concretiza at, de algum modo, oque a nova arte deve ser.
"Popular", antes de tudo. O que no quer dizer"de massas": o
indivduo irredutvel. Antes quer dizer que os artistasno so s os que
saem das Escolas de Belas Artes mas todo e qualquerindivduo do
povo; Dufrenne fala inclusivamente no "desenvolvimentoactual dos
pequenos servios e no retorno ao artesanato". E, depois, queseja
mesmo uma arte "da vida", que a impregne, "que se transporte paraa
praxis quotidiana a prpria prtica da arte" 116. Que as casas
seconstruam "para habitar", como os "habitantes paisagistas" que
arranjamo seu jardim. "No se pode imaginar que a cumplicidade
aprendida numarepresentao teatral ou a fraternidade experimentada
nos grupos demsica popular se transfiram para as relaes quotidianas
(...) e que enfimde algum modo o trabalho se transforme em jogo?"
117 Ento o homem -para invocarmos Hlderlin - poder "habitar
poeticamente o mundo", isto, transformar a vida num espao de jogo,
onde o prprio trabalhadorurbano poder "habitar poeticamente o seu
subrbio (...) e mesmo a suafbrica" 118
No se trata, pois, no projecto de M. Dufrenne, de criar um
mundoesttico prprio, que depois, de algum modo, seria posto ao
servio dotico e do poltico, mas de trazer o esttico para os prprios
domnios dotico e do poltico e, a, no s de transformar a realidade
humana emtais domnios mas tambm de a adornar.
E, neste quadro, Lpez Quints, enfim, no s atribui ao
estticomenos valor de fim e mais valor de meio, mas ainda, mais do
que opoltico, interessa-lhe o tico, o metafsico e o religioso.
Isto,evidentemente, para alm de o seu objecto esttico continuar a
pr-se emtermos de prazer e contemplao. o que nos diz expressa e
115 Ibid. pp. 651-652.116 Ibid. pp. 652-653.117 Ibid. pp.
653-654.118 Ibid. p. 654.
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A Funo do Esttico 109
sistematicamente na sua recente obra A experincia esttica e o
seu poderformativo, dedicada, como o ttulo de resto sugere , ao
tema em apreo 119Com efeito, tratando sobretudo da experincia
esttica na arte, diz logono Prlogo: "Se autonomizo o agrado que me
produz uma obra, fico-mea meio caminho na contemplao da obra
(...)". Mas, "se tomamos oagrado como sinal da presena de um valor
em princpio oculto, mas joperante, a experincia esttica (...)
realiza um trabalho mais fundo (...),adentra-nos no mundo que os
artistas plasmam nas suas obras , ensina-nosa considerar o sensvel
no como uma barreira (...) mas como um lugarvivo de presena (...),
ponto luminoso de vibrao das mltiplas realidadesque nutrem a nossa
vida pessoal" 121, de que fazem parte, e at com par-ticular realce,
os valores ticos e religiosos 121. O objectivo do autor nestaobra
justamente mostrar como a experincia esttica pode ser "exem-plar"
para as demais experincias valiosas do homem - da gnoseolgica
religiosa - e, portanto, como ela encerra um valor de formao
integralpara ele, que de modo nenhum dever ser desaproveitado
122.
Para compreendermos bem o pensamento do autor, contudo,
precisorecuar s suas primeiras grandes obras, nas quais elabora os
grandesconceitos. A meta eliminar a contraposio de excluso mtua
entresujeito e objecto, racional e arracional, de modo a chegar ao
que elechama a realidade "super-objectiva" - o objectivo per
eminentiam - queimplica ao mesmo tempo o subjectivo e o objectivo,
o logos e o pliatos,"como energias que s devem conceber-se
potenciando-se mutua-mente" 123. Para isso, cria o mtodo
"analctico", isto , de "dialcticaascendente", em que um domnio
"superado" por outro ao modo daAufllebung hegeliana, e em que a
realidade, mais do que constituda por"coisas", constituda por
"relaes", por "espaos de jogo", por
119 A. LPEZ QUINTS, La experiencia esttica y su poder formativo
(EEPF),Estella, Editorial Verbo Divino, 1991. -- Prof. de Esttica
na Universidade Complutensede Madrid, Lpez Quintis autor de uma
obra de grande flego (vasta pelos temas e pelasespcies publicadas,
de que esta a vigsima terceira), conhecedora , informada e
origi-nal. Embora dominantemente construda a partir da perspectiva
esttica, ela abarca todosos domnios da filosofia: a gnoseologia , a
metafsica , a antropologia, a tica, a religio.Devem realar-se:
Metodologa de lo suprasensible, 2 vols. Madrid, 1971 (1963);
Haciaun estilo integral de pensar, 3 vols . Madrid , 1967-70: I.
Esttica; El tringulohennenutico, Madrid, Editorial Catlica, 1975;
Cinco grandes tareas de la filosofiaactual, Madrid. Gredos,
1977.
120 A. LOPZ QUINTS, EEPF, p.7.121 Ibid. logo na p. 12, em muitos
passos no decorrer da obra, e depois no ltimo
cap. pp. 250-264.122 Ibid. pp. 12 e 215-216.123 Cf. J. PLAZAOLA,
o.c. p. 249.
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110 J. A. Encarnao Reis
"mbitos", que permitem ao homem a passagem dinmica de unsdomnios
aos outros dessa mesma realidade. As categorias implicadasneste
processo so, assim , as de imediatidade e distncia, as
quais,cuzando-se mutuamente , do os diferentes modos de presena.
Nestesentido, fala na "intuio intelectual imediato-indirecta" 124,
na qual, porexemplo, eu entro indirectamente no mundo das alegrias,
das tristezas,das vivncias do outro atravs do seu aparato sensvel
comportamental elingustico, mas entro imediatamente, e tanto que
nos acontece muitasvezes no sabermos a cor dos olhos da pessoa com
quem estivemos aconversar uni bom bocado 125. Do ponto de vista
esttico, essas trscategorias fundamentais - o "tringulo
hermenutico", como lhe chama- articulam-se em termos da
imediatidade do contacto sensvel e dadistncia dos valores, as
quais, cruzando-se, do a presena damanifestao do supra-sensvel
atravs do sensvel, convertendo-se esteltimo, desta forma, no lugar
de vibrao do supra-sensvel 126. Se a istoacrescentarmos que o homem
j no como o animal , que estumbilicalmente preso s coisas do seu
meio, mas ao contrrio j est livredelas e por isso, para se
realizar, tem de se "relacionar com elas", jum "ser de encontro",
teremos dito o essencial: a realizao do homems pode processar-se
por "imerso criadora"; s assim ele acolhe o quelhe alheio e mesmo
heternomo, e o integra no dinamismo da sua vida,de modo a
"realizar-se criadoramente" 127, com o prazer que acompanha(desde
Aristteles) toda a realizao humana 128
Ora, neste contexto que entra a experincia esttica, e sobretudo
aexperincia musical, no s do caso conhecido de G. Marcel, mas
doprprio autor, que ele mesmo um notvel intrprete musical. Quandoo
intrprete comea a estudar a obra, esta -lhe estranha, quer ao
nvelda partitura quer ao nvel do instrumento . Atravs dos ensaios,
vaiadquirindo liberdade, at que se sente "invadido pela obra,
qualconfigura; sabe-se plenificado por uma realidade que no
existiria se eleno a afirmasse; sente-a vibrar em si como algo
prprio, como uma vozinterior; (...) mas ningum est mais consciente
que ele de que no sua,de que lhe transcendente. Neste sentido,
distinta dele, mas nodistante, nem estranha , antes ntima . O
intrprete domina a obra ao
124 Desde a obra: A. LPEZ QUINTS, Metodologia de lo
Suprasensible, ed. c.p. 419 e ss.
121 ID. EEPF, pp. 112-113.126 ID. Metodologia de to
suprasensible, ed. c. H. pp 87-88.127 ID. EEPF, pp. 12-13, 108-109
e outros.128 Ibid. p. 24. Para a aluso a Aristteles, Eth. Nic. X,
4.
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A Funo do Esttico 111
deixar-se dominar por ela" 129. Est aqui, segundo o autor, o
essencial daexperincia esttica : uma "imerso activo -receptiva
(...) numa reali-dade apelante (a obra musical) que convida o
intrprete a assumi-lacomo princpio da sua actividade artstica". A
contraposioestranheza-intimidade, heteronomia-autonomia,
necessidade-liberdade assim superada e de tal modo que, em vez de
se perder o homem noheternomo, ao contrrio enriquece-se, realiza-se
no sentido maisprofundo da palavra. por isso que a experincia
esttica pode ser o"modelo" das demais experincias valiosas do homem
, nomeadamente agnoseolgica, a metafsica, a tica e a religiosa;
pode-se assim, diz LpezQuints em relao ltima, ter a experincia do
"acolhimento de umamensagem revelada e do Ser supremo, que ao
princpio distinto edistante do homem e mais tarde se lhe converte
em ntimo, "mais ntimoque a prpria intimidade" (Sto. Agostinho)"
130. E ao analisar aimportncia que a experincia musical teve na
obra filosfica de G.Marcel, o autor sublinha o carcter de
"universalidade concreta, eficiente,inesgotvel" que por exemplo uma
Nona Sinfonia tem sobre todo o seuintrprete, de tal modo que no foi
de outra maneira que justamenteMarcel "se abriu convico, para ele
decisiva, de que a msica constituium "testemunho ontolgico",
porquanto revela a face invisvel dovisvel"; "cair na conta disso
foi para Marcel uma torrente de luz, emordem compreenso do que
significa o "ser" para o homem" 131.
Tal , pois, para Lpez Quints, a essncia da experincia
esttica.Trata-se da participao do homem numa realidade valiosa,
fazendo-oentrar num espao de jogo em que se desenrola uma
verdadeira criao.E o mesmo processo se passa nomeadamente nos
domnios do tico e doreligioso. Mas, quer j porque a experincia
esttica "desinteressada",renunciando assim vontade de domnio, quer
sobretudo porque nela sev "com exemplar clareza" o modo de "nos
abrirmos a realidadesdistintas, distantes e alheias, sem nos
alienarmos" - que o problemabsico da realizao ou formao humana -,
ela o paradigma, o modeloque deve ser seguido para a completa
formao humana 132. Se tal se fizer,"o sentimento de gozo e
felicidade" que acompanha todo o esttico 133 -e que, como diz
belamente Bergson, " sinal de que a vida triunfou" -poder tambm vir
a experimentar-se em relao "ao bom, ao verdadeiro
129 A. LPEZ QUINTS, EEPF, pp. 15 e 252-253.130 Ibid. p. 15.131
Ibid. pp. 81-83.132 Ibid. pp. 23-25.133 Ibid. pp. 165, 166,
168.
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112 J. A. Encarnao Reis
e ao santo. Ajudar a descobrir esta vizinhana enigmtica das
experinciashumanas mais altas", conclui o autor, " a maior
contribuio da estticapara a tarefa educativa do homem" 134. Tal
como em Schiller, tambmpois aqui "o homem s verdadeiramente homem
quando joga". Mas emLpez Quints o jogo tem um outro sentido e
integra- se numa outraperspectiva. Aqui o "jogo" significa que o
homem um "ser deencontro" 135 e o esttico, em vez de ser no fundo a
grande realizaohumana , ao contrrio sobretudo o exemplo, o modelo,
o caminho paraa experincia filosfica num sentido completo, isto ,
nomeadamente paraa experincia tica e religiosa 1311. Trata-se, no
caso de todas elas, deexperincias diferentes e, como tais,
independentes 137. Mas se se pe ahierarquizao - e, sem dvida, no
pode deixar de se pr - os grandesvalores so os da tica e da religio
131. A prpria filosofia e a prpriateologia fazem-se poesia na
Divina Comdia de Dante e nos poemas deS. Joo da Cruz: parece ser
este o ideal para Lpez Quints 139. Comoquer que seja, porm, o autor
termina invocando as experincias do nadade Heidegger, do trancender
de Jaspers e do dever ser de Fichte, e acompar-las experincia da
interpretao musical 140, para concluir que"tanto na experincia
esttica como na tica e na metafsica [s]procuramos algo em virtude
da fora que irradia da realidadeprocurada" 141
5. Concluso
Donde parece resultar a concluso seguinte. Em primeiro lugar,
nosendo o homem constitudo por um s domnio nem por
domniosestanques, mas por uma rede deles, o esttico articula-se
sempre, destaou daquela maneira, com todos os outros domnios. Mas,
e em segundolugar, sendo sempre esse mesmo esttico - para se
distinguir dos outrosdomnios - prazer e contemplao, jamais se perde
pura e simplesmente,por mais que se ponha ao servio deles. Alis,
nesta articulao, o prprio
134 Ibid. p. 24.135 Ibid. p. 24.136 Ibid. p. 250.131 Ibid. p.
226.138 Ibid. p. 234.139 Ibid. p. 235.140 Ibid. pp. 250-258.141
Ibid. p. 257.
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A Funo do Esttico 113
esttico serve sem dvida - acabamos de o ver em Lpez Quints -
descoberta dos outros domnios. Mas a prpria descoberta
dessesdomnios (e a sua posterior prossecuo) sempre se entendeu -
desdeAristteles, e Lopz Quints naturalmente no o esquece - como a
origemda nossa verdadeira felicidade, do nosso verdadeiro prazer. E
parece ento- como um T. Gautier o diz no clebre prefcio de
Mademoiselle deMaupin - que afinal o prazer "a finalidade da vida e
a nica coisa tilno mundo" 142; ou, como de outra maneira o diz
Nietzsche na "Canodas doze badaladas" do Zaratustra, que s o prazer
"quer a eternidade,a profunda eternidade". No entanto este um
problema que s um exameradical e despreconcebido das teorias
histricas acerca da constituioontolgica do prazer - a comear pela
aristotlica na tica a Nicmaco(VII, 11-14 e X, 1-5) - pode
resolver.
142 T. GAUTIER, Mademoiselle de Maupin , Bruxelles, 1837, p.
44.
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