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[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano IV - nmero 13 -
teresina - piau - abril maio junho de 2012]
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O SURREALISMO NO BRASIL:
A POESIA E A PINTURA EM PNICO EM JORGE DE LIMA
Luciano Marcos Dias Cavalcanti2
RESUMO: Este texto pretende examinar o recurso da montagem e do
onirismo, procedimento esttico proveniente do surrealismo,
utilizado por de Jorge de Lima na confeco de suas fotomontagens e
em sua obra potica. PALAVRAS-CHAVE: Montagem. Surrealismo. Jorge de
Lima. ABSTRACT: This text aims at examining the resource of the
poetical assembly and the onirism, aesthetic procedure proceeding
from the surrealism, used for of Jorge de Lima in the confection of
its collage and its poetical workmanship. KEYWORDS: Assembly.
Surrealism. Jorge de Lima.
A presena do Surrealismo no Brasil oferece algumas controvrsias.
Existe
uma tendncia crtica que considera que esta expresso artstica no
teve uma
importncia real no cenrio literrio brasileiro. Apresentando-se
de maneira dispersa
por poucos poetas, apenas registrada pela utilizao de algumas
tcnicas
surrealistas para composio de seus poemas. Portanto, sem a
consistncia de uma
escola ou tendncia esttica significativa. Esta compreenso do
surrealismo no
Brasil se configura principalmente pelos pensamentos crticos de
Jos Paulo Paes e
Antonio Candido. De outro lado, h os que acreditam que a presena
do Surrealismo
no Brasil foi consistente e seus maiores representantes, na
poesia, seriam Murilo
Texto referente a pesquisa de ps-doutorado, em andamento,
denominada Mito e poesia na lrica final de Jorge de Lima, junto ao
departamento de Literatura/UNESP-Araraquara financiada pela FAPESP.
2 Luciano Marcos Dias Cavalcanti, Doutor em Teoria e Histria
Literria IEL/UNICAMP, ps-
doutorando UNESP/Araraquara. E-mail: [email protected].
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Mendes e Jorge de Lima. Esta tendncia crtica formada
principalmente pelo
artista e crtico Srgio Lima.
No parecer de Antonio Candido, em seu ensaio Surrealismo no
Brasil, esta
tendncia artstica e outros movimentos afins podem ser
considerados ndices de
uma crise de evoluo na histria intelectual do ocidente, na qual
o Brasil
participou por contgio.
Da a atitude surrealista ser, entre ns, nas suas raras e
imperfeitas manifestaes ortodoxas, apenas uma atitude. O que h de
fecundo e de permanente nas pesquisas do surrealismo francs,
encontra-mo-lo nos nossos grandes poetas, diludo na realidade mais
autnoma da sua poesia. (...) No Brasil o surrealismo, alm de
ginstica mental, s pode ser compreendido como uma contribuio
tcnica, nunca como uma concepo geral do pensamento e da literatura,
maneira porque cabvel na Europa. (CANDIDO, 1992, p.105).
Aproximando-se desta perspectiva crtica, Jos Paulo Paes nega a
existncia
do Surrealismo no Brasil. Ele observa a questo de forma irnica e
mesmo cmica,
afirmando que sobre o movimento, em sua expresso literria,
quase se pode dizer o mesmo que d batalha de Itarar: no houve. E
no houve, explica-o uma frase de esprito hoje em domnio pblico,
porque desde sempre fomos um pas surrealista, ao contrrio da Frana,
cujo bem-comportado e incurvel cartesianismo vive repetidamente a
exigir terapia de choque como a poesia de Baudelaire, Lautramont e
Rimbaud, os manifestos de Tzara e Breton, o romance de Cline e
Gent. (PAES, 1985, p. 99).
Do mesmo modo que pensa Antonio Candido, Jos Paulo Paes
considera
que o Surrealismo marcou presena no Brasil atravs da absoro, por
alguns
poetas, de apenas alguns elementos formais presentes em suas
obras. Nesse
sentido, o crtico faz uma lista de escritores brasileiros que,
em seus textos,
apresentam tais caractersticas. A enumerao vai dos poetas
romnticos aos
modernistas: Bernardo Guimares, Augusto dos Anjos, Adelino
Guimares (estes
antes mesmo do advento do Surrealismo), Mrio de Andrade, Lus
Aranha, Prudente
de Moraes Neto (j com influncia de Breton), Joo Cabral de Melo
Neto (em Pedra
do sono) e Manuel Bandeira, que comps em sonho Palindia e O
Lutador, que
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segundo o prprio poeta, surrealisticamente, de maneira
inapreendida na franja da
conscincia apresentando um carter hermtico at mesmo para seu
prprio autor.
(PAES: 1985, p.111). Para o crtico, a influncia surrealista bem
mais perceptvel
na poesia brasileira atravs das criaes de Ismael Nery e Murilo
Mendes2.
Contrria a esta perspectiva apontada, Srgio Lima, em seu
ensaio
Surrealismo no Brasil: mestiagem e seqestros, afirma que o
surrealismo est
presente no Brasil desde os anos 20. Para o crtico, essa situao
demonstrada a
partir das
poesias e textos publicados; exposies e revistas o veicularam,
alm de ser publicada sob forma de manifesto uma declarao do direito
do sonho em sintonia direta com os propsitos do movimento;
exerccios e escrituras automticas, nos moldes daqueles praticados
no centro parisiense; tentativa de lanamento de uma revista
exclusiva do movimento em 1926 (Pedrosa, Xavier e Bento); edio de
obras explcitas. Trs livros apreendidos (Sinal de Partida, Revelaes
do prncipe do jogo e O alimento negro; Pedrosa, F. ndio do Brasil e
B. Pret) e destrudos pelos rgos policiais, o retorno pelo selvagem
que marcar profundamente toda uma vertente do perodo modernista, do
inferno verde (Euclides da Cunha e Alberto Rangel) s pesquisas de
Rego Monteiro, passando pelo Pau Brasil, Antropofagia (Tarsila e o
descobrimento de Rousseau: primitivismo o onirismo puro, dir
Bachelard), Oswald, Bopp, Pagu; o Corao verde e os militantes da
Verde (Rosrio Fusco se debater com Antonio Candido nos anos 40);
logo outros mais, como as adeses de Jorge de Lima, Murilo Mendes,
Ccero Dias, Hildebrando Lima, etc.; e, no nos esqueamos, Benjamin
Pret e Elise Houston (mais Andr Breton tambm presente na Revista de
Antropofagia com versos). (LIMA, 1999, p. 309).
No parecer de Srgio Lima o que ocorrera no Brasil um seqestro
do
Surrealismo, construindo uma espcie de ausncia do movimento
atravs de
envolvimentos e vnculos com as expresses artsticas
brasileiras.
podemos dizer o contrrio do consenso geral ou da tese errnea de
que no houve surrealismo no Brasil houve sim, tanto o surrealismo e
sua presena enquanto movimento como manifestaes voltadas para a
viso proposta pelos surrealistas, como atividades coletivas ou
grupais (anos 20), como formao de
2 Como o prprio poeta confessa: Ns todos ramos delirantemente
modernos, queramos fazer
tbua rasa dos antigos processos de pensamento e instalar tambm
uma espcie de nova tica anarquista (pois de comunistas s possumos a
averso ao esprito burgus e uma espcie de nova sociedade, a
proletria, estava nascendo). Nessa indeciso de valores, claro que
saudamos o surrealismo como o evangelho da nova era, a ponte da
libertao. (MENDES, 1996, p.25).
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dois grupos de militantes do movimento internacional (anos 60 e
90), com a formao de parcerias iguais s de Moro e Wesphalen, como
revistas, e mesmo uma mostra do movimento: a 13 Exposio
Internacional do Surrealismo, em So Paulo, agosto-setembro de 1967.
Como houve sim a ausncia de uma reflexo sobre o surrealismo e suas
implicaes primeiras. (LIMA, 1999, p. 320).
Valentin Facioli contribui com este debate apresentando a ideia
de que o
Brasil e a Amrica Latina apresentavam condies muito favorveis
para uma
relao profcua com o surrealismo organizado e combatente,
pois no s sobreviviam (e sobrevivem) nesta regio culturas
indgenas e africanas, por exemplo, que se expressam em suas formas
prprias margem do campo erudito e cuja produo no presidida pela
racionalidade liberal capitalista do mercado artstico. Tnhamos e
temos elementos culturais e prticas vitais surrealistas que parecem
continuar vivos e que podiam ter imantado e feito proliferar uma
larga produo surrealista no campo das artes eruditas. (FACIOLI,
1999, p. 294).
Para o crtico, mesmo o Brasil apresentando condies favorveis de
contato
com o Surrealismo, ocorre, nos anos 20 e 30, conflitos e
contradies sociais e
culturais acrescido pela poltica nacional populista do Estado ,
causando um
rompimento com o surrealismo, por se caracterizar contrria ao
ambiente constitutivo
destas duas dcadas. (FACIOLI, 1999, p. 304-5).
Jorge de Lima um poeta reconhecidamente mltiplo, conforme atesta
sua
produo artstica em geral. Percorreu vrios caminhos em sua
atividade literria: poeta,
romancista e crtico. Alm de sua atividade literria tambm foi
mdico, vereador da
Cmara do antigo Distrito Federal e professor de Literatura
Brasileira na Universidade do
Brasil. Soma-se a estas, a sua atividade de pintor, escultor e
de operador de
fotomontagens. Uma faceta de grande importncia, pois est
intrinsecamente ligada a
uma das tcnicas fundamentais de sua obra potica final, a
montagem e/ou colagem,
como tambm ao misticismo, que o levou ao terreno da fantasia, do
sonho e do inslito.
A collage uma tcnica proveniente dos papiers colls cubistas, que
consiste em
aproximar duas realidades diferentes num plano que no lhes era
prprios, provocando
uma imagem inusitada, diferenciada do corriqueiro e do lgico;
prxima, portanto, ao
mundo do sonho. De acordo com Srgio Lima, o termo collage indica
um modo preciso e
diferente daquele conhecido como colagem:
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o termo collage, como designao de expresso determinada, foi
colocado em circulao por Max Ernst desde 1918/19. Antes, como
material apenas e num sentido diverso, tanto Picasso como os
cubistas e os futuristas j haviam utilizado o material colado em
suas obras (alis, denominavam isto de papiers-colls, pois a
expresso de Ernst s foi surgir aps Dada), pem sempre em torno de
material, com preocupaes grficas ou de textura. E no no sentido
como na expresso collage, inaugurada assim por Max Ernst nas artes
plsticas. (LIMA, 1995, p.358).
Em um processo anlogo colagem surrealista, no Brasil, Jorge de
Lima praticou
o que aqui se denominou de fotomontagem. O seu livro Pintura em
Pnico (1943),
prefaciado por Murilo Mendes, produziu grande interesse por
parte de alguns crticos,
como exemplar o caso de Mrio de Andrade e do prprio Murilo
Mendes. O primeiro, de
forma entusiasta, associou a fotomontagem ao jogo ldico da
brincadeira infantil e
explicou o seu processo de criao.
A fotomontagem parece brincadeira, a princpio. Consiste apenas
na gente se munir de um bom nmero de revistas e livros com
fotografias, recortar figuras, e reorganiz-las numa composio nova
que a gente fotografa ou manda fotografar. A princpio as criaes
nascem bisonhas, mecnicas e mal inventadas. Mas aos poucos o
esprito comea a trabalhar com maior facilidade, a imaginao criadora
apanha com rapidez, na coleo das fotografias recortadas, os
documentos capazes de se coordenar num todo fantstico e sugestivo,
os problemas tcnicos da luminosidade so facilmente resolvidos, e,
com imensa felicidade, percebemos que, em vez de uma brincadeira de
passatempo, estamos diante de uma verdadeira arte, de um meio novo
de expresso! (ANDRADE, 1987, p.09).
Murilo Mendes caracterizou o processo da feitura da fotomontagem
como desforra
contra a restrio e a ordem, tambm a associando infncia.
A fotomontagem implica uma desforra, uma vingana contra a
restrio de uma ordem do conhecimento. Antecipa o ciclo de
metamorfoses em que o homem, por uma operao de sntese da sua
inteligncia, talvez possa destruir ao mesmo tempo. Liberdade
potica: este livro respira, a infncia d a mo idade madura, a calma
e a catstrofe descobre parentesco prximo ao folhearem um lbum de
famlia. (MENDES, 1987, p.12).
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Portanto, a construo da fotomontagem est associada combinao
dos
elementos escolhidos pelo poeta e no apenas na eleio de um
elemento complexo
isolado por ele. Dessa forma, o fotomontagista tem em suas mos
uma tcnica de forte
criao imagtica, a partir da unio de elementos muitas vezes
simples que por causa de
sua combinao se tornam inusitados, fornecendo uma atmosfera
mgica, muitas vezes
enigmtica e at mesmo inslita o que nos d a sensao de estar em
contato com
uma imagem nova.
Otto Maria Carpeaux, em introduo a Obra Potica de Jorge de Lima,
organizada
por ele, dizia que quando as palavras j no pareciam capazes de
exprimir tudo aquilo
que o poeta [Jorge de Lima] pretendeu dizer, recorreu ao recurso
da fotomontagem
(CARPEAUX, 1949, p.VII). Acrescenta-se a esta perspectiva uma
outra, a de Murilo
Mendes, que considerava o procedimento da fotomontagem como uma
forma de
resistncia ao mundo presente: As catacumbas marinhas contra o
despotismo, Morta a
reao, a poesia respira, alm de outras, so imagens de um mundo
que resiste
tirania, que se aparelha contra o massacre do homem, o
aniquilamento da cultura, a arte
dirigida e programada. (MENDES, 1987, p.12).
O uso da fotomontagem feita por Jorge de Lima o associa ao
Surrealismo,
perspectiva esttica que tambm lhe fornece uma tcnica que d um
respeitvel suporte
para construo de sua poesia. Dessa forma, notada a influncia, no
poeta, de
significativos autores surrealistas como De Chirico (com suas
paisagens inslitas e
misteriosas, seus manequins, arcadas e pirmides), Max Ernst (e
suas colagens),
Salvador Dal (com suas imagens misteriosas e de subverso do
tempo convencional
com seus relgios maleveis) e como apontou Murilo Mendes, de La
femme 100 Ttes,
motivadora das montagens, e as leituras de Freud e Jung, que
apontam para a criao
desse mundo onrico na obra limiana.
importante lembrar que as fotomontagens de A pintura em Pnico,
publicadas
em 1943, foram, em sua grande parte, compostas trs a quatros
anos antes. Isto quer
dizer que foram realizadas em plena Segunda Guerra Mundial.
Diante disso, mais que
uma simples tcnica artstica, a fotomontagem pode ser considerada
uma expresso da
vida moderna fragmentada, mltipla e catica de uma sociedade
esfacelada pela guerra.
Soma-se a isso, o incio das crises depressivas pelas quais o
poeta passara no final dos
anos trinta. No difcil perceber essas intensas perturbaes que
passam tanto o poeta
quanto o mundo nas vrias fotomontagens do livro, assim como em
algumas de suas
legendas:
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Possivelmente pelo terror das futuras hecatombes.
A poesia abandona a cincia sua prpria sorte.
As coisas comeam a engordar, suando dentro de certo ar de
luxria.
Pois sempre desejvamos a paz, a paz branca dentro de um saturno
dirio.
Ser revelado no final dos tempos.
Ao meio dia, dentro da confuso luminosa voavam seres.
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O comeo da catequese.
A inveno da polcia.
O anunciador da catstrofe.
A poesia de uns depende da asfixia de outros.
Eis o clice de fel.
O Julgamento do tempo.
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A presena do surrealismo com seu pressuposto bsico da repulsa ao
realismo
positivista, que, para Breton, significava um empecilho a
qualquer evoluo intelectual e
moral, prendendo o artista ao conhecido e ao classificvel,
empobrecendo o carter
imaginativo da arte que provm dos sentimentos perfeitamente
visvel tanto nas
fotomontagens quanto na lrica final de Jorge de Lima. Para se
afastar do reino da
lgica, que nos governa atravs do racionalismo fundamentado pela
utilidade imediata e
voltado para o senso comum, os surrealistas apontam as portas
dos sonhos. Para estes,
o onirismo possibilitaria uma ampliao do conhecimento por no
estar preso
estritamente ao racional. Nesse sentido, a imaginao ganha
reconhecimento e garante o
aprofundamento da mente, antes aprisionada pela racionalidade.
Para Breton,
inaceitvel que o onrico, parte to importante da atividade
psquica, tenha chamado to
pouca ateno; o sonho e a noite no podem ficar reduzidos a um
parntese.
Todo empenho tcnico do surrealismo organiza-se em multiplicar os
acessos de
penetrao nas camadas mais profundas da mente. para ressaltar a
assimilao do
sonho vida e arte que Breton conta uma histria do poeta
Saint-Pol-Rol, que
diariamente antes de adormecer mandava afixar um aviso porta de
seu solar de
Camaret: O POETA EST TRABALHANDO, da mesma forma, o terico do
Surrealismo
estabelece como ordem as palavras do poeta que mais inspirou o
movimento, Rimbaud:
Digo que preciso ser vidente, tornar-se vidente.
Parece razovel dizer que o sonho3 pode servir de instrumento
inspirador ao
artista que, posteriormente, d prosseguimento ao seu trabalho,
utilizando-se do
pensamento intelectual. Mas, talvez, um dos grandes servios
prestados pelo onirismo
literatura, como instrumento de criao artstica, est no fato dele
fornecer ao artista uma
espcie de liberdade (com o abandono, mesmo que provisrio, da
funo crtica s
vezes bloqueadora do ato da criao) e espontaneidade no esprito
criador.
3 especialmente a partir dos estudos de Freud sobre o sonho que
os surrealistas tomaram contato
com o mundo onrico. De acordo com a teoria freudiana, o sonho
constitudo, principalmente, por dois elementos: o contedo manifesto
(o que conseguimos contar) e o contedo latente (o que necessitamos
decifrar para interpretar o sonho uma espcie de chave para
compreendermos os significados do sonho) esse aspecto demonstra o
motivo pelo qual encontramos dificuldades na compreenso dos sonhos.
A sua caracterizao bsica encerra no sentido de que o sonho sempre a
realizao de um desejo, mesmo que aparentemente se apresente de
forma perturbadora ao sonhador. No seu sentido geral, as ideias
essenciais do onirismo para Freud podem ser resumidas em duas
palavras chaves: deslocamento e condensao, caractersticas
essenciais da imagem potica. Essas duas formas conectivas tpicas da
imagem onrica correspondem a um princpio agregador e ou
comparativo, prprios da metonmia e da metfora.
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Jorge de Lima um poeta que principalmente na sua lrica final
apresenta
contatos estreitos com caractersticas formais do surrealismo. O
poeta
constantemente solicitado quando se quer tratar do surrealismo,
sendo apresentado
de duas maneiras: como poeta caracteristicamente surrealista ou
que apresenta
fortes marcas dessa tendncia esttica.
bem provvel que a relao de Jorge de Lima com o surrealismo
provenha
tambm indiretamente de Ismael Nery, artista mltiplo e amigo de
Murilo Mendes
que viajou Europa e estabeleceu contato direto com Andr Breton e
Marc Chagall
em 1927. Fora ele que divulgara a Murilo Mendes as ideias
surrealistas que, por
conseguinte, tambm teriam chegado a Jorge de Lima. A dedicatria
de Tempo e
Eternidade, livro composto por Murilo Mendes e Jorge de Lima
depe a favor disso:
memria de Ismael Nery.
A figura de Ismael Nery se apresenta de forma singular na
cultura brasileira.
Nery era um artista incomum e de personalidade mltipla,
cultivava o gosto por
diversos campos artsticos e filosficos: a pintura, o desenho, a
arquitetura, a poesia,
a dana, a filosofia, a teologia. Ele foi o criador do
Essencialismo4 (termo cunhado
por Murilo Mendes) sistema filosfico religioso que nunca se
materializou de forma
organizada porque Nery no deixou nenhum sistema escrito e,
portanto, s temos
notcias atravs de textos esparsos, resumos e depoimentos sobre
ele. Basicamente
a doutrina essencialista fundamentada na abstrao do tempo e do
espao, na
seleo e cultivo dos elementos essenciais existncia, na reduo do
tempo
unidade, na evoluo sobre si mesmo para a descoberta do prprio
essencial, na
representao das noes permanentes que daro arte a
universalidade.
(MENDES, 1996, p.65).
O momento histrico por que passa a poesia no Brasil tambm
sentido na
mudana da perspectiva adotada por Jorge de Lima. Nos anos 40, h
no pas um
4 Assim Murilo Mendes apresenta a doutrina Essencialista:
Segundo o prprio Ismael, o sistema
essencialista era em ltima anlise uma preparao ao catolicismo.
Sabendo da indisposio existente, hoje, em geral, contra as idias
catlicas, resolveu Ismael apresent-las sobre outras espcies, a fim
de evitar o part-pris do interessado. No dia em que o iniciado se
tornar catlico dizia , o sistema essencialista no lhe adiantar mais
nada, pois ter sido conquistado um grau superior e definitivo. O
sistema essencialista, entretanto, servia muito para encurtar a
experincia dos homens. O mal do homem moderno consiste em fazer uma
construo de esprito dentro da idia de tempo. Ora, o tempo traz no
seu bojo a corrupo e a destruio. Deve o homem apegar-se a sistemas
que evoluem constantemente, porque baseados numa cincia incerta e
vacilante? No. Todas as experincias que tm havido at agora foram
teis. Todas as verdades sobre a vida j foram ditas, mas ainda no
foram organizadas. Sem a cincia da vida, ou o homem construir
inutilmente, ou ento ter que destru-la. O valor permanente e
definitivo, valor que o tempo no ataca, o trazido pelo Cristo.
(MENDES, 1996, p.48).
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grande interesse pelo onirismo ou pela chamada linguagem
noturna, como
notadamente percebida at mesmo na poesia de Joo Cabral de Melo
Neto, que
comps o seu livro Pedra do Sono e Consideraes do poeta dormindo.
nessa
dcada que Jorge de Lima publica o seu livro de fotomontagens
Pintura em Pnico
(1943) e Anunciao e Encontro de Mira-Celi, tambm de 1943, e o
Livro de
Sonetos (1948).
Em Anunciao e Encontro de Mira-Celi a criao potica de Jorge de
Lima
est intrinsecamente ligada inspirao (Mira-Celi a musa que
inspira o poeta) e
busca do sagrado. Mas tambm constituir uma relao profcua com a
esttica
surrealista, j que, como vemos no poema 30, o poeta se relaciona
com o mundo
noturno, o onrico e o fabuloso, propiciando imaginao a magia e a
inspirao:
Acontece que uma face alta noite vem juntar-se minha face.
Magia: ela penetra em meus lbios, em minha fronte, em meus olhos, e
eu no sei se a minha face ou se a face do meu sono ou da morte. Ou
quem dir? Se de alguma criatura composta apenas de face incorprea
como o sono, face de Lenora obscura que penetra em minha sala e do
outro mundo me espia.
Atrelado a este sentido, o sonho em Anunciao e encontro de
Mira-Celi
tambm apresentar o significado mais comum, o de esperana. Como
pode-se
notar no poema 3 .
H necessidade de tua vinda Mira-Celi: Milhares de ventos
virginais te esperam Atravs de sculos e sculos de insnia!
................................................................
Quando vires, as rvores ocas daro flores, e teu esplendor acender
pela noite os olhos entreabertos dos semblantes amados.
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Outro sentido importante relacionado ao ambiente onrico presente
em Mira-
Celi nos remete a uma ligao intrnseca entre sonho e poesia. No
poema 11, a
musa ser equiparada poesia.
Em tua constelao, vrias de tuas irms no existem mais, (melhor
fora que nunca houvessem nascido) desertaram de teus outonos,
Mira-Celi;
.............................................................
Apenas os teus sonhos nos povoam de poesia e o teu ressonar a nossa
terrena msica Alta noite despertas, doce Musa sonmbula readormeces
depois: explodem dios no mundo
...................................................................
preciso que acorde, grande Musa, esperada
O Livro de Sonetos, que pelo prprio ttulo se oporia esttica
surrealista
(pelo simples motivo de que os surrealistas nunca permitiram
qualquer forma pr-
estabelecida para a composio de uma obra de arte), estabelece a
relao com
esta esttica no que diz respeito a seu contedo imaginativo.
Assim, encontramos,
neste livro, temas como a loucura:
No procureis qualquer nexo naquilo que os poetas pronunciam
acordados pois eles vivem no mbito intranqilo em que se agitam
seres ignorados.
Da escrita por pulso, assim como o prprio modo de criao do
livro, feito em
estado de hipnagose.
Vereis que o poema cresce independente e tirnico. irmos,
banhistas, brisas, algas e peixes lvidos sem dentes veleiros
mortos, coisas imprecisas,
Nesse momento, talvez seja importante informar ao leitor um fato
biogrfico
que nos ajudar a pensar melhor sobre o processo de criao de
Jorge de Lima, e
que est intrinsecamente ligado forma de sua escritura noturna. A
composio de
Livro de Sonetos e Inveno de Orfeu se d em um momento de
recolhimento do
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poeta por causa de um esgotamento nervoso. Seguindo orientaes
mdicas,
Jorge de Lima se recolhe em uma clnica de repouso no Alto da Boa
Vista (que o
poeta significativamente denominava como seu bero), onde compe,
em dez dias
em estado hipnaggico 102 sonetos, sendo que 77 formam o Livro de
Sonetos e os
25 restantes aguardam a composio de Inveno de Orfeu para serem
includos
neste. O amigo e tambm mdico Jos F. Carneiro, que acompanhou
ativamente
esse momento, nos conta que Jorge de Lima, se levantando s vezes
de
madrugada, compunha de uma s vez trs, quatro, cinco sonetos.
No sei se seria do gosto do poeta a narrativa das circunstancias
que cercaro a produo desses sonetos. Limitar-me-ei a referir que
foram escritos em momento de grande angstia, quando seu autor
comeou a sonhar acordado, e a ver, diante de si, entre outras
coisas, o galo do Rosrio em Macei, um galo de orientao dos ventos,
que, Jorge de Lima achava belssimo e que muito ocupou sua imaginao
de criana. Tinha 7 anos e, segundo me disse, ia dormir com aquele
galo na memria. De dedo em riste um vereador petebista ameaava seu
adversrio udenista: Sr. presidente, todos nesta casa so
testemunhas.... Mas o presidente da cmara, via apenas, diante de
si, girando, o galo, o galo da igreja do Rosrio. E Celidnia. E
Elisa. Tambm a draga da praia de Pajuara. (CARNEIRO, 1958, p.
48-49).
Soma-se a isso a declarao do prprio poeta sobre a feitura de
Inveno de
Orfeu: Durante dois anos fui escrevendo o poema sem saber onde
ia chegar, de
quantos versos constaria, nem o que pretendia. Com a sua leitura
depois de
composto que verifiquei a sua inteno independente das minhas
intenes.(...)
Foi feito como criao onrica. (LIMA, 1958, p. 94). nessa direo
que o poeta
concebe sua poesia: Nenhum poeta, creio, constri com planta.
Isto prprio da
arquitetura. Depois de produzido o poema quem quiser que o
classifique ou etiquete.
O essencial que seja poesia. (LIMA, 1958, p. 97).
So inmeros os exemplos da perspectiva esttica surrealista em
Inveno
de Orfeu. No Canto I, estncia III, o poeta nos diz que pretende
contar uma histria
mal-dormida de uma viagem: Contemos uma histria. Mas que
histria?/ A histria
mal-dormida de uma viagem.. Esta histria se apresenta entre os
estados da viglia
e do sono; portanto, uma histria noturna e turbulenta, como est
bem caracterizado
pelo vocbulo mal-dormida sugerindo a representao do estado em
que seu
viajante se encontra. Ou seja, contada por um viajante que se
mostra em posio
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adversa do habitual: no est completamente em viglia, nem em
repouso, unindo,
assim, metaforicamente na construo de sua histria a imaginao
(caracterizada
pelo ambiente noturno) e o trabalho potico (caracterizado pelo
estado de viglia).
A estncia V, do mesmo Canto, nos mostra bem o lugar privilegiado
que
Jorge de Lima d imaginao em seu poema, sem ela a obra se
extinguiria. A
construo artstica, que caracteristicamente se utiliza do
trabalho para sua
elaborao, no h como negar este carter geral da obra de arte
soma-se, de
forma privilegiada, imaginao e ao sonho. O poeta tambm pede ao
escriba para
no se esquecer das pobres geografias, os nordestes, j
prenunciando os
elementos que o poema vai nos apresentar durante toda a sua
construo. Em
Inveno de Orfeu, o social e o imaginrio estaro presentes, juntos
a outras
variadas temticas. Desse modo, o poeta parece estar preparando
ou informando o
seu leitor sobre o que ele vai encontrar no seu poema.
Revela-se, no poema, a valorizao da imaginao quando o poeta pede
ao
escriba dessa viagem que no se esquea de contar ao lado do que
est aparente o
fictcio. Essa perspectiva ser empreendida em todo poema,
dando-lhe uma forte
marca imaginativa, que ser muitas vezes evidenciada nas imagens
surrealistas,
como se percebe no verso: faces perdidas, formas inumanas.. o
que tambm
est expresso no desejo de evaso do poeta de um mundo conturbado
e inabitvel,
representado, principalmente, pelo tempo presente vivenciado por
ele. Assim vemos
figurados nos versos: uns tempos esbraseados para pestes/e
muitos ossos tbios
chamuscados, ou como tambm revelam mais evidentemente este:
quereis fugir ao
mundo persignado,.
No esqueais escribas os somenos, as geografias pobres, os
nordestes vagos, os setentries desabitados e essas flores ptreas
antilhanas. H nesses mapas nmeros pequenos, uns tempos esbraseados
para pestes e muitos ossos tbios chamuscados, faces perdidas,
formas inumanas. No esqueais, escribas, ir contando nas cartas o
que est aparente, ao lado das invenes em seu fictcio arranjo.
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E os pequenos orgulhos, sempre quando quereis fugir ao mundo
persignado, impenitente e despenhado arcanjo.
Podemos ver na estncia XVIII, deste Canto, uma espcie de
transmutao
alqumica, em que assistimos transformao de um elemento em outro,
em uma
representao de coisas que s ocorre devido ao rompimento com o
retrato
mimtico do mundo e a partir do auxlio da imagem surrealista.
Atravs de uma
imaginao intensa, vemos surrealisticamente a metamorfose de
flores em
borboletas e de figuras mticas, como o centauro (espcie de
colagem de homem
com cavalo) e de cavalos alados (colagem de cavalo com ave). Alm
destes
elementos caractersticos de uma mitologia clssica, notamos tambm
que as
imagens do poema so criadas atravs do processo metafrico
caracterstico da
montagem surrealista. Desse modo, a imagem potica parece ter
sido criada pela
primeira vez por causa de seu carter original e singular. Em uma
espcie de busca
da linguagem original o poeta cria um mundo particular inventado
por ele.
Alm desses processos, importante notar o carter pictrico do
poema, em
que vemos uma preocupao do poeta com a textura de alguns
elementos
representados por ele: as borboletas gordas e veludosas como
urtigas, o ... o
esterco fumegante, e tambm o erotismo, a partir da comparao
entre as
borboletas e o sexo. Nesse sentido, salienta-se o ganho que a
poesia obteve com a
pintura surrealista, com sua fuso do real ao imaginrio, o visvel
ao invisvel, o
racional ao irracional (De Chirico, Picasso, Braque, Dal, entre
outros, deixavam de
representar a natureza de forma mimtica para deform-la, criando
outro mundo). O
que ocorre um desprezo dos artistas pelo mundo sensvel, pois no
h mais
sentido em reproduzir mimeticamente o real. O poema se realiza
como uma
composio surrealista em que os elementos opostos se misturam e
se transmutam
um no outro, de modo que a representao deste estado potico s
poderia realizar-
se por um tipo de representao imagtica renovada.
guas vieram , tarde, perseguidas, depositaram bostas sob as
vides. Logo aps borboletas vespertinas, gordas e veludosas como
urtigas sugar vieram o esterco fumegante. Se as vsseis, vs direis
que o composto
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das asas e dos restos eram flores. Porque parecem sexos; nesse
instante, os mais belos centauros do alto empreo, pelas ptalas
descerem atrados, e agora debruados formam crculos; depois as
beijam como beijam lrios.
bem provvel que uma das metforas mais importantes do poema,
que
revela o procedimento potico para a construo de Inveno de Orfeu,
est
exemplarmente expressa na estncia XXIV do Canto Primeiro, em que
o poeta se
intitula engenheiro noturno. Esta expresso rompe com a aparente
oposio e/ou a
separao entre razo e inspirao para a criao artstica. Nesse
sentido, quebra-
se a ideia de que existem apenas dois tipos de possibilidades
criativas: aquela em
que o artista criaria somente por meio da inspirao e a outra, em
que a criao
seria feita apenas por meio da razo.5
Abrigado por trs de armaduras e esgares, o engenheiro noturno
afinal aportou ao nordeste desta ilha e construiu-lhe as naves.
Penoso empreendimento o invento desse cais e desse labirinto e
desses arraiais. Para britar a pedra escreveram-se hinos prontos
para marchar ou morrer sem perdo. Numeraram-se chos cada qual com
seus ossos, reacendeu-se a colmia, atiou-se o pavio. Lemos contos
de Grimm, colamos mariposas nesse jato de luz em frente as velhas
tias; e sob esse luar conversando baixinho com esse pranto casual
que os velhos textos tm. O prodgio engenheiro acendeu seu cachimbo
e falou-nos depois de flores canibais
5 Marcel Raymond nos explica, modelarmente, a nova relao
estabelecida entre estes dois termos
na concepo artstica do pensamento esttico moderno, e que
representa bem a posio que ocupa a poesia limiana nesse cenrio: Eis
a, parece, duas correntes de sentido inverso: de um lado, uma
tentativa de adaptao ao real positivo, ao universo mecnico de nosso
tempo; de outro, um desejo de encerrar-se no recinto do eu, no
universo do sonho. Mas preciso logo observar que possvel evadir-se
ou refugiar-se to bem fora quanto dentro de si; os dois movimentos
podem ser segundo o caso, itinerrios de conquista ou de fuga. De
resto, e nisso consiste o principal, uma srie de fatos
contemporneos justifica amplamente a reconciliao do real e do
sonho, e quase no permite opor, a no ser de maneira abstrata, as
duas atitudes que definimos. Esses fatos, aos quais corresponde a
conduta dos poetas modernos, so as proposies dos epstemologistas
sobre as condies e os limites do conhecimento, so as teorias
psicolgicas sobre o inconsciente ou o subconsciente, e a crena mais
ou menos generalizada, ou a suspeita, de que existem no homem e
fora dele foras desconhecidas sobre as quais ele pode esperar agir.
(RAYMOND, 1997, p.193-194).
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que sorvem qualquer ser com seus polens de urnio. Feliz de quem
ainda em cera se confina... Disse-nos afinal o engenheiro noturno.
Em seguida sorriu. Era perito e bom. Vimo-lo sempre em sonho a
perfurar os tneis forrados a papel de cpias e memrias. Era a carne
profunda a embalar-nos nos braos e esse vasto suspiro a se perder
no mundo; era a marca dorsal j tatuada em porvires desses castos
pores de prazeres reptantes. Inaugurou-se a festa, os impulsos
surgiram, e em calmaria fez-se a colheita do sal. Houve proibies em
frente s velhas tias de sobrolho tardio e ternuras intactas. Alguma
loura irm dentro de ns dormiu, abriu-se em nosso tecto uma abbada
escura circunstancial, madura em seu silncio cmplice. Essa
perturbao alcanou os meninos esculpidos ao p das colunas do templo
que desceram ao palco exibindo-se nus. Do noturno trabalho a gente
tresnoitada dana de ver assim ao romper da alvorada esse
engenheiro-ser tocando a sua gaita os rebanhos levar; logo no tosco
jarro aquele lhe oferece a doce e branca ovelha, e a vaca os seios
seus em queijos e coalhada.
O engenheiro noturno exemplar como expresso metafrica, pois
abarca
duas caractersticas paradoxais do mesmo ser. O engenheiro, que
no exerccio de
sua profisso utiliza-se do clculo e da tcnica para realizao de
seu trabalho, por
excelncia o indivduo que faz uso da cincia e da matemtica para
conceber e
realizar sua obra. Contrrio a esse tipo de concepo criadora, est
o elemento
noturno que em um sentido mais imediato representa o mundo do
sono, do sonho,
do devaneio, contrastando, assim, com o primeiro elemento. Mas
na potica de
Jorge de Lima essa unio de elementos opostos, que inicialmente
pode parecer
paradoxal, na realidade, representa a maneira pela qual o poeta
elabora sua criao
potica. Unido os contrrios, elementos que normalmente seriam
incompatveis e
antagnicos, o poeta utiliza-se do elemento racional e do onrico
para realizao
potica. Em sntese, a metfora do engenheiro noturno aponta para a
ideia que, no
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seu poema, unem-se os campos intelectual e espiritual, que se
exprimem numa
linguagem engenhosa e onrica.
interessante notar que essa caracterizao do fazer potico
presente em
Inveno de Orfeu, representa a prpria concepo moderna do fazer
potico que
oscila entre o delrio e a razo, representada, de um lado, por
Rimbaud e, de outro,
por Mallarm e Valry, e que se encontra amalgamada em Baudelaire,
centro
dessas duas correntes principais da poesia moderna, como j
apontou Marcel
Raymond.
Estes elementos que, de acordo com o pensamento moderno,
propiciam a
realizao do poema tambm esto intrinsecamente ligados em Inveno
de Orfeu.
Esse aspecto, a nosso ver, se apresenta de forma mais completa
para a explicao
da construo do fenmeno potico. Do contrrio, a poesia feita
apenas atravs do
uso da razo ou da intuio se apresentaria de maneira unilateral,
excluindo duas
caractersticas pertencentes obra potica e ao homem, limitando,
portanto, o
conhecimento do potico e do humano.6
importante frisar, em nosso ponto de vista mesmo crendo que
Jorge de
Lima no um surrealista de Escola 7 , que no importa uma
definio
peremptria quanto a sua caracterizao como um poeta Surrealista
ou no, mas
sim o quanto a utilizao de elementos muitas vezes similares ou
provenientes
dessa tendncia esttica enriquece sua lrica. O que realmente vale
a relao
profcua que o criador de Mira-Celi estabelece como o onrico em
sua poesia. Afinal,
as foras do inconsciente humano no so exclusivas do pensamento
surrealista,
mas antes de tudo so humanas e, portanto, se revelam como um
elemento
6 lvaro Lins se pronuncia a esse respeito nos dizendo o
seguinte: acredito que em todo poeta se
faro sentir os apelos do inconsciente e a disciplina da razo; o
culto do irreal e a sensao da realidade; a vertigem dos sonhos e as
limitaes do cotidiano; o delrio e a lucidez. No que estes estados
se misturem; eles se superpe e se completam. Em poesia que se pode
ver bem a verdade deste princpio: a razo no criadora; ordenadora.
No ato da criao, antes que a razo intervenha, j se ter manifestado
a presena das potncias obscuras do ser. S posteriormente que a razo
completa e ordena estas potncias. (...) Tanto a inconscincia total
como a lucidez absoluta so estados impossveis no homem, mesmo no
homem especial que poeta. Um poema, sabe-se, inspirao e realizao: a
inspirao pode ser inconsciente, mas a realizao sempre lcida. (LINS,
1970, p.13-14). 7 O poeta mesmo declara: A poesia mais do que tudo
h de ter e sempre teve a sua origem e sua
razo de ser no sobrenatural. E o racionalismo foi a tentativa de
morte do sobrenatural. (...) A imitao da natureza no constitui
poesia. O poeta imita o criador. A natureza apenas informa o poeta.
O poeta deforma, reforma a natureza e o mundo ante a fora criadora
do poeta se conforma com o que ele presente, v, profetiza, poeta.
(LIMA, 1935, p.221). Esta posio assumida pelo poeta, em 1935, nos
revela tambm que a sua suposta constante mutabilidade potica pode
ser contestada, j que sua reflexo concorda bastante com sua postura
esttica, que se d como uma espcie de fio condutor desde Tempo e
Eternidade at Inveno de Orfeu, seu penltimo livro.
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potencial e/ou presente em qualquer forma de expresso artstica.
Mas no
podemos nos esquecer tambm que foi com o Surrealismo que estas
foras do
inconsciente puderam se expressar de maneira mais atuante; o
que, de acordo com
lvaro Lins, resultou numa disposio revolucionria que no pode ser
esquecida e
sim continuada: uma revoluo contra o esprito de imitao e de
rotina, contra o
falso realismo que excluda o transcendental, contra a arte
petrificada nos
formulrios, contra a conscincia lgica que no tinha coragem de se
voltar para
dentro de si mesmo. (LINS, 1970, p. 16-17). A presena constante
do onrico na
potica limiana no significa, de forma alguma, que sua criao
potica seja
exclusivamente caracterizada pela construo do poema atravs do
simples impulso
da inspirao ou do sonho. A poesia de Jorge de Lima tambm
elaborada a partir
do trabalho formal, na medida em que visa encontrar, atravs do
trabalho potico,
sua prpria linguagem: o poeta precisa de sua prpria linguagem
potica, pois
carece ele de comunicar o seu misterioso mundo de conhecimentos
inefveis
(LIMA, 1958, p. 67). Referindo-se necessidade de preciso e de
beleza formal, ele
diz: Vivemos (...) numa poca de preocupao com a forma. E
acredito que muito
se lucrar a poesia brasileira com tudo isso. Passou
evidentemente o tempo em que
o poeta, obrigado pelas circunstncias, partia apenas em busca da
aventura
vivencial da poesia; hoje se deve ter em mira tambm a bela e
nobre aventura da
forma. (LIMA, 1958, p. 67). Para Jorge de Lima, necessrio o
depuramento formal
na expresso potica. Segundo ele, foram Baudelaire e Rimbaud que
iniciaram o
retorno s verdadeiras tradies poticas (LIMA, 1958, p. 68).
Desse modo, o formalismo limiano se configura por meio dos
vrios
aspectos da concepo tradicional da poesia, somados concepo
moderna, ou
seja, privilegia-se tambm a magia das palavras (com sua
sonoridade e imagens
extraordinrias), a inspirao, a poesia como forma de conhecimento
do humano, o
rigor formal, a expresso espontnea, mostrando-se como um poeta
que expressa
as angstias do homem do tempo presente.
Nesse sentido, o poema limiano elaborado atravs de uma
comunho
(talvez, para alguns, paradoxal) entre a emoo e o rigor formal.
A lrica de Jorge de
Lima se associa aos grandes nomes da poesia moderna universal:
Baudelaire,
Rimbaud e tambm Mallarm, j que o poeta brasileiro ousado na
utilizao de
metforas complexas, negando-se a representar o mundo de maneira
clara e fcil. O
que ele deseja criar novas realidades atravs de uma nova
representao literria,
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feita pela imaginao e pela prpria poesia. Como nos aponta Fbio
de Souza
Andrade, a ltima fase de Jorge de Lima se inclui nessa tradio,
pois o poeta
emprega largamente a metfora absoluta, as metforas genitivas,
abertas para a ambigidade e pluralidade de sentidos. Muito mais do
que simples construo metricamente peritas ou demonstraes de
habilidade potica, seus sonetos finais os do Livro de Sonetos e da
Inveno de Orfeu so experincias-limite dentro dessa vertente moderna
da poesia. A obscuridade semntica aparece aqui como defesa possvel
contra a banalizao das palavras e da prpria lrica. A estratgia
fechar-se a si mesmo para sobreviver, criar carapaas (i.e., as
imagens complexas) que dificultam a compreenso imediata, mas
preservam o que , por natureza, forte e frgil: a capacidade da
linguagem de fundar mundos prprios. (ANDRADE, 1996, p.138).
O poeta mesmo reflete sobre esta perspectiva, apontada acima,
associando-
se ao pensamento de Mallarm, Valry e T. S. Eliot, quando
preconiza que na
linguagem potica os poetas devem primar pela conciso e pela
justeza verbal.
Mas os poetas no podem se esquecer de que devem comunicar aos
outros a sua
poesia e no sobrecarreg-la de tal obscuridade que torne
incompreensvel. A
dificuldade da linguagem potica reside precisamente nisso: ser
linguagem do poeta
e ser comunicvel. (LIMA, 1958, p.73). Muitas vezes acusado de
hermtico, Jorge
de Lima tinha conscincia de que o poeta tem que se comunicar com
o leitor; caso
contrrio, sua poesia estaria fadada ao fracasso, ficaria presa
em si mesma. No
entanto, h de se considerar, como aponta lvaro Lins, de que
muitas vezes no
responsabilidade do poeta essa no transmisso de sua experincia
potica: A
responsabilidade pode se encontrar no leitor, no seu prosasmo,
nos seus
preconceitos, nas suas exigncias de uma clareza dentro da lgica
comum. A poesia
moderna, porm, se acha colada muito alm dessa lgica comum.
(LINS, 1970, p.
20). O crtico salienta ainda que algumas obras tm o destino de
conservar um
estado de mistrio, de se concentrar dentro de uma espcie no
comum de
obscuridade. (LINS, 1970, p. 21).
Mesmo utilizando-se, em sua lrica final, da imaginao e do
onirismo para
composio de seus poemas, acreditamos que Jorge de Lima no cria
suas
imagens de forma automtica, como praticavam alguns poetas
surrealistas, mas
carregadas de sentido histrico, dialogando com a tradio
literria, mitolgica e
religiosa. Inveno de Orfeu nos oferece um imenso repertrio de
exemplos nesse
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sentido, que nos revela como o poeta pensou e trabalhou todo o
poema: o
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