A financeirizao do circuito imobilirio como rearranjo escalar do
processo de urbanizaoLa financiarisation de limmobilier en tant que
ramnagement scalaire du processus durbanisationFinancialization of
real estate as a rescaling of the urbanization processDaniel de
MelloSanfelici
ResumosNos ltimos cinco a dez anos, o setor imobilirio
residencial no Brasil registrou uma expanso extraordinria em termos
de lanamentos e vendas. Essa expanso, que vem transformando
rapidamente as metrpoles brasileiras, foi impelida por um
entrelaamento sem precedentes do sistema financeiro com o circuito
de produo e consumo do ambiente construdo urbano no pas. Na esteira
desse fenmeno, muitos autores vm tentando interpretar essas
transformaes luz do movimento de financeirizao da economia, como
uma expresso do poder redobrado dos investidores financeiros em
obter rendimentos com a transformao do espao urbano. Esse trabalho
pretende contribuir para esse debate em curso argumentando que o
processo de financeirizao, que nos ltimos anos atingiu os negcios
imobilirios no Brasil, produziu um reordenamento dos vnculos entre
as escalas geogrficas. A primeira parte do trabalho dedica-se,
assim, a proporcionar uma viso panormica das transformaes ocorridas
nos negcios imobilirios como fruto da articulao com o sistema
financeiro. Na segunda parte, apoiando-nos em uma gama de
entrevistas realizadas entre 2011 e 2012 e em levantamentos de
dados sobre o setor em questo, procuramos colocar em destaque as
formas de articulao entre agentes situados em diferentes escalas
socioespaciais. Nesse movimento, a articulao entre a escala global
e a escala nacional ilustrada pela necessidade das incorporadoras
de tornarem suas atividades mais transparentes a fim de que seus
papis possam ser agregados ao portflio de grandes investidores
institucionais estrangeiros. Os vnculos entre a escala nacional e a
local, por sua vez, so examinados como fruto do estabelecimento de
parcerias entre as grandes incorporadoras financeirizadas e
construtoras/incorporadoras pequenas e mdias regionais. Em ambos os
casos, procuramos colocar em evidncia os desencontros e as tenses
que resultam da aproximao de agentes expressivos de lgicas
espao-temporais dspares, demonstrando que a escala geogrfica, longe
de ser uma dimenso estanque do processo social, produzida e
transformada socialmente e, enquanto tal, internaliza tenses e
contradies sociais. O trabalho reala, em sua concluso, a importncia
da construo de nexos escalares para a reproduo do poder das finanas
na atualidade.
No ltimo decnio testemunhou-se, no Brasil, uma reestruturao sem
precedentes no setor imobilirio e construtivo. Entrelaados de forma
mais estreita com o sistema financeiro, os negcios imobilirios
experimentaram um boom que transformou rapidamente as metrpoles
brasileiras em gigantescos canteiros de construo. Os agentes mais
visveis desse processo so as grandes incorporadoras e construtoras,
que agora possuem raios de operao muito mais estendidos do que
aqueles ao quais costumavam se restringir nas dcadas precedentes.
Algumas delas hoje atuam em mais de quinze estados da federao, de
norte a sul, tanto em metrpoles quanto em aglomeraes de menor
porte. Por trs da visibilidade cotidiana dessas empresas, porm, est
o poder financeiro de grandes investidores institucionais, fundos
de investimento, bancos e outros agentes financeiros que despejam
montantes exorbitantes de capital para financiar a expanso do setor
e, evidentemente, obter uma fatia de seus ganhos tambm crescentes.
Com ramificaes que extravasam as fronteiras do pas, a presena e o
poder desses agentes nos rumos tomados pelos negcios com o solo
urbano permitem fazer a leitura desse processo como uma expresso
ntida da tendncia financeirizao da economia capitalista.2Esse
artigo pretende corroborar com a discusso, em voga na Geografia e
outras reas dos estudos urbanos, acerca das repercusses
socioespaciais da financeirizao do investimento imobilirio.
Considerando, em concordncia com uma bibliografia crescente, a
escala geogrfica como uma dimenso fundamental da prtica
socioespacial e da espacialidade do capitalismo (Smith, 1992a;
1992b; Brenner, 2001; 2009a; 2009b; Swyngedouw, 1997; 2004; Vainer,
2006), sugerimos que a financeirizao do circuito imobilirio no
Brasil produziu, no ltimo decnio, um rearranjo dos vnculos
escalares como consequncia do adensamento e intensificao das relaes
econmicas travadas entre agentes que privilegiam diferentes escalas
geogrficas de operao. Assim, se at h pouco os negcios imobilirios
urbanos eram conduzidos prioritariamente por pequenas empresas de
abrangncia local ou regional, a abertura de capital das grandes
incorporadoras e a entrada de investidores estrangeiros no controle
dessas empresas sinalizam uma articulao diferenciada entre as
escalas local, nacional e global na produo dos espaos
metropolitanos. Esse (re)arranjo escalar no pode, porm, ser
entendido como estvel ou imutvel, mas como uma configurao que
encerra uma srie de tenses e contradies que decorrem, como
procuraremos demonstrar, das divergncias entre as prticas, as
prioridades e os horizontes espaciais e temporais dos diferentes
agentes envolvidos.3A primeira parte do artigo tem como objetivo
elucidar, com apoio em dados secundrios e em outros estudos, as
repercusses da penetrao das finanas globalizadas nos negcios
imobilirios no Brasil. Procuramos demonstrar, interpretando os
dados divulgados por um grupo de empresas selecionadas, que a
necessidade de proporcionar resultados aos acionistas impeliu as
incorporadoras a uma expanso acelerada do investimento e a uma
diversificao geogrfica de sua atividade. Na segunda seo do artigo,
examinamos como esse cenrio econmico renovado forjou novos laos
entre as escalas geogrficas e colocamos em destaque, com base em
entrevistas realizadas com dirigentes de empresas e em publicaes
especializadas e/ou jornais, as instabilidades que afloram na
construo desses vnculos interescalares.Expanso vertiginosa
conduzida pelas finanas: os negcios imobilirios no Brasil4As
reverberaes do processo de expanso imobiliria recente sobre as
metrpoles brasileiras j so evidentes por toda parte. No h mais reas
nas grandes cidades brasileiras que no estejam sendo palco de
projetos imobilirios de grandes impactos sobre a dinmica da vida
nos bairros e na cidade como um todo. Alm disso, h uma evidente
apreenso, tanto na imprensa quanto entre as famlias, com a
trajetria de preos ascendentes que vem sendo exibida pelo mercado
imobilirio das grandes cidades. A ideia de que uma bolha imobiliria
ou, de forma menos drstica, um arrefecimento do setor poderia ser
iminente vm tona com relativa frequncia nos meios de
comunicao.5Essa ideia no descabida. As bolhas imobilirias possuem
um potencial tanto mais evidente e destrutivo quanto maior for a
implicao do sistema financeiro com o investimento imobilirio. Na
verdade, o que tem ocorrido no pas nos ltimos dez a quinze anos tem
sido justamente isso: uma penetrao sem precedentes das finanas na
produo e consumo do espao urbano intermediada pelas empresas do
setor imobilirio. claro que essa situao indica mais a possibilidade
de uma bolha do que sua inevitabilidade, mas entender as
circunstncias dessa aproximao entre o financeiro e o imobilirio um
passo importante para entender os sentidos da financeirizao no que
concerne a produo do espao urbano. Procederemos, ento, com uma
breve descrio e anlise das mudanas recentes no setor imobilirio
para prosseguir, em seguida, para o cerne do argumento do artigo.6O
ponto central para compreender as mudanas que vm se processando nos
negcios imobilirios no Brasil reside em um conjunto de transformaes
institucionais e regulatrias que permitiram no apenas impulsionar o
crdito habitacional, mas tambm tornar o circuito imobilirio
(compreendido de forma ampla, incluindo aqui o crdito ao comprador
final dos imveis) mais atrativo aos investidores financeiros. Esse
um ponto importante de ser realado porque, como David Harvey
demonstrou em Limits to capital (Harvey, 1999), a produo e o
consumo do ambiente construdo urbano tm como requisito para sua
efetiva realizao dadas as especificidades dos imveis enquanto
mercadorias de longa durao e alto valor a constituio de um
sofisticado aparato institucional e creditcio. 1Para um estudo mais
pormenorizado dessas mudanas, ver Royer (2009). Botelho (2007) e
Fix (2011) t(...)7A pea-chave desse novo arranjo institucional foi
a aprovao do Sistema Financeiro Imobilirio (SFI) em 1997.
Sintonizado com a atmosfera de reforma neoliberal do Estado sob o
governo Fernando Henrique Cardoso, o SFI tinha como instrumento
central a figura da alienao fiduciria, que permitia a execuo
no-judicial da garantia do emprstimo habitacional, agilizando, de
tal forma, a recuperao, pelo credor, do montante emprestado.
Somaram-se, posteriormente, outras medidas que, juntas,
incentivaram enormemente a concesso de emprstimo habitacional no
pas. Merece destaque, por exemplo, a medida comumente denominada
valor do incontroverso, aprovada em 2004, que determina que o
muturio que contestar judicialmente a regularidade de um contrato
de emprstimo precisa determinar a parcela do emprstimo que no est
sendo questionada e continuar pagando esse montante (anteriormente,
um muturio que questionasse judicialmente um contrato poderia
interromper os pagamentos das prestaes at que o litgio encontrasse
resoluo). Sem essas medidas seria difcil compreender o surto de
crdito habitacional que iniciou em meados dos anos 20001. 2A
securitizao diz respeito transformao de um contrato de dvida em um
papel negocivel em me(...)8Mas a ampliao do crdito tambm deve
tributo s condies econmicas diferenciadas de que o Brasil usufruiu
nos ltimos anos. Com taxas de crescimento moderadas e taxas de
inflao baixas, esse cenrio se mostrou propcio ampliao das linhas de
crdito, no apenas no setor imobilirio. Alm disso, importante notar
um crescimento substancial na emisso de papis lastreados em fluxos
de rendimento imobilirios. Referimo-nos, por exemplo, aos
Certificados de Recebveis Imobilirios, instrumentos tambm
regulamentados pela lei do SFI e que resultam do processo de
securitizao de dvidas imobilirias2; e s cotas de Fundos de
Investimento Imobilirio, mecanismos de investimento coletivo que
investem em ativos de renda (por exemplo, shopping centers e
escritrios) e em que cada cotista recebe, mensalmente, dividendos
que refletem a parte alquota da qual o cotista proprietrio. Por
importante que sejam esses instrumentos para entender a
financeirizao em sua relao com a transformao das cidades,
pretendemos focalizar aqui em outro ponto de integrao entre o
financeiro e o imobilirio: as grandes incorporadoras que passaram a
financiar o investimento mediante recurso ao mercado de
capitais.9Historicamente geridas como pequenas empresas familiares,
as principais incorporadoras brasileiras a maior parte sediada em
SoPaulo enxergaram na expanso do crdito habitacional uma
oportunidade nica de expandir o investimento e ampliar suas
receitas e lucros em um curto intervalo de tempo. Mas um aumento
rpido do investimento no poderia ser financiado nem com recursos
prprios, visto que poucas tinham volume de capital significativo,
nem com acesso ao financiamento bancrio, uma vez que os bancos
possuem limites de concesso de crdito a um mesmo devedor. O acesso
ao mercado de capitais mediante a emisso de papis como aes e
debntures apareceu como uma alternativa para as empresas que
precisavam, afinal, de um volume significativo de capital para
despender com a compra de terrenos. 3Estrangeiro leva 72,5% das aes
vendidas pela Rossi.O Globo, Rio de Janeiro, 15/10/2009. 4VGV uma
forma utilizada pelas incorporadoras para contabilizar seu produto.
Refere-se a soma do(...)10O volume de capital levantado por
incorporadoras e construtoras no binio 2006/7 mediante a emisso de
aes e debntures foi surpreendente: mais de R$ 15 bilhes em aes e
quase R$ 2 bilhes em debntures, a maior parte (em torno de 70%
segundo entrevistas e matrias de jornais) adquirida por grandes
investidores institucionais estrangeiros3. O uso desses recursos se
materializou nos dados de unidades lanadas e valor geral de vendas
(VGV)4lanado entre 2005 e 2010, perodo que corresponde s
transformaes de maior profundidade no setor. A Tabela 1, abaixo,
sintetiza esses resultados com base no desempenho operacional e
financeiro de sete grandes incorporadoras de capital aberto.Tabela
1- Nmero de unidades lanadas e VGV lanado por sete incorporadoras
brasileiras 2005-2010Nmero de unidades lanadas
200520062007200820092010
Cyrela2733582216924182702641727589
Gafisa2446375514236348931342626398
MRVN/A298712334259682894850136
PDG Realty2089399412860182003559842616
Rossi199944099648105421645623239
EvenN/A14854345423334596515
Brookfield554256211356981428411508
Lanamentos em Valor Geral de Vendas (VGV) (R$ x 1000)
200520062007200820092010
Cyrela1.211.3023.619.9705.393.0574.827.4375.678.9277.609.882
Gafisa682.1961.233.9162.919.3555.322.1562.789.2246.041.703
MRVN/A337.3371.199.9482.532.9852.586.0804.604.000
PDG Realty592.207761.7152.259.5503.776.7505.454.3009.151.250
Rossi3951.158.0002.470.0002.723.0002.758.0004.798.000
EvenN/A744.4361.757.7531.435.128926.7351.528.026
Brookfield176.600378.0001.922.2002.662.5002.674.9002.981.300
Fonte: Relatrios trimestrais das empresas selecionadas.11O mpeto
da expanso notvel: em termos de unidades, algumas empresas que
lanavam aproximadamente 2000 unidades por ano (uma mdia que
prevaleceu nos anos anteriores aos abrangidos pela tabela) passaram
a lanar mais de 20 mil unidades. Em alguns casos, como a MRV, o
salto foi maior: de menos de 3 mil unidades ainda em 2006 para 50
mil unidades em 2010. Quando mensurado em termos de preo, o volume
de lanamentos no menos surpreendente: apenas a Cyrela lanou mais de
R$ 1 bilho em 2005. Cinco anos depois, no apenas a marca do R$ 1
bilho em lanamentos foi ultrapassada pelas sete empresas
selecionadas, como tambm algumas superam a marca de R$ 5 bilhes em
lanamento a PDG, maior de todas, atingindo mais de R$ 9 bilhes
lanados.12Dispondo, subitamente, de um volume descomunal de
recursos, essas empresas precisavam encontrar oportunidades seguras
e lucrativas de investimento que oferecessem o retorno desejado aos
investidores. Evidentemente, parte da resposta estava em continuar
fazendo o que haviam feito at ento, apenas em escala maior. No
entanto, ficou logo evidente que o mercado ao qual haviam se
dedicado at ento seria insuficiente diante da presso dos
investidores por uma expanso vigorosa expressada em termos de
volume de lanamentos. Era preciso encontrar novos mercados.13Uma
das solues residiu em tirar proveito da abundncia de crdito
habitacional para direcionar investimentos para estratos de renda
que outrora careciam de acesso casa prpria. A expanso das linhas de
financiamento seja com recursos de poupana, seja devido implementao
do programa Minha Casa Minha Vida ao comprador da casa prpria
permitiram que famlias com renda mais baixa (de 3 a 5 salrios
mnimos, por exemplo) acessassem o mercado imobilirio, e muitas
empresas passaram a atuar nesse segmento (Shimbo, 2010; Castro,
Shimbo, 2010; Fix, 2011). 5Vale frisar que em alguns casos no houve
perda de participao relativa da regio metropolitana d(...)14Outra
direo de diversificao foi a disperso territorial. A maior parte das
empresas em questo restringia seu raio de operao a uma ou a poucas
cidades do pas e, com exceo da MRV, todas elas atuavam
prioritariamente na regio metropolitana de SoPaulo. A necessidade
de encontrar novas oportunidades de investimento para cumprir as
metas prometidas aos novos acionistas forou essas empresas a
iniciarem operaes em outros mercados regionais. Resultou disso um
ganho de participao relativa importante de outros estados,
combinado com uma perda de participao relativa da regio
metropolitana de SoPaulo na composio do investimento das empresas,
um processo ilustrado abaixo pela discriminao, por regio, dos
lanamentos de duas incorporadoras (ver Tabelas 2 e 3)5. Alm disso,
algumas das empresas notadamente MRV, PDG, Cyrela (ver Mapa 1) e
Gafisa, as maiores atingiram um grau de pulverizao pronunciado,
atuando muitas vezes em mais de quinze estados da federao.Tabela 2
PDG Realty VGV lanado em 2007 e 2010 por regioRegio20072010
SoPaulo (capital)49.0%22.1%
SoPaulo (interior)33.0%21.7%
Rio de Janeiro15.0%10.1%
Nordeste0.0%8.1%
Sul0.0%10.9%
Sudeste (outros)3.0%2.3%
Norte0.0%11.6%
Centro-Oeste0.0%12.0%
Fonte: Relatrios trimestrais da PDG.Tabela 3 Rossi VGV lanado em
2007 e 2010 por regioRegio20072010
SoPaulo (Capital)32.2%16.0%
SoPaulo (interior)21.1%22.0%
Rio de Janeiro14.5%6.0%
Rio Grande do Sul12.5%16.0%
Minas Gerais0.0%16.0%
Cear0.0%4.0%
Amazonas0.0%7.0%
Distrito Federal0.0%3.0%
Bahia0.0%2.0%
Outros19.7%8.0%
Fonte: Relatrios trimestrais da Rossi. 6O estado de So Paulo o
nico que se encontra segmentado em dois: a regio metropolitana e o
int(...)Mapa 1 Distribuio geogrfica das unidades lanadas pela
Cyrela em 20096
AumentarOriginal (png, 146k)Fonte: Relatrio anual da Cyrela.15Em
resumo, a abertura de capital, impulsionada pelo desejo das
incorporadoras de aproveitarem o incremento na demanda por imveis
causado pelo surto de crdito habitacional, desencadeou uma
metamorfose das formas de atuao e das estruturas administrativas
das principais empresas do setor imobilirio. De um setor
predominantemente constitudo de pequenas e mdias empresas
familiares, o imobilirio tornou-se foco de decisiva presena de
investidores financeiros internacionais que passaram a exigir do
setor uma postura bem mais agressiva em termos de volume de
lanamentos e disperso do investimento ou seja, condizente com as
expectativas de rentabilidade de fundos de aplicao coletiva. Em
apenas cinco anos, tanto os dados de lanamentos (seja em unidades,
ou VGV) quanto os de distribuio regional sofreram importante
transformao, denotando a rapidez das transformaes em foco. Nas
pginas que seguem, procuramos argumentar que a financeirizao, em
sua relao com a produo do espao urbano, pressupe e engendra uma
articulao renovada entre as escalas geogrficas constitutivas do
processo urbano. As incorporadoras e construtoras aparecem, aqui,
como elos mediadores entre os movimentos volteis das finanas
globalizadas e a captura de rendas do solo urbano na escala local.
As tenses que decorrem da construo desses vnculos escalares servem
de testemunho ao fato de que os nexos entre as escalas so um
produto social e podem ser constantemente contestados e redefinidos
em decorrncia de circunstncias historicamente
determinadas.Produzindo vnculos escalares: tenses e contradies
7Esse termo, vale frisar, no empregado por todos esses autores, mas
os sentidos das mudanas em(...)16A expanso vertiginosa dos negcios
imobilirios no Brasil atual baseou-se, como diversos pesquisadores
vm insistindo nos ltimos anos, em uma metamorfose da propriedade
urbana que aponta para graus mais ou menos elevados de flexibilizao
(Pereira, 2006; Botelho, 2007; Fix, 2007; 2011; Volochko, 2008;
Miele, 2008)7. Essa flexibilizao tem como fundamento o aumento da
liquidez dos ativos de origem imobiliria. A criao de condies de
maior liquidez pedra angular do processo de financeirizao no que
toca aos negcios urbanos, porque permite que o investidor
financeiro, notoriamente avesso a compromissos de longo prazo
(Braga, 1997; Chesnais, 2005), contorne alguns dos obstculos que se
atrelam inextricavelmente ao modus operandi do setor imobilirio e
do mercado de terras urbano, tais como seu enraizamento estrutural
em condies locais muitos especficas e o longo perodo de rotao. Uma
vez tornado um ativo lquido, os papis com lastro nos ganhos
produzidos pelo mercado imobilirio podem ser agregados ao portflio
e s prticas muito peculiares de gesto desses portflios de
investidores institucionais (tais como seguradoras e fundos de
penso) e outros fundos coletivos de aplicao financeira (fundos de
hedge, fundos mtuos, etc). Em termos bastante gerais, poderia se
afirmar, tendo em vista o que j foi discutido at aqui, que a
financeirizao, em conexo com os negcios com a propriedade urbana,
ampara-se na criao de uma arquitetura institucional e financeira
por intermdio da qual investidores financeiros tornam-se aptos a
capturar rendas do solo urbano geradas reiteradamente no movimento
de produo e reproduo dos espaos urbanos.17O que tem sido menos
explorado e/ou problematizado na literatura recente refere-se ao
fato de que a financeirizao exige e promove a construo ou redefinio
dos vnculos entre as escalas do processo social. Em outras
palavras, o xito maior ou menor das finanas em extrair rendimentos
do processo de produo do espao urbano depende da eficcia na
construo de vnculos mais duradouros entre agentes, processos e
estruturas que predominam e/ou privilegiam diferentes escalas
geogrficas. A proposio implcita nessa hiptese de que no apenas as
escalas e os arranjos escalares so socialmente produzidos, mas
tambm de que esses arranjos podem ser reelaborados e redefinidos no
contexto de embates polticos, conflitos sociais ou reestruturaes
econmicas, como reconhece uma crescente bibliografia (Smith, 1992a;
1992b; Brenner, 2000; 2001; 2009; Swyngedouw, 1997; 2004; Vainer,
2006). Mais do que isso, a produo de novos arranjos entre as
escalas geogrficas constitui um componente fundamental das
transformaes sociais, polticas e econmicas que, historicamente,
repuseram as condies de reproduo econmica do capitalismo, gerando
uma configurao relativamente estvel e duradoura para a continuidade
da acumulao de capital e para a ao dos distintos grupos e classes
sociais (brenner, 2001). Com isso em vista, pode-se reler a
financeirizao do circuito imobilirio examinando a natureza dos elos
e relaes escalares construdos e as tenses e contradies que
florescem nesse processo.18Para fins analticos, possvel discernir
trs escalas predominantes no mbito do processo de financeirizao dos
negcios imobilirios urbanos. Esses trs nveis escalares, e os
agentes e processos a eles correlatos, esto sintetizados na Tabela
4. Algumas advertncias metodolgicas mostram-se, contudo, necessrias
a fim de prosseguir a discusso. A primeira refere-se aos limites
desse tipo de representao: uma importante e crescente literatura
vem atentando para a necessidade de se pensar as escalas de forma
processual e dinmica, priorizando o discernimento dos vnculos
sempre provisrios e contraditrios entre os nveis escalares em vez
de entender as escalas como nveis estticos e quase ontolgicos da ao
social. Nesse sentido, preciso ter conscincia desses limites de
representao, porque uma tabela nunca d conta de representar de modo
satisfatrio a complexidade dos elos, articulaes e tenses entre as
escalas discernidas. Ela serve apenas como ponto de referncia
analtico. A segunda advertncia remete ao fato de que nem sempre
certos agentes e processos podem ser nitidamente circunscritos em
termos de um determinado nvel escalar. Para citar um exemplo,
alguns dos bancos nacionais que desempenham um papel primordial em
financiar a aquisio da casa prpria no cenrio atual extravasam as
fronteiras nacionais, de modo que poderiam, possivelmente, ser
entendidos como agentes globais. O mesmo vale, por exemplo, para
proprietrios de terrenos na escala local: alguns deles podem ser,
na verdade, empresas que possuem interesses que vo muito alm da
escala local. Feitas essas ressalvas, contudo, parece interessante
identificar esses agentes e seus nveis escalares como um passo
inicial para entender a complexa articulao de escalas produzida
pela financeirizao. 8O trabalho de campo beneficiou-se de uma
parceria com dois colegas de Doutorado do Laboratrio de(...)19No
que segue, identificaremos e discutiremos algumas articulaes entre
esses nveis e as tenses que emergiram tendo como base em pesquisa
de campo realizada em SoPaulo e em Porto Alegre entre 2011 e 2012.
Os levantamentos de campo consistiram em entrevistas realizadas com
analistas de mercado, empresrios do setor imobilirio e dirigentes
de entidades de classe entre Setembro de 2011 e Abril de 2012, bem
como em levantamentos de dados coligidos por institutos de pesquisa
e entidades do setor imobilirio e publicaes setoriais8.Tabela 4
Dimenses escalares da financeirizao do espao urbano
AumentarOriginal (jpeg, 184k)Fonte: Elaborao do autor.20As
articulaes entre as escalas global e a nacional, por exemplo,
colocam-se de inmeras formas em relao ao fenmeno em discusso e
seria impossvel discutir todas essas formas. Tendo como foco as
incorporadoras e construtoras, parece pertinente iluminar, para
pensar a articulao entre esses dois nveis, quais so as
circunstncias econmicas, polticas e institucionais que possibilitam
que grandes investidores financeiros fundos de penso, fundos de
hegde, private equity, etc, a maioria com sede nos pases avanados
agreguem papis emitidos pelas incorporadoras nacionais
(fundamentalmente aes e debntures) ao seu portflio de aplicaes de
abrangncia global, forjando, assim, conexes entre agentes e
processos posicionados em nveis escalares diferentes.21Em um plano
mais abrangente, o requisito primordial para esse desdobramento
repousa sobre a construo, pelo Estado, de um ambiente mais
receptivo aos fluxos financeiros internacionais. A elaborao dessa
atmosfera favorvel aos fluxos financeiros exigiu um firme
compromisso do Estado brasileiro em implementar uma gama de
reformas que alinhassem o pas de forma inequvoca a um receiturio
poltico neoliberal, em voga nos principais pases hegemnicos desde a
dcada de 1980. Nesse sentido, era preciso, aos olhos dos grandes
investidores financeiros, no apenas remover todas as restries e
entraves aplicados entrada e sada de capitais de curto prazo, como
tambm era necessrio que o Estado brasileiro demonstrasse um
decisivo comprometimento com a reduo das taxas de inflao mediante a
utilizao dos instrumentos de poltica monetria e fiscal. O marco
simblico dessa virada foi representado pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso, que logrou implementar um amplo programa de
reformas do Estado (privatizaes, cortes de gastos pblicos, abertura
comercial, liberalizao financeira, etc) que apontam, de inmeras
formas, para formas de gesto poltica mais sensveis aos interesses
de investidores financeiros. Mas esse processo, na verdade, possui
um horizonte mais largo, e nesse sentido o governo petista precisa
ser visto, em inmeros aspectos, como uma continuidade em relao ao
modelo institudo anteriormente. O que importa sublinhar o
protagonismo do Estado brasileiro em transformar o pas no que Leda
Paulani (2008) designou criticamente por plataforma de valorizao do
capital financeiro internacional, criando as estruturas
institucionais que geram confiana nos grandes investidores
financeiros para investir em um mercado perifrico ou emergente, no
jargo ideolgico do mercado de capitais.
9Cf.http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/pages/empresas_novo-mercado.asp.22No
que se refere particularmente articulao dos investidores com as
incorporadoras, o cerne do problema consiste em saber que parmetros
e critrios os investidores utilizam para tomar decises acerca de
adquirir, reter ou se desfazer dos papis do setor imobilirio. Aqui
a articulao passa pela necessidade de produzir padronizaes que
permitam que o investidor avalie da forma mais objetiva possvel a
pertinncia de se investir na empresa em questo, comparando-a com
outras do mesmo setor ou de outros setores e pases. Uma dessas
padronizaes diz respeito aos parmetros de governana corporativa que
instituies multilaterais como o Banco Mundial tm procurado
disseminar nos pases perifricos. A governana corporativa refere-se,
no meio empresarial, a um conjunto de diretrizes que norteiam as
prticas administrativas e contbeis das empresas com o fito de
aumentar a transparncia dessas empresas aos olhos dos investidores.
Como diversos autores ressaltam, a definio e o contedo desses
parmetros refletem o poder que os investidores institucionais
adquiriram sobre as prioridades e estratgias das empresas no
capitalismo atual, fazendo prevalecer condutas administrativas que
do primazia criao de valor para o acionista (shareholder value) em
detrimento de um planejamento de mais longo prazo (Lazonick;
OSullivan, 2000; Farnetti, 1998; Soederberg, 2003). Os
procedimentos administrativos e de divulgao de resultados exigidos
das empresas para serem listadas no Novo Mercado Bovespa um padro
de listagem criado em meados da dcada de 2000 que constitui,
segundo a bolsa, o nvel mais elevado de governana corporativa9
incorporam decisivamente esses parmetros. Alm disso, uma vez que
abrem seu capital na bolsa, as decises administrativas das empresas
so cuidadosamente examinadas por agncias internacionais de avaliao
de risco, como Standard & Poors e Moody, que concedem um score
que expressa o grau de comprometimento das empresas com a governana
corporativa (ver Tabela 4). 10Utilizaremos, aqui, as entrevistas
mencionadas apenas como fonte de informao. Evidentemente
que(...)23Contudo, mesmo aps a adeso das incorporadoras a essas
diretrizes internacionais, persistiram desencontros entre as
expectativas e critrios adotados pelos investidores e as prticas de
negcios que caracterizam o setor imobilirio no Brasil, e aqui que
se pode visualizar algumas tenses que podem ser lidas em termos de
relaes interescalares10. Como Kevin Gotham (2006; 2009) ressalta, o
setor imobilirio particularmente propenso a toda sorte de
opacidades que dificultam sobremaneira sua converso em um ativo
financeiro dotado de liquidez. Particularmente relevante seu
enraizamento profundo em condies regionais e locais muito
especficas, referentes dinmica de localizao particular que cada
mercado regional possui e insero que determinada empresa possui em
uma teia densa de relaes composta por diferentes agentes atuando
nesses mercados locais. Diferentemente de um produto industrial
homogneo como um automvel, no caso da moradia um indicador como
volume de produo no fornece uma informao confivel sobre as receitas
e a lucratividade de uma empresa. Duas empresas com o mesmo volume
de produo e mesmos custos de construo podem ter resultados
completamente diferentes dependendo da qualidade dos negcios que se
envolveram nas diferentes regies em que atuam. Essas circunstncias
geram uma incerteza, da parte do investidor financeiro, quanto aos
critrios corretos a serem adotados para avaliar uma empresa e seu
desempenho. Essa incerteza se exprimiu, no Brasil, em uma
volatilidade dos critrios dos investidores para avaliar o setor,
induzindo as empresas a erros de avaliao, decises precipitadas e
posturas especulativas. Em uma entrevista com uma analista do
mercado imobilirio do Secovi/SP, Ana Maria Castelo, a entrevistada
observa esse desencontro: 11Entrevista realizada em 24/10/2011 em
SoPaulo.uma parte a do impacto dos mercados [nas] grandes cidades
[veio com] essa necessidade de gerar resultados. Os investidores no
sabiam muito para onde olhar. Existia j um histrico de acompanhar a
empresa, empresas da indstria, empresas de servios, mas o setor da
construo [...] era um setor novo dentro do mercado de capitais.
Ento, que parmetro usar? E a nessa incerteza, um dos parmetros que
eles comearam a usar foi o banco de terrenos. Ah, voc tem um banco
de terrenos bom significa que vai lanar, e a as empresas comearam a
correr pra formar esse banco de terrenos, j com o incio a da subida
do preo dos terrenos11.24De forma semelhante, um dos diretores de
incorporao da Brookfield S.A., Jos de Albuquerque, afirma que:
12Guidance uma espcie de planejamento anual no qual as empresas
indicam sua inteno em termos de(...) 13Entrevista realizada em
06/10/2011, em SoPaulo.as empresas do setor imobilirio eram
empresas mais familiares e quando teve a moda dos IPOs [Initial
Public Offering, a abertura de capital em bolsa] a nos anos 2006,
2008, vinte empresas correram para abrir capital, viraram capital
aberto, Novo Mercado [Bovespa]. S que a Novo Mercado aquela
histria, tem regras que o setor imobilirio no estava acostumado e
[que] o mercado no estava acostumado. Ento a primeira histria pra
situao subir, o resultado trimestral era quanto de VGV [Valor Geral
de Vendas] voc vai lanar, guidance12do ano, guidancedo ano. [...]
Depois comearam: o que voc tem delandbank[banco de terrenos], o que
voc tem delandbank, quem tem o melhorlandbank o melhor do mundo e
tal. Quer dizer, nem os mercados financeiros entendiam as
companhias e muito menos as companhias entendiam o mercado
financeiro13.25A necessidade de satisfazer as demandas dos
investidores respondendo s suas expectativas levou muitas empresas
a se precipitarem em uma compra desenfreada de terrenos quando os
investidores olhavam com especial apreo para o volume do banco de
terrenos de cada empresa como indicador de rentabilidade futura.
Isso ocorreu principalmente nos dois primeiros anos aps a abertura
de capital na bolsa (entre 2007 e 2009). Algumas empresas foram
particularmente prejudicadas por essa postura: quando a crise
financeira de 2008 se traduziu em uma escassez temporria de
financiamento externo via mercado de capitais, essas empresas
tinham muito capital imobilizado na forma de terrenos, o que tornou
particularmente difcil continuar financiando as atividades. Da que
muitas delas foram foradas a diminuir drasticamente o volume de
lanamentos e mesmo liquidar parte de seu banco de terrenos, a fim
obter recursos lquidos para honrar seus pagamentos o que explica a
queda rpida dos lanamentos da Gafisa em 2009 (Ver Tabela 1). Outras
ainda foram adquiridas por empresas maiores em situao financeira
melhor. A diretora de relaes com investidor da Even, Ana Paula
Barizon, demonstra, tambm, uma percepo de que o mercado financeiro
dita parmetros que muitas vezes so inadequados realidade do setor,
mas faz questo de colocar a sua empresa como uma das que no se
dobraram ao poder acionista: 14Entrevista realizada em 27/10/2011,
em SoPaulo.a gente at brinca que tem as modas do mercado
financeiro, ento l na poca do IPOs [abertura de capital], o mercado
financeiro queria que todo mundo fosse pra tudo quanto lugar,
diversificasse a atuao em mil estados, lanasse pra caramba, e a
Even sempre teve um perfil mais conservador. A gente at acredita
que a ao da Even sempre teve um leve desconto a, por conta da
postura mais conservadora do nossomanagemente da nossa estratgia.
[] O mercado financeiro [] mais de modismo, ento l em 2007 [...] a
moda era lanar, lanar, lanar. Ento quanto maior oguidanceque as
empresas davam, mais o mercado gostava e acabava achando que aquela
empresa ia dar grande retorno [] E agora o que a gente v do mercado
que a grande menina dos olhos gerao de caixa. [...] Quanto mais
cedo uma empresa puder se tornar caixa positivo, o que eles esto
olhando agora. [...] [A] Even muito focada na sua estratgia interna
e o mercado financeiro tem os modismos14.26A vinculao entre a
escala global, representada aqui pelos grandes fundos de aplicao
empenhados em compor uma carteira diversificada de ativos, e a
escala nacional, onde predominantemente atuam, desde a abertura de
capital em 2006/7, as grandes incorporadoras brasileiras, depende,
portanto, de condies polticas, econmicas e institucionais que fazem
dos papis emitidos pelo setor imobilirio ativos atraentes (ou seja,
lquidos, seguros e rentveis) para os grandes fundos globais. O que
est em jogo a necessidade de uma sintonizao entre as expectativas e
temporalidades que definem a gesto financeira dos grandes fundos de
aplicao e a natureza particular do setor no qual investem no caso
do imobilirio, um setor com uma lgica espao-temporal bastante
particular. Mas esse empenho por sintonizao, por exprimir na maior
parte vezes o poder assimtrico existente entre os investidores e as
empresas, resulta em contradies que podem emergir de inmeras formas
e que podem colocar em xeque as relaes forjadas entre esses agentes
e processos predominantes em escalas diferentes. Como ilustramos
aqui brevemente, no caso brasileiro houve desacertos e desencontros
entre as expectativas e prioridades dos investidores e aquelas das
incorporadoras/construtoras, acarretando em problemas para algumas
empresas em particular, decorrentes de saltos especulativos, e/ou
desvalorizaes dos papis das incorporadoras que no seguiram risca as
injunes dos novos acionistas. 15Aqui convm uma ressalva: nem todas
as empresas que dispersaram seus investimentos pelo pas o
fiz(...)27Um segundo aspecto do processo de financeirizao do
imobilirio no Brasil refere-se criao de relaes econmicas entre as
empresas nacionais e empresas associadas/parceiras, a maioria das
quais atuam na escala urbana/local15. O que se colocou aps a
abertura de capital para as grandes incorporadoras foi, como vimos,
uma presso por expandir rapidamente o volume de lanamentos a fim de
satisfazer as expectativas de crescimento dos novos acionistas.
Essa necessidade logo revelou a insuficincia do mercado de SoPaulo
mercado de origem para a maior parte das incorporadoras para
contemplar as metas visadas, o que impeliu as empresas a se
dispersarem regionalmente, seja por meio da aquisio de empresas
menores, seja por meio de parcerias com incorporadoras locais ou,
finalmente, mediante a abertura de escritrios regionais. Essa
expanso, contudo, trouxe tona o fato de que existe uma srie de
riscos atrelados tentativa de coordenao de investimentos
pulverizados por todo o territrio nacional.28Uma dessas
dificuldades refere-se prticas administrativas e capacidades
tcnico-operacionais dos parceiros com os quais as grandes
incorporadoras contaram para se irradiar pelo territrio nacional.
Muitos desses parceiros, convencionalmente pequenas empresas
familiares, simplesmente careciam das condies tcnicas e econmicas
exigidas para construir empreendimentos na quantidade e qualidade
requerida pelas grandes empresas. Tambm faltavam a essas empresas o
rigor das prticas de contabilidade e administrao que eram exigidas,
pelos investidores financeiros, das empresas de capital aberto.
Isso resultou, em inmeros casos, em extravasamento dos custos
previstos e queda na rentabilidade dos empreendimentos nas regies
distantes. O analista de investimentos do Banco do Brasil, Wesley
Pereira, observa, no contexto da expanso regional, que[] as
incorporadoras [so] baseadas em trs grandes segmentos: incorporao,
construo e vendas. A incorporao entra na parte do projeto, na parte
do terreno e tal. A construo a engenharia, propriamente dita e
vendas a parte de corretagem. Ento [as construtoras] viram que na
parte de incorporao elas tinham estrutura suficiente para
prospectar um terreno e fazer um projeto. S que para construir,
elas optaram por construir via parcerias. Ento em um ambiente
aquecido de mo de obra, essas parcerias foram se encarecendo, mais
do que o previsto nos contratos.29Logo em seguida, o entrevistado
complementa: 16Entrevista realizada em 21/10/2011, em SoPaulo.30As
empresas comearam a incorrer em custos de obra mais altos do que
aqueles previstos no projeto, [...] por conta do fluxo mesmo, do
risco imobilirio, do risco da carncia de mo de obra, da carncia de
engenheiros, ento aquele custo que era 100, virou 150. Se a
rentabilidade do projeto foi apertada, antes do lanamento, e este
custo estourou em 50%, existe uma forte probabilidade daquele
empreendimento no ser rentvel ou da rentabilidade dele estar
comprometida. Por que estourou [o custo]? Porque os contratos foram
feitos por meio de parcerias e as empreiteiras locais, [...] que so
dessas regies aonde a empresa no tinha atuao. Elas comearam a
chamar de volta a empresa dizendo que no tm condies de absorver
este custo de contrato. [Ento] os contratos foram tendo aditivos,
as clusulas de reajuste podem no ter sido acordadas. [...] Ento as
empresas comearam a enfrentar problemas de custo16.31A diretora de
relaes com investidores da Even, Ana Paula Barizon, coloca o
problema de forma anloga, embora com algumas nuances diferentes.
Falando sobre a postura que a empresa tomou em relao disperso
regional, a entrevistada assevera que: 17Entrevista realizada em
27/10/2011, em SoPaulo.[] em 2008, quando veio a crise, a gente
contratou uma consultoria externa pra definir um plano estratgico
mais focado [...] E essa consultoria desenhou um planejamento
estratgico junto com omanagementaqui da Even, [...] aonde eles
definiram que eles no iam atuar em outros estados seno Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e SoPaulo. Por qu? Porque
[a] gente acredita [...] que o Brasil um pas continental, ento, pra
voc ter eficincia na sua atuao no lugar, voc tem que ter relevncia
naquele lugar. Ento, a gente no acredita que voc fincar uma
bandeirinha em cada estado, levantar um empreendimento em cada
estado, vai ser eficiente. O que a gente acredita que se voc tiver
relevncia num mercado os melhores terrenos acabam vindo pra voc, os
melhores talentos acabam vindo pra voc, voc tem conhecimento do
mercado local, voc consegue se antecipar a demandas, algumas
mudanas de comportamento da demanda17.32Um ponto adicional colocado
nesse ltimo excerto refere-se ao fato de que os riscos decorrem no
apenas das insuficincias tcnicas e operacionais das empresas
parceiras, mas tambm do desconhecimento de certas peculiaridades
dos mercados regionais. Como explica Michael Ball (1983), para que
uma incorporadora tenha xito em determinado mercado, preciso que
ela consiga se inserir capilarmente em uma trama densa de relaes
sociais que envolve inmeros agentes locais (proprietrios de terra,
planejadores, pequenas construtoras, polticos, etc) ligados ao
circuito imobilirio. Essa insero, que s concebvel quando uma
empresa se dispe a operar de forma mais sistemtica e contnua em uma
regio (da a ideia de relevncia), o que permite construir as bases
econmicas para uma atuao mais rentvel adquirindo os melhores
terrenos em contato cotidiano com potenciais vendedores, atraindo
talentos ao participar mais ativamente do mercado de trabalho
local, identificando demanda potencial ao aperfeioar o conhecimento
da dinmica local de usos do solo, etc.33Os problemas enfrentados
por algumas empresas nesse processo de acelerada disperso
territorial terminaram por for-las a recuar e reconcentrar
novamente investimentos no Sudeste, o plo nacional da acumulao de
capital so os casos, notadamente, da Cyrela e Gafisa. Isso no deve
ser interpretado como um movimento inexorvel, que sinalizaria uma
reverso absoluta da tendncia disperso territorial afinal, empresas
como PDG e MRV no modificaram tanto suas polticas de disperso
justamente por no terem enfrentado os mesmos problemas. Antes,
preciso interpretar os percalos de algumas incorporadoras como
expresso de contradies que emergem da tentativa de articular as
escalas nacional e local dos negcios com a propriedade, um
desdobramento do movimento de financeirizao do imobilirio na medida
em que decorrem da demanda por expanso dos novos acionistas.
Deve-se insistir, portanto, no fato de que esses arranjos
escalares, que constituem uma dimenso central do processo de
financeirizao dos negcios imobilirios, comportam formas de tenso e
instabilidade que exprimem, em ltima anlise, as dificuldades de
compatibilizar processos e agentes cujos horizontes e lgicas
espao-temporais de ao so marcadamente dissonantes.Consideraes
finais 34A financeirizao do circuito imobilirio teve como
requerimento bsico a construo e/ou aprimoramento de canais por
intermdio dos quais os grandes investidores financeiros
internacionais puderam, de forma cada vez mais eficaz e sistemtica,
se apoderar dos rendimentos produzidos pela reestruturao do espao
urbano e regional no Brasil. A criao desses canais pressupe uma
complexa arquitetura econmica e poltico-institucional, sugerindo
que a presena do Estado aqui indispensvel. Alm disso, para que os
grandes investidores financeiros notadamente, os grandes fundos
coletivos de aplicao e os assim chamados investidores
institucionais pudessem se interessar pelo mercado imobilirio
urbano, foi necessrio criar mecanismos para flexibilizar a
propriedade imobiliria urbana, metamorfoseando essa ltima em papis
(recebveis imobilirios, cotas de fundos de investimento imobilirio,
aes de incorporadoras etc) negociveis em mercados secundrios
regulados e supervisionados pelo Estado.35O que pretendemos
demonstrar nesse artigo que a financeirizao dos negcios imobilirios
dependeu, tambm, para seu xito, de um rearranjo escalar do processo
de urbanizao. Em outras palavras, a financeirizao envolveu a criao
e/ou redefinio das relaes travadas entre as escalas global,
nacional e local, um processo que necessariamente contraditrio.
Procuramos colocar em foco, aqui, algumas das contradies que
permeiam essa articulao entre as escalas no processo de
financeirizao do circuito imobilirio, centrando a anlise em dois
momentos: no nvel dos vnculos entre o global e o nacional, em que
destacamos as tenses que decorreram da inconstncia e incongruncia
dos critrios mediante os quais os investidores financeiros
internacionais tm avaliado o desempenho das grandes incorporadoras
brasileiras; e no nvel dos vnculos entre o nacional e o local, em
que observamos os obstculos enfrentados pelas grandes
incorporadoras, no mbito de sua poltica disperso territorial, que
decorreram de sua associao com empresas familiares locais com pouca
experincia ou capacitao para conduzir negcios no volume e na
qualidade requerida pelas parceiras maiores. Trata-se, portanto, de
uma configurao escalar que altamente instvel porque contm diversas
fissuras, embora essa instabilidade no tenha atingido um ponto de
ruptura.36Convm lembrar, finalmente, que os processos sociais de
produo e rearranjo de vnculos escalares medeiam, e ao mesmo tempo
so mediados, por relaes de poder, de tal forma que a reconfigurao
de hierarquias escalares produz geografias e coreografias de
incluso/excluso e dominao/subordinao que conferem poder a certos
atores, alianas e organizaes em detrimento de outras (Brenner,
2009, p.73). Alm disso, as hierarquias escalares podem operar no
apenas como arenas para lutas por poder social, mas tambm como
objetivos [dessas lutas] na medida em que essas hierarquias
escalares so desafiadas e perturbadas no curso das lutas e
conflitos sociopolticos por posicionalidade (Brenner, 2009, p.73).
Logo, preciso ver o arranjo escalar aqui discutido como uma
configurao que exprime, em ltima anlise, o poder adquirido pelos
grandes investidores institucionais e fundos de aplicao financeira
de ditar os rumos do desenvolvimento da economia capitalista e,
cada vez mais, tambm da urbanizao nas ltimas dcadas. Uma vez que se
deseje confrontar as condies econmicas e sociais que reduzem as
metrpoles brasileiras a extensos campos para valorizao de capitais
na esfera financeira, acentuando processos de segregao e fragmentao
socioespacial, necessrio colocar em pauta a construo de arranjos
escalares fundamentalmente diferentes, mais afinados com o que
Henri Lefebvre (2001) entendia por direito cidade.Topo da
pginaBibliografiaBallMichael,Housing policy and economic power: the
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do capital: negcios imobilirios e financeiros em SoPaulo, SoPaulo,
LABUR edies, 2008.Topo da pginaNotas1Para um estudo mais
pormenorizado dessas mudanas, ver Royer (2009). Botelho (2007) e
Fix (2011) tambm oferecem uma descrio e anlise dessas
transformaes.2A securitizao diz respeito transformao de um contrato
de dvida em um papel negocivel em mercados secundrios. Os CRIs so
ttulos que possuem rendimento derivado do pagamento das prestaes
(principal mais juros) das famlias que contraem emprstimos
habitacionais.3Estrangeiro leva 72,5% das aes vendidas pela Rossi.O
Globo, Rio de Janeiro, 15/10/2009.4VGV uma forma utilizada pelas
incorporadoras para contabilizar seu produto. Refere-se a soma do
valor potencial de todos os empreendimentos lanados.5Vale frisar
que em alguns casos no houve perda de participao relativa da regio
metropolitana de So Paulo, e sim uma disperso do restante dos
lanamentos da empresa por um nmero maior de estados da federao.6O
estado de So Paulo o nico que se encontra segmentado em dois: a
regio metropolitana e o interior.7Esse termo, vale frisar, no
empregado por todos esses autores, mas os sentidos das mudanas em
curso esto, de uma forma ou de outra, ilustrados nessas diferentes
pesquisas.8O trabalho de campo beneficiou-se de uma parceria com
dois colegas de Doutorado do Laboratrio de Geografia Urbana da USP:
Csar Simoni dos Santos e Svio Augusto Miele. A cooperao envolveu a
realizao de entrevistas, coleta de dados e, principalmente, um
debate contnuo sobre a natureza do processo de produo do espao das
metrpoles atuais, que contribuiu muito para algumas das reflexes
desse
artigo.9Cf.http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/pages/empresas_novo-mercado.asp.10Utilizaremos,
aqui, as entrevistas mencionadas apenas como fonte de informao.
Evidentemente que as percepes dos entrevistados esto imbudas de
representaes que so a traduo subjetiva do domnio prtico que esses
agentes possuem da estrutura social na qual se encontram imersos.
Por isso, sua viso de mundo tende, inevitavelmente, a naturalizar
as relaes sociais que conformam sua prtica cotidiana e a ignorar
manifestaes que expressam as contradies que essas relaes encerram.
Depreende-se, da, que deve ser mantido um distanciamento crtico
dessas representaes, que no podem, absolutamente, nortear a
argumentao. Vale lembrar, alm disso, que a discusso levada a cabo,
aqui, tambm dependeu de extensa pesquisa em fontes como publicaes
setoriais e peridicos econmicos.11Entrevista realizada em
24/10/2011 em SoPaulo.12Guidance uma espcie de planejamento anual
no qual as empresas indicam sua inteno em termos de lanamentos,
vendas, etc.13Entrevista realizada em 06/10/2011, em
SoPaulo.14Entrevista realizada em 27/10/2011, em SoPaulo.15Aqui
convm uma ressalva: nem todas as empresas que dispersaram seus
investimentos pelo pas o fizeram mediante o estabelecimento de
parcerias com empresas locais, algumas optando, ao invs disso, por
abrir sucursais ou escritrios regionais responsveis por gerir os
negcios em diferentes mercados. Isso no significa, contudo, que no
esteja em questo aqui um processo de articulao entre nveis
escalares distintos: toda incorporadora que deseje expandir
territorialmente seus negcios acabar por defrontar-se com a
necessidade de lidar com uma mirade de circunstncias econmicas e
sociais que diferenciam enormemente os mercados onde atua. Seu xito
ou fracasso no processo de expanso regional repousa,
fundamentalmente, sobre sua capacidade de ser suficientemente
flexvel para enfrentar essas circunstncias diferenciadas
encontradas na escala local.16Entrevista realizada em 21/10/2011,
em SoPaulo.17Entrevista realizada em 27/10/2011, em SoPaulo.Topo da
pginandice das ilustraes
TtuloMapa 1 Distribuio geogrfica das unidades lanadas pela
Cyrela em 20096
CrditosFonte: Relatrio anual da Cyrela.
URLhttp://confins.revues.org/docannexe/image/8494/img-1.png
Ficheiroimage/png, 146k
TtuloTabela 4 Dimenses escalares da financeirizao do espao
urbano
CrditosFonte: Elaborao do autor.
URLhttp://confins.revues.org/docannexe/image/8494/img-2.jpg
Ficheiroimage/jpeg, 184k
Topo da pginaPara citar este artigoReferncia eletrnicaDaniel de
MelloSanfelici, A financeirizao do circuito imobilirio como
rearranjo escalar do processo de urbanizao,Confins[Online],
18|2013, posto online no dia 17 Julho 2013, consultado o 15
Novembro 2014. URL: http://confins.revues.org/8494; DOI:
10.4000/confins.8494Topo da pginaAutorDaniel de
MelloSanfeliciDoutorando em Geografia Humana, Universidade de
SoPaulo (USP)[email protected]