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Editorial
A razo ltima, isto , a principal razo por que Deus criou o
homem, para que o homem tenha
conhecimento de Deus e o ame. E a inteno secundria pela qual
Deus o criou para que o homem
participe eternamente sem fim na glria com Deus.
Raimundo Llio.
Caros amigos leitores:
Permitam-me que me apresente.
Chamo-me Hubert Jean-Franois Cormier. Sou antroplogo e filsofo
franco-
brasileiro. Sou tambm catlico de tradio, expresso que prefiro a
catlico tradicionalista
por esta ltima evocar em mim laivos ideolgicos de amargas
lembranas.
O intuito da presente revista o de dar publicidade aos meus
pensamentos e
estudos. Gostaria de deixar bem claro que tudo, absolutamente
tudo, que lero nas pginas
desta revista de minha autoria.
Algum, curioso, poderia perguntar: mas porqu a necessidade de se
escrever uma
revista inteira sozinho? Vaidade? Egosmo? Desdm para com os
demais intelectuais de
nosso pas? No! Nenhum dos motivos acima numerados moveram-me a
uma publicao
solitria os motivos que advogo so os seguintes:
1 Todos sabem da situao de indigncia intelectual que grassa nos
meios
universitrios e na vida intelectual em geral. No querendo fazer
parte do grupo de
pseudopensadores e intelectuais que contribuem cada vez mais
para o aprofundamento da
atual situao resolvi retirar-me deste meio;
2 Algum leitor, sabedor da inclinao religiosa de meu pensamento,
poderia ser
levado a crer que minha participao em alguma revista acadmica ou
cultural seria uma
espcie de indicao da boa qualidade dos demais artigos, o que
seria um lamentvel
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engano. Para evitar que leitores cristos sejam levados a ler
idiotices ideolgicas pelo fato
de verem meu nome em uma publicao qualquer levando o estimado
leitor a desviar-se de
sua busca da verdade preferi abster-me de colaborar com qualquer
publicao que seja;
3 Os inevitveis protestos que ocorreriam pelos fanticos
ideolgicos que ao verem
meu nome em uma publicao acadmica moveriam mundos e fundos para
que a revista me
expulsa-se de seus quadros. Como sou adepto do adgio popular
cada macaco no seu
galho deixo o terreno das publicaes acadmicas e culturais de
nosso pas para os
macacos que as constituram. Da a necessidade de criar uma
revista que fosse veculo
unicamente de meu pensamento;
4 Mas o motivo que mais pesou em minha deciso de criar uma
revista unicamente
para mim foi o de que para mim a filosofia ser atividade
solitria e que convm aos
solitrios. No existe, no meu ponto de vista, filosofia coletiva,
todo e qualquer pensamento
fruto de um pensamento nico e intransfervel. Da eu preferir uma
revista que seja
reflexo de minhas idias e somente delas.
No me alinho com aqueles que acham que a situao atual to catica
que nada
pode ser feito para reparar. Sou otimista! Como todo cristo que
se preze tambm o , no
fico carpindo lgrimas diante dos destroos sem nada fazer em uma
atitude de covardia
perante o imenso trabalho que temos pela frente.
Sou catlico de tradio j o disse, mas gostaria que ficasse claro
que no sou do
nmero que suspira por um passado ideal, que chora por uma
pretensa idade de ouro
situada sem l em que tempo remoto de nossa histria.
Essa revista ser a minha modesta contribuio para ajudar queles
que buscam com
toda fora de sua inteligncia e de seu corao o caminho que leva a
verdade que Deus.
Cada nmero, que ter periodicidade indefinida, conter cinco
artigos versando cada
um sobre cinco temas diferentes, a saber: filosofia, religio,
arte, cincia e mstica. Cinco
artigos correspondendo s cinco chagas de Nosso Senhor Jesus
Cristo, cinco vias
tradicionais que conduzem verdade nica.
Com efeito, acredito plenamente na verdade nica e eterna que em
ltima instncia
o prprio Deus. Acredito tambm que existe uma multiplicidade
legitima de caminhos, ou
vias, que nos levam at ele.
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3
A filosofia pelo exerccio de nossa razo. A religio pela f1. A
arte pelo
sentimento. A cincia aplicando a racionalidade ao mundo fsico. A
mstica pelo silncio.
Em cada uma dessas linhas tenho delineado claramente quais os
autores e temas que
abordarei.
Em filosofia sigo, no somente nem em todos os
desenvolvimentos,
preferencialmente mestres como Aristteles, Toms de Aquino,
Francisco Suarez dentre
outros. No a toa que comeo estudando a filosofia da mente do
doutor Anglico posto
que para mim sua doutrina da mente ainda conserva ensinamentos
preciosos para o homem
contemporneo.
No artigo dedicado religio, dedico-me ao estudo de uma noo
precisa e
completamente esquecida pela Igreja aps o terrvel conclio
Vaticano II a noo de
Tradio.
Na arte atenho-me aos delineamentos de uma metafsica da msica
sacra catlica
que podemos inferir da leitura do motu proprio de So Pio X que
trata desse tema to
importante para a correta aplicao e vivncia dos sagrados
mistrios da liturgia.
No artigo sobre cincia comeo relatando os fatos de um triste
affaire. O affaire que
batizei com o nome de seu principal envolvido: Maurice
Allais.
Maurice allais, prmio Nobel de economia (1988) tem seu lado de
pesquisador
diletante em fsica. S que como resultado de suas experincias, o
que aconteceu foi uma
colocao em evidncia de que os resultados da teoria da
relatividade de Albert Einstein
esto todos equivocados! Imaginem, caro leitor, a cincia tem
gastado rios de papel para
glorificar o gnio de Einstein e vem um diletante e coloca abaixo
todo o edifcio relativista
com um s golpe. O fato que em torno de Maurice Allais existe uma
conspirao do
silncio para que o resultado de suas pesquisas no sejam
divulgados e levados em
considerao e que o mito da genialidade do farsante Albert
Einstein no venha tona.
Se Maurice Allais estiver correto a teoria da relatividade ser
considerada como o
maior erro da histria da cincia e Einstein no mais ser visto
como gnio mas como um
incompetente que levou a fsica e com ela toda a cincia por
caminhos falsos. Durma-se
com um barulho desses!
1 Ainda que no s por ela, j que a religio catlica advogando a
necessidade da f no relega em momento algum a necessidade da razo.
Pensar o contrrio seria cair em fidesmo posio indefensvel segundo o
ponto de vista catlico.
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4
O artigo sobre mstica trata sobre a devotio moderna, movimento
espiritual do final
da idade mdia, e quer com isso mostrar que a modernidade longe
de ser s idiotices pode
sim ter como base o amor a Deus.
Cada artigo no esgotando os temas abordados ser retomado em
nmeros
posteriores, assim fica inteligvel a numerao em romanos que
precede cada artigo. Mas o
leitor que por ventura ler o artigo de nmero II, por exemplo, de
uma determinada srie de
estudos no perder com isso a inteligibilidade do artigo em
questo, pelo menos o que
espero.
Como no disponho de tempo suficiente para orientao em
pesquisas
particulares que nossos estimados leitores por ventura estejam
desenvolvendo tenho por
regra no me deter em longas correspondncias com leitores e isso
com o maior sentimento
de gratido e reverncia por todos aqueles que se relacionam
comigo de uma determinada
maneira.
Os leitores no vero meu nome em lista de simpsios, congressos,
palestras,
entrevistas jornalsticas ou programas televisivos. No me encaixo
no perfil do intelectual
miditico.
Que Deus Nosso Senhor abenoe meus caminhos.
Um grande abrao a todos
Hubert Jean-Franois Cormier.
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A filosofia da mente de Santo Toms de Aquino I
Quaestiones disputatae de veritate
Questo XV
A razo superior e a razo inferior2
A perfeio de uma natureza espiritual consiste no conhecimento da
verdade.
Santo Toms de Aquino.
O problema da razo superior e da razo inferior antigo no
cristianismo. Com esta
nomenclatura a questo foi colocada por Agostinho no seu
magistral livro A Trindade. A
partir de ento muita tinta correu e com ela muitas doutrinas,
algumas de vis
marcadamente gnsticas, que tentavam a partir desta distino
legtima operada pelo bispo
de Hipona justificar as mais descabidas interpretaes.
O problema da diferenciao entre razo superior e razo inferior
comporta
basicamente duas questes:
1 Se existe no homem uma potncia diferente e superior razo
denominada
intelecto. o que trataremos na primeira parte de nosso
artigo;
2 Para este estudo utilizamos a traduo francesa da Questo
Disputada sobre a Verdade Questo XV: Questions Disputes sur la vrit
Questions XV, XVI, XVII. ditions Vrin. Paris. 1991.
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2 Se podemos subdividir a razo em superior e inferior. Dada a
resposta afirmativa,
o que seria a razo superior e inferior? Quais os seus objetos de
conhecimento? So
questes que trataremos na segunda parte de nosso artigo.
A polmica sobre o intelecto e razo no acabou com a interveno de
Santo Toms
de Aquino, ao contrrio, muitos dos dominicanos que tentavam
completar a obra do mestre
no sentido de dar-lhe um acabamento mstico3 claramente retomam a
concepo de que a
alma humana possusse o que eles denominavam a ponta fina da alma
que seria
precisamente por onde se operaria a presena divina em ns, e que
corresponderia
precisamente quilo que denominamos aqui de intelecto, que se
diferenciaria claramente da
razo por ser incriada e por no operar de maneira discursiva
dividindo e compondo como
prprio da faculdade racional.
Santo Toms aborda essa delicada questo com sua costumeira
clareza e o seu
ponto de vista que esboaremos nas linhas que se seguem.
I
A razo est para o intelecto como o movimento para o repouso.
Santo Toms de Aquino.
Para Toms de Aquino, toda criatura espiritual, e nessa categoria
encaixa-se o
homem que cidado do mundo material, por seu corpo, e cidado do
mundo espiritual,
por sua alma, e os anjos que so seres puramente espirituais, j
que no possuem corpo,
dotada, necessariamente, da faculdade cognoscitiva. Dentre as
inteligncias das criaturas
espirituais a menos desenvolvida , precisamente, a dos homens, e
pelo fato de esta ser to
infirma se comparada com a inteligncia anglica, deve-se ao fato
de que a origem e
processamento do conhecimento nos homens e nos anjos serem
diferentes.
Com efeito, para Toms, as realidades humanas e anglicas no podem
ser
confundidas. O conhecimento anglico obtido por uma via que j no
aquela que nos
prpria, mas que nos ser restituda na ptria celestial. Da a
recusa de Toms de Aquino de
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admitir qualquer recurso iluminao divina quando do processo
cognitivo humano em sua
presente situao ontolgica.
Mas se a inteligncia humana diferencia-se claramente da
inteligncia anglica isso
no quer dizer que no possam existir correspondncias entre elas.
Mas sejamos bem claros
aqui. O mestre Toms de Aquino no admitindo ao homem conhecimento
por iluminao
divina, conhecimento este prprio aos anjos somente, nos lembra
que a criao de Deus no
foi feita por acaso nem opera de maneira catica. Todos os seres
criados por Deus
encontram-se analogados por uma imensa cadeia hierrquica onde
cada elo da cadeia
recebe o influxo do grau superior e passa esse mesmo influxo
para o grau imediatamente
inferior. Decorre da que o homem, ser naturalmente inferior aos
anjos, participa de
maneira pequena, mas no nula, da natureza anglica. Quanto
doutrina da inteligncia
isso fica claro, segundo o Aquinate, pelo fato de possuirmos
intuitivamente a noo de
princpios primeiros do conhecimento, que, inatos, possuem,
precisamente, a natureza dos
dados recebidos por intuio como proprio das inteligncias
superiores ao homem.
Assim, a razo humana participa um pouco da operao cognitiva que
encontramos
nos anjos, mas no fazemos isso em todos os nossos atos
cognitivos, seno seramos anjos e
no homens. Mas segundo a doutrina da hierarquia das criaturas
que Toms de Aquino
retira do livro dos nomes divinos de Dionsio Areopagita o que
temos o seguinte quadro
no que compete s inteligncias das criaturas:
Anjos Intelecto
Intelecto
Homem Razo discursiva
A faculdade intelectual prpria ao homem a razo, mas
participamos, de uma certa
maneira, das operaes do intelecto, sobretudo atravs dos
primeiros princpios do
conhecimento percebido de maneira intuitiva4.
Razo
Animais Superiores Sagacidade Natural
3 o caso preciso dos autores dominicanos da escola da mstica
renana tais como Suso, Tauler e principalmente Mestre Eckart. 4 A
participao a uma natureza superior no quer dizer que a possuamos em
sua perfeio em nossa natureza anmica, ao contrrio, Santo Toms
categrico quando nos diz: a mesma potncia em ns que conhece a
simples qididade das coisas, que forma as proposies e constri os
raciocnios. Op. Cit. P. 43. Do que fica
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8
Os animais no possuem, propriamente falando, nenhuma operao
intelectual. O
que constatamos em algumas espcies aquilo que Toms denomina
sagacidade natural, ou
capacidade de estimao, e isso devido pequenina participao que
estes animais possuem
na racionalidade humana o que se apresenta como capacidade de
estimar determinadas
situaes em que se encontram.
Devemos sublinhar que quem participa de algo no detm a perfeio
daquilo em
que participa. Deste modo, a razo humana no detm, com toda a sua
perfeio, a
faculdade intelectual dos anjos, o mesmo devendo ser dito dos
animais em relao a ns.
o que ele claramente nos diz:
No existe no homem uma faculdade especial que lhe d simples e
absolutamente, de maneira
no discursiva, o conhecimento da verdade, se este conhecimento
existe nele, segundo um hbito
natural que chamamos inteligncia dos princpios.
No existe no homem uma potncia distinta da razo, potncia esta
que se chamaria intelecto,
a prpria razo que chamamos de intelecto5.
Maior clareza, impossvel. Santo Toms categrico: o homem no pode
receber e
processar o conhecimento a no ser por via sensitiva e, a partir
da, ir subindo por uma
escalada abstrativa at chegar ao conhecimento qiditativo,
estando vedada nossa
inteligncia a apreenso simples e direta da qididade dos seres,
ato esse prprio da
potncia intelectual anglica. Os atos racionais e os atos
intelectuais so diferentes e
precisam, para serem exercidos, de potncias distintas que o
homem no possui: o ato da
razo que consiste em circular e o do intelecto que o da simples
apreenso da verdade
esto relacionados entre si como est a gerao e a existncia, o
movimento e o repouso6.
Seria angelismo procurarmos dotar ao homem daquilo que somente
os anjos
possuem. O repouso prprio das operaes exclusivamente imateriais,
espirituais, o
conhecimento racional humano no capaz disso, ao menos
imediatamente7. Para
dito acima, clarssimo que Toms de Aquino no admite uma outra
potncia anmica no homem que no seja a da racionalidade. 5 Op. Cit.
P. 37. 6 Op. Cit. P. 39. 7 Uma das diferenas mais gritantes entre
intelecto e razo precisamente o fato de: o intelecto designa um
conhecimento simples e absoluto. Com efeito, no dizemos de algum
que ele intelige porque l, de alguma maneira, a verdade, no
interior da essncia mesma da coisa? Pelo contrrio, a razo designa
uma espcie de movimento discursivo pelo qual a alma humana se
aplica ou passa a um conhecimento. Op. Cit. P. 33. O
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chegarmos ao conhecimento das qididades dos seres temos que
comear por alguma
informao sensitiva existente, portanto, se faz necessrio para
nosso conhecimento um
espao a ser percorrido e um tempo a ser executado, j que no
temos conhecimento por
simpatia, no possumos acesso imediato as qididades dos seres
que, fato sabido,
ignoramos8.
Na perspectiva tomista, o homem conhece atravs do movimento de
seus sentidos e
de sua razo, juntando peas distintas, sensaes dispares, e
concebendo conceitos
correlativos as sensaes percebidas9.
Teramos ento, para Toms de Aquino, a seguinte escalaridade
cognitiva:
1 Os sentidos que conhecem as formas na matria;
2 A imaginao que conhece as formas imateriais,
desmaterializando, por assim
dizer, a sensao, mas no as determinaes da matria. Neste nvel no
temos informaes
materiais, por estarmos na imaginao, faculdade imaterial. O que
temos so as species das
coisas conhecidas sensorialmente e que agora esto contidas na
imaginao, mas esta, no
abstrai os acidentes, ou as determinaes materiais com as quais
os seres se revestem
inevitavelmente, da que na imaginao conhecemos os seres
imaterialmente, mas no
desprovidos de suas determinaes materiais;
3 A razo humana que conhece a forma essencial dos seres, sem
matria alguma,
sem nenhum trao de individualidade, da dizermos que conhecer
conhecer o universal e
que no existe cincia do particular.
Assim, seguindo o esquema traado acima, no temos a possibilidade
de conferir ao
homem uma potencialidade que exterior sua natureza decada e,
portanto, no
possumos em ns o intelecto e suas operaes.
Mas aqui uma objeo poderia aparecer. No momento final da
escalada cognitiva
ns homens, tambm no chegamos, por uma via tortuosa, certo, ao
conhecimento
qiditativo dos seres? E isso no seria precisamente afirmar que
tambm possumos o
intelecto no precisa de informaes sensitivas, vai direto as
qididades, a razo discursiva, move-se do mais grosseiro ao mais
sutil, do individual ao universal e assim por diante. 8 o que
textualmente ele nos diz quando afirma que: prprio ao conhecimento
humano a particularidade de comear pelos sentidos e imagens. Op.
Cit. P. 45. 9 O que no , de maneira alguma, o caso dos anjos. Com
efeito, os anjos possuem uma inteligncia deiforme e por isso
conhecem os seres e suas verdades por participao na divina
sabedoria. Os anjos conhecem sem movimento algum, de maneira
exttica, precisamente por serem substncia espiritual. O homem
conhece por movimento, compondo e dividindo, por ser uma substncia
racional.
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intelecto anglico que conhece, ainda que imediatamente, as
qididades dos mesmos seres?
Respondo dizendo que para Toms todo conhecimento intelectual
conhecimento imaterial
de uma qididade e, portanto, assemelha-se como resultado final
tanto ao conhecimento
humano quanto ao anglico, o que no significa que conheamos da
mesma forma nem que
utilizemos o mesmo processo e a mesma fonte de informao.
Tratamos acima da posio de Toms a respeito da presena em ns da
potncia
intelectual e de suas operaes10, passemos agora a esmiuar se,
para ele, podemos dizer
que a razo superior e a razo inferior so duas razes que possumos
em nossa mente ou
no.
II
A natureza da alma racional possui poderes no tocante ao domnio
da natureza sensitiva ou
vegetativa, mas no sobre o que diz respeito natureza intelectual
que lhe superior.
Santo Toms de Aquino.
Vimos claramente, no tpico anterior, que no existe no homem, ao
menos como
potncia anmica, o intelecto, cabendo a ns apenas a razo
discursiva. Discutiremos agora
se a razo pode, na perspectiva tomista, subdividir-se em razo
superior e razo inferior.
No segredo algum que Toms dialoga o tempo inteiro com Agostinho.
No que
tange ao problema da razo superior e inferior o Aquinate,
conservando a terminologia
proposta pelo mestre de Hipona, posiciona-se a seu modo diante
desta questo to
importante.
Para ele existe uma nica potncia cognitiva no homem, que pode
desdobrar-se
segundo os objetos visados por ela: evidente que razo superior e
inferior no designam
potncias diferentes, mas uma nica e mesma potncia que se presta
diversamente em
10 No se engane o estimado leitor que lendo em Toms em variados
trechos de seus escritos o termo intelecto que Toms de Aquino em
algum momento de seu pensamento tenha abandonado a posio aqui
anunciada. Para ele quando usamos a palavra intelecto razo que
estamos referindo como que a um sinnimo.
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situaes diversas.11 As situaes diversas referidas nas palavras
de Toms so,
precisamente, a diversidade de seres e de suas respectivas
gradaes na hierarquia da
criao que faz com que nossa razo se desdobre. Com efeito, ao
exercermos a nossa
faculdade cognitiva para os seres inferiores ao homem, no
precisamos mais que a razo
que compe e divide para conhecer imaterialmente aquilo que nos
inferior. J quando nos
reportamos a seres superiores a ns, como o caso expresso de
Deus, com a razo
superior que o fazemos. Trata-se aqui muito mais de uma
diferenciao de objetos de
conhecimento de uma mesma potncia que duas potncias cognitivas
operando no interior
da mente humana.
Mas o que seria precisamente a razo superior e a razo inferior?
Quais suas
caractersticas? Quais suas operaes? o que tentaremos responder a
seguir.
Em primeiro lugar, tentemos abordar o fato de que se temos uma
nica potncia
racional, o que faz com que ela se bifurque em seu exerccio?
Para Toms isso muito
simples de ser resolvido. Basta levarmos em conta que uma
potncia para passar do estado
de potncia ao ato tem que se conformar ao seu ato como a seu
termo e quando este ato
dirige-se a seres inferiores ao homem suas funes adaptam-se a
tais atos:
Toda potncia da alma quer seja ela ativa ou passiva,
relaciona-se ao seu ato como a seu fim.
[...] Por conseguinte, cada potncia possui sua maneira de ser
especfica, em funo das possibilidades
de adaptao a tal ato. Da o porque de as potncias se
diversificarem na proporo que a diversidade
dos atos exigirem princpios diversos em vista de emiti-los. De
outra parte, o objeto sendo para o ato
como que um termo e os atos sendo especificados pelos seus
termos segundo o livro V da fsica,
necessrio que os atos se distingam tambm segundo os objetos e,
por conseguinte, a diversidade dos
objetos determine a das potncias12.
Do acima dito fica claro que o ato cognitivo humano voltado para
os seres que lhe
so inferiores determina a maneira como utilizaremos a nossa
potncia cognitiva. Da
denominarmos a operao cognitiva desta operao como sendo
realizada pela razo
inferior. Mas se a natureza dos objetos pode diferenciar uma
operao cognitiva ad extra, o
mesmo no ocorre ad intra j que no nvel puramente imaterial a
diferenciao no
determinada pelos objetos, mas por suas formas. Com efeito, Toms
de Aquino nos ensina
11 Op. Cit. P. 67. 12 Op. Cit. P. 61.
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12
que podem existir diferentes tipos de atos: os atos podem ser
fsicos tais como os de ouvir,
cheirar, degustar etc. ou formais que se destinam no matria, mas
s suas determinaes
formais e a precisamente onde aparece a diviso das potncias em
intelectual e volitiva
dado que para o conhecimento da verdade o ato formal requerido o
da potncia intelectual
e para a realizao do bem o ato formal requerido o da potncia
volitiva:
Quanto parte da alma que em suas operaes no se utiliza de rgos
corporais, ela
permanece indeterminada e de uma certa maneira infinita, na
medida em que imaterial, sua
competncia estende-se ao objeto comum a todos os seres. por isso
que dizemos que o objeto da
inteligncia essa qualquer coisa (esse quid) que se encontra em
todo gnero de ser o motivo pelo
qual o filsofo declara: o intelecto aquilo pelo qual somos
capazes de tudo fazer e de transformar-se
em tudo. No , portanto, possvel, na parte intelectiva, de se
fundar uma distino de potncias sobre
uma diferena de natureza entre os objetos, mas somente sobre uma
diviso formal dos objetos, na
medida precisa em que o ato da alma pode direcionar-se para uma
s e mesma realidade sob pontos de
vistas diversos. por isso que na parte intelectual a verdade
fundamenta a diferena da inteligncia e
da vontade. Com efeito, a inteligncia dirige-se ao verdadeiro
inteligvel como para uma forma, visto
que a inteligncia deve ser informada do que o objeto de
inteleco, enquanto a vontade dirige-se ao
bem como a um fim, o que fez dizer o filsofo, Metafsica livro
VI, que a verdade encontra-se no
esprito e o bem nas coisas a forma sendo intrnseca e o fim
extrnseco13.
Sendo assim, para atos formais diferentes, potncias anmicas
diferentes so
requeridas. Enquanto no seio da mesma potncia, no caso a potncia
cognitiva humana,
podemos dizer que existe uma diferenciao de acordo com as
distines dos objetos.
Cada ato determinado pela fora de seu objeto e o objeto do
intelecto :
Essa qualquer coisa, como dito no livro III da alma, e, por
conseguinte, o intelecto estende
sua ao to longe quanto pode estender. Ora, precisamente o caso
dos primeiros princpios que
primeiramente tornam-se conhecidos: isso adquirido continuamos o
raciocnio e chegamos ao
conhecimento das concluses. Aristteles denomina cientfico este
poder que o mesmo de concluir
resolutivamente a qididade. Mas existem realidades que no
permitem uma resoluo chegue a
qididade e isto por causa de sua indeterminao ontolgica o caso
das realidades contingentes
enquanto contingentes14.
13 Op. Cit. P. 63. 14 Op. Cit. P. 69.
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13
No podemos ter um conhecimento cientfico das realidades
particulares, da no
podermos ter um conhecimento qiditativo dos contingentes
enquanto contingentes. Neste
caso nosso conhecimento opinativo, no cientfico.
Tendo clarificado de vez a posio de Toms de Aquino no tocante
razo superior
e inferior resta-nos sublinhar que, para ele, as operaes
cognitivas que cabem ao homem,
foram afetadas pela queda, conseqncia direta do pecado de nosso
primeiro pai. Assim:
Se bem que a razo superior no esteja em contato imediato com a
carne, entretanto, a
corrupo da carne a atinge na medida onde as potncias superiores
recebem das potncias
inferiores.15 o erro supremo dos platonismos de todos os
matizes, o de recusarem-se a
ver o homem em sua presente condio, que se encontra ferida, e
com ela enfraquecida em
todas as suas potncias e operaes.
O realismo do diagnstico nos leva a um realismo de nossa situao
e de nossas
possibilidades deixando de lado toda e qualquer referncia a
utopias e desvarios to
prprios do homem contemporneo. um recado precioso e direto de um
santo e sbio
medieval para o homem de todos os tempos.
15 Op. Cit. P. 123.
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A noo de Tradio no cristianismo (I)
O que foi desde o princpio, o que ouvimos, o que vimos com
nossos olhos, o que miramos, e
palparam nossas mos do verbo da vida. Porque a vida foi
manifestada e ns a vimos, e damos dela
testemunho, e ns vos anunciamos esta vida eterna, que estava no
Pai e que nos apareceu a ns outros, o que
vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que tambm vs tenhais
comunho conosco, e que a nossa
comunho seja com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo. E essas
coisas vos escrevemos para que vos alegreis,
e a vossa alegria seja completa.
1 Joo 1-4.
Na recente eleio de Sua Santidade o Papa Bento XVI vimos a
imprensa torcer o
nariz por sua eleio simplesmente pelo fato dele ser a garantia
da manuteno do depsito
da f catlica. Com Bento XVI a chance da Igreja modernizar-se" em
sua doutrina so
quase que nulas o que, evidentemente, mal visto por uma imprensa
vida por novidades e
que incapaz de compreender minimamente as realidades religiosas,
seus contextos, seu
tipo de pensamento e suas conseqncias prticas para os fiis que a
ela aderem com toda
firmeza e sinceridade de que so capazes.
Tendo em vista esse quadro desolador achamos por bem explorar um
conceito
completamente esquecido pelo mundo ps-moderno, o conceito de
Tradio. O que
Tradio? Qual a sua importncia para o cristianismo? O que implica
esta noo? E o que
tentaremos desenvolver nesse artigo.
I
Carssimos, eu no vos escrevo um mandamento novo, mas sim os
mandamentos velhos, que vs
recebestes desde o princpio: este mandamento velho a palavra que
ouviste desde o princpio.
1 Joo 2, 7.
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15
As palavras transcritas acima e que servem de epgrafe para a
presente reflexo so
a base mesma da noo de tradio para o cristianismo. Com efeito,
no versculo jonico
supracitado, salta aos olhos a importncia do princpio, no
qualquer princpio, mas "aquilo
que era desde o princpio", a prpria fonte da vida e do ser que
est para alm de toda vida
e de todo ser, eis o "princpio" a partir do qual toda e qualquer
noo de tradio autntica
apoia-se no cristianismo.
A fidelidade ao princpio essencial a pensamento religioso, no se
entende nada de
religio se no se tem em mente essa noo. O pensamento religioso
cristo fruto de uma
revelao, e por isso recepo de algo que transcende a simples
capacidade humana de
produzir uma tal doutrina. Assim, a tradio comea a desvelar todo
o seu contedo e
importncia.
Com efeito, s podemos falar de tradio no cristianismo quando nos
atemos a um
fato que trs as seguintes caractersticas:
1 Trata-se de uma doutrina de origem no humana, que existe desde
o princpio, que
fonte da vida e do ser, obtida por revelao e que contm
ensinamentos preciosos para a
perfeio do homem16;
2 Trata-se de uma doutrina essencial, atemporal, que no pode ser
modificada em
seu ncleo17 sob pena de falsificao no s da doutrina, mas do
prprio homem que deixa
de poder realizar-se plenamente como homem;
3 Se uma doutrina de origem no humana nos comunicada para que
ela seja
guardada e retransmitida o que pressupe a fidelidade dos
guardies da doutrina recebida
prpria doutrina.
Das trs caractersticas enumeradas acima podemos depreender
algumas concluses
importantes.
Se a doutrina de origem no humana e que com a simples utilizao
natural de
nossas potncias anmicas no poderamos obt-la a venerao por tal
ensinamento se faz
necessria, da se explicar o devotamento religioso de populaes
inteiras por seus escritos
16 o que fica claro quando So Joo nos diz "que vossa alegria
seja completa". Assim, somente com a fidelidade doutrina
tradicional, a alegria do homem, a sua perfeio, poder ser completa.
17 O ncleo da tradio imutvel. O que passvel de mudana aquilo que
muda com o tempo e que pode adaptar-se a ele sem nenhuma falsificao
da doutrina. Exemplo disso a mudana ao longo do tempo da idade
necessria para se receber a primeira comunho, mas no se mudou com
isso a verdade sobre a Eucaristia.
-
16
sacros, j que sendo de origem divina, contm em si toda a verdade
necessria para sermos
homens em toda plenitude. Podemos agora compreender, em toda sua
profundidade, o
mandamento de se honrar Pai e Me: "honra a teu pai e a tua me,
como te mandou o
Senhor teu Deus, para viveres largo tempo, e para seres bem
sucedido na terra que o Senhor
teu Deus est para te dar.18
Honrar Pai e Me ser fiel origem, ao princpio, e, sendo assim,
seremos bem
sucedidos na vida eterna que Deus nos prometeu. Mas essa
fidelidade a uma doutrina, a um
princpio, , propriamente, o que torna impossvel o dilogo entre o
pensamento religioso e
o homem moderno e ps-moderno, que desonrando Pai e Me acha que
honra melhor a si
mesmo, que sendo fiel s novidades estar cumprindo plenamente sua
liberdade. E que os
mundos moderno e ps-moderno baseiam-se no mais fidelidade a um
princpio
transmitido fielmente por tradio de gerao em gerao, mas que o
mundo moderno,
como revela sua etimologia o mundo da moda, do efmero, do
transitrio e o que se quer
precisamente poder escolher democraticamente princpios que
guiaro o homem
provisoriamente at que se elejam outros que sero substitudos
quando, por sua vez, estes
caducarem.
A tradio possui tambm, uma unidade de pensamento, um
delineamento preciso
de caractersticas que a faz profundamente identitria, e,
consequentemente faz dos seus
fiis portadores desta mesma identidade, fato esse abominvel aos
olhos do homem
contemporneo que sente verdadeira ojeriza por qualquer
identidade bem definida19.
A tradio no identificvel com seu portador, no assimilamos uma
tradio,
assimilamos uma ideologia no uma tradio espiritual autntica. O
homem vive pela e na
tradio, no se torna a tradio como ocorre na identificao mimtica
a uma ideologia
poltica, religiosa ou filosfica que pertencem mais propriamente
ao domnio das patologias
psquicas humanas que a um pleno desenvolvimento espiritual do
homem20.
Tradio deste modo identidade na alteridade, no somos a tradio,
mas apenas
orientados por ela. Aqui vemos claramente que uma tradio
espiritual autntica est para
18 Deuteronmio 5, 16. 19 Qualquer fidelidade a uma doutrina
religiosa , hoje em dia, simplesmente, rotulada de fanatismo. 20 As
ideologias contemporneas so frutos do que poderamos nomear como
contra-tradio, fruto do decaimento de uma doutrina espiritual em
pseudodoutrinas de cunho psicolgico e sentimental sem nenhum
compromisso com a verdade essencial do homem. O homem que se
submete a uma ideologia escravo dela, e
-
17
alm de todo individualismo, posto que, a tradio remete ao supra
individual, a que
transcende mera subjetividade e ao mesmo tempo desvia-se de todo
coletivismo j que a
adeso mimtica a um modelo totmico qualquer o anverso do
pensamento tradicional j
que a identidade pessoal deve ser preservada e elevada sua
perfeio pela tradio21.
Por fim, a tradio intermediadora. Sim! A tradio elo que liga o
homem ao
princpio, seja atravs de uma doutrina sagrada, seja atravs da
objetivao desta doutrina
em uma instituio que seria a guardi do depsito desta mesma
doutrina.
no Senhor de si mesmo. Um catlico adepto da teologia da libertao
muito mais passvel de fanatismo poltico do que portador da paz
espiritual herana legtima que o proprio Cristo nos deixou.
-
18
A msica sacra segundo So Pio X22
Ressoe os salmos no sbrio banquete: e, como tens memria tenaz e
voz canora, assume esse ofcio
segundo o costume em moda: a pessoas a ti carssimas ofereces
maior nutrimento se da nossa parte houver
uma audio espiritual, e se a doura religiosa deleitar o nosso
ouvido.
So Cipriano.
Com a revoluo litrgica operada pelo conclio Vaticano II, o Papa
Paulo VI, com
um nico golpe, destruiu, ao mesmo tempo, o carter sacrificial da
santa missa e aboliu
todo e qualquer sinal de sagrado na mesma liturgia.
A liturgia catlica, culto sacratssimo e digno dos mais altos
louvores, sofreu com
isso um duro revs, e, como conseqncia desse duro golpe,
assistimos a uma verdadeira
invaso, sem igual em dois mil anos de histria do cristianismo,
do profano nos lugares e
aes sagrados.
Como efeito vimos o sacerdote reduzir-se a um mero presidente da
assemblia e,
com ele, todo carter transcendente do culto catlico esvair-se.
Quanto msica litrgica o
desastre completo.
Em primeiro lugar, verificamos que o que ocorre na missa nova
que a msica, que
nem necessrio dizer completamente profana e de um
sentimentalismo sem igual,
comanda a liturgia o que claramente contraria a recomendao de so
Pio X no motu
proprio que hora estudamos: condenvel, como abuso gravssimo, que
nas funes
eclesisticas a liturgia esteja dependente da msica, quando certo
que a msica que
parte da liturgia23.
21 Liberalismo e socialismo so perverses, conscientemente
elaboradas, das verdades crists a ponto de Chesterton ter dito que
o mundo moderno ser o resultado das "virtudes crists tornadas
loucas". 22 Notas sobre a doutrina da msica sacra referente ao Motu
Proprio Tra Le Sollecitudini. 23 So Pio X. Motu Proprio Tra Le
Sollecitudini. In: Documentos sobre a msica litrgica. Editora
Paulus. So Paulo. 2005. P. 21.
-
19
Depois, o carter da msica nada mais possui de sagrado e isso se
evidencia tanto
pela estrutura interna da msica quanto pelos instrumentos
musicais utilizados24.
Mas deixemos de lado as aberraes sadas do conclio Vaticano II e
atenhamo-nos
aos ensinamentos salutares emanado do magistrio eclesistico de
antes do malfadado
conclio.
So Pio X, o ltimo Papa santo, foi o homem da tradio por
antonomsia nos anos
iniciais do sculo XX. Sua ao benfica em prol da manuteno da
doutrina tradicional da
Igreja certamente uma das glrias de seu pontificado. Neste
artigo, no trataremos deste
assunto, mas vamos nos ater a seu ensinamento especfico sobre a
msica sacra.
Como legtimo bom pastor, So Pio X, comea seu motu proprio sobre
a msica
sacra lembrando que uma de suas principais ocupaes precisamente
a de:
Entre os cuidados do ofcio pastoral, no somente desta Suprema
Ctedra, que por
inescrutvel disposio da Providncia, ainda que indigno, ocupamos,
mas tambm de todas as Igrejas
particulares, e, sem dvida, um dos principais o de manter e
promover o decoro da Casa de Deus,
onde se celebram os augustos mistrios da religio e o povo cristo
se rene, para receber a graa dos
Sacramentos, assistir ao Santo Sacrifcio do altar, adorar o
augustssimo Sacramento do corpo do
Senhor e unir-se orao comum da Igreja na celebrao pblica e
solene dos ofcios litrgicos. Nada,
pois, deve suceder no templo que perturbe ou, sequer, diminua a
piedade e a devoo dos fiis, nada
que d justificado motivo de desgosto ou de escndalo, nada,
sobretudo, que diretamente ofenda o
24 fato conhecido por todos que nas igrejas catlicas, a partir
da revoluo litrgica do Vaticano II, vemos, e ouvimos,
lamentavelmente, a liturgia ser acompanhada, quando no dirigida,
por baterias, guitarras eltricas e outros instrumentos
expressamente proibidos por So Pio X em seu motu proprio: proibido,
na igreja, o uso do piano bem como de instrumentos fragorosos, o
tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes.
rigorosamente proibido que as bandas musicais toquem nas
igrejas, e s em algum caso particular, com o consentimento do
ordinrio, ser permitida uma escolha limitada, judiciosa e
proporcionada ao ambiente de instrumentos de sopro, contanto que a
composio seja em estilo grave, conveniente e semelhante em tudo s
do rgo. So Pio X. Op. Cit. P. 20.
Tal proibio no advm simplesmente de uma mente conservadora que
se recusa a dialogar com seu tempo, ao contrrio, fruto da convico
de uma mente retamente constituda de que somente deve ser digno de
se manifestar no mundo fsico quilo que corresponde a um princpio
metafsico quanto mais naquilo que tange s realidades sagradas e,
tais princpios metafsicos devem ser apontados pela razo e pelo
ensinamento magisterial da Igreja.
Quando tais normas no so obedecidas, como acontece presentemente
um pouco por todo o mundo, o que encontramos o contrrio do
pretendido pela Igreja em seu ensinamento. Com efeito, ao
adentrarmos em qualquer igreja catlica contempornea o que escutamos
uma cacofonia de sons fruto da anterior cacofonia de crenas advindo
do abandono da metafsica tradicional da Igreja e substituio
arbitrria desta por uma adaptao equivocada ao mundo moderno feita
geralmente s pressas e de qualquer maneira.
-
20
decoro e a santidade das sacras funes e seja por isso indigno da
Casa de Orao e da majestade de
Deus25.
E em virtude de sua autoridade apostlica relembra aos fiis do
mundo inteiro qual
seriam os princpios gerais, atravs dos quais, poderamos
considerar uma msica como
sendo sacra:
1 A msica sacra participando da liturgia participa de seus fins,
quais sejam: a glria
de Deus e a santificao dos fiis26;
2 A msica sacra deve manter o decoro e esplendor das sagradas
cerimnias
aumentando a eficcia dos textos levando os fiis piedade e
preparando-os melhor para os
frutos da graa27;
3 A msica sacra deve possuir santidade e delicadeza de forma;
28
4 A msica sacra deve ser universal29.
Os critrios so simples e lmpidos e de uma eficcia totalmente
comprovada
quando retamente aplicada. Dados os critrios, So Pio X, indica o
canto gregoriano como
sendo a msica que melhor rene estas caractersticas e prope-na
como modelo:
Estas qualidades encontram-se em grau sumo no canto gregoriano,
que por conseqncia o
canto prprio da Igreja Romana, o nico que ela herdou dos antigos
Padres, que conservou
cuidadosamente no decurso dos sculos em seus cdigos litrgicos e
que, como seu, prope
diretamente aos fiis, o qual estudos recentssimos restituram sua
integridade e pureza. Por tais
motivos, o canto gregoriano foi sempre considerado como modelo
supremo da msica sacra, podendo,
com razo, estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composio
religiosa ser tanto mais sacra e
litrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspirao e sabor
da melodia gregoriana, e ser
tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele
modelo30.
25 Op. Cit. P. 13. 26 Op. Cit. P. 15. 27 Op. Cit. P. 15. 28 Op.
Cit. P. 15. 29 Op. Cit. P. 16. 30 Op. Cit. P. 16.
-
21
Desta forma, vemos claramente, que tudo na Igreja catlica deve
levar em
considerao o crivo da forma catlica que deve, precisamente,
informar31 toda e
qualquer realidade tocada pelas mos da Igreja.
Torna-se claro aqui que a Igreja no deve inculturar-se, mas sim,
ao contrrio, deve
ser ela a dirigir a cultura, fato esse completamente invertido
contemporaneamente. Com
efeito, quando a igreja informou a cultura, e a evidentemente
incluem-se as artes em
geral, e a msica em particular, como aconteceu muitas vezes no
passado o que vimos foi
uma elevao do homem a Deus. Quando o contrrio aconteceu, ou
seja, quando a Igreja
fez-se mundana, o homem se rebaixou e a Igreja arca da salvao ao
invs de salv-lo
elevando-o afundou com ele no pntano das mais espantosas vilezas
de alma.
31 Informar aqui entendido no sentido que a filosofia escolstica
a toma, qual seja, a de dar formar a uma realidade material que
antes dela encontrar-se-ia amorfa. A forma catlica seria, por
conseguinte, o esprito que deve animar toda e qualquer ao cumprida
sobre sua gide.
-
22
O Affaire Maurice Allais
A experincia demonstra que a opinio dos homens "competentes" est
em constante desacordo com
a realidade, e a histria da cincia a histria dos erros dos
homens "competentes".
Vilfreto Pareto.
Hoje em dia quando pensamos em um cientista, logo nos vem a
mente um senhor
vestido de jaleco branco, de aparncia meio amalucada, de olhar
inteligente e mente aberta.
De todas as caractersticas acima enumeradas deixemos aquelas que
fazem parte do
inevitvel folclore a que nosso imaginrio ps-moderno recorre
quando falamos de uma
atividade, crena ou pessoa que acederam s instncias do mito,
como o caso evidente da
cincia e dos cientistas contemporneos, e retenhamos apenas a
ltima que deveria
caracterizar a atitude inequvoca do sbio perante o mundo que o
cerca e as teorias
cientficas elaboradas para explic-lo.
De fato, a cincia moderna caracterizou-se pelo seu combate sem
trguas contra os
dogmas. No seu nascedouro o combate era contra os dogmas
religiosos que, segundo os
cientistas de ento, obnubliavam suas pesquisas engessando-as a
priori em dados
metafsicos incontornveis, o que retratava o famoso dito de
Galileu: "no quero saber
como se vai para o cu, mas como vai o cu" indicando aqui,
claramente, qual seria as
fronteiras legtimas, segundo ele, da pesquisa cientfica dos
dogmas da religio.
Vamos tambm, neste escrito, deixar de lado os problemas
suscitados por essa
demarcao. O que nos interessa nesse artigo no a relao entre
cincia moderna e
religio tradicional, mas a relao interna da perspectiva
cientfica contempornea e teorias
divergentes sobre "como vai o cu" do dito de Galileu.
-
23
Com efeito, Galileu pensava que matematizando as cincias
naturais poderamos
traar um caminho seguro de "como vai o cu32" e a mediocridade
positivista s acentuou o
grau de miopia dessa viso.
Quando comeamos a analisar com maior cuidado a histria da cincia
moderna o
que vemos no essa abertura de esprito que tanto se propaga,
muito menos a total
ausncia de dogmas no domnio das pesquisas cientficas. O contrrio
sim o que se
verifica. A histria da cincia moderna um amontoado inacreditvel
de falsos dolos, de
dogmas inquestionveis e de estreiteza de pensamento que somente
podemos encontrar
paralelo em grupsculos fanticos de fundamentalistas religiosos
que a cincia sempre
condenou e s vezes identificava pejorativamente com o
comportamento religioso tout
court.
Com essas palavras no queremos cometer com a cincia e cientistas
o erro que eles
cometeram com a religio e religiosos. No jogaremos no mesmo
balaio de gatos toda a
cincia e todos os cientistas pelo fato de haver entre eles
pessoas dogmticas e de mente
obtusa que se recusam a mudar de opinio mesmo quando a realidade
teima em lhes
oferecer dados inequvocos de que suas teorias esto erradas.
sobre um triste affaire da cincia contempornea que trataremos
nas pginas que
seguem. Trata-se do affaire que envolve um cientista de
qualidade excepcional, Maurice
Allais (1911-), nico francs at a presente data a ser laureado
com o prmio Nobel de
economia, ou seja, no estamos tratando com algum desconhecido ou
de competncia
cientfica duvidosa, mas de algum que reconhecido pelos seus
prprios pares como um
insigne representante do que h de melhor na cincia
contempornea.
O affaire em que ele se envolveu, ao contrrio do que se possa
supor no tem
relao direta, com economia, mas com a fsica relativista e com a
cosmologia advinda
desta teoria. Sim! Maurice Allais, alm de excelente economista
tambm um excepcional
fsico, mas para desespero, ou desprezo, da academia ele fsico
autodidata, nunca integrou
quadro de nenhum departamento de fsica de nenhuma universidade
ou instituio de
32 Um exemplo claro de caminhos divergentes que levam ao mesmo
resultado, levando-se em considerao apenas o ponto de vista
matemtico, est no clssico exemplo da querela autoral sobre o clculo
infinitesimal entre Newton e Leibniz. Provavelmente os dois
desenvolveram suas tcnicas de clculo desconhecendo o que o outro
fazia e chegaram por meios diferentes a um resultado idntico.
Somente a miopia positivista pode postular um acordo inquestionvel
sobre resultados e mtodos na cincia.
-
24
pesquisa reconhecida, o que por si s j suficiente para torn-lo
suspeito aos olhos de uma
academia enrijecida em seus mtodos e hbitos33.
Passemos ento para os dados deste triste affaire para que depois
possamos retirar
algumas concluses a respeito das questes envolvidas.
II
Status Questionis
A histria das cincias mostra que o progresso da cincia foi
constantemente entravado pela
influncia tirnica de certas concepes que acabamos por considerar
como dogmas. Por essa razo,
convm submeter, periodicamente, a um exame aprofundado os
princpios que acabamos por admitir sem
maiores discusses.
Louis de Broglie
Maurice Allais largamente conhecido do pblico culto como um
economista de
exceo, mas raros so aqueles que conhecem sua atividade bissexta
de pesquisador no
domnio da fsica, sobretudo nos domnios da mecnica e da tica, bem
como nos dos
problemas relativos transmisso das aes distncia e da influncia
do movimento da
terra sobre s fenmenos terrestres.
Toda a sua pesquisa nos domnios supracitados tem como objetivo
aprofundar uma
intuio originria, qual seja, a de que:
a propagao das aes de gravitao e das aes eletromagnticas
efetuam-se passo a passo e
que portanto, encontra-se implicada a existncia de um meio
intermedirio, o ter de Fresnel e dos
fsicos do sculo XIX, sem que, portanto, devssemos admitir, como
era admitido no sculo XIX, que
33 A mentalidade acadmica s vezes to refratria ao real que o
cientista francs Louis Rougier um dos raros defensores de primeira
hora de seu colega Maurice Allais, chegou a dizer o seguinte:
"freqentemente perguntei-me, ao longo de minha carreira, se na
universidade e nas altas escolas amvamos verdadeiramente a
inteligncia.
-
25
todas as partes deste meio encontrem-se perfeitamente imvel umas
em relao s outras e
notadamente em relao s estrelas fixas34.
Para quem conhece minimamente os postulados da fsica
relativista, sabe que a
simples conjetura de que o ter possa existir j se constitui de
per si em um afronta grave
teoria de Einstein que mandou para o depsito de velharias toda e
qualquer afirmao neste
sentido. Mas eis que um pesquisador corajoso, cujo nico
compromisso sempre foi o da
mais estrita obedincia verdade dos fatos, coloca em questo o
interdito relativista. O
resultado no poderia ser outro a recusa a priori de toda e
qualquer anlise dos resultados
obtidos pela pesquisa feita sob tal pressuposio. De fato, para
muitos cientistas colocar em
dvida alguma afirmao de Einstein significaria mais que erro
cientfico crime de lesa
majestade.
Mas voltemos aos dados da pesquisa. Partindo da convico afirmada
acima
Maurice Allais arquitetou o seguinte raciocnio: se existe tal
meio intermedirio um campo
magntico pode corresponder rotao local de tal meio. E se tal
suposio fosse
verdadeira ele poderia estabelecer uma ligao inequvoca entre
gravitao e magnetismo.
Para tanto observou a ao do campo magntico sobre o movimento de
um pndulo de dois
metros que terminava em uma bola de vidro. Tal movimento foi
estudado, a princpio, na
ausncia de toda a influncia de campo magntico que no o terrestre
e para grande
surpresa de Allais:
Constatei que este movimento no se reduzia ao efeito de
Foucault, mas que apresentava
anomalias muito importantes e variaes com o tempo relativamente
a este efeito. o estudo destas
anomalias imprevistas que constituiu o objeto essencial de
minhas experincias de 1954 a 196035.
E sobre estes efeitos que se apiam todo o affaire Maurice
Allais. Os dados so
impressionantes; a periodicidade diurna lunar obtida pelo
experimento era da ordem de 24
h 50 mn, a ordem da diferena com as teorias admitidas era de
simplesmente entre 20 e 100
milhes de vezes. Tal dado no pode ser desconsiderado pelas
teorias vigentes, mas o
foram por puro dogmatismo terico.
34 Allais, Maurice. L'anisotropie de l'espace. Les donnes de
l'experience. Editins Clement Juglar. Paris. 1997. P. 44. 35
Allais. Op. cit. P. 44.
-
26
Mas como Allais explica esta gigantesca anomalia? Ele o faz
respondendo que "as
experincias realizadas sugeriam a existncia a cada momento de
uma direo de
anisotropia do espao36". Postular a anisotropia do espao
simplesmente colocar a baixo
todo o edifcio relativista e precisamente por esse fato que suas
experincias foram
negadas a priori.
Na repetio da experincia quando dos eclipses totais do sol
ocorridas em 30 de
junho de 1954 e em 2 de outubro de 1959 novamente resultados
surpreendentes foram
obtidos que levaram Allais a constatar a: "existncia de uma
direo de anisotropia do
espao varivel com o tempo deduzida das observaes do pndulo
paracnico de suporte
isotrpico37". O resultado era evidente, a periodicidade
lunisolar era totalmente disparatada
com a da at ento admitida.
Os resultados das observaes de Maurice Allais foram todos
remetidos academia
de cincia da Frana na forma de oito notas apresentadas a Albert
Caquot e duas notas
apresentadas a Joseph Kamp de Friet38. Como resultado prtico
destas notas varias visitas
de eminentes cientistas franceses foram realizadas aos dois
laboratrios onde ocorriam as
experincias de Allais, tendo ele sido convidado a proferir trs
conferncias sobre suas
investigaes no Cercle Alexandre Dufour39.
Outro sinal significativo da seriedade das pesquisas foi o fato
de Allais ter ganhado
os prmios Galabert de 1959 conferido pela sociedade francesa de
astronutica e o prmio
americano da Gravity Research Foundation tambm em 1959.
Mas quem pensar que com tantos sinais notrios de seriedade das
pesquisas
efetuadas e que a promessa de resultados ainda mais
surpreendentes estariam por vir
facilitasse a vida desse sbio cometeu um erro crasso. Allais foi
instigado a abandonar suas
36 Op. Cit. P. 49. 37 Op. Cit. P. 49. 38 Allais. Op. cit. P. 51.
39 As trs conferncias pronunciadas por Allais foram: 1 "Faut-il
reconsidrer les lois de la gravitation? Sur une nouvelle exprience
de Mcanique". Proferida no dia 22 de fevereiro de 1958 no
anfiteatro Henri Poincar da escola politcnica; 2 "Faut-il
reconsidrer les lois de la gravitation? Nouveaux rsultats, bilan et
perspectives". Proferida em 7 de novembro de 1959 na sociedade dos
engenheiros civis da Frana; 3 "Les priodicits constates dans le
mouvement du pendule paraconique sont-elles relles ou non?
Gneralisation du test de Schuster au cas de sries temprelles
autocorrles'. Proferida no dia 18 de maro de 1967*. *Fonte Allais,
op. cit. P. 52.
-
27
pesquisas em 1960, pois todos os institutos de pesquisas
franceses recusaram-se a financiar
a continuidade das experincias to carregadas de promessas.
-
28
Uma outra modernidade possvel?
A Devotio Moderna
Florent Radewijns
O mundo moderno comeou no dia em que os idiotas descobriram que
eram a maioria.
Nelson Rodrigues.
Falar mal da modernidade tornou-se lugar comum40. Nada mais
fcil, para um
esprito religioso, do que constatar que o mundo moderno , de
certa forma, uma aberrao
em meio a todas as culturas de todos os povos, e isso em
qualquer tempo. No mistrio
para ningum, que todas as culturas at hoje constitudas, salvo a
precisa exceo da cultura
moderna, o foram por meio de princpios metafsicos41.
Essas culturas retiravam no do mundo material, e muito menos do
homem em sua
dimenso meramente corporal, seus princpios norteadores, mas
todas elas em seus mitos
fundadores tinham em comum o fato de que os princpios sob os
quais elas se apoiavam
referirem-se no ao hic et nunc, mas a atemporalidade ou, como
muito bem ressaltou
Mircea Eliade42, seus princpios referiam-se a um in illo
tempore, tempo mtico, das origens
no qual o que contava no era o mundo em sua espessura material,
mas, ao contrrio, a
revelao do esprito.
Nada de similar aconteceu com a cultura e o mundo modernos,
posto que este j em
seu nascedouro advogava sua auto-suficincia, sua revolta e
fechamento a qualquer
referncia ao transcendente, estabelecendo-se contra tudo e todos
que representassem algo
40 Existem primorosas anlises do mal que afligem o mundo
moderno, de sua inanio metafsica e espiritual e dos remdios
salutares a serem aplicados para sua cura e restabelecimento em
princpios slidos e sadios. Tais anlises foram feitas por espritos
argutos e no se restringiram a autores catlicos, se bem que a eles
que nos reportamos nestas linhas. De fato, autores dos mais
diversos matizes levantaram sua voz contra o mundo moderno basta
citar o caso de Ren Guenon. 41 esta precisamente a tese advogada
pelo filsofo tomista belga Marcel de Corte (1905-1994) no seu belo
e fundamental livro: essai sur la fin dune civilization. ditions
Remi Perrin. Paris. 2001.
-
29
de superior deusa razo, e isso a priori. E nesse sentido que
podemos entender a revolta
do homem moderno contra a Igreja catlica, precisamente, por esta
representar a seus
olhos, a instituio mais visvel e palpvel que ligaria o homem ao
invisvel e impalpvel
que Deus e o prprio esprito humano.
Desta forma, fica muito fcil atacar, ao menos na perspectiva da
metafsica perene,
um mundo concebido no sob os slidos fundamentos metafsicos das
culturas tradicionais,
mas improvisado sobre os caprichos, sonhos e iluses do homem e
do mundo.
Feita a constatao, gostaramos de sublinhar que est no ser a
nossa perspectiva
nessa srie de artigos sobre a devotio moderna, ao contrrio,
partirei da constatao de que
se a moeda falsa existe, sinal seguro de que a moeda verdadeira
tambm existe e,
portanto, se o mundo moderno falso isso no significa que toda e
qualquer modernidade
tambm o seja.
precisamente este o caso que estudaremos a seguir, mostrando que
tambm existe
uma certa modernidade, no caso a advogada pela devotio moderna,
que pode sim estar
firmemente ancorada na tradio da Igreja catlica.
I
A Devotio Moderna
S verdadeira a cincia que abraamos para agir.
Santo Agostinho
A devotio moderna nasceu nos pases do norte europeu em pleno
sculo XIV,
sculo de decadncia moral impressionante. surpreendente saber que
os devotos
modernos nascem precisamente para se contraporem a essa
decadncia da alma ocidental.
E como eles julgavam que poderiam fazer frente a esta decadncia?
Combatendo-a
pela via da denncia, pelo dio perseguidor, instaurando um terror
religioso qualquer? No!
O carter da devotio moderna repousa muito mais em um desejo
ardente de autenticidade
42 Antroplogo e historiador das religies romeno, naturalizado
norte americano. 1906-1986.
-
30
interior e de pureza de corao do que em fanfarronices
persecutrias to presente nos
espritos pseudotradicionalistas e de pendores farisaicos de
todos os tempos.
Os devotos modernos43, tinham como ideal de vida no o
engajamento religioso
atravs da profisso de votos, mas sim pela imitao da vida dos
apstolos e da Igreja
primitiva para se chegar de uma maneira mais rpida e segura
fonte nica da verdadeira
santidade, Jesus Cristo. Para tanto, escolheram uma vida de
profunda pobreza exterior a
ponto de serem confundidos pela populao com os mendigos que
deambulavam pelas ruas
do norte da Europa de ento. Mas esta pobreza exterior estava
firmemente ancorada na
humildade interior, sem a qual qualquer exerccio de virtude
degenera-se em bufonaria.
Praticavam tambm as mais austeras mortificaes corporais a ponto
de Florent
Radewijns ter perdido a faculdade do gosto e de outro irmo,
Geraldo Zerbolt de Zutphen
ter sido, por vrias vezes advertido, pelo prprio Florent, para
que minorasse seus rigores
ascticos a fim de que no comprometesse de vez sua j frgil sade.
Que contradio com
um certo mundo moderno dominado no pelo ideal da humildade e
pureza de corao, mas
pela grandeza orgulhosa de um candidato a Fausto qualquer!
A correo fraterna era outro expediente espiritual largamente
utilizado em seu
meio, e era vista como meio seguro de se progredir nas virtudes.
Tal expediente era levado
to a srio por estes pobres irmos, que seu prior Florent
Radewijns chegou a ser
cognominado de Strenuus Exercitator44.
Thomas de Kempis, autor da imitao de Cristo, que conheceu
Florent quando ainda
era um jovenzinho, conta-nos deste rigoroso instrutor que:
Certo dia encontrava-me perto de Florent Radewijns no coro. Ele
virou-se em minha direo
para poder seguir o canto em nosso livro. Postou-se por trs de
mim apoiando suas mos sobre meus
ombros. Esse gesto fez com que eu casse no cho, com dificuldade
consegui mover-me, enregelado
que estava por tal honra ter-me cabido.45
Estes irmos tinham tambm em alta conta o trabalho manual, j que
segundo um
antigo adgio por eles sempre repetido o homem ocioso batalha
contra uma multido de
43 A devotio moderna foi fruto da prtica espiritual dos irmos da
vida comum, comunidade religiosa fundada por inspirao dos
ensinamentos e do testemunho de vida de Geraldo Grote (1340-1384).
44 Instrutor severo. 45 Radewijns, Florent. Petit Manuel pour le
dvot moderne. Introduo de Thom Mertens. Brepols. Bruxelas. 1999. P.
7.
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demnios, o trabalhador luta apenas contra um e para tanto,
escolheram como forma ideal
de trabalho, que servia ao mesmo tempo como ganha po e exerccio
espiritual o de
copistas.
neste contexto que viveu o holands Florent Radewijns
(1350-1400), que teve
uma fama de santidade to grande em seu tempo que vrias pessoas,
algumas eminentes,
vinham aconselharem-se consigo. Sua obra literria no foi extensa
e constitui-se de parcos
escritos e umas poucas cartas. Seu estilo fruto de sua atividade
de copista posto que
escrevia resumidamente o que lia e copiava dos mestres
espirituais. Suas obras objetivavam
muito mais o bem da comunidade dos irmos da vida comum, que
deste modo encontravam
alimento espiritual substancioso, do que se destinavam para um
pblico externo.
Seu sistema de composio e escritura de uma tocante simplicidade,
consistindo-
se em agrupar citaes e pensamentos edificantes em torno de um
tema determinado
precedido de um ttulo que sempre indica o sujeito tratado e isso
de maneira sistemtica. O
fio condutor , precisamente, o da perfeio crist to ardentemente
almejada. Esse
procedimento era tido por eles como o mais fiel e capaz de
relig-los aos cristos dos
tempos apostlicos.
Passemos agora anlise da doutrina contida nesses escritos.