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:: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 4,
Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral Edio Especial: Dossi
Marx ISSN 1981-061X.
A FENOMENOLOGIA DO EGOSMO: STIRNER E A CRTICA MARXIANA[1]
Sabina Maura Silva *
Resumo
Este trabalho visa a apresentar a concepo de homem presente na
obra O nico e Sua Propriedade, de autoria do filsofo neo-hegeliano
Max Stirner, e
expor os limites e equvocos apontados por Karl Marx mesma,
desenvolvidos na
obra A Ideologia Alem.
Palavras-chave: alienao, egosmo, individualidade, sociabilidade,
objetividade, subjetividade.
Abstract
This work seeks to present the cointained mans conception in the
work The
Ego and Its Own, of autorship of the young-hegelian philosopher
Max Stirner, and
to expose the limits and misunderstandings pointed for Karl Marx
to this conception,
developed in the work The Germany Ideology.
Key-words: alienation, egoism, individuality, sociability,
objectivity, subjectivity.
Este trabalho tem como objeto a tematizao de Max Stirner acerca
da
individualidade, acompanhada pelas principais crticas de Karl
Marx a esta
tematizao. Ou seja, tendo como centro de nossa investigao o
pensamento de
Stirner, visamos explicitar a determinao stirneriana do homem,
presente na obra
1
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O nico e Sua Propriedade, bem como expor os limites e equvocos
apontados
por Marx a esta determinao, desenvolvidos na obra A Ideologia
Alem.
A importncia de um estudo sobre o pensamento de Stirner se
justifica, ao
nosso ver, por dois aspectos. Em primeiro lugar, pelo fato de a
obra stirneriana
constituir um momento da gnese das vertentes contemporneas que
se dedicam
problemtica da individualidade. De fato, nela encontramos, mesmo
que sob a
forma de antecipao, questes que, posteriormente, estaro
configuradas de
modo mais apurado nas obras de Nietzsche, Freud, Heidegger e
Sartre, dentre
outros. Alm do que, Stirner considerado, com freqncia, um dos
pais do
anarquismo.
Em segundo lugar, a anlise de sua obra fundamental para a
elucidao do pensamento de Marx, dado que a crtica de Marx a
Stirner
produzida no perodo formativo de seu pensamento prprio. Assim,
torna-se
questo importante para a compreenso da gnese e do
desenvolvimento do
pensamento marxiano realizar um estudo sistematizado das obras
daqueles com
os quais polemiza.
No entanto, se o esclarecimento do pensamento de Stirner
contribui para
elucidar um momento especfico e fundamental do pensamento de
Marx, um
trabalho centrado sobre ele no pode prescindir da presena da
crtica marxiana,
cujo propsito desvelar o fundamento das determinaes stirnerianas
acerca da
individualidade e de suas relaes com o mundo. Neste sentido,
temos tambm o
intuito de mostrar que a crtica de Marx a Stirner ultrapassa os
limites de uma
querela intelectual, tratando-se, em verdade, de uma confrontao
entre
determinaes distintas acerca do real e do ser dos homens.
Max Stirner, filsofo neo-hegeliano, publica em 1844 sua
principal obra, O
nico e Sua Propriedade, a qual se origina no contexto alemo de
crtica a Hegel,
iniciado nos anos subseqentes a sua morte. Deste confronto
travado no seio do
hegelianismo surge a chamada esquerda hegeliana, da qual Stirner
um dos
2
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representantes. Convencidos que sua poca era de transio e que
estava
prxima uma nova etapa de desenvolvimento histrico, os
neo-hegelianos
demandavam por uma nova ontologia, capaz de reconciliar o homem
consigo
prprio, recuperando, assim, a essncia humana que at ento,
julgavam, estivera
alienada. De modo que, cada qual ao seu modo, todos buscavam os
princpios da
filosofia do futuro[2].
Para Stirner, o Eu, tomado como individualidade singular, o
fundamento
de sua esfera existencial. No entanto, considera que tudo tem
determinado a
existncia dos indivduos, no tendo sido permitido a eles
determin-la. A defesa
intransigente da individualidade o leva a rejeitar a
preponderncia de todas e
quaisquer condicionantes exteriores ao Eu, sejam elas materiais
ou espirituais, por
representarem, aos seus olhos, foras que oprimem, limitam e
escravizam os
indivduos, expropriando-os de si.
Rebelando-se contra a determinao de que algo possa ter contedo
fora
do indivduo Stirner, primeiramente, submete crtica todas as
formas de
alienao que, segundo ele, tm vitimado os homens, para em
seguida
demonstrar a individualidade como princpio e fim de si mesma.
Seguindo a ordem
da obra, passemos, pois, anlise stirneriana da alienao.
I - A CRTICA DE STIRNER ALIENAO:
No interior do pensamento stirneriano, a apreciao do fenmeno
da
alienao est diretamente ligado quela do desenvolvimento da
individualidade,
que Stirner aborda analisando as fases da infncia, adolescncia e
idade adulta.
Segundo ele, desde o nascimento o indivduo luta com o mundo, no
qual
lanado como um dado entre tantos, buscando encontrar e afirmar a
si prprio,
pois tudo com o qual a criana entra em contato se ope s suas
intervenes,
afirmando sua prpria existncia[3]. A criana observa e
experimenta as coisas
3
-
visando desvelar o que nelas est encoberto, a fim de desvendar
seu fundamento.
Teme e respeita o que lhe exterior at descobrir em si foras
capazes de
super-lo. Assim, /.../ por detrs de tudo encontramos nossa
ataraxia, isto ,
nossa intrepidez, nossa resistncia, nossa supremacia, nossa
invencibilidade. Ns
no recuamos mais timidamente diante o que, outrora, Nos
provocava temor e
respeito, mas tomamos coragem. /.../. E quanto mais Nos sentimos
Ns mesmos,
tanto menor se mostra o que antes parecia invencvel. E o que
Nossa astcia,
Nossa inteligncia, Nossa coragem, Nossa obstinao? Que mais,
seno
Esprito![4]. O mundo objetivo j no exerce nenhum domnio sobre o
indivduo,
pois Nada mais se impe, agora, ao frescor do sentimento de Nossa
juventude,
este sentimento de si: declaramos o mundo desacreditado porque
Ns estamos
acima dele, somos Esprito[5].
Descobrindo seu esprito, o jovem adota um comportamento
terico.
Porm, no se confrontando mais com as coisas, passa a se
defrontar com os
imperativos de sua conscincia. Ocupando-se to somente de seus
pensamentos,
interessando-se pelo mundo somente quando v nele a manifestao do
esprito,
sacrifica sua vida visando realizar seus ideais. Buscando
desenvolver e enriquecer
seu esprito, o jovem reconhece que embora Eu seja esprito, no
sou, contudo,
esprito completo e devo primeiramente procurar o esprito
perfeito[6]. Mas, com
isso, Eu, que tinha acabado de Me encontrar como esprito,
perco-me novamente,
humilhando-me diante o esprito perfeito como diante algo que no
me prprio,
mas que est alm de mim , sentindo, com isso, meu vazio[7].
4
Diferentemente do jovem, o adulto afeioa-se a si como pessoa
e
encontra prazer em si mesmo como homem corpreo e vivo,
adquirindo um
interesse pessoal ou egosta, isto , um interesse no somente por
nosso esprito,
mas pela satisfao total do indivduo[8]. Repelindo o esprito da
mesma forma
que o jovem repelia o mundo, usando as coisas e os pensamentos
segundo seu
prazer, o homem egosta pe adiante de tudo seu interesse pessoal.
De modo que
o homem evidencia uma segunda descoberta de si. /.../ O homem se
descobre
como esprito corpreo[9]. Assim, Da mesma forma que Eu Me
descubro por
-
detrs das coisas como esprito, Eu devo Me descobrir, mais tarde
tambm, por
detrs dos pensamentos, como seu criador e proprietrio. No tempo
dos espritos,
os pensamentos cresciam sobre minha cabea, da qual, no entanto,
nasceram;
eles pairavam como alucinaes febris e Me envolviam com uma fora
terrvel. Os
pensamentos, por si mesmos, tornaram-se corpreos, eram fantasmas
como Deus,
o Imperador, o Papa, a Ptria, etc. Mas se destruo sua
corporeidade, Eu a
reintegro Minha e digo: somente Eu sou corpreo. E ento Eu tomo o
mundo
como ele , como o que ele para Mim, como o Meu, como Minha
propriedade:
Eu relaciono tudo a Mim[10].
Enfim, A criana, perturbada pelas coisas deste mundo, era
realista at
que, pouco a pouco, atinge o que h por detrs das coisas; o
jovem,
entusiasmado pelos pensamentos, era idealista, at progredir em
direo ao
homem, ao egosta que se comporta vontade com as coisas e com
os
pensamentos e pe acima de tudo seu interesse pessoal[11]. As
etapas da vida
so, portanto, caminhos percorridos pelo indivduo em direo a si
prprio. As
fases de seu desenvolvimento so delimitadas a partir do
autoconhecimento
oriundo das relaes da conscincia, seja com o que lhe exterior,
quando a
conscincia percebe-se como tal, seja consigo prpria,
possibilitando ao indivduo
apossar-se da conscincia de si, atingindo a culminncia de seu
ser. Delineia-se,
assim, a determinao fundamental da individualidade stirneriana,
que vem a ser o
autocentramento na conscincia de si.
Transpondo este processo para o curso histrico, Stirner mantm
o
mesmo procedimento analtico, dando contedo ao que referiu nas
fases do
desenvolvimento individual ao analisar os Antigos e os
Modernos.
A antigidade, perodo demarcado at o advento do cristianismo,
representa a infncia, a fase realista da humanidade. Para os
antigos, a verdade
lhes era evidente atravs das manifestaes do mundo objetivo.
Conseqentemente, eram dominados por ele, submetidos a uma ordem
inalterada,
vivendo na certeza de que o mundo e as relaes por ele impostas -
os laos
5
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familiares e comunitrios, por exemplo -, eram os princpios
incontestveis ante os
quais deviam se curvar. Esta sujeio perdurou at que os sofistas
proclamaram o
entendimento como uma arma que o homem dispe contra o mundo.
Porm,
como o entendimento sofista permanecia sujeito ao mundo, pois o
esprito era
para eles apenas um meio[12], Scrates, apontando para a negao de
seu
carter prtico, indica a necessidade de o entendimento no
sucumbir aos apelos
do mundo. A partir dessa indicao socrtica, buscando encontrar o
prazer de
viver, esticos e epicuristas consideravam que a sabedoria da
vida consistia no
desprezo do mundo, numa vida sem desenvolvimento, sem extenso,
enfim, numa
vida isolada. A ruptura definitiva se d com os cticos, para os
quais toda relao
com o mundo privada de valor e verdade[13], restando em relao a
ele
somente a ataraxia (a impassibilidade) e a afasia (o mutismo -
ou, com outras
palavras, o isolamento da interioridade)[14]. Com a indiferena
ctica a
antigidade acaba com o mundo das coisas, com a ordem e a
totalidade do
mundo[15].
necessrio precisar com clareza o que refere Stirner ao afirmar
que a
antigidade acabou com o mundo das coisas. Segundo ele, Quo pouco
o
homem consegue dominar! Ele deve permitir o sol traar seu curso,
o mar impelir
suas ondas, as montanhas elevarem-se em direo ao cu. Assim, sem
poderes
contra o invencvel, como poderia precaver-se da impresso de que
era impotente
em relao a essa colossal priso que o mundo? O homem deve se
submeter
ao mundo, a esta lei fixa que determina seu destino. Ora, para
que trabalhou a
humanidade pr-crist? Para livrar-se da opresso do destino, para
no se deixar
alterar por ele[16]. Porm, esta superao significa to-somente
a
desconsiderao das determinaes objetivas do mundo uma vez que,
para
Stirner, a histria antiga acabou desde que o Eu conquistou o
mundo como sua
propriedade. /.../ Ele deixou de ser superior a mim, deixou de
ser inacessvel,
sagrado, divino, etc., ele foi desdivinizado (entgttert) e Eu
posso, ento,
manipul-lo segundo meu agrado, porque poderia exercer sobre ele,
se quisesse,
toda minha fora prodigiosa, ou seja, a fora do esprito, e com
ela remover
6
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montanhas, ordenar que as amoreiras por si mesmas se
desenraizassem e se
deslocassem para o mar (Lucas, 17,6) e tudo que possvel, ou
seja, concebvel
fazer /.../. Eu sou o senhor do mundo, a Mim pertence a
soberania. O mundo
tornou-se prosaico porque o divino dissipou-se dele: ele minha
propriedade, que
Eu disponho e domino como Me convm - quer dizer, como convm ao
esprito[17].
Portanto, a impresso de estar submetido ao mundo se devia
impossibilidade de
domin-lo, de superar a ordem natural. Contudo, se no podiam
objetivamente, os
homens tornaram-se capazes de faz-lo por meio da subjetividade.
Ao
determinismo inescapvel da natureza contrape-se, agora, a
liberdade absoluta
do esprito; a descoberta do esprito corresponde, pois,
descoberta da liberdade.
A impugnao da objetividade como algo dotado de verdade d
incio
modernidade, identificada por Stirner ao cristianismo. Embora os
antigos tenham
descoberto o esprito, no puderam ir alm disto; a tarefa de
realiz-lo coube aos
modernos. A modernidade se caracteriza por um processo de
independentizao
do esprito em relao ao concreto, ou seja, pelo esforo para
transcender toda e
qualquer determinao sensvel, pois para que o esprito seja
efetivamente
esprito, ele nada pode ter a ver com a matria. Todavia, como o
esprito para se
tornar independente se afasta do mundo sem poder aniquil-lo
realmente, o
mundo permanece irremovvel[18] e ao esprito liberto do mundo
impe-se,
portanto, a necessidade ineliminvel de tornar-se esprito livre
no mundo. Os
modernos tornaram isto possvel transfigurando o mundo,
transformando-o em
mundo do esprito. O esprito se converte assim no princpio que
engendra e se
manifesta nas coisas, que as faz ser o que so, que as vivifica,
enfim, no que h
de verdadeiro nelas.
7
Esta transfigurao no se limita ao mbito das coisas, pois o
cristianismo, tendo como fim especfico Nos libertar da
determinao natural (a
determinao pela natureza), /.../ queria que o homem no se
deixasse determinar
por seus desejos[19]. De sorte que o esprito torna-se a fora
exclusiva e no se
ouve mais nenhum discurso da carne[20]. Considerando seu esprito
como o que
h de verdadeiro em si, os homens, porque no se resumem
absolutamente ao
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esprito, julgam-se menos que esprito e este se revela, assim,
algo distinto da
individualidade. O esprito torna-se o ideal, o inatingvel, o
alm; torna-se Deus, o
esprito puro que existe fora do homem e do mundo humano.
Obcecados, os indivduos passam a ver fantasmas por todos os
cantos,
pois o mundo se transforma em simples aparncia, objeto de
manifestao do
esprito que habita as coisas. Possudos pela convico de que h um
ser
supremo do qual tudo emana, obstinam-se tarefa de determinar seu
fundamento,
compreender e descobrir sua realidade, buscando transformar o
espectro em
no-espectro, o irreal em real[21], de modo a conferir existncia
ao imaterial. Disso
decorre que O que outrora valia como existncia, como mundo,
etc., mostra-se
agora como simples aparncia e o verdadeiramente existente o ser
/.../. Agora,
somente este mundo invertido, o mundo do ser[22], existe
verdadeiramente.
Reconhecendo o esprito como superior e mais poderoso, os
indivduos
so forados a cultivar apenas interesses ideais, pois quem quer
que viva por
uma grande idia, uma boa causa, uma doutrina, um sistema, uma
alta misso,
no deve deixar nascer em si os apetites do mundo, os interesses
egostas[23],
isto , os interesses concretos, sensveis, pois no devem se
deixar levar por
qualquer determinao de carter material. Princpios, noes e
valores, que
reconhecendo expressamente a existncia de um ser supremo
fundamentam a
crena e o respeito em relao a ele, passam a dominar os indivduos
como idias
fixas que orientam todas as suas aes e relaes, engendrando e
estimulando a
negao e o desinteresse de si. Os dogmas religiosos, os princpios
filosficos,
morais e polticos constituem para Stirner exemplos destas idias
fixas, que tm
como meta zelar pelo esprito e moldar os indivduos de acordo com
seus
imperativos.
I.1- As doutrinas do esprito:
I.1.1- A filosofia e a negao do sensvel:
8
-
Segundo Stirner, a modernidade segue um processo anlogo
antigidade. Assim, sob a gide do catolicismo, o esprito ainda se
encontrava
ligado ao mundo. Foi apenas a partir da Reforma que comeou-se a
considerar o
esprito como algo absolutamente independente da matria. O
protestantismo
destri o mundo santificando-o, isto , introduzindo o esprito em
todas as coisas.
Reconhecendo o esprito santo como essncia do mundo, este se
torna sagrado
por sua simples existncia.
Ao mesmo tempo em que redime o concreto, preenchendo-o com o
esprito, Lutero preconiza a necessidade de rompimento da
conscincia para com
toda dimenso sensvel, uma vez que a verdade esprito,
absolutamente no
sensvel e, por isso, existe somente para a conscincia superior e
no para a
conscincia com inclinao mundana [24]. Por conseguinte, alcana-se
com
Lutero o reconhecimento de que a verdade, que pensamento, existe
apenas
para o homem pensante. O que significa que doravante o homem
deve
simplesmente adotar um outro ponto de vista, o ponto de vista
celeste, da crena,
da cincia ou o ponto de vista do pensamento em relao a seu
objeto - o
pensamento, o ponto de vista do esprito face ao esprito. Enfim,
apenas o igual
reconhece o igual! Tu te igualas ao esprito que Tu
compreendes [25].
9
A soberania do esprito que se estabelece plenamente a partir
da
Reforma referendada pela filosofia, ocorrendo a legitimao terica
do carter
absolutamente espiritual do ser. Este processo se inicia com
Descartes, que
identifica o ser ao pensar, e se completa com a filosofia
hegeliana, na qual Os
pensamentos devem corresponder totalmente realidade, ao mundo
das coisas e
nenhum conceito pode ser desprovido de realidade[26], dando-se,
enfim, a
reconciliao entre as esferas espiritual e objetiva. Em suma, o
resultado
alcanado pelos modernos que tanto no homem quanto na natureza
somente o
esprito vive, somente sua vida a verdadeira vida. De modo que a
modernidade
culmina em uma abstrao: a vida da universalidade (Allgemeinheit)
ou do que
no tem vida[27].
-
Sobre a crtica de Stirner filosofia idealista, cabe destacar
dois aspectos.
O primeiro diz respeito ao apontamento da inverso ontolgica que
o idealismo
opera, transformando o imaterial, o no sensvel em origem e
realidade do
concreto, do sensvel, bem como censura da dissoluo do particular
na
universalidade abstrata. Nisto se pe em consonncia com a crtica
de Feuerbach
e Marx especulao, distinguindo-se os trs, entretanto, quanto ao
que
determinado como o efetivamente concreto e quanto ao que
apontado como o
princpio geral de determinao - para Stirner, apenas o indivduo
singular e o
egosmo.
O segundo, que constitui um dos pontos determinantes da crtica
de Marx,
revela, ao nosso ver, o ncleo do pensamento stirneriano. Stirner
ressalta a
concretude que os ideais adquiriram ao longo da modernidade, o
que poderia
levar a supor que visa recuperar o mundo objetivo, livrando-o do
peso da
abstrao. No entanto, para ele, o que constitui a falha capital
deste perodo vem
a ser precisamente a no superao da objetividade, condio
fundamental para a
afirmao da individualidade pois, argumenta, Como pode-se alegar
que a
filosofia ou a poca moderna trouxe a liberdade, j que ela no nos
libertou do
poder da objetividade? /.../ Ela somente transformou os objetos
existentes /.../
em objetos representados, isto , em conceitos, diante os quais
no s no se
perdeu o antigo respeito, mas, ao contrrio, se o intensificou.
/.../ Por fim, os
objetos apenas sofreram uma transformao, mas conservaram sua
supremacia e
soberania; enfim, continuou-se submerso na obedincia e na
obsesso, vivendo
na reflexo, com um objeto sobre o qual refletir, um objeto para
respeitar e acolher
com venerao e temor. Apenas se transformou as coisas em
representaes das
coisas, em pensamentos e conceitos e a dependncia em relao a
elas tornou-se
tanto mais ntima e indissolvel[28]. De modo que o fundamental
para Stirner
tambm atingir a liberdade em relao objetividade. E visando
realizar o que a
modernidade no pde efetuar, dado que no partia do
verdadeiramente real,
aponta a necessidade de supresso de qualquer mediao entre o
indivduo e si
mesmo.
10
-
Deve-se pr em relevo, outrossim, que embora critique o
contedo,
Stirner acolhe o movimento e segue o mtodo da filosofia
hegeliana. ntida a
similitude entre o caminho percorrido pelo eu em direo a si
prprio e aquele que
Hegel estabelece conscincia em direo razo. A diferena bsica
reside
precisamente no ponto final do percurso. Se na filosofia de
Hegel a conscincia
trilha um caminho que culmina no saber de si enquanto figura do
Absoluto, em
Stirner a conscincia individual tambm chega a um saber, que vem
a ser o
conhecimento de que somente ela o fundamento de toda realidade,
de toda
existncia ou, em outros termos, ao reconhecimento de si como o
absoluto. Ou
seja, em Hegel tem-se a fenomenologia do universal que se
desdobra em
particulares - os quais constituem momentos deste universal -,
enquanto que em
Stirner tem-se a fenomenologia de uma singularidade em confronto
com qualquer
dimenso de universalidade, tomada como pura negao da
individualidade.
Voltando questo do domnio do espiritual na modernidade,
Stirner
submete critica o humanismo ateu que se desenvolve em sua poca,
atentando
para o fato de que, embora se ataque a essncia sobre-humana da
religio, no
se abandonou a postura religiosa, uma vez que o posicionamento
anti-religioso
resultou to somente na humanizao da religio, simplesmente
operando a
substituio de Deus pelo homem. Permanecem prisioneiros do
princpio religioso
porque o homem que se torna o novo ser supremo no se refere ao
indivduo
singular, mas espcie, ao gnero humano. Se outrora o esprito de
Deus
ocupava o indivduo, agora ele se encontra ocupado e se pauta
pelo esprito do
Homem. De modo que o comportamento em direo ao ser humano ou
ao
homem apenas removeu a pele de serpente da antiga religio para
assumir uma
nova, igualmente religiosa[29]. A conquista da humanidade
torna-se, assim, o
ideal diante o qual o indivduo deve se curvar, o alvo sagrado
que deve atingir.
11
Com a vitria do Homem sobre Deus d-se a substituio dos
preceitos
religiosos pelos preceitos morais. Esta moral puramente humana -
que segue sua
prpria rota orientando-se pela razo, dado que na lei da razo o
homem se
determina por si mesmo, porque o homem racional e do ser do
homem que
-
resultam necessariamente estas leis[30] -, obtm sua independncia
do terreno
religioso propriamente dito com o liberalismo. Representando a
ltima
conseqncia do cristianismo, o liberalismo, dando continuidade ao
velho
desprezo cristo pelo Eu[31], apenas ps em discusso outros
conceitos -
conceitos humanos no lugar de divinos, o Estado no lugar da
Igreja, a cincia no
lugar da f /.../[32], tendo como finalidade realizar o homem
verdadeiro.
I.1.2- O liberalismo e a negao do indivduo:
Sob o termo liberalismo, Stirner designa genericamente o
liberalismo
propriamente dito, o socialismo e o humanismo crtico de Bruno
Bauer,
chamando-os, respectivamente, liberalismo poltico, liberalismo
social e liberalismo
humano. Na perspectiva stirneriana, estas trs variaes, que tm em
comum a
rejeio da individualidade, diferenciam-se apenas quanto ao
elemento mediador
capaz de levar ao florescimento do homem no indivduo. O
liberalismo poltico
estabelece o estado, o liberalismo social, a sociedade, e o
liberalismo humano a
realizao universal da humanidade.
I.1.2.1- O Liberalismo Poltico:
Segundo Stirner, para esta vertente o indivduo no o homem e
s
adquire a humanidade na comunidade poltica, no estado, onde so
abstradas
todas as distines individuais. Portanto, empunhando a bandeira
do estado, a
burguesia, visando suprimir os estados particulares que impediam
o
estabelecimento efetivo de uma comunidade verdadeiramente
humana, arrebatou
os privilgios das mos dos nobres e os transformou em direitos
expressos em
leis e garantidos igualmente a todos. De modo que, doravante,
nenhum indivduo
vale mais que outro; so todos iguais.
12
-
No entanto, observa Stirner, esta igualdade reflete
negativamente sobre a
individualidade, uma vez que os interesses e a personalidade
individuais foram
alienadas em favor da impessoalidade, dado que o estado,
indistintamente, acolhe
todos. Isto torna manifesto que o estado no tem nenhuma
considerao com os
indivduos particulares, que passam a valer somente enquanto
cidados.
Consequentemente, tem-se a ciso entre as esferas do pblico e do
privado e, na
mesma medida em que o indivduo relegado em prol do cidado, a
vida privada
renegada, passando-se a considerar como a verdadeira vida a vida
pblica.
Esta despersonalizao que ocorre na esfera estatal revela,
segundo
Stirner, o verdadeiro objetivo da burguesia ao buscar a
igualdade: conquistar a
impessoalidade, isto , afastar todo e qualquer arbtrio ou
entrave pessoal da
esfera do estado, purificando-o de todo interesse particular.
Portanto, transformou
o que outrora era esfera de interesses particulares em esfera de
interesses
universais. Neste sentido, a liberdade individual, sobre a qual
o liberalismo
burgus vela ciosamente, no significa de modo algum uma
autodeterminao
totalmente livre, pela qual minhas aes seriam inteiramente
Minhas, mas apenas
a independncia em relao s pessoas. Individualmente livre quem
no
responsvel por ningum[33]. , pois, liberdade ou independncia em
relao
vontade de outra pessoa /.../, porque ser pessoalmente livre
s-lo na medida em
que ningum possa dispor de Minha pessoa, ou seja, que o que Eu
posso ou no
posso no depende da determinao de uma outra pessoa[34].
13
A liberdade poltica, por seu turno, significa to somente a
liberdade do
estado em relao a toda mediao de carter pessoal. De modo que no
foram
os indivduos que se emanciparam; ao contrrio, foi o estado que
se tornou livre
para sujeit-los. E o faz atravs da constituio, a qual, ao mesmo
tempo em que
lhes concede fora, fixa os limites de suas aes. De modo que a
revoluo
burguesa criou cidados obedientes e leais, que so o que so pela
graa do
Estado. Portanto, no regime burgus somente o servidor obediente
o homem
livre![35], porque renega seu ser privado para obedecer leis
gerais, nica razo
pela qual so considerados bons cidados.
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I.1.2.2- O Liberalismo Social:
Segundo Stirner, os liberais sociais visam completar o
liberalismo poltico,
tido por eles como parcial porque promove e reconhece legalmente
a igualdade
poltica, deixando subsistir, contudo, a desigualdade social
advinda da propriedade.
Considerando que o indivduo nada tem de humano, pretendendo
fundar uma
sociedade em que desaparea toda diferena entre ricos e pobres,
os socialistas
advogam a abolio da propriedade pessoal, preconizando que ningum
possua
mais nada, que cada um seja um pobre. Que a propriedade seja
impessoal e
pertena sociedade[36].
A supresso da propriedade privada em favor da propriedade social
tem
por corolrio a supresso do estado, j que este, conforme Stirner,
o nico
proprietrio de fato, que concede a ttulo de feudo o direito de
posse a seus
cidados. Assim, em lugar de uma prosperidade isolada, procura-se
uma
prosperidade universal, a prosperidade de todos. Porm, ao tornar
a sociedade a
proprietria suprema, os indivduos se igualam porque tornam-se
todos miserveis,
o que acarreta o segundo roubo cometido contra o que pessoal em
interesse
da humanidade. Roubou-se do indivduo autoridade e propriedade, o
Estado
tomando uma e a sociedade outra[37].
Os socialistas pretendem superar o estado de coisas vigente sob
o
liberalismo poltico fazendo valer o que constitui para eles o
verdadeiro critrio de
igualdade entre os homens, que vem a ser a necessidade recproca
entre os
indivduos, a qual torna manifesto que a essncia humana o
trabalho. Assim, diz
Stirner, a contraposio dos comunistas ao liberalismo poltico se
funda no
preceito de que nosso ser e nossa dignidade no consistem no fato
de que Ns
somos todos filhos iguais do Estado /.../, mas no fato que Ns
todos existimos uns
para os outros. Esta a nossa igualdade, ou seja, por isso que Ns
somos
14
-
iguais, porque Eu, tanto quanto Tu e todos Vs, agimos ou
trabalhamos, portanto,
porque cada um de ns um trabalhador [38].
Conforme Stirner, do ponto de vista do socialismo, o ser
trabalhador a
determinao de humanidade que deve nortear os indivduos, pois s
tem valor o
que conquistado pelo trabalho. Logo, se no liberalismo poltico o
indivduo se
subordina ao cidado, no liberalismo social se aliena ao
trabalhador porque
respeitando o trabalhador em sua conscincia, considerando que o
essencial
ser trabalhador, se afasta de todo egosmo, submetendo-se ao
supremo poder de
uma sociedade de trabalhadores[39], tanto como o burgus
submete-se ao estado,
porque se pensa que da sociedade que provem o que os indivduos
necessitam,
razo pela qual se sentem em dvida total para com ela. Assim, os
socialistas
permanecem prisioneiros do princpio religioso e aspiram com todo
fervor a uma
sociedade sagrada[40], desconsiderando que a sociedade somente
um
instrumento ou um meio do qual os indivduos devem tirar
proveito, que no h
deveres sociais mas exclusivamente interesses particulares aos
quais a sociedade
deve servir.
I.1.2.3- O Liberalismo Humano:
Segundo Stirner, a doutrina liberal atinge seu ponto culminante
com a
crtica alem ao liberalismo levada a efeito pelos crculo dos
livres (Die Freien),
liderados por Bruno Bauer. Ao empreenderem a crtica do
liberalismo, estes
acabam por aperfeio-lo pois o crtico permanece um liberal e no
vai alm do
princpio do liberalismo, o homem[41].
Preconizando, como as formas precedentes, o afastamento dos
particularismos que impedem os indivduos de serem
verdadeiramente homens, o
liberalismo humano considera, porm, que toda e qualquer
determinao
particular - o credo religioso, a nacionalidade, as
especificidades e os mbeis
puramente individuais - constitui uma barreira que afasta o
indivduo da
15
-
humanidade que determina o ser de cada um. De modo que, para
esta vertente, o
indivduo no e nada tem de humano. A crtica encetada pelo
liberalismo
humano aponta, ento, para o fato de que tanto o liberalismo
poltico quanto o
social deixam intacto o egosmo, pois tanto o burgus quanto o
trabalhador
utilizam o Estado e a sociedade para satisfazerem seus
interesses pessoais. E,
para que o liberalismo atinja contedo plenamente humano,
estabelecem que os
indivduos devem aspirar a um comportamento absolutamente
desinteressado,
consagrando-se e trabalhando em prol do desenvolvimento da
humanidade. Desligando-se dos interesses egostas, ou seja,
particulares, atinge-
se o interesse universal, nico comportamento autenticamente
humano.
Stirner considera que a Crtica, exortando que o homem seja
humano,
exprime a condio necessria de toda sociabilidade, porque somente
como
homem entre homens que se socivel. Com isso, ela anuncia seu
alvo social, o
estabelecimento da sociedade humana [42], que no reconhece
absolutamente
nada que seja particular a Um ou a Outro, que recusa todo valor
ao que porta um
carter privado. Desta maneira fecha-se o crculo do liberalismo,
que tem no
homem e na liberdade humana seu bom princpio e no egosta e em
tudo que
privado seu mau princpio; que tem naquele seu Deus e neste seu
diabo. Se a
pessoa particular ou privada perdeu completamente seu valor
perante o Estado
(nenhum privilgio pessoal) , se na sociedade dos trabalhadores
ou dos pobres a
propriedade particular (privada) perdeu seu reconhecimento, na
sociedade
humana tudo o que particular ou privado no ser mais levado
em
considerao[43].
16
De sorte que entre as teorias sociais, a Crtica ,
incontestavelmente, a
mais acabada, porque ela afasta e desvaloriza tudo o que separa
o homem do
homem, todos os privilgios, at mesmo o privilgio da f. nela que
o princpio
do amor do cristianismo, o verdadeiro princpio social, encontra
sua mais pura
plenitude e produz a ltima experincia possvel para tirar do
homem sua
exclusividade e sua repulsa em relao ao outro. Luta-se contra a
forma mais
elementar e, portanto, mais rgida do egosmo[44], ou seja, a
unicidade, a
-
exclusividade, a pessoalidade. Esta luta evidencia que o
liberalismo tem um
inimigo mortal, um contrrio insupervel como Deus e o diabo[45]:
o indivduo.
Portanto, por representar a ltima forma conferida ao ideal,
resta ento
romper com o espectro do Homem para com isso quebrar
definitivamente a
dominao espiritual. Mas quem far tambm o Esprito se dissolver em
seu nada?
Aquele que revela por meio do Esprito que a natureza v
(Nichtige), finita e
perecvel; apenas ele pode tambm reduzir o esprito igualmente
vacuidade
(Nichtigkeit). Eu posso e todos dentre vs nos quais o Eu reina e
se institui como
absoluto[46]. Enfim, somente o egosta pode faz-lo.
II - A CATEGORIA DA ALIENAO:
Para Stirner, o egosmo ineliminvel e se manifesta mesmo
naqueles
que se devotam ao espiritual porque, ressalta, o sagrado existe
apenas para o
egosta que no se reconhece como tal, o egosta involuntrio, que
est sempre
procura do que seu e ainda no se respeita como o ser supremo,
que serve
apenas a si mesmo e pensa ao mesmo tempo servir sempre a um ser
superior;
que no conhece nada superior a si e se exalta, contudo, pelo
superior, enfim,
para o egosta que no gostaria de s-lo e se rebaixa, ou seja,
combate o seu
egosmo, rebaixando-se, contudo, para elevar-se e satisfazer,
portanto, seu
egosmo. Querendo deixar de ser egosta, ele procura em seu redor,
no cu e na
terra, por seres superiores para oferecer-lhes seus servios e se
sacrificar. Mas,
embora se agite e se mortifique, ele age, no fim das contas,
apenas por si mesmo
e pelo difamado egosmo que no o abandona. Por isso, eu o chamo
egosta
involuntrio[47]. Mas se assim o , por que isso se d? Ou seja,
por que seres
essencialmente egostas se alienam?
17
Na descrio das fases da vida, encontra-se explcito que o
indivduo ,
ele prprio, no s a fonte do que mas tambm de sua negao, de sua
perda,
uma vez que mesmo quando dominado pelos pensamentos, ele
dominado por
-
seus pensamentos que, por no serem reconhecidos como seus,
adquirem
existncia autnoma em relao ao eu que os produziu. No entanto, a
partir de
outro texto, intitulado Arte e Religio, escrito em 1842, que se
pode compreender
com mais clareza o que constitui este fenmeno. Analisando a
relao entre arte e
religio, Stirner aponta que a arte manifestao da ardente
necessidade que o
homem tem de no permanecer s, mas de se desdobrar, de no estar
satisfeito
consigo como homem natural, mas de buscar pelo segundo homem,
espiritual[48].
A resoluo desta necessidade se d com a obra de arte, dado que
ela configura,
objetivamente, o ideal do homem de transcender a si prprio. Com
a obra de arte,
o homem fica em face de si mesmo; porm, O que lhe est defronte e
no ele:
o alm inatingvel em direo ao qual fluem todos os seus
pensamentos e todos
os seus sentimentos, seu alm envolvido e inseparavelmente
entrelaado no
aqum de seu presente[49]. Enquanto a arte posio de um objeto, a
religio
contemplao e precisa, portanto, de uma forma ou de um objeto[50]
ao qual se
defrontar.
Segundo Stirner, o homem se relaciona com o ideal manifestado
pela
criao artstica como um ser religioso: ele considera a
exteriorizao de seu
segundo eu como um objeto. Tal a fonte milenar de todas as
torturas, de todas
as lutas; porque terrvel ser fora de si mesmo, e todo aquele que
para si
mesmo seu prprio objeto impotente para se unir totalmente a si e
aniquilar a
resistncia do objeto[51]. Logo, a arte d forma ao ideal e a
religio encontra no
ideal um mistrio e torna a religiosidade tanto mais profunda
quanto mais
firmemente cada homem se liga a seu objeto e dele
dependente[52]. Portanto, a
alienao ocorre no processo de objetivao da individualidade e se
d pelo fato
de o indivduo contemplar sua exteriorizao como algo que no lhe
pertence,
como algo por si, que o transcende. Contempla a si atravs de uma
mediao,
relacionando-se consigo mesmo de modo estranhado, pois no
reconhece o
objeto como sua criatura, convertendo-o em sujeito.
18
O que Stirner recusa a transcendncia do objeto sobre o sujeito.
Isto
porque o objeto, sob sua forma sagrada como sob sua forma
profana, como
-
objeto supra-sensvel tanto quanto objeto sensvel, nos torna
igualmente
possudos[53], uma vez que, tomado como algo por si, obriga o
sujeito a se
subordinar sua lgica prpria. Destri-se, assim, a singularidade
do
comportamento, estabelecendo um sentido, um modo de pensar como
o
verdadeiro, como o nico verdadeiro [54]. Contra isso, Stirner
argumenta que o
homem faz das coisas aquilo que ele [55], ou seja, as
determinaes das coisas
so diretamente oriundas e dependentes do sujeito. E ironizando o
conselho dado
por Feuerbach, o qual adverte que se deve ver as coisas de modo
justo e natural,
sem preconceitos, isto , de acordo e a partir daquilo que elas
so em sua
especificidade, Stirner aponta que v-se as coisas com exatido
quando se faz
delas o que se quer (por coisas entende-se aqui os objetos em
geral como Deus,
nossos semelhantes, a amada, um livro, um animal, etc.). Por
isso, no so as
coisas e a concepo delas o que vem em primeiro lugar mas Eu e
minha
vontade[56]. Ento, Porque se quer extrair pensamentos das
coisas, porque se
quer descobrir a razo do mundo, porque se quer descobrir sua
sacralidade, se
encontrar tudo isso[57], pois Sou Eu quem determino o que Eu
quero encontrar.
/.../ Eu escolho o que meu esprito aspira e por esta escolha Eu
me mostro -
arbitrrio[58]. Torna-se claro, pois, que Stirner no leva em
considerao a
existncia dos objetos, ou seja, o que eles so em si,
independente da
subjetividade, e somente admite a efetividade dos objetos na
medida em que esta
estabelecida, sancionada pelo sujeito.
A indiferena para com o objeto se d em funo de que Toda
sentena
que Eu profiro sobre um objeto criao de minha vontade /.../.
Todos os
predicados dos objetos so resultados de minhas declaraes, de
meus
julgamentos, so minhas criaturas. Se eles querem se libertar de
Mim e ser algo
por si mesmos, se eles querem se impor absolutamente a Mim, Eu
no tenho
nada mais a fazer seno apressar-Me em restabelec-los a seu nada,
isto , a
Mim, o criador[59]. De modo que a relao autntica entre sujeito e
objeto s se d
quando as propriedades dos objetos forem acolhidas como frutos
das
deliberaes dos indivduos. Conseqentemente, pelo fato de ser o
sujeito aquele
19
-
que pe a objetividade do objeto, segue-se que no se pode ter
determinaes
universais sobre as coisas, mas to somente determinaes
singulares, postas
por sujeitos singulares, rompendo-se, assim, a dimenso da
objetividade como
imanncia.
Acatar a objetividade como algo por si , para Stirner, abdicar
da
existncia pois o nico ser por si o indivduo, produtor de seu
universo
existencial. Por isso, no condena as convices, crenas e valores
que os
indivduos possam abraar. Apenas no admite que sejam tomados como
algo
mais que criaturas: Deus, o Cristo, a trindade, a moral, o Bem,
etc. so tais
criaturas, das quais eu devo no apenas Me permitir dizer que so
verdades, mas
tambm que so iluses. Da mesma maneira que um dia Eu quis e
decretei sua
existncia, Eu quero tambm poder desejar sua no existncia. Eu no
devo
deix-los crescer alm de Mim, ter a fraqueza de deix-los tornar
algo absoluto,
eternizando-os e retirando-os de meu poder e de minha
determinao[60].
Portanto, os indivduos podem crer, pensar, aspirar, contanto que
no percam de
vista que so eles o fundamento das crenas, pensamentos e
aspiraes, bem
como daquilo que crem, pensam e aspiram. Neste sentido, a
superao da
alienao significa, pois, a absoro da objetividade pela
subjetividade,
requerendo somente que o indivduo tome conscincia de que por trs
das coisas
e dos ideais no existe nada a no ser si mesmo; em suma, exige
que o indivduo
negue autonomia a tudo que lhe exterior e tome apenas a si como
ser autnomo,
que atribua somente a si a efetividade da existncia.
20
O carter puramente subjetivo que Stirner confere apropriao
da
objetividade salienta-se plenamente quando se analisa a revolta
individual,
condio de possibilidade para o reconhecimento de si como base da
existncia.
Segundo ele, reflete um descontentamento do indivduo consigo
mesmo, razo
pela qual No se deve considerar revoluo e revolta como sinnimos.
A
revoluo consiste em uma transformao das condies, da situao
existente,
do Estado ou da Sociedade; , por conseqncia, uma ao poltica ou
social; a
revolta tem como resultado inevitvel uma transformao das
condies, mas no
-
parte delas; ao contrrio, porque parte do descontentamento do
homem consigo
mesmo, no um levante planejado, mas uma sublevao do indivduo,
uma
elevao, sem levar em considerao as instituies que dela nascem.
A
revoluo tem em vistas novas instituies, a revolta nos leva a no
Nos deixar
mais instituir, mas a Nos instituir Ns mesmos e a no
depositarmos brilhantes
esperanas nas instituies. Ela uma luta contra o existente
porque, quando
bem sucedida, o existente sucumbe por si mesmo, ela apenas a
Minha
libertao em relao ao existente. Assim que Eu abandono o
existente, ele morre
e apodrece. Ora, como meu propsito no a derrubada do existente,
mas elevar-
Me acima dele, ento minha inteno e ao no poltica ou social, mas
egosta,
como tudo que concentrado em Mim e em minha singularidade[61].
Em outros
termos, a revolta parte e se dirige subjetividade e a revoluo
objetividade,
razo pela qual a primeira uma ao autntica e a segundo uma ao
estranhada do indivduo. E dado a supremacia do sujeito,
prescinde de qualquer
modificao sobre o objeto. Seguindo as palavras de Giorgio Penzo,
em sua
introduo edio italiana de O nico e Sua Propriedade, obviamente
apenas
com o ato existencial da revolta que se pode tornar menor a
afeco do objeto,
pelo que o eu se reconhece totalmente livre no confronto com o
objeto[62].
H que observar, contudo, que tal reconhecimento significa to
somente
aceitar o objeto como tal, tomando-se, no entanto, como o rbitro
de tal aceitao.
Neste sentido, Stirner pretende a afirmao da individualidade
apesar e a despeito
das coisas. No se deixando reger pelos objetos, ainda que
acatando as
determinaes da objetividade como posio de sua vontade, o
indivduo abre as
vias para o incio de sua verdadeira e plena histria, a histria
do nico e sua
propriedade.
21
-
III- A RESOLUO STIRNERIANA: O NICO
Visando remeter individualidade - fundamento ltimo e
intransponvel -
tudo o que dela foi expropriado e determinado de modo abstrato e
transcendente,
Stirner assume a tarefa de desmistificar todos os ideais,
mostrando que nada so
seno atributos do Eu. Ou seja, aqueles s podem ganhar existncia
se
assentados sobre o indivduo. Mas para tal o indivduo tem de
conquistar sua
individualidade, recuperando sua corporeidade e sua fora, para
fazer valer sua
unicidade.
III.1- A Conquista da Individualidade:
Segundo Stirner, desde o fim da antigidade, a liberdade
tornou-se o
ideal orientador da vida, convertendo-se na doutrina do
cristianismo. Significando
desligar-se, desfazer-se de algo, o desejo pela liberdade, como
algo digno de
qualquer esforo, obrigou os indivduos a se despojarem de si
mesmos, de sua
particularidade, de sua propriedade (eigenheit) individual.
Stirner no recusa a liberdade, pois evidente que o indivduo deva
se
desembaraar do que se pe em seu caminho. Contudo, a liberdade
insuficiente,
uma vez que o indivduo no s anseia se desfazer do que no lhe
apraz, mas
tambm se apossar do que lhe d prazer. Deseja no apenas ser livre
mas
sobretudo ser proprietrio. Portanto, exatamente por constituir o
ncleo do desejo
seja pela liberdade, seja pela entrega, o indivduo deve tomar-se
por princpio e
fim, libertar-se de tudo que no si mesmo e apossar-se de sua
individualidade.
Profundas so as diferenas entre liberdade e individualidade.
Enquanto
a liberdade exige o despojamento para que se possa alcanar algo
futuro e alm,
a individualidade o ser, a existncia presente do indivduo.
Embora no possa
ser livre de tudo, o indivduo ele prprio em todas as
circunstncias pois, ainda
22
-
que entregue como servo a um senhor, pensa somente em si e em
seu benefcio.
Com efeito, seus golpes Me ferem: por isso, Eu no sou livre;
contudo, Eu os
suporto somente em meu proveito, talvez para engan-lo atravs de
uma
pacincia aparente e tranquiliz-lo, ou ainda para no contrari-lo
com Minha
resistncia. /.../. De modo que tornar-Me livre dele e de seu
chicote somente
conseqncia de Meu egosmo precedente[63]. Logo, a liberdade -
permisso
intil para quem no sabe empreg-la[64] - apenas adquire valor e
contedo em
funo da individualidade, a qual afasta todos os obstculos e pe
as condies
de possibilidade para a liberdade.
Stirner frisa que a individualidade (Eigenheit) no uma idia nem
tem
nenhum critrio de medida estranho mas encerra tudo que prprio ao
indivduo,
somente uma descrio do proprietrio[65]. Esta individualidade,
que diz
respeito a cada indivduo singular, afirma-se e se fortalece
quanto mais pode
manifestar o que lhe prprio. E exprimir-se como proprietrio
exige que o
indivduo no s tenha a plena conscincia dessa sua especificidade
mas que,
principalmente, exteriorize suas capacidades para se apropriar
de tudo que sua
vontade determinar. O indivduo tanto mais se realiza e se mostra
como tal quanto
mais propriedades for capaz de acumular, pois a propriedade que
se manifesta
exteriormente reflete o que se interiormente. Para que isto se
d, o indivduo tem
de se reapropriar dos atributos que lhe foram usurpados e
consagrados como
atributos de Deus e, depois, do Homem.
23
Stirner aponta que as tentativas da modernidade para tornar o
esprito
presente no mundo significam que estas perseguiram
incessantemente a
existncia, a corporeidade, a personalidade, enfim, a
efetividade. Mas observa que
centrada sobre Deus ou sobre o Humano, nunca se chegar
existncia, dado
que tanto Deus quanto o Homem no possuem dimenso concreta, mas
ideal e
nenhuma idia tem existncia porque no capaz de ter
corporeidade[66],
atributo especfico dos indivduos. Logo, a primeira tarefa a que
o indivduo deve
se lanar recobrar sua concreticidade, perceber-se totalmente
como carne e
esprito, aceitando, sem remorsos, que no s seu esprito mas tambm
seu
-
corpo vido por tudo que satisfaa suas necessidades.
Conquista-se, assim, a
integralidade como subjetividade corprea. Contudo, recuperar a
corporeidade
no significa que o indivduo deva se entregar a ela, deixando-se
dominar pelos
apetites e inclinaes sensveis, uma vez que a sensibilidade no a
totalidade de
sua individualidade. Ao contrrio, a conquista da individualidade
requer o domnio
sobre o corpo e sobre o esprito.
Apropriando-se de sua concretude, de sua existencialidade, o
indivduo
deve, por conseguinte, apropriar-se de sua humanidade. Conforme
Stirner, o
Homem como realizao universal da idia, isto , como corporificao
da idia,
representa a culminncia do processo de abstrao que permeou a
modernidade.
Admitindo a possibilidade de a essncia poder estar separada da
existncia, o ser
separado da aparncia, o indivduo foi considerado inumano, o
no-homem cuja
misso , precisamente, vir a ser homem. Assim, a humanidade
assentou-se no
sobre o Eu corpreo, material, com seus pensamentos, resolues,
paixes[67],
mas sobre o ser genrico Homem. De modo que o ser abstrato e
indiferenciado
tomou o lugar do ser real, particular, especfico.
24
No entanto, ser humano no a determinao essencial do
indivduo.
mesmo insignificante que ns sejamos homens, pois isto s tem
significado na
medida em que uma de nossas qualidades, isto , nossa
propriedade. Eu sou
certamente, entre outras coisas, tambm um homem, como Eu sou,
por exemplo,
um ser vivo, conseqentemente um animal, ou um europeu, um
berlinense, etc.[68].
O humano se realiza no ser homem, que no significa preencher o
ideal o homem,
mas manifestar-se como indivduo[69], ou seja, manifestar-se como
e no aquilo
que . Com isso, a questo conceitual o que o homem? se transforma
na
questo pessoal quem o homem? Enquanto com o que procura-se o
conceito
a fim de realiz-lo, com o quem tem-se uma resposta que dada de
modo
pessoal por aquele que interroga: a pergunta responde-se a si
mesma[70]. Portanto,
quem o homem? o indivduo, o finito, o nico[71]. O homem vale
como
universal; porm, Eu e o egosmo somos o verdadeiro universal,
porque cada um
egosta e se pe acima de tudo[72].
-
A fora do Eu stirneriano a atualizao de suas capacidades;
atravs
dela, o indivduo objetiva a vontade que o move e expande sua
propriedade. o
que especifica e distingue os indivduos, que so o que so em funo
da
quantidade de fora que possuem. Todavia, no decorrer de sculos
de
cristianismo se perseguiu um modo de torn-los iguais enquanto
ser e poder ser.
Primeiramente, encontrou-se a igualdade no ser cristo que,
todavia, ao excluir os
no cristos, deixava subsistir a diferena, pois s os seguidores
dos preceitos
divinos eram merecedores das ddivas de Deus. O poder ser se
revelava, assim,
um privilgio. Contra esse particularismo, lutou-se pela
igualdade universal
advinda da humanidade presente em cada indivduo e, como homem,
reclamou-se
pelo que legitimamente, ou seja, por direito, cabe ao Homem. O
direito, portanto,
uma concesso dada aos indivduos em funo de estarem subordinados
a uma
potncia, ela sim detentora da vontade soberana. Advindo de uma
fonte externa,
todo direito existente direito estranho[73].
No entanto, segundo Stirner, fora do indivduo no existe nenhum
direito,
pois Tu tens direito ao que Tu tens fora para ser[74]. Assim,
quando o indivduo
forte o suficiente para agir segundo sua vontade, est em seu
direito e o realiza.
Se o ato no se coaduna vontade de um outro, este tambm est no
direito de
no aceitar e fazer prevalecer sua vontade, caso tenha a fora
para tal. De modo
que a ao no necessita de nenhuma autorizao, pois a efetivao da
vontade
do indivduo que se cifra em si mesmo. E uma vez que a fora a
medida do
direito, os indivduos tornam-se proprietrios do que so capazes,
capacidade que
depende exclusivamente de sua fora para se apoderar e de sua
fora para
conservar a posse. Portanto, enquanto o direito uma obsesso
concedida por
um fantasma, a fora sou Eu mesmo. Eu sou o poderoso e o
proprietrio da fora.
O direito est acima de Mim /.../, uma graa concedida por um
juiz; a fora e o
poder existem somente em Mim, o forte e o poderoso[75].
25
Ademais, a conquista da individualidade demanda a necessidade
de
reorganizao das relaes entre os indivduos, dado que at ento os
indivduos
no puderam alar a seu pleno desenvolvimento e valor, pois no
puderam ainda
-
fundar suas sociedades sobre si prprios cabendo-lhes to somente
fundar
sociedades e viver em sociedade[76], no como querem, mas de
acordo com
interesses gerais, que visam apenas ao bem comum. Em conseqncia,
o modo
de existncia dos indivduos determinado exteriormente pela forma
da sociedade,
atravs das leis e regras de convivncia, de modo que estes no se
relacionam
diretamente, mas pela mediao da sociedade.
Os indivduos devem tomar conscincia do impulso que os leva a
estabelecer um intercmbio com os outros. Segundo Stirner, as
relaes
interindividuais se resumem ao fato de que Tu s para mim apenas
meu alimento,
mesmo se Eu tambm sou utilizado e consumido por Ti. Ns temos
entre Ns
apenas uma relao, a relao de utilidade, do pr-se em valor e em
vantagem[77].
De modo, que para assenhorear-se de suas relaes e estabelec-las
de acordo
com seus interesses, imprescindvel romper com as formas
institudas de
sociedade, que tm em vista, todas, restringir a singularidade
dos indivduos.
Assim, desde que um interesse egosta se insinue no seio da
sociedade, ela
estar corrompida e caminhar para a sua dissoluo /.../[78].
A dissoluo da sociedade se dar, conforme Stirner, com a
associao
dos egostas, uma reunio continuamente fluida de todos os
elementos
existentes[79], na medida em que se forma a partir da volio dos
indivduos que,
liberta dos constrangimentos sociais, ganha livre curso. O que a
caracteriza o
fato de os indivduos se relacionarem sem contudo um limitar o
outro, porque no
se encontram ligados por nenhum vnculo extrnseco, ou, nos termos
de Stirner,
porque nenhum lao natural ou espiritual faz a associao; ela no
nem uma
unio natural, nem espiritual[80].
Na associao, as relaes entre os indivduos se do sem
intermediao alguma, o que os permite unirem-se aos outros
exclusivamente por
seus interesses pessoais. Visto que Ningum , para Mim, uma
pessoa
respeitvel, tampouco meu semelhante, mas meramente, como
qualquer outro ser,
um objeto pelo qual Eu tenho ou no simpatia, um objeto
interessante ou no, um
26
-
sujeito til ou intil[81], se Eu posso utiliz-lo, Eu me entendo e
Me ponho de
acordo com ele e, por este acordo, intensifico minha fora e
atravs dessa fora
comum fao mais do que isolado poderia fazer. Neste interesse
comum, Eu no
vejo absolutamente nada de outro seno uma multiplicao de minha
fora e Eu o
mantenho apenas enquanto ele a multiplicao de minha fora[82]. E
por existir
apenas em funo de interesses, os indivduos so livres para
participarem de
quantas associaes desejarem, bem como para delas se desligarem
de acordo
com sua convenincia. Transformando as relaes sociais em relaes
pessoais,
os egostas podem fruir o mundo, conquistando-o como sua
propriedade.
III.2- O gozo de si:
Stirner supunha estar no limiar de uma poca[83], em cuja
entrada
estaria inscrita no mais a frmula apolnea Conhea-Te a Ti mesmo,
/.../ mas
Valoriza-Te a Ti mesmo! [84].
Segundo ele, os indivduos vivem preocupados e oprimidos pela
tenso
em conquistar a vida, seja a vida celeste, seja a vida terrena,
o que os impede de
desfrutar a vida[85]. Por isso, conclama os indivduos para o
gozo da vida, que
consiste em us-la como se usa a lmpada, fazendo-a arder.
Utiliza-se a vida e,
por conseqncia, a si mesmo, vivendo-a; consumindo-a e se
consumindo. Gozar
a vida utiliz-la[86].
27
O mundo religioso procurava a vida, mas este esforo para
alcan-la
se limitava em saber em que consiste a verdadeira vida, a vida
bem aventurada,
etc.? Como atingi-la? O que fazer para tornar-se homem, para
estar
verdadeiramente vivo? Como preencher esta vocao?[87]. A procura
pela vida
indica a procura por si mesmo e quem se procura ainda no se
possui, mas
aspira ao que deve ser[88]; por isso, durante sculos, diz
Stirner, os homens
apenas tm vivido na esperana, entretidos com uma misso, uma
tarefa na vida,
com algo para realizar e estabelecer atravs de sua vida, um algo
para o qual sua
-
vida somente meio e instrumento, algo que vale mais que esta
vida[89]. De sorte
que os que se preocupam com a vida no tm poder sobre sua vida
presente, pois
devem viv-la com a finalidade de merecer a verdadeira vida,
devem sacrificar
inteiramente sua vida por esta ambio e por esta misso[90], o que
resulta na
perda de si, na ciso entre sua vida futura, a qual deve atingir
e sua vida presente
e efetiva, que deve ser sacrificada em prol da primeira.
Alm do mais ao se perseguir impetuosamente a si mesmo /.../,
despreza-se a regra de sabedoria que consiste em tomar os homens
como eles
so, ao invs de tom-los como se gostaria que eles fossem,
instigando-os, por
isso, a irem atrs do Eu que deveriam ser, ambicionando fazer com
que todos os
homens tenham direitos iguais, sejam igualmente respeitados,
igualmente morais
ou racionais[91]. Admitindo que, sem dvida alguma, a vida seria
um paraso se
os homens fossem como deveriam ser, Stirner observa, porm, que o
que algum
pode se tornar, ele se torna[92], pois possibilidade e realidade
coincidem sempre.
No se pode fazer o que no se faz, tal como no se faz o que no se
pode
fazer[93]. Portanto, o que os indivduos so, bem como as
capacidades que
possuem, manifestam- se sempre, qualquer que seja a circunstncia
ou estado
em que eles se encontrem. Assim, Um poeta nato pode ser impedido
pelas
circunstncias desfavorveis de atingir o cume de seu tempo e de
criar, aps
srios e indispensveis estudos, obras de arte, mas ele far
versos, quer seja
criado de fazenda ou tenha a oportunidade de viver na corte de
Weimar. Um
msico nato far msica, quer seja com todos os instrumentos ou
somente com
um canudinho. Uma cabea filosfica nata se confirmar filsofo
universitrio ou
filsofo de aldeia e, enfim, um imbecil nato /.../ permanecer
sempre um crebro
limitado, mesmo que ele tenha sido adestrado e treinado para ser
chefe de
escritrio ou engraxe as botas deste chefe[94].
28
Segundo Stirner, Ns somos Todos perfeitos! Ns somos, a cada
momento, tudo o que podemos ser e no precisamos jamais ser mais
do que
somos[95]. Por isso, um homem no chamado a nada, no tem tarefa
nem
destinao, tanto quanto uma flor ou um animal no tm nenhuma
misso. A flor
-
no obedece misso de se perfazer, mas ela emprega todas as suas
foras para
usufruir o melhor que pode do mundo e consumi-lo; ela absorve
tanta seiva da
terra, ar da atmosfera e luz do sol quanto pode receber e
armazenar. O pssaro
no vive segundo uma misso, mas emprega suas foras o quanto pode
/..../. Em
comparao com as de um homem, as foras de uma flor ou de um
pssaro so
mnimas, e o homem que empregar as suas foras capturar o mundo de
modo
muito mais potente que aqueles. Ele no tem misso, mas foras que
se
manifestam l onde elas esto, porque seu ser no tem existncia
seno em sua
manifestao /.../[96], o que ele faz, em realidade, a cada
instante de sua vida.
Stirner assevera que o indivduo se afasta de seu gozo pessoal
quando cr dever
servir a algo alheio. Servindo apenas a si torna-se no apenas de
fato /.../, mas
tambm por (sua) conscincia, o nico[97]. No nico, o proprietrio
retorna ao
Nada criador do qual nasceu[98] porque a designao nico
to-somente um
nome, uma designao genrica que indica o irredutvel de toda
individualidade,
cujo contedo e determinao so especficos e postos por cada
indivduo,
especificamente, j que no h algo que os pr-determine.
29
O egosmo, no sentido stirneriano do termo, refere-se, por um
lado, ao fato de que
cada indivduo vive em um mundo que seu, que est em relao a ele,
que o
que para ele, motivo pelo qual sente, v, pensa tudo a partir de
si. Por outro lado,
diz respeito tanto s pulses e determinaes que compem a esfera
exclusiva do
indivduo, quanto ao amor, dedicao, preocupao que cada
individualidade
nutre por si. O homem, na tica de Stirner ego. Porm, o fato de
constiturem
eus no torna os indivduos iguais, uma vez que a condio de
possibilidade de
ser no se deve ao fato de serem todos egostas, mas em terem fora
para
expandir seu egosmo. Da, cada eu ser nico e sua individualidade
constituir a
nica realidade a partir da qual se pem suas possibilidades
efetivas. No se
pautando por nenhum critrio exterior, o nico no se deixa
determinar por nada, a
no ser pela conscincia de sua autonomia como indivduo dotado de
vontade e
fora, razo pela qual livre para desejar e se apossar de tudo o
que lhe apraz
atravs de sua potncia nica. um ser vido, movido pela nica fora
capaz de
-
torn-lo si mesmo: o egosmo. , enfim, o indivduo que se pe como
centro do
mundo e prefere a si, acima de todas as coisas; que orienta suas
aes,
estabelece suas relaes com o outro-de-si e dissipa sua existncia
visando
somente a um fim: satisfazer a si mesmo.
IV- A crtica de Marx:
Ao se comparar o pensamento de Marx com o de Stirner, torna-se
claro
que a incompatibilidade entre eles no se d quanto aos problemas
a serem
enfrentados. Ambos visam resoluo do mundo humano, de modo a
emancipar
as individualidades de todos os entraves que impedem seu pleno
desenvolvimento
e manifestao. Porm, se o fim os aproxima, trs questes
fundamentais -
referentes determinao da individualidade e do mundo humano e aos
meios e
ao alcance da emancipao das individualidades - os opem de modo
cabal.
A Ideologia Alem, redigida entre setembro de 1845 e maio de
1846, em
colaborao com Engels, ocupa um lugar preciso no itinerrio do
pensamento
marxiano. Esta obra fecha o ciclo crtico filosofia especulativa
alem, iniciado em
1843, com a crtica filosofia do direito e do estado de Hegel,
tendo como objeto a
filosofia neo-hegeliana.
A anlise dos pressupostos tericos do sistema hegeliano propiciou
a
Marx desvendar mistrio da filosofia de Hegel, o qual consiste em
considerar a
maneira de ser, a natureza, as qualidades especficas das coisas
como
determinaes, desdobramentos de um princpio extrnseco. O real no
o que
a partir de suas mltiplas determinaes intrnsecas, mas modos a
partir dos quais
o princpio autogerador se revela, sendo reduzido a fenmeno, a
aparncia. De
modo que a especulao hegeliana, por inverso determinativa, reduz
a
diversidade dos objetos a um conceito genrico, que retm a
identidade sob forma
de universal abstrato. Convertido em ser, este conceito tomado
como produtor
dos objetos particulares a partir de sua autodiferenciao, o que
faz com que as
30
-
complexas interconexes da realidade percam suas determinaes
essenciais e
se justifiquem somente enquanto realizaes, graus de
desenvolvimento do
conceito.
Portanto, a constituio do pensamento marxiano propriamente dito
se d
a partir da recusa abstratividade do pensamento hegeliano. Neste
sentindo,
podemos perceber um ponto de convergncia com Stirner. Todavia,
esta
convergncia se d apenas no que se refere percepo de um problema
central
da filosofia hegeliana. Com efeito, ambos censuram o carter
universalista e
abstrato da filosofia hegeliana e reclamam pelo particular, pelo
concreto. No
entanto, contrariamente a Stirner, Marx reconhece a efetividade
e concreticidade
no s da individualidade, mas tambm do mundo e reivindica a
determinao da
realidade a partir da apreenso dos nexos imanentes a ela,
visando o
desvendamento do real a partir do real, isto , o desvendamento
do modo de ser
especfico dos entes em sua particularidade, a partir dos prprios
entes. Logo,
enquanto Stirner nega toda objetividade fora do indivduo, Marx a
reconhece e a
toma como ponto de partida. A objetividade , para ele, a
categoria fundante do
ser, que por si, constitudo e suportado pela malha tecida por
suas
determinaes intrnsecas, possuindo atributos e modo de ser
prprios, e existindo
independentemente de qualquer relao com um sujeito.
Para Marx, o homem uma forma especfica de ser, portanto,
objetivo.
Dotado de foras essenciais que tendem objetividade, estas se
atualizam
apenas atravs da relao com outros seres. Logo, Marx no parte do
homem
como centro, tampouco reduz tudo ao homem, mas parte do homem
como ser que
estabelece relaes com a multiplicidade de seres que compem seu
entorno,
incluindo-se a os outros homens, que constituem, frente a cada
indivduo,
objetividades determinadas, bem como objetos nos quais comprova
suas foras
essenciais.
Dado sua especificidade ontolgica, o ser humano
necessariamente
levado a forjar suas condies de existncia, a instituir a
mundaneidade prpria a
31
-
si, razo pela qual atividade objetiva dos homens o princpio que
engendra a
efetividade da vida humana. Ou seja, o mundo humano e a forma de
existncia do
indivduos so criao objetiva dos prprios indivduos e constituem o
processo
histrico do vir-a-ser homem do homem, isto , o processo objetivo
e subjetivo de
autoconstituio do humano. Chasin esclarece que Marx, ao
identificar atividade
humana como atividade objetiva, articula atividade humana
sensvel, prtica,
com forma subjetiva, dao de forma pelo efetivador, o que reflete
sua
simultaneidade em determinao geral prtica dao de forma: a
primeira
contm a segunda, da mesma forma que esta implica a anterior, uma
vez que
efetivao humana de alguma coisa dao de forma humana coisa, bem
como
s pode haver forma subjetiva, sensivelmente efetivada, em alguma
coisa. O que
instiga a novo passo analtico, fazendo emergir, em determinao
mais detalhada
ou concreta, uma distino decisiva: para que possa haver dao
sensvel de
forma, o efetivador tem primeiro que dispor dela em si mesmo, o
que s pode
ocorrer sob configurao ideal, o que evidencia momentos distintos
de um ato
unitrio, no qual, pela mediao da prtica, objetividade e
subjetividade so
resgatadas de suas mtuas exterioridades, ou seja, uma transpassa
ou transmigra
para a esfera da outra, de tal modo que interioridade subjetiva
e exterioridade
objetiva so enlaadas e fundidas, plasmando o universo da
realidade humano-
societria - a decantao de subjetividade objetivada ou, o que o
mesmo, de
objetividade subjetivada. , por conseguinte, a plena afirmao
conjunta,
enriquecida pela especificao do atributo dinmico de cada uma
delas, da
subjetividade como atividade ideal e da objetividade como
atividade real, enquanto
momentos tpicos e necessrios do ser social, cuja potncia se
expressa pela
sntese delas, enquanto construtor de si e de seu mundo[99]. Esta
determinao
da atividade, indita, tanto quanto sabemos, at a elucidao de
Chasin, elimina
qualquer possibilidade de se imputar ao pensamento marxiano
carter objetivista,
pois conquanto haja prioridade do objetivo em relao ao
subjetivo, isto no
elimina o fato de que a prpria objetividade possa se dar sob
forma subjetiva,
como enunciado na I Tese Ad Feuerbach.
32
-
, portanto, a determinao da atividade humana, considerada tanto
em
sua dimenso correlativa e articuladora entre atividade ideal e
atividade concreta,
quanto em sua dimenso efetivadora da objetividade humana, que
constitui a
pedra de toque da nova configurao do pensamento marxiano e que
orienta as
afirmaes contidas em A Ideologia Alem. Nesta obra, de posse das
novas
conquistas, Marx inicia uma nova abordagem da filosofia
especulativa, dada a
feio que esta toma no interior do pensamento neo-hegeliano,
denunciando a
inverso ontolgica entre conscincia e ser.
Segundo Marx, os neo-hegelianos exacerbam o carter especulativo
da
filosofia hegeliana e partem de dupla mistificao: em primeiro
lugar, admitem a
dominao das idias sobre mundo real e identificam os
estranhamentos que
vitimam os homens a falsas representaes produzidas pela
conscincia. Em
segundo lugar, efetuam a crtica do real a partir da crtica da
religio. Assim, os
jovens hegelianos criticavam tudo, introduzindo sorrateiramente
representaes
religiosas por baixo de tudo ou proclamando tudo como algo
teolgico[100]; O
domnio da religio foi pressuposto. E, aos poucos, declarou-se
que toda relao
dominante era uma relao religiosa e se a converteu em culto,
culto do direito,
culto do estado, etc. Por toda parte, tratava-se apenas de
dogmas e da crena em
dogmas. O mundo viu-se canonizado numa escala cada vez mais
ampla at que o
venervel So Max pde canoniz-lo en bloc e liquid-lo de uma vez
por todas[101].
Autonomizando a conscincia e considerando os produtos da
conscincia
como os verdadeiros grilhes dos homens, os neo-hegelianos buscam
libert-los,
esclarecendo-os e ensinando-os a substituir estas fantasias por
pensamentos que
correspondam essncia do homem, diz um, a comportar-se
criticamente para
com elas, diz um outro; a expurg-las do crebro, diz um terceiro,
julgando que,
com isso, a realidade existente cair por terra (idem), dado que
reduzem-na a
produto das representaes da conscincia. Lutando apenas contra as
iluses da
conscincia, os neo-hegelianos, segundo Marx to-somente
interpretam
diferentemente o existente, reconhecendo-o mediante outra
interpretao[102].
33
-
O importante a frisar que Marx no nega o carter ativo, nem
tampouco
o estranhamento da conscincia. O que recusa a substantivao da
conscincia
e a ciso entre conscincia e mundo. Os neo-hegelianos, ao tomarem
a
conscincia como sujeito, desvinculam-na de sua base concreta e
lutam to-
somente com as sombras da realidade[103], isto , com
representaes, luta que
circunscrita ao mbito da conscincia no altera em nada as fontes
reais do
estranhamento, as quais devem ser buscadas em seu substrato
material e
superadas atravs da derrocada prtica das contradies efetivamente
existentes.
Por isso, A despeito de suas frases que supostamente abalam o
mundo, os
idelogos da escola neo-hegeliana so os maiores conservadores,
pois /.../ no
combatem de forma alguma o mundo real existente[104].
A refutao marxiana ao carter autnomo e determinativo
conferido
conscincia fundamenta-se no princpio que A conscincia jamais
pode ser outra
coisa que o ser consciente, e o ser dos homens o seu processo de
vida real[105].
Ou seja, o solo originrio da conscincia o processo de produo e
reproduo
dos meios de existncia humana, o qual subentende uma relao
objetiva com a
natureza e com outros homens. Como, para Marx, os contedos da
conscincia
so produtos do processo de vida real, segue-se que estas
representaes so a
expresso consciente - real ou ilusria - de suas verdadeiras
relaes e atividades,
de sua produo, de seu intercmbio, de sua organizao poltica e
social[106]. De
modo que a conscincia uma das foras essenciais humanas.
Especificamente,
a faculdade que o homem tem de portar em si, sob a forma de
idealidades, a
totalidade objetiva na qual est inserido. Portanto, o modo de
proceder, ou seja, a
atividade prpria da conscincia, a produo de idealidades, porm
estas no
advm da atividade pura da conscincia, mas da produo concreta da
vida. Face
a este vnculo entre conscincia e produo da vida, vale destacar a
observao
marxiana: Se a expresso consciente das relaes reais destes
indivduos
ilusria, se em suas representaes pem a realidade de cabea para
baixo, isto
conseqncia de seu modo de atividade material limitado e das suas
relaes
sociais limitadas que da resultam[107]. E se, em toda
ideologia[108], os homens e
34
-
suas relaes aparecem invertidos como numa cmara escura, tal
fenmeno
decorre de seu processo histrico de vida, do mesmo modo porque a
inverso dos
objetos na retina decorre de seu processo de vida puramente
fsico[109]. Assim,
tanto quanto a conscincia, tambm seu estranhamento derivado do
modo de
produo da vida; em outros termos, a alienao no resultado de
contradies
que se do puramente no nvel da conscincia, como consideram os
neo-
hegelianos, mas resultado de contradies efetivamente existentes
no mundo
objetivo. Logo, No a conscincia que determina a vida, mas a vida
que
determina a conscincia[110]. Neste sentido, os neo-hegelianos
sucumbem a duplo
equvoco: invertem a determinao entre conscincia e processo de
vida real e
autonomizam a conscincia de suas relaes com o que lhe
exterior.
Marx distingue-se dos neo-hegelianos, pois, pelo fato de
considerar a
conscincia como atributo especfico de um ser e tambm por no
partir daquilo
que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos
homens
pensados, imaginados e representados[111]. Seu ponto de partida
so os homens
realmente ativos e seu processo de vida real. De modo que, para
ele, produes
espirituais como a moral, a religio, a metafsica e qualquer
outra ideologia, assim
como as formas da conscincia que a elas correspondem no tm
histria, nem
desenvolvimento autnomo, mas os homens, ao desenvolverem sua
produo
material e seu intercmbio material, transformam tambm, com esta
sua realidade,
seu pensar e os produtos de seu pensar[112].
35
De sorte que, para Marx, a crtica do real no se reduz crtica
da
conscincia, isto , crtica das representaes, mas consiste /.../
em expor o
processo real de produo, partindo da produo material da vida
imediata /.../ e
em conceber a forma de intercmbio conectada a este modo de
produo e por
ele engendrada (ou seja, a sociedade civil em suas diferentes
fases) como o
fundamento de toda a histria, apresentando-a em sua ao enquanto
Estado e
explicando a partir dela [ a sociedade civil] o conjunto dos
diversos produtos
tericos e formas da conscincia - religio, filosofia, moral,
etc.[113]. No se trata,
como na concepo idealista da histria, de procurar uma categoria
em cada
-
perodo, mas sim de permanecer sempre sobre o solo da histria
real; no de
explicar a praxis a partir da idia, mas de explicar as formaes
ideolgicas a
partir da praxis material[114].
Disso decorre que todas as formas e todos os produtos da
conscincia
no podem ser dissolvidos por fora da crtica espiritual, pela
dissoluo na
autoconscincia ou pela transformao em fantasmas, espectros,
vises, etc. -
mas s podem ser dissolvidos pela derrocada prtica das relaes
reais de onde
emanam estas tapeaes idealistas[115], as quais so o fundamento
real que, em
seus efeitos e influncias sobre o desenvolvimento dos homens, no
em nada
perturbado pelo fato destes filsofos se rebelarem contra ele
como
autoconscincia e como o nico [116].
Evidenciada a distino entre o pensamento marxiano e a
filosofia
especulativa, em suas vertentes hegeliana e neo-hegeliana,
podemos passar
crtica especfica a Stirner, salientando que esta tem como fim
explicitar o carter
especulativo da anlise stirneriana em relao ao homem e ao mundo,
bem como
pr a descoberto o aspecto pseudo-revolucionrio e o perfil
conservador de suas
proposituras.
IV.1- O mistrio da construo stirneriana:
A partir da posio marxiana, Stirner opera uma destituio
ontolgica
tanto do mundo quanto do homem, na medida em que os destitui de
sua
objetividade.
Reproduzindo a natureza geral do procedimento especulativo,
Stirner,
atravs de esquemas e truques lgicos, traa um plano judicioso,
estabelecido
por toda eternidade, /.../ afim de que o nico possa vir ao mundo
no tempo
previsto[117]. O momento inicial deste plano consiste,
primeiramente, em isolar e
autonomizar o Eu, determinando tudo o que no se reduz a ele como
o no-Eu,
36
-
como o que lhe estranho. Em seguida, a relao do Eu com o
no-Eu
transformada em uma relao de estranhamento, o qual ganha sua
expresso
final na transformao de tudo que existe independentemente do Eu
em algo
sagrado, isto , na alienao (Entfremdung) do Eu em relao a alguma
coisa
qualquer tomada como sagrado[118]. Aps reduzir a realidade e os
indivduos a
uma abstrao, inicia-se o segundo momento do plano traado por
Stirner, ou seja,
chega-se fase da apropriao, pelo indivduo, de tudo que
anteriormente foi
posto como estranho a ele. Chamando a ateno para o carter
ilusrio desta
apropriao que, sem dvida, no se encontra nos economistas[119],
Marx aponta
que ela consiste, pura e simplesmente, na renncia representao do
sagrado, a
partir da qual o indivduo assenhora-se do mundo, tornando-o sua
qualidade ou
propriedade.
Em verdade, aceitando com candura as iluses da filosofia
especulativa,
que toma a expresso ideolgica especulativa da realidade como a
prpria
realidade, separada de sua base emprica, Stirner critica as
condies reais
fazendo delas o sagrado e as combate batendo-se contra a
representao
sagrada que h nelas[120]. Isto porque supe que no h relaes a no
ser com
os pensamentos e com as representaes[121]. Logo, ao invs de
tomar por
tarefa descrever os indivduos reais com seu estranhamento
(Entfremdung) real e
as condies empricas deste estranhamento (Entfremdung)[122],
transforma os
conflitos prticos, ou seja, conflitos dos indivduos com suas
condies prticas de
vida, em conflitos ideais, isto , em conflitos destes indivduos
com as idias que
eles fazem ou pem na cabea[123]. De modo que, para Stirner no se
trata mais
de suprimir (aufheben) praticamente o conflito prtico, mas
simplesmente
renunciar idia de conflito, renncia qual, como bom moralista que
, ele
convida os indivduos de maneira premente[124].
37
No entanto, diz Marx, apesar dos diversos truques lgicos que
So
Sancho utiliza para canonizar e, precisamente por esse meio,
criticar e devorar o
mundo existente, ele apenas devora o sagrado, sem tocar em nada
propriamente
do mundo. Portanto, naturalmente, sua conduta prtica s pode ser
conservadora.
-
Se ele quisesse realmente criticar, a crtica profana comearia
justamente l onde
cai a pretendida aurola sagrada[125].
Marx rechaa, pois, a reduo stirneriana da realidade
subjetividade e o
conseqente descarte da objetividade, bem como a reduo de todo
processo
objetivo e toda relao objetiva, que determinam objetivamente a
subjetividade, a
uma representao. Ademais, critica o fato de Stirner, da mesma
forma que
prescinde de determinar o fundamento concreto da existncia dos
homens, de seu
mundo e de suas representaes, prescindir igualmente de
determinar o
fundamento concreto da alienao, abstraindo a alienao efetiva ao
converter os
estranhamentos reais em falsas representaes. De modo que o ncleo
da
refutao marxiana se deve ao reconhecimento, por Stirner, da
realidade pura e
simples das idias, motivo pelo qual aborda o real a partir de
representaes,
supostas, por sua vez, como produtos de uma conscincia
incondicionada. Tal
reconhecimento ressalta, para Marx, o carter acrtico do
pensamento stirneriano,
dado que lhe permite abster-se de indagar sobre a origem das
representaes,
limitando sua superao transformao da conscincia, no sentido de
que
mudando-se as idias, muda-se a realidade. Aplica-se, portanto, a
Stirner a
observao que Marx faz a respeito de Hegel: a superao da
alienao
identificada com a superao da objetividade e a superao do
objeto
representado, do objeto como objeto da conscincia, identificada
com a
superao objetiva real, com a ao sensvel distinta do pensamento,
com a
praxis e com a atividade real[126].
38
Quanto ao indivduo stirneriano, Marx aponta que ele no
corresponde a
nenhum indivduo real, pois no corporal, nascido da carne de um
homem e
de uma mulher, [mas] um Eu engendrado por duas categorias,
idealismo e
realismo, cuja existncia puramente especulativa[127]. Abordando
a vida
somente numa perspectiva ideolgica, Stirner reduz o indivduo
conscincia,
limita sua atividade produo de representaes e identifica o
desenvolvimento
individual ao que atribui ser o desenvolvimento da conscincia,
tomada como algo
absolutamente incondicionado, que entretm relao apenas consigo
mesma.
-
Para Marx, j mostramos, o indivduo objetivamente ativo e a
conscincia se
desenvolve na relao objetiva que os indivduos entretm com o que
lhes
exterior - o mundo e os outros homens -, de modo que seu
desenvolvimento est
diretamente ligado quele das condies de existncia. Outrossim,
isolando e
singularizando o desenvolvimento dos indivduos e No levando em
considerao
a vida fsica e social, no falando jamais da vida em geral, So
Max, conseqente
consigo mesmo, abstrai as pocas histricas, a nacionalidade, a
classe, etc.
/.../[128], vale dizer, abstrai as particularidades que medeiam
o processo de
desenvolvimento das individualidades.
Em relao histria, tambm abordada sob uma perspectiva
ideolgico-
especulativa, Marx observa que Stirner, apresentando uma mera
variante da lgica
que orienta o desenvolvimento individual, ao abstrair as
transformaes objetivas
que determinam o desenvolvimento histrico, oferece um claro
exemplo da
concepo alem da filosofia da histria, na qual a idia
especulativa, a
representao abstrata, torna-se o motor da histria, de modo que a
histria
reduzida histria da filosofia. Novamente seu desenvolvimento no
concebido
conforme as fontes existentes e tampouco como o resultado da ao
das relaes
histricas reais, mas apenas segundo a concepo exposta pelos
filsofos
alemes modernos, particularmente Hegel e Feuerbach. E mesmo
destas
exposies no se retm seno os elementos teis para o fim proposto e
que a
tradio fornece a nosso santo. Assim, a histria se reduz a uma
histria das idias,
tais quais so imaginadas, a uma histria de espritos e de
fantasmas e s se
explora a histria real e emprica, fundamento desta histria de
fantasmas, para
que ela lhes fornea um corpo[129]. Omitindo completamente a base
real da histria,
excluindo da histria a relao dos homens com a natureza, Stirner
compartilha da
iluso de cada poca histrica, transformando a representao que
homens
determinados fizeram de sua praxis real /.../ na nica fora
determinante e ativa
que domina e determina a praxis desses homens. /.../ De modo
mais consistente,
ao sagrado Max Stirner, que nada sabe da histria real, o curso
da histria aparece
como um simples conto de cavaleiros, bandidos e fantasmas, de
cujas vises s
39
-
consegue naturalmente se salvar pela dessacralizao[130], o que
no significa
desfazer-se das representaes sobre o real a partir da delucidao
do real como
algo em si, mas em negar, pura e simplesmente, o carter sagrado
atribudo s
representaes. De modo que, devido absoluta desconsiderao pela
realidade,
Stirner para Marx o mais especulativo dos filsofos
especulativos.
IV.2- A crtica de Marx individualidade stirneriana e suas relaes
com o mundo:
A critica marxiana a Stirner no um ataque individualidade. Marx
no
se dedica a demolir seu pensamento porque nele se encontra a
defesa
intransigente da soberania do indivduo, mas sim porque nele a
forma de ser do
ser social - o indivduo - acha-se transformada em uma
fantasmagoria, em uma
abstrao.
Stirner parte da suposio de que o indivduo possa existir livre
de
qualquer condio prvia que no seja si mesmo e se desenvolver em
um mundo
do qual seja o centro. Marx, ao contrrio, afirma que o
desenvolvimento de um
indivduo condicionado pelo desenvolvimento de todos os outros
com