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  • A Evoluo do Design de Moblia no Brasil ::

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    mobliabrasileiracontempornea

    pesquisaMarcos Cartum e Maria Lydia Fiamminghi

    organizadoraClaudia de Brito Lameirinha Bianchi

    So Paulo, 2008

    Coleo Cadernos de Pesquisa

  • 2:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    copyright ccsp @ 2008Fotografia de Capa / Joo Mussolin Centro Cultural So Paulo - Rua Vergueiro, 1.00001504-000 - Paraso - So Paulo - SPTel: 11 33833438http://www.centrocultural.sp.gov.brTodos os direitos reservados. proibido qualquer reproduo para fins comer-ciais. obrigatrio a citao dos crditos no uso para fins culturais.

    Prefeitura do Municpio de So Paulo Gilberto KassabSecretaria Municipal de Cultura Carlos Augusto CalilCentro Cultural So Paulo Martin GrossmannDiviso de Informao e Comunicao Durval LaraGerncia de Projetos Alessandra MeleiroIdealizao Diviso de Pesquisas/IDARTReviso Luzia BonifcioDiagramao Lica KeuneckeCapa Solange Azevedo Publicao site Marcia MaraniPesquisa, texto e entrevistas Marcos Cartum, Maria Lydia FiamminguiTombamento e Reviso Celso Eduardo OhnoOrganizadora Claudia de Brito Lameirinha Bianchi

    M687 Moblia Brasileira Contempornea [recurso eletrnico] / organizadora Claudia de Brito Lameirinha Bianchi - So Paulo; Centro Cultural So Paulo, 2007 148 p. em PDF - (cadernos de pesquisa: v. 15)

    ISBN: 978-85-86196-26-3 Material disponvel na Diviso de Acervos: Documentao e Cosnervao do Centro Cultural So Paulo.

    1. Mveis - Brasil 2. Mveis modernos - Brasil I. Bianchi, Claudia de Brito Lameirinha, org. II. Srie

    CDD 749.2981

  • A Evoluo do Design de Moblia no Brasil ::

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    :: AGRADECIMENTOS

    Agnes Zuliani

    Lcia Maciel Barbosa de Oliveira

    Vera Achatkin

    Walter Tadeu Hardt de Siqueira

  • 4:: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: PREFCIO

    A Coleo cadernos de pesquisa composta por fascculos produzidos pelos pesquisadores da Diviso de Pesquisas do Centro Cultural So Paulo, que sucedeu o Centro de Pesquisas sobre Arte Brasileira Contempornea do antigo Idart (Departamento de Informao e Documentao Artstica). Como parte das comemoraes dos 30 anos do Idart, as Equipes Tcnicas de Pesquisa e o Arquivo Multimeios elaboraram vinte fascculos, que agora so publicados no site do CCSP. A Coleo apresenta uma rica diversidade temtica, de acordo com a especificidade de cada Equipe em sua rea de pesquisa cinema, desenho industrial/artes grficas, teatro, televiso, fotografia, msica e acaba por refletir a heterogeneidade das fontes documentais armazenadas no Arquivo Multimeios do Idart. importante destacar que a atual gesto prioriza a manuteno da tradio de pesquisa que caracteriza o Centro Cultural desde sua criao, ao estimular o esprito de pesquisa nas atividades de todas as divises. Programao, ao, mediao e acesso cultural, conservao e documentao, tornam-se, assim, vetores indissociveis. Alguns fascculos trazem depoimentos de profissionais referenciais nas reas em que esto inseridos, seguindo um roteiro em que a trajetria pessoal insere-se no contexto histrico. Outros fascculos so estruturados a partir da transcrio de debates que ocorreram no CCSP. Esta forma de registro - que cria uma memria documental a partir de depoimentos pessoais - compunha uma prtica do antigo Idart. Os pesquisadores tiveram a preocupao de registrar e refletir sobre certas vertentes da produo artstica brasileira. Tomemos alguns exemplos: o pesquisador Andr Gatti mapeia e identifica as principais tendncias que caracterizaram o desenvolvimento da exibio comercial na cidade de So Paulo em A exibio cinematogrfica: ontem, hoje e amanh. Mostra o novo painel da exibio brasileira contempornea

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    enfocando o surgimento de alguns novos circuitos e as perspectivas futuras das salas de exibio. J A criao grfica 70/90: um olhar sobre trs dcadas, de Mrcia Denser e Mrcia Marani traz nfase na criao grfica como o setor que realiza a identidade corporativa e o projeto editorial. H transcrio de depoimentos de 10 significativos designers brasileiros, em que a experincia pessoal inserida no universo da criao grfica. A evoluo do design de moblia no Brasil (moblia brasileira contempornea), com pesquisa de Marcos Cartum e Maria Lydia Fiammingui e organizao de Claudia Bianchi, trata da trajetria do desenho industrial brasileiro a partir da dcada de 1950, enfocando as particularidades da evoluo do design de mvel no Brasil. A evoluo de novos materiais, linguagens e tecnologias tambm encontra-se em Novas linguagens, novas tecnologias, organizado por Andra Andira Leite, que traa um panorama das tendncias do design brasileiro das ltimas duas dcadas. Caderno Seminrio Dramaturgia, de Ana Rebouas traz a transcrio do Seminrio interaes, interferncias e transformaes: a prtica da dramaturgia realizado no CCSP, enfocando questes relacionadas ao desenvolvimento da dramaturgia brasileira contempornea. Procurando suprir a carncia de divulgao do trabalho de grupos de teatro infantil e jovem da dcada de 80, Um pouquinho do teatro infantil, organizado por Maria Jos de Almeida Battaglia, traz o resultado de uma pesquisa documental realizada no Arquivo Multimeios. A documentao fotogrfica, que constituiu uma prtica sistemtica das equipes de pesquisa do Idart durante os anos de sua existncia, evidenciada no fascculo organizado por Marta Regina Paolicchi, Fotografia: Fredi Kleemann, que registrou importantes momentos da cena teatral brasileira. Na rea de msica, um panorama da composio contempornea e da msica nova brasileira revelado em Msica Contempornea I e

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    Msica Contempornea II que traz depoimentos dos compositores Flo Menezes, Edson Zampronha, Slvio Ferrraz, Mrio Ficarelli e Marcos Cmara. J Tributos Msica Brasileira presta homenagem a personalidades que contriburam para a msica paulistana, trazendo transcries de entrevistas com a folclorista Oneyda Alvarenga, com o compositor Camargo Guarnieri e com a compositora Lina Pires de Campos. Esperamos com a publicao dos e-books Coleo cadernos de pesquisa, no site do CCSP, democratizar o acesso a parte de seu rico acervo, utilizando a mdia digital como um poderoso canal de extroverso, e caminhando no sentido de estruturar um centro virtual de referncia cultural e artstica. Dessa forma, a iniciativa est em consonncia com a atual concepo do CCSP, que prioriza a interdisciplinaridade, a comunicao entre as divises e equipes, a integrao de pesquisa na esfera do trabalho curatorial e a difuso de nosso acervo de forma ampla.

    Martin Grossmann Diretor

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    :: SuMRIO

    Apresentao A evoluo do design de moblia no Brasil

    Abraho Sanovics

    Antonio Oliveira dos Santos

    Joo Batista Villanova Artigas

    Carlos Motta

    Jorge Zalszupin

    Jos Chaves

    Karl Heinz Bergmiller

    Lo Seincman

    Lina Bo Bardi

    Michel Arnault

    Srgio Rodrigues

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    :: MOBLIA BRASILEIRA CONTEMPORNEA

    :: Apresentao

    A pesquisa Moblia Brasileira Contempornea refere-se s trajetrias do desenho industrial brasileiro a partir da dcada de 50 e est tombada no Arquivo Multimeios, da Diviso de Pesquisas do Centro Cultural So Paulo. Os depoimentos que compem esta pesquisa foram feitos no ano de 1984 pelos pesquisadores Marcos Cartum e Maria Lydia Fiammingui.

    O objeto deste trabalho traar a trajetria do Desenho Industrial no pas, com nfase no perodo inaugurado no ps-guerra, quando se verifica sua verdadeira implantao atravs de escritrios especializados, cursos especficos e a criao de concursos e entidades.

    A sistematizao utilizada para o desenvolvimento da pesquisa compe-se de um quadro histrico da trajetria do Desenho Industrial brasileiro, visualizado a partir da cidade de So Paulo, dentro do cenrio cultural que marca o perodo a partir do ps-guerra, de depoimentos que visam documentar uma memria da obra dos designers paulistas mais representativos do mesmo perodo e imagens de suas obras.

    Os depoimentos pontuam o incio de suas carreiras, o interesse pela arquitetura e pelo design, a criao de novos projetos, os problemas do design com relao indstria, as bases para a constituio dos cursos de Desenho Industrial no Brasil, o desenho industrial e a tecnologia nacional, o desenvolvimento do design no Brasil e a trajetria das obras individuais.

    Para a constituio desse acervo documental vrios arquitetos, designers e profissionais ligados ao design de moblia foram entrevistados: Abraho Sanovics, Antonio Oliveira dos Santos, Joo Batista Villanova Artigas, Carlos Motta, Jorge Zalszupin, Jos Chaves, Karl Heinz Bergmiller, Lo Seincman, Lina Bo Bardi, Michel Arnault e Srgio Rodrigues.

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    :: A EVOLuO DO DESIGN DE MOBLIA NO BRASIL

    O design da moblia moderna no Brasil nasce, nos anos 20, na prancheta de Gregori Warchavchik e de John Graz, sendo que este ltimo, ligado esttica do Art Dco, desempenhando importante papel na difuso das artes decorativas ao criar os requintados ambientes da burguesia paulista, em que cada pea recebe desenho e tratamento adequado e prprio a seu cenrio e dono. J em Warchavchik, percebe-se o compromisso com a esttica do racionalismo alemo trazido de sua estada na Europa, no seu caminho da Rssia para o Brasil, ainda que no entrasse em contato direto com a Bauhaus. Esse compromisso est expresso na supresso do ornato, na construo lgica baseada no desempenho funcional e estrutural e no purismo no uso dos materiais e das formas. Tais princpios, aplicados ao desenho de objetos, so transferidos da conceituao que rege sua arquitetura. Os mveis de Warchavchik caracterizam-se por complementar o espao arquitetnico modernista que criou, como podemos ver no final de seu manifesto Acerca da Arquitetura Moderna1, quando proclama: Abaixo as decoraes absurdas e viva a construo lgica, eis a divisa que deve ser adotada pelo arquiteto moderno.

    Deve-se salientar ainda que a arquitetura moderna, contida na utopia da modernidade, tem forte inspirao na mquina e, por extenso, tambm na indstria. Conforme as orientaes do racionalismo europeu, Warchavchik entende a habitao como mquina de morar, em que est presente a idia de que , atravs da indstria, que ir se chegar ao verdadeiro destino da arquitetura quando essa encontra sua funo social. Tal pensamento Warchavchik expressa claramente no mesmo manifesto quando afirma: Construir uma casa a mais cmoda e barata possvel, eis o que deve preocupar o arquiteto construtor da nossa poca de pequeno capitalismo, em que a questo da economia predomina sobre todas as demais. A beleza da fachada tem que resultar da racionalidade do plano de disposio interior, como a forma da mquina determinada pelo mecanismo que a sua alma.2

    Vemos, assim, que a moblia desenvolvida por Warchavchik denota os compromissos que ele assume como arquiteto. Contudo, sua produo pouco se aproximar de seu desejo de oferecer sociedade industrial, que engatinhava no pas, objetos cmodos, funcionais, durveis e acessveis. Talvez por no ter conseguido sensibilizar os industriais com seu apelo

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    modernista ou, ainda, por no ter ultrapassado o nvel formal em seus projetos, seus mveis jamais sairiam dos limites das bancadas de marceneiros habilidosos que os executavam em pequenas sries.

    O percurso de Gregori Warchavchik acaba por assumir, ento, um carter exemplar quanto aos caminhos que estariam por vir no desenvolvimento do desenho industrial no pas porque se, por um lado, seus objetos no puderam se desprender de um modo de produo artesanal - muito mais prximos das peas nicas e assinadas - por outro, representariam o prprio acesso ao design industrial resultante da experimentao com moblia.

    Desde os primeiros exemplares, encontramos algumas das questes que ainda hoje ocupam a pauta das discusses acerca do desenho industrial brasileiro, tais como a efetivao do projeto para a indstria, a importao de modelos estrangeiros versus a busca de um desenho genuinamente nacional e a comercializao de peas que sobrevivam aos modismos. Essas questes integram os temas que estavam sendo debatidos no momento de implantao da nova arquitetura e no da ecloso do movimento moderno em todas as suas vertentes. Compreende-se, dessa forma, a ligao ntima que h entre o processo de evoluo do design e a introduo da arquitetura moderna no Brasil. Torna-se ntido tambm que as idias ligadas ao design de mvel nascem a reboque da evoluo da arquitetura brasileira, o que se reflete no fato de a maioria dos designers ser composta de arquitetos, convertidos ou no a esse campo.

    O problema j est, de sada, colocado. Enquanto o Movimento Moderno Europeu brota diretamente da Revoluo Industrial do sculo XVIII, consolidando-se atravs do Arts & Crafts e em seguida do Art Nouveau, isto , profundamente ancorado nas transformaes tecnolgicas, econmicas e scio-polticas de uma cultura industrial emergente, em que a arte moderna pode ser vista como uma de suas manifestaes, a maneira como esse processo veio se instalar no Brasil corresponde a uma realidade totalmente diversa cuja essncia ainda hoje se faz presente. No houve na raiz de nossa modernidade a mesma herana industrial, e os esforos dos pioneiros do design brasileiro efetivamente pouco conseguiram avanar

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    alm da ruptura formal com os velhos estilos e da sintonia com o que se irradiava na Europa.

    O design desse mundo moderno se descortina com a fundao da Bauhaus de Walter Gropius, em 1919, na cidade de Weimar, fruto das atividades desenvolvidas pela Deutsche Werkbund, de Hermann Muthesius. Uma sociedade que, como parte de um apelo de maior alcance renovao artstica, moral e social, reunia representantes da indstria, da arte, do artesanato e do comrcio alemo para a produo de objetos industriais e que, por sua vez, era uma variante da filosofia de John Ruskin e William Morris, no Arts & Crafts e, principalmente, da escola de Van de Velde, de 1901, de quem a Bauhaus filha.

    A escola de arquitetura e arte aplicada que Gropius criou, em 1919, e que dirigiu, at 1928, a concluso dos esforos desenvolvidos a partir da segunda metade do sculo XIX para restabelecer o contato entre o mundo da arte e o mundo da produo, para formar uma classe de artfices idealizadores de formas e para basear o trabalho artstico no princpio da cooperao. Se a arte deixa de ser uma revelao do criador, feita ao artista pela graa da inspirao, mas sim o aperfeioamento de um fazer que tem o princpio e o fim do mundo e se cumpre inteiramente na esfera social, o problema da gnese torna-se o prprio problema da produtividade e adquire, automaticamente, um carter social.3 em torno desses elementos que Gropius articula seu discurso, estrutura didtica da Bauhaus, em que a concepo de design est orientada a impulsionar a criao de uma nova mentalidade para uma nova realidade.

    Outro ponto a ser ressaltado refere-se preocupao em definir um desenho brasileiro em que, no caso da moblia de Warchavchik, verifica-se uma posio discordante. Ele, com efeito, est comprometido em romper as fronteiras nacionais e criar um desenho como o de Dessau, segunda sede da escola alem, colocando o Brasil dentro do grande projeto encabeado pela nova arquitetura, na qual deveria estar ausente, portanto, qualquer trao regional. Tambm notrio no caso de Flvio de Carvalho, arquiteto paulista identificado com o futurismo italiano. A crise da natureza coincide, na arte moderna, com a crise da histria e com a aspirao de atingir

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    expresses supra-histricas, antinaturalsticas, internacionais. A didtica da Bauhaus nasce exatamente da verificao de que, pela primeira vez, um ideal internacional assumiu uma consistncia histrica precisa.4 Com a crise econmica desencadeada em 1929, as pretenses de Warchavchik sofrem srio abalo em relao posio de vanguarda que ocupava at ento.

    A dcada de 30 assistiria ao advento de um surto nacionalista que parte do Rio de Janeiro para conduzir os caminhos de nossa arquitetura. Pelas mos de Lcio Costa, sem que ele renegasse frontalmente a experincia do modernismo paulista, iniciada uma trajetria em direo a um desenho brasileiro partindo da assimilao de nossas razes. Essa iniciativa iria tambm buscar inspirao e influncia na viso elaborada por Le Corbusier, contrapondo-se ao domnio de Gropius e presente nas posies de Warchavchik.

    Le Corbusier assume a racionalidade como sistema e traa grandes planos que deveriam eliminar qualquer problema; Gropius assume a racionalidade como mtodo que permite localizar e resolver os problemas que a existncia vem continuamente colocando.5 Dessa postura, lembramos as palavras do prprio Lcio Costa justamente abordando a questo do mobilirio: E como todos consideramos anomalias no s a fabricao em srie de mveis de estilo antigo, mas tambm as grotescas produes do falso modernismo e bem poucas nos podemos dar ao bom gosto, ou talvez melhor, extravagncia de adquirir, para uso prprio, mveis de antepassados dos outros, esperemos que essa confuso contempornea se esclarea brevemente e a casa brasileira, hoje to atravancada, se v aos poucos... desentulhando, at readquirir, mobiliada com peas atuais e de fabricao corrente, aquela sobriedade que foi, no passado, um dos seus traos mais caractersticos, seno mesmo o seu maior encanto.6

    A dcada de 30 registra, para o mobilirio, um perodo de retrao se comparado ao fervilhar do momento imediatamente anterior, confinando a contribuio de Warchavchik no tempo e fixando-o no papel de precursor do design de mvel no pas. So Paulo, nesse perodo, encontra-se inundada pela Art Dco, nas construes e nas decoraes, contracenando com o ecletismo sem pai nem me. Vale lembrar a significativa produo do Liceu de Artes e Ofcios, de onde saram mveis cuja importncia estaria

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    mais no esmero da execuo e na reproduo dos estilos decorativos ecleticamente aplicados e veiculados pelo cinema norte-americano.

    Esse tipo de produo d mostra do momento vivido pelo design de mvel: uma espcie de compasso de espera principalmente pela tendncia irradiada pelos cariocas. O pas se agita para vencer sua fase pr-industrial, vigoram os produtos sem autor, sendo necessria novamente a presena de um profissional que, como Warchavchik, conseguisse apontar um caminho conceitual. Isso realmente ocorreria e no teria somente um protagonista, mas duas iniciativas, quase simultneas, que desempenharam esse papel. No Rio de Janeiro, os mveis de Joaquim Tenreiro e em So Paulo, pouco depois, os de Lina Bo Bardi mostrariam a um s tempo que a moblia brasileira teria que se expressar levando-se em conta a leveza imposta pelo clima e pelas possibilidades no trato dos materiais nativos. Chega-se, finalmente, a resultados que representam um produto brasileiro, dando um salto renovador dentro do prprio movimento moderno uma vez que partem da aplicao de outros princpios e no apenas do iderio subjetivo das idias que influam na moderna arquitetura.

    No por mero acaso que Joaquim Tenreiro tem seu lugar de destaque

    assegurado na histria da moblia brasileira. Trata-se daqueles casos em que as condies de ordem pessoal e os fatores externos combinam-se com extraordinrio encaixe, donde a fertilidade de sua trajetria. Tenreiro trouxera de Portugal seu ofcio de arteso que iria desenvolver e aperfeioar nas grandes firmas de moblia em que trabalhou no Brasil, que, apesar de artesanais, possuam, como no caso da C.Laubisch, Hirth & Co, em 1941, mais de 300 trabalhadores. Porm, a inteno que o trouxe to jovem ao Brasil, em 1927, era a pintura, que manteria paralelamente carreira de arteso - necessria sua sobrevivncia, envolvendo-se na rea de desenho e artes plsticas, o que o colocaria dois anos mais tarde como participante do Ncleo Bernardelli, em defesa de uma arte sem a mordaa da academia que controlava o salo nacional.

    Apesar do forte desejo em prosseguir sua carreira como artista, Tenreiro viu-se obrigado a manter-se no emprego de marceneiro onde trabalhava, fazendo mveis tanto mais procurados pelos clientes quanto melhor

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    transmitissem os estilos de sua origem, j fora de poca e numa repetio exaustiva.7 a partir desses dois componentes - seu lado arteso e seu lado artista - que se configura o Tenreiro designer. Cansado de repetir os mveis de estilo e impossibilitado de atuar somente como artista, comea a vislumbrar resolues com uma dosagem artstica na vontade de criar modelos de mveis prprios. Sem possuir qualquer informao sobre o que se desenvolvera na Bauhaus, Tenreiro contaria como referncia, em termos de linguagem, com os rumos inovadores da arquitetura no Rio de Janeiro.

    Em 1941, tem a oportunidade de decorar um projeto de Oscar Niemeyer, a residncia de Francisco lncio Peixoto, em Belo Horizonte. Aparece, ento, o primeiro exemplar moderno de uma moblia efetivamente brasileira, feito por um profissional que conhece a fundo as caractersticas e os processos de trabalho com a madeira, dotado de sensibilidade e em sintonia com o movimento cultural que se consolidava nas artes visuais. Em pouco tempo, criaria seu prprio negcio, que prosperaria rapidamente ao longo da dcada de 50, quando comearam a brotar outros profissionais que se aventurariam em estdios prprios para a criao e a comercializao de mveis.

    A atuao de Lina Bo Bardi tem, ao lado da de Tenreiro, importncia crucial na abertura dos caminhos que os designers de mvel iriam percorrer durante o perodo de maior fertilidade do setor: as dcadas de 50 e 80. Vinda da Itlia, em 1946, de onde trouxera slida formao como arquiteta, Lina possua uma viso elaborada a respeito do conceito de indstria a ser includo nos procedimentos projetuais da arquitetura. Pouco antes do final da II Guerra, j percebamos o perfil bem claro daquilo que iramos lanar como a libertao dos homens, da escravido do trabalho pesado que persistiu at a vspera da II Guerra Mundial. Especialmente, a libertao da mulher, que, com os trabalhos domsticos, sem a ajuda mecnica, ficava presa aos filhos, casa, cozinha, sem possibilidade de ter uma vida prpria e um trabalho fora do ambiente domstico. (Lina Bo Bardi em entrevista concedida aos pesquisadores no Sesc Pompia, em outubro de 1984)

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    Em dia com a problemtica contida na viso bauhausiana e disposta a realizar experincias com vistas a romper tanto com o formalismo exacerbado como com a produo massificante que chegava dos Estados Unidos, de onde emanava o fenmeno do styling, uma variao do desenho industrial nascido da necessidade da superproduo, a partir da crise de 1929, baseado no capitalismo oportunista, indiferente aos valores artsticos e culturais,8 Lina entusiasma-se com os horizontes criados com os primeiros frutos obtidos pelo grupo liderado por Lcio Costa. Esse entusiasmo originava-se no desejo de participar da modernizao do pas, o que possibilitaria a superao do subdesenvolvimento e em que o design teria um papel de libertao e de emancipao. Esse o sentido de sua interveno: a vontade de compreender o Brasil nessa dimenso poltico-cultural e traduzir em propostas de objetos a sua prpria identidade moderna.

    Em 1948, funda, em sociedade com o arquiteto Giancarlo Palanti, o Studio de Arte Palma com o objetivo de produzir um tipo de moblia no existente no mercado, que, alis, no possua tradio nem de desenho nem de processo industrial. Um ano antes desse evento, havia projetado uma cadeira dobrvel para o auditrio do Museu de Arte de So Paulo, que resultou num modelo extremamente engenhoso e elegante, exatamente por no ter sido possvel encontrar venda peas cujo desenho no fosse, na melhor das hipteses, cpia mal feita de um mvel europeu visto em alguma revista.

    O Studio Palma, que, alm de escritrio de desenho contava com uma oficina de madeira, uma mecnica, uma seo de artesanato e montagem, produzia suas peas em funo da simplificao estrutural, tentando extrair as possibilidades que as madeiras, o couro e os tecidos ofereciam como o repertrio formal brasileiro. Foi tambm o Studio Palma que introduziu a madeira compensada na fabricao de mveis no Brasil, posteriormente aproveitada nos mveis de Zanine Caldas, um maquetista de arquitetos do Rio e de So Paulo que fez grande sucesso comercial com a sua Fbrica de Mveis Z, explorando com muita habilidade as formas orgnicas tpicas dos anos 50. No entanto, Lina encerraria as atividades de seu Studio naquele mesmo ano, pela falta de proteo a que seus desenhos estiveram

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    expostos diante da enxurrada de cpias e imitaes que ocorreram desde sua abertura. Desde essa poca, Lina mantm-se afastada da atividade de designer de mvel.

    Desistncia que marcaria tambm, alguns anos mais tarde, j no final da dcada de 60, a carreira de Joaquim Tenreiro, no momento em que ele fecha suas lojas em So Paulo e no Rio de Janeiro para dedicar-se exclusivamente s artes plsticas.

    Cabe observar que essa coincidncia que une esses dois profissionais revela a precariedade do setor, uma vez que, nos dois casos, a questo da viabilidade comercial que serve de obstculo para o curso de suas atividades em design de mvel. Lina Bo Bardi assume uma postura radical na medida em que se recusa a prosseguir desenhando mveis como uma estilista de elite (o que poderia ter facilmente feito), na negativa de fazer um desenho industrial desprovido de um alcance maior.

    Se o plgio, a que estiveram submetidos seus produtos, levou-a ao desencanto, o mesmo no se pode dizer, contudo, dos benefcios que o mercado dele veio a retirar. Agora, quem sabe pela primeira vez, o modelo a ser copiado era brasileiro e os fabricantes percebiam algo novo e necessrio nas formas propostas no apenas pelo Studio Palma, mas por outras experincias que comeavam a aparecer, sobretudo em So Paulo com o Zanine, com o Lo Seincman, na Ambiente, com o Geraldo de Barros, na Unilabor, com os irmos Hauner, na Mobilinea e com o Miguel Forte e Roberto Aflalo, na Branco e Preto, entre outros.

    Vemos, ento, nos primeiros raios da dcada de 50, nascer, finalmente, uma nova categoria em atuao: o designer de mvel. Surge a o designer brasileiro, inicialmente ligado apenas ao setor do mobilirio, no qual estavam reunidas as condies para esse surgimento - fato que deve ser frisado no sentido de caracterizar o ponto de partida que define a evoluo do desenho industrial no Brasil. A dcada de 50 representa, portanto, quer para o design de mobilirio, quer para o design em sua totalidade, seu momento de arranque e consolidao.

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    Com o desenvolvimento econmico no ps-guerra, tendo Vargas posto em prtica seu plano de industrializao e com a entrada em vigor do surto desenvolvimentista da era Kubitschek, esto colocados os ingredientes que estimulariam uma produo destinada a um consumo interno.

    As dificuldades que enfrentvamos naquela poca, quando tudo era feito de madeira (de metal no tnhamos praticamente nada), s comearam a ser superadas com o advento da indstria automobilstica, a partir do que poderamos fazer qualquer coisa, pois qualquer tipo de material se tornava acessvel, j que existia a partir da uma tecnologia que nos favorecia. (Carlo Fongaro em entrevista concedida no seu escritrio, em outubro de 1984)

    No mbito da cultura, os anos 50 comportariam uma enorme expanso, um fervilhar de novas iniciativas e idias que se aglutinariam e se irradiariam atravs de todos os campos artsticos, configurando um perodo extraordinariamente produtivo, ocasio em que se viu a chance de romper com um passado que se interpunha ao sonho de se construir uma sociedade moderna, o mesmo desejo de desenvolvimento, modernizao e crescimento detectado no mbito poltico-econmico. O esforo de emancipao cultural de um Brasil atual e atuante evidente: ao defendermos a nossa emancipao cultural, seramos levados emancipao poltica e econmica.9

    Um leque de componentes favorecer o arranque do design. De um lado, as movimentaes que agitavam o debate da arquitetura, em que os arquitetos comeam a assumir interesse enquanto classe de desempenhar seu papel na modernizao do pas, num instante em que j se tinha plena conscincia de que as realizaes da arquitetura contempornea do Brasil indicavam um caminho prprio. Como resultado, veremos esse profissional lutando por alargar sua prtica em direo ao planejamento urbano e ao desenho industrial. Nessa poca as primeiras marcas e logotipos comeavam a ser estudados e planejados, com certa dose de lgica e com certo sentido de comunicao. Tambm algumas indstrias de aparelhos domsticos adotavam novos desenhos para seus produtos: tratava-se de indstrias que sentiam muito mais de perto a evoluo das necessidades do consumidor...10

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    Por outro lado, no campo das artes plsticas, temos uma srie de eventos que, posteriormente, tornar-se-iam decisivos. Em 1948, Francisco Matarazzo Sobrinho funda o Museu de Arte Moderna de So Paulo, enquanto Paulo Bittencourt cria o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; em 1950, aberto o Instituto de Arte Contempornea no MASP, o lanamento da revista Habitat e as exposies de Max BilI e Richard Neutra; em 1951, a primeira bienal do MAM em So Paulo e, finalmente, o lanamento do manifesto do Grupo Ruptura tambm no MAM paulista, definem um passo da maior relevncia na implantao de um design nacional. Esse resumido conjunto de fatos, alm de seu significado com o que se processava em bloco em todas as artes, tem um sentido especfico para o design.

    Com a consistncia que se vai adquirindo com a implantao dos vrios espaos culturais cuja misso primeira trazer criadores e criaturas da Europa e divulg-los aqui, tem-se a oportunidade de travar contato com personalidades atuantes na vanguarda artstica. Um desses personagens, cuja visita exerceu especial ressonncia, foi Max BilI. Sua passagem agitou os nimos de uma srie de profissionais e artistas, tanto em So Paulo como no Rio de Janeiro, uns assumindo a defesa diante da feroz crtica que ele desfechou aos arquitetos modernos brasileiros, acusando-os de terem desenvolvido projetos inteis por no transcenderem o nvel decorativo, e outros nele reconhecendo o acerto em sua prtica de artista e de incentivador na rea do design e da arquitetura. O arquiteto/escultor fora o responsvel pela fundao, logo depois da Segunda Guerra, da Hochschule fr Gestaltung em Ulm, escola que dirigiu por oito anos, at 1961, em cuja orientao inicial estava patente preocupao em reeditar a Bauhaus.

    Essa escola serviria de modelo para a elaborao do curso de desenho industrial da ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) no Rio de Janeiro, inaugurada em 1963, aps um largo perodo de namoro no s com o suo Max BiII como tambm com o diretor que o substituiu em UIm, o argentino Toms Maldonado, a quem o MAM do Rio de Janeiro convidara ao lado de outro designer, Otl Aicher, para proferir uma srie de conferncias sobre design, em 1962. Foi com Maldonado, alis, que a Escola Superior da Forma de Ulm acabou por assumir uma estrutura

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    contrria filosofia bauhausiana (sobretudo no tocante manuteno de procedimentos prprios da criao artstica), dando nfase teoria da informao, posio que se chocaria com as idias de BiII, as quais remetem mesma questo polmica da poca da fundao da Bauhaus entre Van de Velde e Muthesius e que continuaria pendente ao longo de sua existncia at 1933, quando fechada pelo nazismo.

    A ESDI, que resultou do desejo que vinha desde 1956 dos arquitetos e artistas envolvidos na criao do MAM-RJ, entre eles Affonso Reidy, Alosio Magalhes e Maurcio Roberto (seu primeiro diretor), em constituir um ncleo de design dentro do museu, destinava-se a substituir a bossa individual, puramente intuitiva e quase sempre formalmente gratuita, por uma metodologia de resoluo de problemas.

    Essa metodologia no um academismo, e sim, uma atitude estreitamente ligada s dificuldades cotidianamente enfrentadas pelo desenhista industrial.11 Segundo o pensamento de Maldonado, a crescente complexidade da produo industrial o fazia temer uma defasagem entre a indstria e o produtor de formas, sentindo-se este forado a evitar qualquer interferncia do expressionismo na produo industrial, em que o designer deveria estar aparelhado tecnologicamente, ponto em que Maldonado baseou-se para objetivar o ensino em UIm, formando programadores tcnico-visuais ultra-especializados.12

    Essa abordagem est fortemente presente na direo que toma a ESDI. O problema central desse enfoque quanto ao fato de que no houve maiores preocupaes no momento de importar, para uma realidade completamente distinta, um modelo destinado a uma nao cuja indstria possua slida instalao e para um perodo de ps-guerra, tal qual havia sido com a Bauhaus dos anos 20, quando a indstria necessitava de um projeto para reerguer-se. Paralela importao de mercadorias, dava-se a importao de um know-how que, nesse caso, passava por cima das necessidades locais.

    A preocupao em estabelecer uma estrutura de ensino condizente realidade brasileira apareceu, anos antes, no primeiro curso de desenho

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    industrial do pas: em 1950, no IAC do MASP (outra relevante contribuio de Lina Bo Bardi a ser tambm lembrada como responsvel pela edio nesse mesmo perodo da revista Habitat, que se tornaria importante veculo de informao e debate no campo da arquitetura, design e cultura).

    Dentro do terreno do mobilirio, devem ser mencionados, ainda, outros fatores atuantes. A presena de profissionais estrangeiros, que se acentuou com o fim da guerra, entusiasmados por encontrar no Brasil perspectivas mais favorveis para o exerccio de suas atividades, e a peculiaridade do momento econmico que propiciava grandemente a abertura de firmas para a produo de mveis com investimentos de capital relativamente baixos e com tecnologias simplificadas.

    Havia a fbrica Paubra que, no incio dos anos 50, abriu uma loja chamada Jatob, prxima praa da Repblica. A fbrica foi tambm uma das precursoras do mvel moderno em So Paulo quando era dirigida por Carlos Paris, que depois montaria a Forma. A Paubra comeou como uma marcenaria, tornando-se, ao longo dos anos, uma fbrica em que se produziam inclusive caixas de rdio, tendo tambm executado projetos do Studio Palma. Os primeiros desenhos da Paubra foram desenvolvidos pelo arquiteto italiano Carlo Fongaro, vindo de Milo, em 1947. Seu envolvimento com o mobilirio deu-se, basicamente, pelo fato de no ser conhecido aqui como arquiteto, sendo mais fcil oferecer seus desenhos em lojas de mveis. Aps essa experincia, Fongaro colabora em diversos projetos de mobilirio de escritrio para a fbrica Ambiente, do empresrio Lo Seincman, seguindo depois como designer na Probjeto.

    A isso ainda se aliava a abundante oferta de matrias-primas a custos reduzidos, bem como o aparecimento de um consumidor desejoso de atualizar-se; nota-se uma mudana do sentido alegrico com que a moblia comparecia tradicionalmente nas casas refinadas de So Paulo e tambm o consumo que comea a aparecer na classe mdia, para a qual surgiram diversas linhas de produtos. Deve-se lembrar que o mvel de encomenda, feito por marceneiros, nunca deixou de freqentar os ambientes paulistas e que, alm disso, os arquitetos normalmente desenhavam a moblia que acompanharia seus projetos, incumbncia que cresce nos anos 50. O que

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    indito nesse momento o surgimento de um produto com caractersticas industriais, veiculando uma proposta formal antes s acessvel a uma reduzida elite e bastante diferente da mercadoria convencional.

    O ltimo ponto que se destaca para compor o painel dos fatores que incidiriam nesse momento cultural dos anos 50 foi a contribuio do movimento concreto. No centro desse movimento, encontramos a figura de Waldemar Cordeiro trazendo para o gesto criativo a dinmica do pensamento lgico, segundo as tendncias enraizadas no construtivismo europeu.

    No final dos anos 50 tem-se, ento, um conjunto de pequenas indstrias atuando na esteira da fartura que marca o momento econmico de maneira ainda tmida em seu modo de produo, rumando, porm, para um comparecimento firme em uma escala maior. Alm das j citadas, datam tambm desse perodo a Oca, de Srgio Rodrigues, autor da clebre Poltrona Mole, de 1957, marco importante para o design brasileiro no exterior, tendo ganhado prmios de bom design e que ainda hoje bastante conhecida em vrios pases, um designer em busca da linguagem brasileira, que leva adiante a tendncia iniciada por Tenreiro; a Arredamento, a Moblia Contempornea, de Michel Arnault, a LAtelier, de Jorge Zalszupin, a Escriba, de Jos Serber e a Italma, que iniciou suas atividades na comercializao de mveis de escritrio aproveitando os projetos de Giancarlo Palanti, e a Forma. Essas empresas so basicamente as mesmas que hoje dividem o mercado. As pequenas manufaturas tornaram-se grandes indstrias, cujo crescimento correspondeu assimilao de tecnologias para o desenvolvimento de produtos para escritrio.

    O ltimo ano da dcada de 50 reservaria ainda uma importante conquista. O lanamento do primeiro concurso para desenho industrial, levado atravs do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em So Paulo e o embrio para a criao da Associao Brasileira de Desenho Industrial (ABDI), em 1963. De incio muito ativa, edita a revista Produto & Linguagem, logo interrompida, coincidindo com o paulatino esvaziamento que tomaria conta da entidade mais adiante, na dcada de 70.

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    No princpio dos anos 60, o design brasileiro comeou a estruturar-se enquanto setor profissional. Com a reforma curricular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, encabeada por Villanova Artigas, so introduzidas disciplinas dentre as quais destacamos as seqncias de desenho industrial e programao visual, fato que representa um divisor de guas no ensino de arquitetura no pas. Em 1962, s vsperas da criao da ESDI, no Rio, o que ocorre no ano seguinte, a reforma do ensino da FAU tem como tnica a formao do designer de produtos, alm da transmisso de uma metodologia que permita a resoluo de problemas especficos e o conhecimento dos vrios parmetros que os cercam, segundo a conceituao ampla do projeto. ... o dado fundamental do trabalho criador ser o projeto. ele que organiza e direciona todos os esforos, pois a prtica multicentennia nos ensina isso: do geral para o particular e vice-versa13 --- viso que exibe a introduo de um pensamento voltado para o social, que propulsiona a criatividade do trabalho projetual na busca de respostas, na escala da responsabilidade que o arquiteto naquele momento pretende assumir.

    A figura de Villanova Artigas no centro desses acontecimentos imprime um carter particular no itinerrio do desenho industrial. Suas posies pautavam-se pelo compromisso social a ser desempenhado pelo arquiteto em sua atividade, engajando-se na indstria, o definitivo instrumento para essa operao. Esse pensamento humanista que d sustentao ao ensino que comeava a ser veiculado na FAU no apareceria no modelo adotado pela escola carioca, de tendncia mais profissionalizante.

    O ponto de divergncia era, em suma, a tica sob a qual cada um dos cursos enxergaria alguns temas chaves: a questo da poro artstica contida no ato projetual, a maneira de encarar o desafio de pensar uma soluo brasileira para o design, o enfoque sobre o exerccio profissional, conforme as caractersticas prprias de cada orientao j mencionada, em que o arquiteto o todo- poderoso criador de uma sociedade humana e racional (FAU) e o desenhista industrial (ESDI) formado para amoldar-se s exigncias de um mercado de trabalho em maturao.

    O desenho industrial brasileiro teve, portanto, no incio da dcada de 60, condio de expandir-se rumo sua consolidao, no sentido de

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    estabelecer as bases enquanto setor organizado atravs da estruturao de cursos, entidades, canais de divulgao e conseqentemente da conscientizao da funo do designer dentro da indstria, embora nos anos seguintes tal consolidao fosse diluda em uma situao de impasse.

    Nessa direo, as indstrias de mveis passariam por um momento de significativa evoluo em suas linhas, conceitos e formas, quando se torna imprescindvel presena do designer para ocupar tal funo. o caso de Karl Heinz Bergmiller, na Escriba, e de Carlo Fongaro, na Probjeto, deixando de novo patente que o designer continua praticamente isolado dentro da indstria de mveis em relao ao espao a ser ocupado nos demais ramos industriais. de extrema importncia, tendo-se em conta essas observaes, o lanamento da Cadeira Dinamarquesa pela Probjeto, em 1964, introduzindo a tecnologia da madeira moldada e flexvel. A Probjeto continuaria posteriormente com essa finalidade: adquirir e transferir know-how para a produo de peas sob licena de indstrias estrangeiras, absorvendo as tecnologias avanadas inexistentes no pas.

    O golpe de 1964 repercutiria fortemente na trajetria at ento ascendente do desenho industrial brasileiro. O design nacional frutificara-se ao longo do perodo democrtico que a nao viveu de 1945 a 1964 e sofreria forte abalo com os desdobramentos dessa interrupo. Por um lado, houve o esmagamento da universidade pblica, marcando o fim do debate com o Ato Institucional n 5, em 1968. Ocorreu a uma proliferao de faculdades privadas, com a finalidade de desarticular e esvaziar o foco de debate representado pela universidade pblica. Nesse processo, incluem-se os cursos de desenho industrial, contando com o agravante de serem recm-nascidos. Alm do mais, as dificuldades impostas pelo quadro econmico inflacionrio e a instalao de multinacionais fortemente incentivada, cuja contrapartida no campo do design a devastao da atividade projetual foi ficando, aos poucos, de fora da produo.

    D-se incio a uma espcie de hibernao do desenho industrial a reboque da sucesso de crises ocasionadas pelo regime que se instala em 1964: Seria a crise de amplo espectro: econmica (1960-1964), poltica (1964-....), cultural (1968-...).14

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    Os anos 60 abrigam um contedo amplo face aos movimentos artsticos e culturais, examinando os problemas nacionais, como o subdesenvolvimento, o imperialismo, o engajamento crtico, propondo-se a apresentar e a denunciar uma realidade pela instrumentao da linguagem que fornece o concretismo, ao mesmo tempo, movimentos internacionais, como o Pop e Op Art, fortalecem-se na produo artstica brasileira, denunciando e influenciando linguagens e apelos de consumo explorados pela publicidade que tambm ganhava terreno. A busca do novo da classe mdia respondida por uma onda de consumismo atravs do design de comportamento comandado por designers como os Beatles,15 numa expanso do styling a infiltrar-se no desenho de moblia desse perodo.

    Vemos, com isso, um certo divrcio entre o plano da cultura elitizante e o plano da cultura veiculada pela produo industrial, em que se insere a indstria do mobilirio despida agora do discurso voltado ao nacional presente em outros campos da manifestao cultural. Chegam tambm influncias do design escandinavo, muito em voga nessa poca (tendncia que se verifica, por exemplo, pela Exposio de Desenho Industrial da Escandinvia organizada pela ABDI no MASP), reforando a modernizao e o crescimento do setor pela exaltao de uma produo que apresentava dois aspectos marcantes: boa forma e bom apelo de consumo, caractersticas ideais, porm ainda longe da realidade brasileira.

    Porm, com o fim do milagre em meados da dcada seguinte, que a sobrevivncia da produo brasileira de moblia moderna colocada em cheque, exigindo uma reformulao definitiva em relao ao sistema ainda preso ao modo artesanal que prevalecia nas indstrias. por essa poca que os padres de consumo comeam a desempenhar a fora motriz do processo, com o sistema industrial, quase condenado a reproduzir uma miniatura mal distribuda dos modismos, padres de consumo e novos produtos das economias de origem.16

    Com relao a isso, importante apontar os contornos desse impasse estrutural: o processo de industrializao brasileira ou todo o esforo de modernizao baseado na importao no planificada de processos, que se sedimentaram ao longo de sculos nas naes desenvolvidas e

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    que aqui se instala abruptamente, tende a conduzir o design, resultado do afastamento de uma identidade cultural brasileira, desprezando, entre outras coisas, o pr-artesanato de uma cultura popular, o qual procurou esmagar, quando deveria ter se preocupado em assimilar.

    Cultura design de imponderveis, design de designs ancorado na realidade e na necessidade, mas criando sua prpria realidade e sua prpria necessidade. No Japo, a arte mnima milenar, funda-se funcionalmente numa necessidade sobrevivencial e se traduz culturalmente e esteticamente na miniaturizao.17

    No dizer de Alosio Magalhes: Parece-me que, no caso brasileiro, toda atividade com caractersticas de artesanato, ou seja, pequena intermediao entre a mo que faz e o objeto que se usa, so formas iniciais de uma atividade que quer entrar na trajetria do tempo; que quer evoluir na direo da maior complexidade tecnolgica para resultados mais efetivos.18 Esse impasse, entretanto, no impede, ao contrrio estimula a continuidade do avano; sinais de sade que se misturam a sintomas crnicos de um mal antigo.

    No decorrer da dcada de 70, o recrudescimento da crise econmica que levaria queda do consumo interno, o aumento dos custos das matrias-primas e da produo, forando o industrial a buscar como sada a exportao, recolocava a necessidade de se investir em pesquisa, ampliando o campo de trabalho do desenhista industrial. Nasce uma empresa mais consciente dessa anatomia, e comeam a se desenvolver produtos que trazem atrs de si um envoltrio mais complexo.

    Em 1979, criado, dentro da Federao das Indstrias do Estado de So Paulo (FIESP) o Ncleo de Desenho Industrial (NDI), destinado exatamente a fazer com que o empresrio atentasse necessidade de canalizar recursos para o desenvolvimento de um design prprio, o caminho mais vivel para se desenvolver a indstria nacional. Esse fomento ao design realizado pelo NDI comea a surtir resultado em decorrncia dos vrios programas e convnios que estabelece com outras entidades associadas indstria, atingindo pouco a pouco sua meta ao incentivar

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    interesses para essa conscientizao, muito embora tal processo evolua num ritmo invariavelmente lento.

    No obstante a permanncia dos problemas mencionados, a dcada de 70 abarca uma grande, embora discutvel, expanso na atividade do desenhista industrial. O setor contaria, no final da dcada, com mais de vinte cursos espalhados por todo o pas, formando centenas de alunos anualmente. No decorrer da dcada, consolida-se o reconhecimento da atividade por parte do governo federal, e lembramos a atuao do Instituto de Desenho Industrial do MAM-RJ, que, afora a realizao de eventos a respeito do design, como as bienais internacionais de 1968 a 1972, vincula-se ao Ministrio da Indstria e Comrcio (MIC), em 1973, a fim de desenvolver projetos de pesquisa para a criao de normas tcnicas. Nessa fase, d-se tambm no Rio de Janeiro a criao da Associao Profissional dos Desenhistas Industriais de Nvel Superior (APDINS), quando j circulava um contingente de profissionais em nmero expressivo. As primeiras geraes de designers formados pelos cursos em multiplicao.

    Sob essa perspectiva, no apenas na ampliao do espao de atuao do designer em direo produo de bens de consumo, mas tambm na de bens de capital, quando o desenvolvimento industrial do pas atinge um expressivo crescimento, o designer comea a comparecer nos projetos de maior complexidade, nos quais sua funo tcnica gradualmente mais reconhecida e requisitada, medida que tais atividades adquirem um contorno multidisciplinar.

    No plano do projeto esttico, o perodo em que ingressamos a partir da dcada de 70, apesar de significar esse salto qualitativo indiscutvel, no representa para o mobilirio, alm de uma melhoria de nvel dos produtos, um avano real, fato que parece ser o fim da hibernao iniciada com os anos 60. Houve, de certa forma, a consolidao do processo em direo ao consumismo. Privado de um espao considervel, constrangido a se concretizar numa esfera restrita sob a forma de mercadoria, o racionalismo arquitetnico se transforma em ostentao de bom gosto, incompatvel com sua direo profunda, ou em smbolo moralizante e desconfortvel da revoluo que no ocorreu.19

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    A burguesia, imune crise, interessada em possuir cultura, incentiva o retorno s experincias pr-industriais, baseadas numa pretendida liberdade criadora (na esteira dos movimentos que contestam a continuidade da arte moderna), sem transpor o formalismo cujo contedo baseia-se na reificao da modernidade.

    Surgem, ento, profissionais dedicados a suprir esse tipo de mercado de moblia assinada, fenmeno que corresponde tendncia geral da cultura dos anos 80. So designers de mvel que se afastam dos procedimentos que os acercavam do terreno da arquitetura e se aproximam do dcor tpico do estilista de roupas e acessrios, colocando-se em atrito com a viso conceitual e tradicional do designer industrial.

    No mbito da arte, como vimos, o design tambm caminha na trilha das novas linguagens: a polmica suscitada nos ltimos anos pelo termo e pelo movimento ps-moderno, tanto na sociologia e teoria da cultura como, de modo particular, na arquitetura, ps em evidncia um fato simples: a existncia de uma nova conscincia de radicais transformaes em nossa existncia e suas condies histricas. (...) Mas nas manifestaes atuais da arte e da arquitetura, sente-se antes a falta desse elemento comunicativo e expressivo, a ausncia de fala. Existem estilos, quer dizer, formas codificadas, textos sintaticamente consistentes e expressivamente vazios. A forma artstica parece ter sido substituda pelo desenho; a expresso, suplantada pelas linguagens. O reino do styling acabou por deslocar inteiramente aquele sentido clssico de estilo, em que o individual e o coletivo, o expressivo e o lingstico, o mimtico e o abstrato conheciam um relativo equilbrio.20

    Mesmo que se mantenha a devida distncia crtica ante tais afirmaes, preciso reconhecer esse fenmeno que envolve o campo do design. Segundo apontamentos de um outro crtico, Bruno Munari, o designer ideal deve ser desprovido de estilo pessoal por no trabalhar para uma elite, e sim, para a comunidade; a forma final de seus objetos sempre o resultado lgico de um projeto que se prope a resolver da melhor maneira todos os componentes de um problema.

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    Assim, define o designer como um profissional que se ope ao fazer do artista por considerar que quando o artista pretende trabalhar como designer, f-lo sempre de um modo subjetivo (...), deseja que o objeto produzido conserve ou transmita a sua expresso artstica. Numa sociedade avanada, j no existem valores subjetivos, mas valores objetivos que tendem a predominar at porque o mtodo subjetivo no leva muito longe.21

    Produtos que apontam tanto para a direo de que fala Bruno Munari como para a tendncia ao formalismo ps-moderno, encontraram ampla aceitao no Brasil e representaram um passo decisivo para a descoberta de novos caminhos no design de mvel.

    Enquanto as propostas que vinham surgindo no mobilirio desenhado nos ltimos anos continuaram em sua maioria centradas em torno dos partidos j em processo de saturao, provenientes da experincia dos estdios da dcada de 50, aparece, em 1978, a Tok & Stok contribuindo para introduzir outras linguagens, a propor inovaes tanto em termos de linguagem como de proposta comercial.

    Produzidos sob licena da Innovator, firma sueca que apresentara em fins da dcada de 60 mveis inspirados na esttica dos materiais industriais usados com cores vibrantes high-tech - a Tok & Stok entra no mercado rapidamente, num ritmo de uma loja por ano. Ela leva classe mdia um mvel ajustado aos espaos reduzidos dos apartamentos das grandes cidades. Sucesso que acompanhado por um grande nmero de cpias que vem aparecendo desde a sua inaugurao. A frmula lnnovator coincide com as experincias do designer Michel Arnault na Moblia Contempornea, firma bastante atuante que o designer dirigiu at 1975 e que, j no incio dos anos 60, apresentava mveis que anteciparam essa mesma proposta: a linha Peg-Lev, criada para ser transportada em uma pequena embalagem pelo prprio comprador. A partir de ento, uma idia que Arnault tentou aprimorar com experincias alternativas de comercializao do mvel.

    Ao mesmo tempo, as discusses a respeito dos traos que configuram um design brasileiro voltam pauta ante a forte presena de tendncias

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    importadas, que, para muitos, representa somente outro sintoma do colonialismo cultural a que estamos permanentemente submetidos. As questes que ocupam o centro do debate em torno da efetivao do design nacional permanecem basicamente as mesmas desde a primeira hora, sendo que o principal fator ainda o de no termos at agora alcanado, no processo de industrializao, o desenvolvimento consolidado.

    ... Sofremos tambm os efeitos da dependncia cultural; porm, muito mais importante que essa dependncia a diviso internacional do trabalho, que atribui aos pases perifricos o papel de simples reprodutores da tecnologia produzida nos pases centrais. A metrpole realiza astutas manobras para manter sob seu controle a inovao tecnolgica -- instrumento que utiliza em seu interesse. O desenhista industrial em pases perifricos encontra-se em uma posio exposta a interesses conflitivos. Por um lado, tem de superar a inrcia local, a inrcia dos industriais, do pblico, dos administradores e at dos polticos e libertar-se das restries acadmicas. Por outro lado, tem de enfrentar a influncia externa, lutando contra a importncia do desenho industrial (...). Eu no estou convencido de que haja uma definio universalmente vlida do que seja desenho industrial. Existe um desenho industrial na metrpole, com seus pontos positivos e negativos, e h um desenho industrial na periferia, com suas potencialidades e dificuldades.22

    De qualquer maneira, sempre importante deixar em evidncia a problemtica que cerca a atividade do designer no Brasil, dadas s condies de seu desenvolvimento e revelando sua parcela de importncia para o processo de emancipao industrial.

    Fundamentalmente, a questo do desenho industrial em nosso meio est ligada a aspectos de independncia nacional e do estabelecimento da tecnologia nacional. A idia de tecnologia nacional no pode passar por uma hiptese de identidade formal e esttica que pudesse caracterizar o nosso produto pura e simplesmente, como se fosse para atender a um objetivo imediato de conquista de mercado externo, por exemplo. O que caracterizaria um desenho nacional - e cuja questo est no bojo de qualquer discusso que se estabelea sobre desenho industrial - seria

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    fatalmente nossa condio histrica, passando pela questo da necessidade e daquilo que seria primordialmente nosso mercado por excelncia, ou seja, o mercado interno. Se, nesse objetivo da produo industrial o mercado ficar como fato isolado sob um ponto de vista exclusivamente quantitativo, no sentido do lucro, eu tenho a impresso de que cairemos num erro muito srio porque a questo do lucro est, para a produo industrial, no sentido de realiment-la. A idia fundamental seria suprir as necessidades de uma civilizao ou um conjunto social para que este possa nitidamente expressar-se: o nosso desenvolvimento econmico prev o estabelecimento de um desenho nacional porque, do ponto de vista de um humanismo moderno, no sentido de abrir uma nova era em relao ao perodo colonial, pressupe-se o florescimento de expresses nacionais com independncia, sem que seja preciso abrir mo do estabelecimento do mercado internacional, porm, com outros horizontes, diferentes desse que a est, altamente predatrio e monopolista. (Paulo Mendes da Rocha, em entrevista concedida no IAB/SP, em outubro de 1984)

    Ao lado da questo polmica a respeito da definio de um design para pases em desenvolvimento, h uma outra que vem a reboque, e refere-se prescrio de uma conduta do desenhista industrial desses pases que ope o designer ao artista. A demarcao sempre foi pouco clara, e a celeuma existente entre arte pura e arte aplicada no se esgota atravs de posturas que imponham limites definitivos, que continuaro sendo transpostos, e talvez tanto o design como a arte ganhem com isso.

    Hoje se diz que a modernidade artstica esgotou sua capacidade de renovao e de crtica, seu impulso criador. D-se por assentada a impossibilidade de transcender na arte e no pensamento em geral os limites impostos pela dialtica de desenvolvimento tecnolgico e dominao poltica e social. Assume-se a impossibilidade histrica de traar uma sada para a dialtica de progresso tcnico-cientfico: a autodestruio. No entanto, esquece-se freqentemente que essa resignao que se vive hoje em dia na arte, na arquitetura, no desenho e no pensamento em geral frente objetividade histrica de um progresso destrutivo, no , seno, uma conseqncia da vontade de integrar totalmente a arte e a cultura ao domnio da mquina e s tarefas da organizao racionalizada da sociedade.23

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    A realidade que hoje pode ser descrita em relao ao momento vivido pelo design e, em particular, pelo design de mvel no pas, permite uma viso otimista quanto ao encaminhamento dos problemas que vm se perpetuando ao longo de seu trajeto. As perspectivas que hoje se tem de uma definio mais precisa do campo profissional do desenhista industrial, de investimentos reais nos diversos segmentos da indstria, da existncia de uma legislao que de fato proteja o direito do autor, de um incremento da pesquisa dentro da universidade nos campos da tecnologia, criao e reflexo e de um maior entrosamento do design na esfera das manifestaes abrigadas pela historiografia e crtica da arte e da cultura so cada vez mais plausveis. Vale lembrar, como sintoma, o nmero de trabalhos de documentao e investigao que tenha se dedicado a enfocar o design brasileiro, atraso devido em grande parte por ele situar-se numa espcie de terra de ningum, pertencente ora arquitetura, ora s artes plsticas, ora publicidade, ora engenharia, fazendo com que permanea, em termos de registro historiogrfico, num plano secundrio.

    A definio do campo terico do design pode ocorrer a partir de uma crtica que se especialize em suas manifestaes, especialmente se resultante de uma estruturao de seu ensino. Uma crtica que contribuiria para conduzir a produo de design no pas, j frutfera do ponto de vista quantitativo, para alm dessa primeira idade, garantindo seu prprio espao, colocando-a no rumo de sua identidade formal dentro da cultura material da histria brasileira. Ou, como avalia o crtico Marco Antonio Amaral Rezende, quando comenta o evento recm-ocorrido, a Sala Especial de Desenho Industrial, um grande painel da produo nacional dentro da mostra Tradio & Ruptura, o desenho industrial brasileiro pendularia entre dois extremos: a exaltao dos valores de uso/produo/economia de um lado, relegando a forma a um plano secundrio, criao gratuita, sem nenhum rigor metodolgico, de outro.24

    Detectar os pontos que colocam a particularidade da evoluo do design de mvel no Brasil o objetivo primordial que moveu a coleta deste acervo, fazendo o resgate das memrias que, tranadas, compem os eixos desse percurso. Esta reunio de depoimentos pretende trazer

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    subsdios para a reflexo e matria-prima de um estudo mais detido cujos depoimentos aqui registrados servem de amostragem de um universo muito mais amplo.

    Um aspecto que foi se clarificando durante o percurso das entrevistas e que particulariza a trajetria do design brasileiro d conta da ruptura entre o desenvolvimento econmico do pas e o aprimoramento da cultura nacional. Flagra-se na histria do mobilirio a mesma condio estruturalmente presente em todos os campos da cultura como fator paralisante. Tal situao, aguda nas manifestaes mais diretamente ligadas indstria, explica em boa medida a fragilidade com que os bons momentos do design nacional vieram a ser desmontados, particularmente nos anos do milagre, em que o progresso industrial no esteve vinculado produo cultural consciente.

    Durante essa expanso, que trouxe tambm em seu bojo uma srie de aspectos positivos e dos quais os designers souberam tirar proveito, perdeu-se a referncia do alcance e da importncia cultural do design por seu significado na inveno e na criao de um desenvolvimento que tenha um compromisso com o consumidor, cuja conscincia se mistura com o conceito de cidadania e no apenas com o lucro.

    A moblia no Brasil tambm nos d esse quadro, sobretudo quando prestamos ateno em suas razes - a conscincia do papel ideolgico do objeto industrial em um pas em situao de modernizao. Percebe-se, ento, a ligao ntima entre modernizao e linguagem moderna. Hoje, o preo de uma cadeira de bom desenho equivale quase ao de uma habitao popular.

    O sucesso desse desenho caro, importado, que a est, vem de encontro situao que se estabeleceu no pas, da alta elitizao classista da sociedade, ou seja, possuir ou gerir um escritrio num pas onde os desempregados so a maioria um privilgio to grande que a cadeira do chefe tem que custar uma fortuna, tem que dar a idia de trono. (Paulo Mendes da Rocha, em entrevista concedida no IAB/SP, em outubro de 1984)

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    O Brasil possui grandes designers e o caminho para que sua atuao ocorra em toda a gama da produo industrial pressupe o avano da economia na direo de uma sociedade mais resolvida quanto sua distribuio de renda. A evoluo do design de moblia brasileira apresenta uma posio ambgua: enquanto riqueza, por ser o ponto de partida da implantao de uma conscincia progressiva do design como um todo, e enquanto paralisia, por no ter sido dado o passo seguinte.

    Marcos Cartum e Maria Lydia Fiamminghi

    _____________________________1 WARCHAVCHIK, G. Manifesto Acerca da Arquitetura Moderna. In:Correio da Manh, Rio de Janeiro, 1 nov.

    1925.

    2 Idem, Ibidem.

    3 ARGAN, G.C. Walter Gropius e a Bauhaus. Lisboa: Editora Martins Fontes, 1984. p.20.

    4 Idem, Ibidem, p.30.

    5 Idem, Ibidem, p.10.

    6 COSTA, L. Notas sobre a evoluo do mobilirio luso-brasileiro. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, 31,

    jan.1965.

    7 TENREIRO, J. Mvel brasileiro - um pouco de sua histria. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, 31, 8

    jan.1965.

    8 WOLLNER, A. Origem e desenvolvimento do desenho industrial. Revista Produto e Linguagem, ABDI, So

    Paulo, 1, 1965, p. 6.

    9 MOTTA, F. In: Dirio de So Paulo, So Paulo, abril, 1959.

    10 GRINOVER, L. As implicaes da cincia e do pensamento lgico no desenho industrial. So Paulo, FAU/

    USP, 1964, p. 82.

    11 CECCON, C.S.P.Escola Superior de Desenho Industrial - experincia de um ano e perspectivas. Revista

    Arquitetura, Rio de Janeiro, 12, mar. 1964.

    12 DUARTE, R. Notas sobre o desenho industrial. Rio de Janeiro, ESDI, abr. 1965.

    13 KATINSKY, J.R. Desenho industrial. In: Histria geral da arte no Brasil (organizao Walter Zanini), So

    Paulo, Instituto Moreira Salles, 1983.

    14 BOSI, A. Um testemunho do presente. In: MOTA, C.G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). So

    Paulo, Ed. tica, 1977.

    15 PIGNATARI, D. Por um design brasileiro. Revista Artescultura, So Paulo, 3, nov-dez, 1984.

    16 LOPES, E.P.Aperfeioamento e prtica do design. Palestra durante o seminrio CACEX-FIESP, So Paulo,

    dez. 1982.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    17 PIGNATARI, D. Op.Cit.

    18 MAGALHES, A. In: Revista Pernambucana de Desenvolvimento, Recife, 4, 1977.

    19 SCHWARZ. R. Notas sobre a cultura e a poltica no Brasil 1964/1969. So Paulo, C.A.Lupe Cotrim / ECA /

    USP, 1970.

    20 SUBIRATS, E. Progresso e pobreza. In: Da vanguarda ao ps-moderno. So Paulo, Editora Nobel, 1984.

    21 MUNARI, B. Artista e designer. Lisboa, Editora Presena, 1979, p. 30.

    22 BONSIEPE, G. A tecnologia da tecnologia. So Paulo, Editora Edgard Blucher, 1983.

    23 SUBIRATS, E. A crise das vanguardas. Folha de S. Paulo, 30 set, 1984. Folhetim.

    24 REZENDE, M. A. A. Os descaminhos do desenho industrial brasileiro. Folha de S. Paulo, 13 jan. 1985.

    Folhetim.

  • A Evoluo do Design de Moblia no Brasil ::

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    :: ABRAHO VELVu SANOVICZ (Brasil, 1933-1999)

    Arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Universidade de So Paulo, Abraho Sanovicz, tambm mostrou fidelidade aos princpios da escola paulista de arquitetura, na qual projetou e inovou a arquitetura e o design do mobilirio.

    :: A formao e o interesse pela arquitetura

    Nasci em Santos, em 1933. Completei o curso ginasial aos 17 anos e, em dezembro de 1950, vim para So Paulo prestar exame de admisso na Escola Tcnica Federal para ser tcnico em edificaes.

    Tinha uma certa experincia de desenho: enquanto cursava o ginsio de manh, fazia um curso de desenho arquitetnico no perodo da noite e, tarde, trabalhava no escritrio de um desenhista cuidando da aprovao de plantas, uma espcie de office-boy um pouco mais qualificado. Fiquei em So Paulo para fazer o curso de edificaes, mas o que eu queria mesmo era fazer arquitetura. De fato, cursei edificaes e, no ano seguinte, fiz vestibular na FAU/USP e entrei.

    Era apaixonado por arte e acompanhava muito o movimento artstico. Naquela poca, o Ciccillo Matarazzo abriu uma escola de artesanato no Museu de Arte Moderna que ensinava gravura e cermica. Fizeram um concurso para selecionar bolsistas, prestei o concurso e fui aprovado, ganhei a bolsa e fiz o curso noite. Era uma coisa maravilhosa, dado o ambiente de trabalho e o contato com os colegas, muitos dos quais vieram a ser artistas importantes de So Paulo.

    O meu interesse pela arquitetura foi uma coisa que comeou cedo, bem antes de chegar a So Paulo, quase na minha adolescncia. Foi quando comeou a se ter uma idia dos primeiros projetos da arquitetura moderna. Meu interesse pelas publicaes, pelas coisas que se construam era muito grande, e isso foi quase naturalmente, apesar da vida inteira sofrer da grande dvida entre seguir a vida de artista, ou seja, pintor e desenhista, ou fazer arquitetura.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Minha atrao pelo objeto foi uma coisa que surgiu dentro da faculdade ou naquela poca. Ainda estava fortemente impressionado com as publicaes vindas de fora, particularmente as americanas que citavam a Stile Industria. Havia uma revista americana que eu gostava muito, a Arts and Architecture, na qual eles mostravam uma casa como um problema de design. Tinha tambm um programa interessante chamado Case Study House, e todos os anos eles encomendavam uma casa para um arquiteto. Eles iam publicando todos os croquis, os projetos e os detalhes at chegar na obra. Era uma revista que financiava a casa pronta e, ao final, vendia-se a casa.

    A revista Stile Industria trazia o que de melhor se fazia no design italiano. Os italianos foram muito inteligentes nesse processo de promoo do design. Artistas italianos, desde o Renascimento, talvez sejam os mais interessantes, porque a arte est profundamente arraigada na cultura da Itlia. Para os italianos, um fato normal, no diferente dos outros. No Brasil, o artista visto como um ser diferenciado, esperando que ele passe iluminado pelo mundo, sempre soltando raios.

    :: O interesse pela arte e pelo design

    No Brasil, o artista , por vezes, arquiteto, e isso vem um pouco do Flvio de Carvalho1, com sua postura porra-louca e o modo do olhar de frente do arquiteto. Apesar de ter sido um grande desenhista, pintor e cengrafo, no acho to fundamental o trabalho dele como arquiteto. Ele foi menos conhecido pelo trabalho de pintor, mas eu o acho de uma grande densidade. Um bom exemplo disso o trabalho em cima da obra de Kokoschka2.

    1 Flvio de Carvalho (1899-1973) o artista brasileiro que personifica o ideal das vanguardas

    artsticas do sculo XX. Artista de vanguarda, atuou como artista plstico, arquiteto, encenador

    teatral e cengrafo, escritor e animador cultural.

    2 Oscar Kokoschka nasceu na ustria e iniciou seu trabalho como aluno e seguidor de Gustav Klimt

    para depois firmar um compromisso artstico e literrio mais intenso com o expressionismo alemo

    e austraco.

  • A Evoluo do Design de Moblia no Brasil ::

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    Senti um choque muito grande quando fui para a Itlia e percebi a diferena de tratamento do que era um arquiteto e um artista l e do que um arquiteto e um artista aqui. So completamente diferentes. O Brasil , de certa forma, um pas novo, capitalismo selvagem, economia predatria e ainda por cima, existe a falta de critrios culturais para estabelecer comparaes e padres de qualidade.

    A histria de desenhar objeto apareceu na faculdade com grande impacto. Os italianos comearam muito antes e tiveram a sabedoria de vender o produto, no s para a Itlia, mas para o mundo. Eles publicavam insistentemente tudo o que produziam. Publicavam e lutavam para conquistar o mercado. Na poca, ns no entendamos essa coisa com profundidade porque ns vamos somente as figurinhas das revistas, mas atrs dessas figurinhas, dessas revistas, atrs de todo esse impacto editorial, tinha um grande desejo de conquista de mercado. E o que mais impressionava nisso tudo era o Estilo Olivetti3, ou o Olivetti Style, que foi marcante nessa poca.

    Na escola, isso foi surgindo naturalmente. Entre os alunos, havia uma certa preocupao em desenhar o objeto, e era at encantadora a proposta do ponto de vista social. A gente fazia um objeto muito bem estudado, passvel de ser produzido e repetido. Ele ia ser usado indistintamente, vendido nas lojas e tudo mais. Seria gratificante entrar numa casa em que estivessem comendo com os talheres que voc desenhou. Tinha muito romantismo e pouca objetividade. Tambm foi nessa poca que consegui uma bolsa de estudos na Fundao Rotellini e a experincia de trabalhar no Studio Nizzoli.

    3 O Estilo Olivetti foi criado por Ettore Sottsass, que nos anos 60 trabalhava na Olivetti como

    designer industrial e apresentou, em 1969, por conta dessa empresa, sua clebre mquina de

    escrever vermelho-tomate, a Valentine, cujo aspecto exterior revelava sua ligao com a cultura

    beatnik e pop.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: O design e a arquitetura

    O design no desligado da arquitetura. Isso no quer dizer que nos anos 80 no se precisasse formar um arquiteto-designer-comunicador. Design e comunicao, no Brasil, so praticamente feitos pelo mesmo profissional; difcil haver subdiviso entre design e comunicao. Se nos anos 60 era necessrio, por razes histricas, ter a Bauhaus4 como referncia, no Brasil dos anos 60 era necessrio formar um profissional que pudesse passar em todas as escalas porque no se tinha a noo de comear a entender o trabalho do planejamento at o objeto atravs das escalas. Quer dizer, um planejador tem sua cabea ciclada para pensar em uma escala, ele vai at o momento em que no possvel colocar uma cota. Quando comea a colocar uma cota, passa para o campo do arquiteto. do desenho urbano para o desenho de edifcio.

    A escala comeou a aparecer na minha cabea nas reunies sobre planejamento no IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), nos anos 70. Nos anos 80, se vociferou, se suou e se transpirou planejamento por todos os lados. Todos na faculdade pesquisaram as favelas, que foram viradas do avesso, e chegou-se concluso de que na favela tinha gente morando, de que era feita de restos de madeira e de que as pessoas improvisavam solues. Quando aparece um estrangeiro aqui, fica admirado com a favela. claro que quando um ser humano estabelece l um cantinho para viver, ele procura pelo menos aquecer um ou outro ponto do seu entorno mais prximo: pe uma plantinha aqui, uma coisa ali...

    O ideal seria que no houvesse favelas, mesmo que se fizessem prdios, todos uns sobre os outros, amontoados, como em algumas tendncias da arquitetura que se encontram por esse mundo afora, muito bem equipadas, tanto na parte hidrulica como na eltrica. No tem nada que ver com a favela. No a favela que fonte de inspirao. Ao contrrio, a favela s mostra para a gente o atraso e outras coisas mais que a poltica tem por compromisso resolver.

    4 A Bauhaus foi uma escola de design, artes plsticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha, sendo tambm uma das primeiras escolas de design do mundo.

  • A Evoluo do Design de Moblia no Brasil ::

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    O problema tambm aparece na produo de um objeto, quando algum tiver que estudar o design de uma caixa de luz, como se monta, como se desmonta, como faz a fiao, como se deixam as previses, como se fixa na parede, como se coloca a porta, como se coloca a proteo, qual a cara que isso vai ter, como se dobra a chapa ou coisa assim, isso j um problema que tem que ser feito na indstria. um tpico objeto que pode ser feito em escala natural. Na maquete, sempre h necessidade de fazer uma abstrao: 1:100, 1:200. O prprio projeto de arquitetura tem essa abstrao, quando se pensa que ele vai ser aumentado 100 ou 200 vezes, ao passo que o objeto, no. Na maior parte das vezes, d para se fazer o desenho do objeto em escala natural.

    Isso vale tambm para a comunicao, o problema dos sistemas de impresso grficos e de certas cotas, como: dimenses do papel, custo de produo e impresso. Na comunicao, a coisa tambm feita na escala natural; s vezes, aparece certo tipo de trabalho em que as coisas se interpenetram. Os americanos, recentemente, no sei se foi no MIT5 ou em Berkeley6, reduziram toda a ergonomia, essa maravilhosa cincia que estuda o dimensionamento, a bacos. Em qualquer dimenso, o sujeito vai numa nave espacial e todos os objetos utilizados foram reduzidos a bacos. Esse trabalho, feito na universidade, durou dez anos e foi orientado por um bom comunicador visual, um bom designer.

    Os designers inventaram e programaram um trabalho novo, reduziram toda a ergonomia a bacos, e agora no acaba mais. Quando surgir outro tipo de necessidade estrutural, de comportamento humano, de dimensionamento, faz-se ento um outro baco. Essas coisas em pases mais ricos podem acontecer. Nos pases perifricos, raramente acontecem. No h capital nem cabea para isso. Para que acontea, preciso que uma poro de gente tenha sua inteligncia desenvolvida. E a inteligncia, no Brasil, desenvolvida quase a nvel bacharelesco: discursa-se muito, tem-se idias luminosas, se faz um pouco de demagogia, mas a produo

    5 Instituto de Tecnologia de Massachusetts, mais conhecido pela sigla MIT, um centro universitrio

    de educao e pesquisa localizado em Cambridge, Estados Unidos.

    6 A Universidade de Berkeley, fundada em 1868, uma extenso da Universidade da Califrnia,

    Estados Unidos.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    muito pequena. Na realidade, se produz pouco no sentido construtivo; no fundo, os americanos no esto brincando em servio. Isso serve para eles afinarem melhor sua produo. A luta pelo mercado uma coisa muito sria. Quer dizer, os romnticos tm que aprender com os americanos.

    :: A arquitetura e a produo no Brasil

    Existe um texto do Paulo Francis7 que fala sobre reserva de mercado. No tenho muita clareza nesse assunto de reserva de mercado, mas eu acho que est havendo alguma coisa errada do lado de c. Certa vez, aconteceu com a arquitetura, tnhamos passado frente. Realmente, passamos frente. Surgiu com o grupo carioca, uma coisa maravilhosa. necessrio haver uma conjugao perfeita para acontecer tudo isso. Por outro lado, a Europa estava em guerra.

    As crticas arquitetura brasileira, aos arquitetos de melhor nvel, ao contrrio, eu tenho o maior respeito. Mas a mdia critica e critica porque ouviu criticar, e a coisa meio que se deteriora, quer dizer, criticou-se a arquitetura brasileira dentro da nossa faculdade.

    O europeu, talvez por fruto da necessidade, no desperdia. O europeu passou por guerras e sabe como so as coisas, no h desperdcio, e isso uma coisa que me impressionou profundamente. O sujeito fazia um desenho e esse desenho valia. Se no valesse naquele instante, um dia ele iria valer. A cabea pensou, j um trabalho. Era o no desperdcio do trabalho. Era necessrio saber o valor do trabalho.

    A produo, para acontecer, para ser escoada, provavelmente precise sensibilizar o cliente. Em termos de desenho industrial, no Brasil no acontece. Costuma-se dizer que o empresrio insensvel ao problema do design, importncia do design, mas tambm existe a responsabilidade de o designer no conseguir sensibilizar esse empresrio. As duas coisas acontecem; o industrial sabe muito bem o que design. Ele viaja para a

    7 Franz Paul Trannin da Matta Heilborn (Brasil, 1930 EUA, 1997) foi jornalista, crtico de arte e escritor,

    sempre muito apreciado pelo estilo jornalstico extremamente coloquial e de uma ironia custica.

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    Europa todo ano, v as feiras e tudo mais. porque no chegou a poca de essas coisas serem exigidas pelo consumidor. Agora, se h um campo do design que tem uma organizao muito interessante, porque leva em considerao os problemas de moda, o tecido em termos internacionais, que comea pelo pool de empresas que trabalham com as cores e com outras coisas tambm. Os industriais se renem anualmente e estabelecem quais as tendncias da moda que sero lanadas: cores, texturas, formas, etc.

    Eles s produzem aquilo e passam para os desenhistas de tecidos, que passam para os estilistas, que passam para as revistas, que passam a ser feitos no Brasil. um processo que comea na ponta da pirmide. um problema de mercado.

    No Brasil, o design ainda perifrico. O mercado agora que comea a exigir novas formas, ento comea a surgir o profissional de design. Uma vez, eu vi o catlogo da Rosenthal, fbrica tradicional de vidros. Era uma linha de clices para aperitivos. Os clices vinham em diversos tamanhos e alturas, e tinha a fotografia do artista que o desenhou, o designer. Cada clice era pensado para um tipo de aperitivo, olha que sofisticao! S o colorido do catlogo j um grande investimento, fora o tempo que o designer levou para elaborar tudo, alm de a empresa elaborar todos os moldes, o que deve ter sido um outro investimento.

    Para investir em um projeto desses, primeiro deve-se saber o seguinte: existe um mercado beberro que gosta de aperitivo? A histria de tomar os diversos aperitivos e degustar, o mundo de aperitivos... uma coisa enorme. O mercado europeu e o mercado americano me parecem mais isso. A Rosenthal alem. sinal de que eles sabem que existe um mercado de aperitivos e, tambm, que existe uma tendncia para se poder at saborear esse momento do aperitivo. Ento, deve ter sido feita uma pesquisa para todo esse investimento. A Rosenthal no faz um desenho para durar um ms. desenho para durar muito tempo. Eles tm a sabedoria de entender esse mercado.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: A tecnologia do design

    O bom design tambm muito copiado, mas no to fcil copiar. Claro que mais simples copiar do que projetar e desenvolver um produto, mas, se fosse to simples assim, se copiaria tudo. Copiar uma coisa difcil. Quando o pessoal traz para c e tenta colocar na tecnologia que temos, sempre acontece alguma coisa. Um exemplo que eu tenho acompanhado de perto o mundo dos plsticos. Pega-se um produto ingls ou escandinavo e traz para c, mostra para o modelador para ele fazer o molde e depois fazer a injeo: sempre existe uma dificuldade, sempre tem alguma coisa que no d certo. feito o modelo e, j nos primeiros testes, rompe aqui, rompe ali, rompe acol. Isso normal. Ento, mesmo essa cpia precisa ser redesenhada.

    Existem algumas tecnologias que foram mais adiante. Tambm no fcil fazer uma cpia. Nem tudo que se faz l fora bom. Eu tenho uns talheres que eu usava para acampar. Quando estava em Roma, vi esses talheres pendurados e pensei: que coisa bonita! Resolvi comprar e trazer. Achei bonito o design, o suporte era de plstico e de metal. Hoje se faz isso aqui no pas. Talvez a Wolff ou a Hrcules. Ento, eu precisava comer com eles, design italiano, bonitinho e, realmente, no era dos dez mais. Quer dizer, nem tudo que feito bem estudado. preciso olhar com muita ateno para as coisas e saber separar o joio do trigo. Esse caso do talher, para mim, foi muito interessante. O desenho me entusiasmou e, talvez para um camping, analisando bem, voc v que no a melhor coisa.

    :: A linguagem brasileira

    necessrio que se faa um design bem resolvido porque, na verdade, o que parece que a gente tem empatia com o design italiano, sueco, escandinavo, ingls, e faz as coisas mais ou menos parecidas com as deles. Precisamos tentar descobrir alguma coisa, criar alguma coisa que tenha um sentido e que possa ser tirada da nossa textura social.

    No Brasil, um bom exemplo acontece no design grfico, principalmente

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    na ilustrao da literatura de cordel, que tem uma fora muito grande. Um pouco da cermica popular, em termos de objetos de uso, que se fazia como fruto da necessidade.

    A Lina Bo Bardi8 soube tirar proveito das originalidades do Brasil, principalmente no Solar do Unho9. A Lina pegou muito bem isso, as colchas, os papagaios, as pipas e at o refugo da indstria, que reaproveitado, so frutos da necessidade. Mas isso no vale nada, no tem nenhum valor, na realidade, no tem nenhum valor at certo ponto. No vale nada em si. Comeou-se a fazer essas cermicas, do tipo Vitalino10, esses bonequinhos todos, que eram dados para criana brincar. Depois, virou pea de museu, porque tinha uma certa qualidade artstica. Ele era um gnio cuja cabea funcionava de uma forma tal que se diferenciava sua produo pela temtica. Ele sabia pegar o cotidiano, o carteiro, a famlia. um exemplo especfico do Nordeste, mas pode valer tambm para a imigrao do Sul ou a miscigenao de So Paulo ou em Minas Gerais, com o barroco mineiro e com o Vale do Jequitinhonha, que faz umas cermicas maravilhosas.

    8 Lina Bo Bardi (Itlia, 1914 Brasil, 1992), arquiteta e designer, fundou as revistas Habitat e Mirante das

    Artes. Dentre seus projetos, destacam-se a criao do Museu de Arte de So Paulo, o projeto do Museu de

    Arte Moderna da Bahia, a restaurao do antigo Solar do Unho, na Bahia, e o Sesc Fbrica Pompia, em So

    Paulo.

    9 O Solar do Unho, localizado em um stio histrico do sculo XVI, era na sua origem um complexo agroindustrial

    de produo de acar e possua casa-grande e capela. Na dcada de 40, foi tombado pelo Instituto do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, sendo posteriormente adquirido e restaurado pelo governo do Estado

    da Bahia, atravs do trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi. Desde 1969, sedia o Museu de Arte Moderna e suas

    oito salas de exposio, teatro-auditrio, sala de vdeo, biblioteca especializada e banco de dados.

    10 Vitalino Pereira da Silva (Brasil, 1909) morava no Alto do Moura, uma vila a cerca de seis

    quilmetros de distncia de Caruaru-PE. Inspirado no folclore nordestino, com um estilo figurativo,

    universalizou com sua marca pessoal o cotidiano do homem sertanejo. Suas obras registram o

    cenrio rural e urbano onde ocorrem: Cortejo Nupcial, Casamento no Mato, Enterro na Rede,

    Enterro no Carro de Boi, Boi Transportando Cana, entre outros.

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    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Existe uma polmica bastante antiga que diz ser possvel se chegar a uma linguagem brasileira de design na qual o design tudo. Uma linguagem, uma esttica brasileira na criao de formas. H uma outra corrente que se contrape, que diz que as formas tm que ser universais, que esse regionalismo uma coisa primitiva, no existe. A questo : ser que d para desenvolver uma linguagem brasileira se ocorrer uma produo?

    O design brasileiro no se faz por decreto. Existem algumas coisas que so fortes no sentido da inveno, criadoramente fortes, fruto da necessidade, s quais, s vezes, a gente pode ir e dar uma pinada para servir de inspirao. Nessa medida, o design brasileiro ter um sentido universal, assim como tem o design italiano.

    Se o Brasil conseguir desenvolver seu design, necessariamente ser um design brasileiro. como na pintura, com toda a influncia, existe uma temtica, uma pintura brasileira. O Rebollo11 um pintor paulista. Morandi12 um pintor italiano. Eu no quero comparar o Rebollo ao Morandi, no se pode comparar. O Morandi pintava suas paisagens em Bolonha, suas garrafinhas cheias de poeira. Estava preocupado em descobrir a cor atrs daquela histria. s vezes, explicitava um branco, o que, digamos, deixava a gente at meio deslumbrado. Depois, ele escurecia tudo, texturizava e, no fundo, quando estava fazendo aquele pequeno trabalho, ele estava dando um sentido universal.

    11 Francisco Rebollo Gonsales (Brasil, 1902) viveu intensamente duas trajetrias: primeiramente, jogador de futebol de 1917 a 1932, atuando no Corinthians e no Ypiranga, ambos clubes da cidade de So Paulo. A partir de 1934, torna-se pintor e completa, no seu falecimento, em 1980, uma

    histria de quase meio sculo como importante artista plstico.

    12 Giorgio Morandi (Itlia, 1890-1964), artista plstico, pintor e gravador, teve uma espordica participao no movimento surrealista. Sua formao, entretanto, ocorreu a partir do estudo de grandes mestres, como de Giotto, Piero della Francesca, Chardin, Corot e Czanne, dentre outros. As obras de Morandi estiveram presentes em algumas bienais de Veneza, alm de terem sido expostas em vrias outras cidades italianas e estrangeiras, como Pittsburgh, Kasel, Nova York e

    So Paulo.

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    O Rebollo olhava o Morandi com muita ateno. Se analisarmos as paisagens do Rebollo - que no era um homem muito sofisticado, no era um erudito, era um cara de origem humilde, jogador de vrzea, filho de imigrante, uma figura humana maravilhosa, pintor de parede - numa exposio dele no Lasar Segall sobre a cor, voc v que tem uma coisa at quase que ingnua, quase primitiva, lembra um pouco Rousseau.

    A cor dele em So Paulo escura. Ele documentou muito bem as matas do Morumbi. escura porque So Paulo sempre teve esse aspecto carregado. Quando ele vai para o Nordeste pintar, incrvel como explode, fica clara a tela.

    O pessoal do Grupo Concreto13 tentou, de uma certa medida, considerar o Volpi14 um pintor concreto. Ele no um pintor concreto, um pintor paulista que tambm tem uma origem semelhante do Rebollo.

    O Rebollo, o Volpi e o Grupo Santa Helena15 pintavam de uma forma semelhante, uns se adiantavam mais, outros se adiantavam menos, mas alguma coisa que tem um certo corpo de doutrina, at d a impresso de que se escudavam um no outro e avanavam todos juntos. Isso acontece em qualquer manifestao, quer dizer, o grupo sempre avana mais ou menos junto. Voc sente que uma pintura paulista, sente muito bem isso. Se observarmos um grupo de pintores pernambucanos, outra coisa, fortemente marcada pela cor, por aspectos da gravura popular e outros. Se olharmos Brennand16 e toda aquela turma, eles tambm pintam mais 13 A Arte Concreta defendia os elementos da matemtica e da tica para a composio de obras, cujo objetivo era construir uma nova realidade. A Arte Concreta enfatiza a idia de estrutura. Os artistas brasileiros que se destacaram foram: Luiz Sacilotto, Waldemar Cordeiro, Alexandre Wollner, Maurcio Nogueira Lima, Hermelindo Fiaminghi, alm dos poetas Dcio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, entre outros. 14 Alfredo Volpi (Itlia, 1896 Brasil, 1988) pertenceu ao Grupo Santa Helena e Famlia Artstica Paulista. No incio, sua obra era figurativa e de inspirao popular, passando, depois, para a abstrao geomtrica.15 Surgido em meados da dcada de 1930, reuniu os pintores A. Volpi, F. Rebollo, F. Pennacchi, A. Bonadei, H. Rosa, C. Graciano, M. Martins e Rizzotti. O grupo reunia-se n