1 A evolução das práticas profissionais nas bibliotecas municipais de Lisboa Cláudia Castelo (CML-DMC) Objecto de estudo Esta comunicação tem como objecto de estudo a evolução das práticas profissionais nas bibliotecas municipais de Lisboa. Tendo em conta a sua já longa história – 125 anos –, as bibliotecas municipais de Lisboa revelam-se um ponto privilegiado de observação da evolução das práticas bibliotecárias que têm constituído o cerne da profissão, seja na sua componente técnica (a selecção / aquisição do fundo documental, o tratamento técnico), seja no relacionamento com os leitores / utilizadores (pesquisa e recuperação da documentação / referência) e no trabalho de difusão e animação da leitura. O tema das práticas profissionais dificilmente pode ser abordado sem uma referência directa ou indirecta aos temas da formação profissional, do perfil profissional e do paradigma bibliotecário em vigor em cada momento histórico. Fontes e metodologia Esta comunicação resulta de uma investigação ainda em curso, no âmbito da história social dos profissionais das bibliotecas, desenvolvida sobretudo no Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo do Arco do Cego, onde privilegiámos a consulta sistemática dos Processos Privativos da Repartição de Bibliotecas, Museus e Arquivo e tivemos acesso a processos individuais de antigos funcionários das bibliotecas municipais de Lisboa. Para um maior aprofundamento do tema será necessário recorrer igualmente à documentação do Arquivo do Arco do Cego que ainda não foi sujeita a descrição documental e à documentação do Arquivo Histórico da CML, que se encontra há cinco anos e meio inacessível à consulta pública no depósito do Alto da Eira. Os constrangimentos do acesso às fontes arquivísticas determinaram que a abordagem desta temática incidisse sobretudo nas décadas de 1940 a 1960, com incursões pontuais nas décadas anteriores e posteriores. Para o período que vai do último quartel do século XIX até ao final da I República a nossa pesquisa teve de confinar-se às fontes primárias impressas disponíveis (Actas das Sessões da CML e Anuário/Anais do Município de Lisboa) e à escassíssima bibliografia
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A evolução das práticas profissionais nas bibliotecas municipais de Lisboa
Cláudia Castelo (CML-DMC)
Objecto de estudo
Esta comunicação tem como objecto de estudo a evolução das práticas profissionais nas
bibliotecas municipais de Lisboa. Tendo em conta a sua já longa história – 125 anos –,
as bibliotecas municipais de Lisboa revelam-se um ponto privilegiado de observação da
evolução das práticas bibliotecárias que têm constituído o cerne da profissão, seja na sua
componente técnica (a selecção / aquisição do fundo documental, o tratamento técnico),
seja no relacionamento com os leitores / utilizadores (pesquisa e recuperação da
documentação / referência) e no trabalho de difusão e animação da leitura.
O tema das práticas profissionais dificilmente pode ser abordado sem uma referência
directa ou indirecta aos temas da formação profissional, do perfil profissional e do
paradigma bibliotecário em vigor em cada momento histórico.
Fontes e metodologia
Esta comunicação resulta de uma investigação ainda em curso, no âmbito da história
social dos profissionais das bibliotecas, desenvolvida sobretudo no Arquivo Municipal
de Lisboa – Arquivo do Arco do Cego, onde privilegiámos a consulta sistemática dos
Processos Privativos da Repartição de Bibliotecas, Museus e Arquivo e tivemos acesso
a processos individuais de antigos funcionários das bibliotecas municipais de Lisboa.
Para um maior aprofundamento do tema será necessário recorrer igualmente à
documentação do Arquivo do Arco do Cego que ainda não foi sujeita a descrição
documental e à documentação do Arquivo Histórico da CML, que se encontra há cinco
anos e meio inacessível à consulta pública no depósito do Alto da Eira. Os
constrangimentos do acesso às fontes arquivísticas determinaram que a abordagem desta
temática incidisse sobretudo nas décadas de 1940 a 1960, com incursões pontuais nas
décadas anteriores e posteriores.
Para o período que vai do último quartel do século XIX até ao final da I República a
nossa pesquisa teve de confinar-se às fontes primárias impressas disponíveis (Actas das
Sessões da CML e Anuário/Anais do Município de Lisboa) e à escassíssima bibliografia
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sobre o tema da leitura pública entre os finais da Monarquia e a I República,
nomeadamente os contributos de Carlos Alberto Rebelo (1997 e 2002) e de Pedro Leite
e Ricardo Machaqueiro (2000). Devemos ainda destacar os elementos reunidos por João
Oliveira e Luís Sá nos três primeiros painéis da exposição «Bibliotecas Municipais de
Lisboa: um percurso (1883-2006)».
Convém, no entanto, esclarecer que os trabalhos referidos, além de não se centrarem na
análise das práticas profissionais, poucos elementos incluem que permitam iluminar esta
temática.
Para o arco temporal que vai de meados de anos 60 até aos nossos dias, pude contar
com alguns testemunhos orais recolhidos através de conversas exploratórias com
antigos técnicos das bibliotecas municipais de Lisboa.
Breve panorâmica das bibliotecas municipais de Lisboa
Antes de nos debruçarmos especificamente sobre a evolução das práticas bibliotecárias
na CML, vamos traçar em linhas muito gerais a evolução das bibliotecas municipais de
Lisboa, para permitir uma melhor contextualização do nosso objecto de estudo.
A CML tem bibliotecas abertas ao público desde 1883, isto é, há 125 anos.
“O projecto camarário de criar pequenas bibliotecas destinadas ao povo foi
apresentado pelo vereador Joaquim José Alves na sessão municipal de 16 de Setembro
de 1873 [AML, Casa de Santo António, caixa 355, doc. 123] e, mais tarde, retomado a
pretexto das comemorações do tricentenário de Camões, na sessão de 31 de Maio
de 1880 [Archivo Municipal de Lisboa, 1880, p. 310]. A primeira biblioteca popular
criada pelo Município abriria no entanto apenas em 2 de Fevereiro de 1883, por
iniciativa de Teófilo Ferreira, que desempenhava então funções de vereador do
pelouro da instrução. O seu objectivo era, de acordo com o relatório que apresentou
na sessão da Câmara de 2 de Janeiro desse mesmo ano [1883], dotar todos os
bairros da capital de uma biblioteca popular [AML, Casa de Santo António, caixa
356]. E, de facto, pouco depois da abertura da primeira biblioteca, na Rua do Paraíso,
em Alfama, o município inaugurava, em Abril e Agosto do mesmo ano, duas novas
bibliotecas “populares municipais”, respectivamente na Rua de S. Domingos à Lapa e
na Rua da Inveja, ambas instaladas nos edifícios das escolas primárias municipais. No
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início dos anos 90 eram já sete [Almanach Commercial de Lisboa, 1891], incluindo a
biblioteca central.” (REBELO, 2002: 124).
Dois anos antes (em 5 de Abril de 1881), José Maria Moura Barata Feio Terenas fora
admitido no cargo de bibliotecário-geral das bibliotecas da Câmara Municipal de
Lisboa. Membro fundador do Partido Republicano Português e principal colaborador
político de Elias Garcia (nomeadamente quando este deteve o pelouro da Instrução na
CML), Feio Terenas foi jornalista e propagandista republicano e maçónico e esteve
profundamente ligado à promoção da instrução do povo e da educação cívica das
camadas populares e operárias. Veja-se o trabalho que desenvolveu à frente da revista
Fröebel, publicada entre 1882 e 1885, espécie de órgão de imprensa da Secretaria de
Instrução do Município de Lisboa e onde se abordavam questões relativas ao ensino
pré-primário e primário, e à instrução popular como motor da mudança social.
No final do século, dificuldades financeiras determinaram que o projecto bibliotecário
da CML conhecesse um recuo. “A Câmara pretendia diminuir o número de bibliotecas
em funcionamento, a pretexto de não poder suportar um encargo tão elevado [Sessão de
4 de Fevereiro de 1895, in Actas das Sessões da Câmara Municipal de Lisboa, 1895, p.
35.]. Na verdade, de acordo com o balancete do orçamento anual da Câmara do ano de
1890, as despesas com as bibliotecas representavam cerca de 4% dos encargos totais
[No ano de 1890, para encargos totais no valor de 212.248$000 réis, a Câmara
despendia com as suas bibliotecas 5.840$000 réis. Cf. Balancete do orçamento, AML,
Casa de Santo António, caixa 358]. Do quadro de pessoal das bibliotecas faziam parte
26 empregados, cujos vencimentos variavam entre os 526$000 réis do bibliotecário
geral e os 144$000 dos serventes (REBELO, 2002: 124-125).
Ainda pouco sabemos sobre a situação das bibliotecas municipais de Lisboa durante a I
República. Parece, no entanto, dado assente que, entre 1910 e 1926, as bibliotecas do
Município de Lisboa debateram-se com várias dificuldades, não obstante o programa
republicano preconizar a promoção da educação do povo, nomeadamente através da
extensão da leitura pública.
Diagnósticos certeiros como o de Dário da Costa Cabral, na sessão de 25 de Novembro
de 1918, sobre a situação lamentável da leitura pública em Lisboa e a concomitante
proposta de criação de novas bibliotecas populares na cidade – aliás, aprovada por
unanimidade - não trouxeram resultados práticos.
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Com Alexandre Ferreira à frente do pelouro da Instrução e Assistência na CML (1923-
1926) procurou-se dar novo impulso às bibliotecas municipais, em articulação com a
educação infantil e com a educação popular, “à semelhança das nações que caminham
na vanguarda da civilização”. Mas, mais uma vez, foram mais as intenções que as
concretizações. Em 24 de Abril de 1923, Alexandre Ferreira afirmava em sessão de
Câmara que as bibliotecas municipais de Lisboa “não satisfaziam o fim educativo a que
eram destinadas”; o respectivo pessoal “era fraco, não possuindo a devida preparação”.
(LISBOA. CÂMARA MUNICIPAL, 2000: 103).
Para contrariar aquela situação, preconizava a criação de bibliotecas populares nos
pontos afastados da cidade (Benfica, Alcântara, Belém, Campo Grande, Lumiar, Beato,
Poço do Bispo, etc.) e o alargamento da leitura nocturna a todas as bibliotecas do
município. Através de uma circular dirigida às editoras da capital, solicitou-lhes a oferta
de publicações para as bibliotecas municipais. Propôs que no orçamento suplementar da
CML se incluísse a verba de 5.000$00 escudos para aquisição de livros e assinatura de
periódicos e instalação de uma biblioteca no Beato, “centro de intensa actividade fabril”
(Idem: 105).
Atendendo a que a biblioteca municipal que funcionava em Alcântara estava fechada há
cerca de seis anos por falta de instalações apropriadas, Alexandre Ferreira sugere que a
CML arrende à Direcção da Escola-Asilo de S. Pedro em Alcântara (Calçada da
Tapada, 194) uma sala no rés-do-chão para ali instalar a biblioteca municipal (sessão de
Câmara de 10 de Setembro de 1924).
Tendo em conta a multiplicação de bibliotecas infantis em Inglaterra e nos Estados
Unidos da América e a experiência da recém-criada biblioteca infantil do Município de
Paris, preconiza a criação de uma biblioteca infantil municipal em Lisboa, mais
concretamente no Jardim da Estrela (no antigo pavilhão que serve de capela à pequena
colunata). Nessa biblioteca, os livros, revistas, ilustrações, atlas, etc. deveriam ser
expostos em estantes apropriadas de forma a permitir que os pequenos leitores
pudessem, eles próprios, escolher os livros que desejassem; as mesas e cadeiras deviam
ser de alturas variáveis, a fim de servirem as crianças dos 10 aos 15 anos. Defende que
“todo o mobiliário seja pintado a cores claras; que na sala de leitura, além de quadros,
haja flores em profusão, afim de dar uma aparência alegre e familiar, tirando-lhe o
aspecto grave e severo da escola. […] tudo deve atrair a criança, em vez de afastá-la da
biblioteca”. Finalmente propõe que no regulamento da biblioteca esteja prevista “a hora
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em que a bibliotecária deverá proceder à leitura às crianças, de forma a incutir-lhes o
gosto pelo livro” (sessão de 23 de Dezembro de 1925. Idem: 120).
Em 1926, aquando do golpe militar que instituiu a ditadura em Portugal, Lisboa contava
com quatro bibliotecas municipais (uma em cada bairro da cidade), que, à excepção da
biblioteca central, seriam desactivadas com o objectivo de uma posterior reorganização.
Em 1931 é inaugurada a Biblioteca Municipal Central no Palácio Galveias, uma
biblioteca de conservação, patrimonialista e de cariz erudito, contando desde logo com o
depósito legal. A partir de 1933, data em que a biblioteca de São Lázaro (antiga central)
é remodelada, começam a ser abertas bibliotecas populares fixas em diversos pontos da
cidade (Alcântara, Poço do Bispo, Boa Vista, Duque de Loulé, …), com o objectivo de
servirem a educação do povo.
Em 1935, a BMC dispunha de três bibliotecários (um dos quais desempenhando as
funções de Director) e dois escriturários. O pessoal tinha que atender a todos os serviços
da BMC e das outras três bibliotecas existentes na cidade, das bibliotecas itinerantes e
das bibliotecas que se tencionava abrir. O 2.º bibliotecário, Semtob Dreiblatt Sequerra,
lembra que “Só o depósito legal dava serviço para mais pessoal” (“Bibliotecas
Municipal e Popular de Bordéus (Relatório de uma visita de estudo apresentado pelo 2.º
bibliotecário da Biblioteca Municipal Central de Lisboa), Anais das Bibliotecas,
Arquivo e Museus Municipais. Vol. 17 (Jul.-Set. 1935). P. 100).
Em 1937, é criado o serviço de bibliotecas móveis (bibliotecas itinerantes em armários
nas juntas de freguesia [a partir de 1941, enviadas aos bairros de casas económicas e
mais tarde às cadeias, refeitórios, hospitais, etc.] e bibliotecas ao ar livre (nos jardins da
capital), bibliotecas que seriam extintas em 1980. A partir de meados dos anos 40 são
inauguradas novas bibliotecas municipais: Alvito (1945), Encarnação (1947), Pedrouços
(1955). Em 1961, na sequência da experiência da FCG, tem início o serviço de
bibliotecas itinerantes em carrinhas (inicialmente 2; em 1965 já eram 4). A década de
1960 é uma década de criação de novas bibliotecas municipais (Fontes Pereira de Melo,
Furnas, Carnide, Penha de França, Belém, Cruz Vermelha e Vale Fundão), sendo
extintas duas: a de Alcântara e a de Pedrouços.
Entretanto, desde finais dos anos 50 e até meados dos anos 70, a oferta de colecções
bibliográficas a instituições de educação, cultura e recreio passa a integrar a política
cultural do município.
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Depois de décadas muito atribuladas, tanto em questões de arrumação, tratamento
técnico como de disponibilização à leitura dos periódicos provenientes do depósito
legal, em 1973 é inaugurada a Hemeroteca Municipal de Lisboa no Palácio Marquês de
Tomar, ao Bairro Alto, onde ainda hoje funciona.
A crescente profissionalização do pessoal teve lugar no final dos anos 70 (com os
cursos de preparação técnicos auxiliares de BAD) e permitiria na década seguinte um
notório incremento do tratamento técnico segundo padrões internacionais. Mas será no
final de 1990 que se dará o arranque da informatização com o PORBASE 3.
Paralelamente, procurou-se aproximar as bibliotecas municipais de Lisboa dos
objectivos da UNESCO para a leitura pública (livre acesso às estantes). Foi também nos
anos 90 que se criaram equipamento especializados, quer em função do suporte, quer da
temática (Fonoteca, Videoteca, Biblioteca Museu República e Resistência, Biblioteca
por Timor, Bedeteca), assim como novas bibliotecas em bairros de habitação social.
Finalmente, nos últimos anos, vem-se consolidando a ideia de uma verdadeira rede
municipal de bibliotecas, com um catálogo único e a possibilidade de empréstimo entre
as bibliotecas da rede. Para o efeito, foi de extrema importância a aquisição do sistema
Horizon.
Aquisição
Inicialmente e até 1931, a aquisição do recheio bibliográfico era feita através de ofertas
(de instituições como a BNL, Ministérios, SGL, Real Associação dos Arquitectos,
Direcção dos Correios e Telégrafos, e de particulares, como a viúva de Castilho e de
João Félix Pereira) e de compras. Na sequência de uma circular enviada por Feio
Terenas às direcções de todos os jornais, foram recebidos 39 periódicos nas bibliotecas
populares a cargo do município de Lisboa durante o primeiro ano de funcionamento.
“As bibliotecas, dirigidas por Feio Terenas, contaram desde o início com
numerosas ofertas, quer do Estado quer de particulares. Logo no ano da sua
fundação, em 1883, além da Biblioteca Nacional, que cedeu 122 volumes dos que se
destinavam às bibliotecas populares, também fizeram remessas de livros os Ministérios
dos Negócios Estrangeiros, das Obras Públicas, da Marinha, da Justiça e do Reino.
Ofereceram também edições próprias, a Sociedade de Geografia, a Real Associação dos
Arquitectos e a Direcção dos Correios e Telégrafos. Entre os particulares, destacam-se
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as doações da viúva de Castilho e, sobretudo, de João Félix Pereira [foi um dos
escritores mais editados em todo o século XIX. Das cerca de cem obras que terá
produzido, Inocêncio descreve 90. Só uma delas, o Compendio de Chorographia,
fizeram-se 37 edições até 1877].
[…] na sequência de uma circular enviada pelo bibliotecário-geral às direcções de
“todos os jornais”, foram recebidos nas bibliotecas populares a cargo do município 39
periódicos durante o primeiro ano de funcionamento [AML, Casa de Santo António,
caixa 356]. (REBELO, 2002: 125).
No final do século XIX, a falta de verba punha em causa a actualização do recheio
bibliográfico por compra.
Não consegui identificar a partir de que momento as bibliotecas municipais também
beneficiam das incorporações de publicações camarárias. Mas na década de 1930 esta
era uma forma de aquisição perfeitamente estabelecida.
Em 1931, a aquisição do recheio bibliográfico da biblioteca municipal central passa a
fazer-se também por via do depósito legal. Este, proveniente da Biblioteca Nacional de
Lisboa, ingressava na BMC acompanhado por listagens / relações mensais (em
duplicado) que, depois de conferidas, carimbadas e assinadas, eram devolvidas à BN.
Quando era detectada algum falta, a mesma era reportada. Por outro lado, a CML passa
a ter direito de opção nos leilões de espécies respeitantes à história de Lisboa.
A compra de livros resultava dos pedidos dos leitores (como consta nos relatórios
anuais e semestrais da BMC e do Serviços de Bibliotecas Populares Fixas), da selecção
dos bibliotecários e de indicações superiores, seja do chefe de Repartição, seja do
Director dos Serviços Centrais e Culturais ou ainda do Presidente da CML
(nomeadamente quando estava em causa a abertura de novas bibliotecas) e da
“publicidade” dos próprios autores.
Nos Processos Privativos da Repartição de Bibliotecas, Museus e Arquivo há abundante
evidência empírica relativa às propostas dos autores. Refira-se, a título de curiosidade,
que depois do início da guerra colonial em Angola, aparecem várias propostas de
autores que pretendem vender às bibliotecas da CML os seus livros sobre a presença
portuguesa em África.
Por exemplo, em Novembro de 1962, Hélio Felgas, autor do livro «Guerra em Angola»,
“julgando que este seu livro tem interesse histórico e patriótico para as Bibliotecas da
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Câmara Municipal de Lisboa, propõe a aquisição do número de exemplares julgado
conveniente”.
O 1.º Bibliotecário da BMC, Maria Luísa da Conceição Campos informa, em
31/12/1962: “A «Guerra em Angola» de Hélio Felgas de que apresenta a 3.ª edição, para
apreciação, é uma obra digna de figurar em qualquer biblioteca. Nela, o seu autor faz a
história daquela nossa Província, da acção do nosso governo para a repressão do
terrorismo e incita os portugueses a cumprirem os seus deveres patrióticos.” A compra
foi autorizada. Cf. AML-AC (PT/AMLSB/AL/CMLSB/CULT/01/3971) Processo
Privativo n.º 234/1962
Outro exemplo. Joaquim Mota de Vasconcelos, jornalista e publicista, que já tinha
vendido às bibliotecas municipais os seus dois livros anteriores: «Não!» e «Olho por
olho – dente por dente», propõe em 1963 a venda à CML do seu livro «Angola e
Moçambique – Rumo e tesouro de Portugal». Joaquim da Silva Pinto, na sua
informação de 18 de Setembro de 1963, é de parecer que sejam adquiridos 35
exemplares, sendo destinados 20 exemplares às Bibliotecas Municipais e 15 às
Bibliotecas a conceder, a título de subsídio, a várias instituições de educação e cultura.
A aquisição foi autorizada. Cf. AML-AC (PT/AMLSB/AL/CMLSB/CULT/01/4338)
Processo Privativo n.º 386/1963.
As compras eram geralmente feitas à Livraria Bertrand, à Livraria Portugal, à Livraria
Sá da Costa, à Empresa Nacional de Publicidade.
A falta de planeamento das compras ao longo do ano, a necessidade de gastar verba em
Dezembro é um dos problemas referidos nos Processos Privativos da Repartição de
Bibliotecas, Museus e Arquivo e por antigos técnicos das bibliotecas municipais de
Lisboa com quem falámos.
As ofertas mais significativas que a BMC recebeu foram as obras provenientes das
Congregações Religiosas e duplicados da BN (Livro Antigo, ant. 1800) e a doação do
Padre Ruela Pombo.
As colecções das bibliotecas populares fixas, das bibliotecas ao ar livre e das bibliotecas
itinerantes (seja em armário seja em carrinha) eram constituídas por compra de livros e
assinaturas de periódicos, e ainda por ofertas e incorporação. Por constrangimentos
financeiros, entre 1946 e 1956 o recheio bibliográfico das 10 bibliotecas ao ar livre não
foi actualizado. O mesmo se passou com as bibliotecas móveis.
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Devido ao elevado número de bibliotecas populares fixas e móveis, a compra de jornais
e revistas foi sempre difícil de assegurar, o que comprometia os índices de movimento
de leitura. No início dos anos 50 vivia-se uma situação dramática pois os mesmos
exemplares de periódicos que eram disponibilizados durante o dia nos jardins eram, à
noite, postos à consulta nas bibliotecas fixas.
A encarregada do Serviço de Bibliotecas Populares, Gertrudes Olímpia de Jesus Gomes
da Silva, numa informação de 10 de Janeiro de 1951, deixa bem vincado o seu “pesar
por a verba não permitir que as Bibliotecas Fixas sejam equipadas com o número de
periódicos necessárias ao bem cumprimento da função de informação que lhe é própria.
[E acrescenta] raciocinando bem, é caso para pensar: Interessará aos futuros leitores da
Idade Atómica a leitura nocturna – nas Bibliotecas Fixas – dos jornais diários da manhã
idos dos jardins?” Cf. AML-AC (PT/AMLSB/AL/CMLSB/CULT/01/0266) Processo
Privativo n.º 7/1951.
Actualmente, o módulo de aquisições do Horizon tem a virtualidade de facilitar toda a
gestão dos procedimentos relativos às aquisições. Por outro lado, houve a necessidade
de criar regras para a aceitação de ofertas / doações.
Tratamento técnico
No regulamento das bibliotecas populares (Portaria de 20 de Janeiro de 1871) fica
estipulado que “em todas as bibliotecas populares há um catálogo, feito segundo o
modelo adoptado na biblioteca nacional de Lisboa, e o qual estará patente na casa da
leitura” e que “Outro catálogo igual fica em poder da corporação que administrar a
biblioteca para por ele fazer a entrega ao encarregado da guarda e ministração dos
livros”.
Em 1885, o Provedor da Instrução, João José de Sousa Teles, em ofício dirigido ao
bibliotecário-geral da CML, solicita informação sobre quais os catálogos existentes nas
bibliotecas municipais de Lisboa e se algum deles está em harmonia com a portaria de
20 de Janeiro de 1871. Não tivemos acesso á resposta de Feio Terenas, mas há dados
que indicam que em 1887 era feito um catálogo geral por autores, além do registo geral.
Mas nem todas as bibliotecas municipais teriam o referido catálogo por autores, pois o
encarregado da biblioteca n.º 6 queixa-se em 1890 (AML-AC, Copiador de ofícios da
biblioteca n.º 6, ofício n.º 17, de 20 de Janeiro de 1890) que “Está sendo muito sensível
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a falta do catálogo dos livros existentes nesta biblioteca, ou pelo menos as guias de
remessa. Vêm leitores perguntar por diferentes livros, sendo preciso percorrer as
estantes à procura do livro pedido e, por vezes, infrutuosamente.” Em Maio daquele
ano, o problema estaria em vias de resolução: “Cumpre-me participar que está feita a
cópia dos verbetes que V. Exa. se dignou enviar-me para o catálogo parcial desta
biblioteca. Incidentalmente notarei que à maior parte dos verbetes faltaram as
indicações das estantes e prateleiras por omissão da cópia feita das folhas de remessa, e
que por consequência haverá necessidade de confronto com essas folhas para preencher
a falta.” (Idem, ofício n.º 35, de 14 de Maio de 1890).
Entre finais do século XIX e finais da I República, terá havido um agravamento do
problema, pois em 24 de Abril de 1923, o vereador do Pelouro da Instrução afirmava
em sessão de Câmara que as bibliotecas municipais de Lisboa nem sequer possuíam
catálogos. Nestas condições não se sabia onde os livros estavam arrumados.” (LISBOA.
CÂMARA MUNICIPAL, 2000: 103).
Na BMC, inaugurada em 1931, passaram a elaborar-se três catálogos: onomástico,
didascálico, ideográfico. Porém, em 1935, o catálogo ideográfico fora suspenso “devido
à grande falta de pessoal” (Relatório de uma visita de estudo apresentado pelo 2.º
bibliotecário da Biblioteca Municipal Central de Lisboa), Anais das Bibliotecas,
Arquivo e Museus Municipais, vol. 17, Jul.-Set. 1935, p. 100). Ainda não tinha sido
adoptado o verbete de formato internacional, dactilografado (ibidem).
Nos relatórios da responsável pela BMC nas décadas de 1940/60, faz-se referências às
várias tarefas que constituíam o tratamento técnico: conferência e divisão por secções
das espécies entradas (a cargo do 1.º bibliotecário); abertura, selagem e carimbagem das
espécies; aposição da marca de propriedade “Ex-Libris”; registo das espécies entradas
por depósito legal, compra, oferta, incorporação / anotações nos livros de registo;
catalogação manual / elaboração de remissas; cotação; elaboração de guias de remessa
das obras para as secções; arrumação do recheio bibliográfico por secções (na BMC);
alfabetação dos verbetes; intercalação dos verbetes no catálogo manual (instalado num
ficheiro metálico).
O registo, catalogação, anotação e intercalação dos verbetes eram tarefas realizadas por
catalogadores, categoria profissional que não exigia formação profissional específica.
Quando iniciavam o trabalho eram-lhes ensinadas as regras de catalogação em vigor. Os
catalogadores tinham apenas que ter o 7.º ano dos liceus. Os catalogadores eram
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contratados em regime de tarefa (a maioria) ou com ordenado fixo, não pertencendo ao
quadro.
Ao longo dos anos, verifica-se que o tratamento técnico se defronta com um
constrangimento persistente: a falta de pessoal e a sobrecarga do pouco pessoal
existente com serviços burocráticos. O atraso no tratamento técnico agravava-se na
proporção que aumentava o número de espécies entradas por mês, por via do depósito
legal.
Só tardiamente, nos finais dos anos 50 – inícios dos anos 60 é que se passou a usar na
BMC a CDU (o objectivo era a constituição de um catálogo ideográfico, para
complementar os já existentes: onomástico, didascálico e topográfico).
Nos mapas estatísticos do INE referentes à BMC para o ano de 1956, o 1.º
Bibliotecário, Maria Luísa da Conceição de Campos, advertiu que ainda não tinha sido
adoptada a classificação decimal universal, por isso, a classificação do recheio
bibliográfico era apresentada em função das secções em que estava dividido o recheio
daquela biblioteca: Bibliografia, História e Geografia, Literatura, Literatura Infantil,
Poligrafia, Religiões, Ciências e Artes, Ciências Civis, Reservados, Manuscritos,