A tica do Discurso: K.-O. Apel e J. Habermas
l. A situao epocal (o paradoxo da situao atual).A problemtica da
tica, ou da cincia do tico, situa-se hoje, inevitavelmente, na
relao cincia e tica, em decorrncia do tipo de civilizao que
constitui nossa epocalidade. A tica do discurso entende-se como
tentativa de repensar a racionalidade do tico numa civilizao
profundamente marcada pela racionalidade prpria s cincias modernas,
ou seja, ela se compreende como a tica que se tomou possvel a
partir da cientificao da vida humana. Numa palavra, o lugar
hermenutico a partir de onde se pensa a cincia do tico hoje o mundo
profundamente marcado pela interveno da cincia moderna e as
conseqncias da surgidas para a vida humana.
[10] Uma primeira decorrncia dessa situao para a cincia do tico
que, numa sociedade como a nossa, ela tem de abandonar qualquer
resqucio do particularismo de uma tica pensada para tornar possvel
a convivncia de pequenos grupos e se situar clara e decididamente
na perspectiva aberta por Kant, isto , na perspectiva do
universalismo. Hoje tomamos conscincia, com a universalizao da
civilizao tcnico-cientfica por toda a Terra, das consequncias das
aes humanas no espao dos interesses comuns da humanidade como um
todo. Isso se manifesta sobretudo nos perigos que atualmente ameaam
a existncia da humanidade em geral; por exemplo: mais do que nunca,
cresce em nossos dias a conscincia da ameaa para toda a humanidade
do projeto moderno de domnio da natureza. Manifestam-se mais
claramente as consequncias da interveno tecnolgica do homem sobre a
biosfera e a ecosfera, provocando superpopulao, escassez de fontes
energticas, destruio do meio ambiente, fome e misria em muitos
pases, possibilidade da destruio nuclear da humanidade. Parece
evidente que a grande aspirao do homem moderno, de tomar-se senhor
e possuidor da natureza, tem pelo menos um limite absoluto na
sobrecarga termal do meio ambiente, em dependncia do consumo de
energia. daqui que emerge a assim chamada crise ecolgica, trazida
conscincia, com veemncia, pelo relatrio do Clube de Roma. Revela-se
aqui que a expanso do controle sobre a natureza externa choca-se
necessariamente com os limites da capacidade biolgica do meio
ambiente. Tanto a crise ecolgica como o perigo da destruio nuclear,
da dizimao de populaes inteiras pela fome, ameaam a humanidade como
um todo. Pela primeira vez na histria mundial, torna-se claro, em
decorrncia dos perigos que dizem respeito humanidade global, que os
homens so interpelados pelo perigo comum a assumir, juntos, a res
[11] responsabilidade moral: a civilizao tcnico-cientffica
confronta todos os povos da Terra, independentemente de suas
tradies morais especficas, com uma problemtica tica comum: a
responsabilidade solidria em escala planetria.
Trata-se de organizar a responsabilidade da humanidade para as
conseqncias das aes coletivas em nvel mundial. A prpria situao do
homem hoje constitui um problema tico especfico, que aponta para a
necessidade de uma macrotica. A situao crtica da humanidade
instaura, em nossos s, a instncia de surgimento das interrogaes
ticas em nossa epocalidade. No entanto, e eis o paradoxo de nossa
lao, agora que, como nunca na histria da humanidade, s revelou com
tanta fora a necessidade de uma macrotica, jamais pareceu to difcil
legitimar a cincia do tico, em virtude da prpria concepo de saber
vigente em nossos contextos societrios atuais; ou seja, a teoria da
cincia, hoje, ' marcada pela convico bsica de que a possibilidade
de validao intersubjetiva de argumentos, portanto, de um saber
responsvel, limita-se ao campo das cincias formais,
lgico-matemticas, e ao campo das cincias tatuais, as
emprico-analticas, da realidade. Ora, normas morais no se situam
nessas esferas, conseqentemente esto fora do campo do saber
objetivo, intersubjetivamente vlido. Assim, no lhes resta outra
perspectiva, exceto situar-se no espao da subjetividade, na esfera
do que, em princpio, universalizveis, isto , no campo das emoes,
dos sentimentos, das decises arbitrrias, irracionais. No existe,
portanto, possibilidade de legitimar normas ticas: como a
racionalidade sempre foi entendida, desde os princpios da civilizao
ocidental, como a esfera da legitimao, do dar as razes de nossos
conhecimentos, o tico exclui-se da racionalidade. Isso equivale a
estabelecer enorme reduo do campo da racionalidade, como ela foi
articulada pelos gregos: a racionalidade agora limita-se esfera da
razo terica e, mais ainda, tambm razo terica que estuda os fatos
observveis.
Tambm a velha ontologia toma-se impossvel, j que no-testvel pela
experincia. Se uma tica ainda pensvel na idade das cincias, ela se
reduz metatica, mera descrio terico-cientfica da linguagem tica:
trata-se de analisar logicamente o discurso tico, o que, alis se
faz com qualquer discurso cientfico.4 Qualquer empenho em superar
essa
[Nota: 4. Cf. H.-U. Hoche/W. Strube, Analytische Philosophie,
Friburgo-Munique, 1985, pp. 101ss.]
[12] anlise lgica da linguagem considerado como tentativa de
deduzir normas de fatos, o que desde Hume tido por impossvel.
Verdade que o racionalismo crtico, pelo menos aparentemente,
atenuou essa posio ao admitir que tambm os enunciados prescritivos
so suscetveis de crtica e devem sujeitar-se corroborao. No entanto,
aqui tambm no h critrios que legitimem a preferncia por
determinadas normas, e, em ltima anlise, tudo vai desembocar num
decisionismo irracional. A filosofia hoje, nos pases ocidentais,
caracteriza-se por uma ntida diviso de trabalho: de um lado, a
filosofia analtica concentra-se no campo do conhecimento
cientfico-objetivo, ou seja, na esfera da racio-nalidade; de outro,
o existencialismo tematiza a esfera das decises tico-subjetivas.
Uma mediao racional entre teoria e prxis aqui impossvel: a
objetividade, no sentido da validao intersubjetiva, universal, de
conhecimentos, privilgio das cincias neutras. Instala-se, no centro
de nossa cultura tcnico-cienttica, o dualismo insupervel' entre o
objetivismo neutro das cincias e o subjetivismo existencial dos
atos de f e das decises ticas.
Isso significa confinar religio e tica esfera das decises
privadas da conscincia e, assim, substituir a fundamentao moral das
aes por argumentos pragmticos, na base de regras
cientfico-tecnolgicas. A prxis humana torna-se assim prxis
objetivvel, fundamentvel a partir dos modelos das cincias
tcnico-instrumentais. o que M. Weber descreveu como o processo de
racionalizao que caracteriza a modernidade ocidental, que vai
desembocar na reduo do problema tico da legitimao dos fins das aes
esfera das decises subjetivas irracionais. Nossa situao , pois, a
situao da lgica da alternativa entre cincia obje-tiva e tica
subjetiva.
Para K-O. Apel, o marxismo contemporneo, em todas as suas
verses, constitui o lado positivo, mais ou menos dogmtico, desse
antagonismo.B Para Marx, a tarefa fundamental da humanidade superar
sua fase pr-histrica, baseada em interesses de grupos particulares
e de classes, e estabelecer-se na esfera da transparncia, que
radica no autocontrole efetivo da atividade humana. Histria
significa
[Nota: 5. K.-O. Apel, Der postkantische Universalismus in der
Ethik im Licht seiner aktuellen Missvert&ndnisse, op. cit., p.
154s]
[13] autoconstruo do homem a partir da responsabilidade assumida
em ao solidria. Prxis solidria e planejada sinal onanizao da vida
humana. Como se legitimam as normas de ao? Segundo Apel, o problema
no se pe para j que ele pensa no horizonte da historificao da
onto-tradicional como isso se fez em Hegel: trata-se, de antemo, de
uma ontologia teleolgica, segundo a qual o ente, Sentido ltimo da
palavra, igual ao bem, i., ele racio-I. Mas aqui o que a cincia
capta o curso necessrio da rtria. H aqui, de fato, superao dialtica
da problemtica especfica da razo prtica, que desemboca num
objetivismo terico-histrico, que, segundo Apel, no passa ('variante
da aporia hegeliana da mediao total entre ser e dever-ser. A partir
daqui, carece de sentido a distino de ^lUBme entre ser e dever-se:
a dialtica entende-se precisamente como a supercincia que efetiva a
mediao total entre Objetividade e subjetividade. Assim, enquanto
socialismo cientfico, a dialtica marxista substitui a fundamentao
do engajamento sociopoltico pela referncia ao historicamente
necessrio e substitui a responsabilidade por um futurismo tico, na
expresso de Popper.6 Os funcionrios do partido, que, a partir de
Lenin, consideram-se detentores de uma percepo da necessidade
imanente ao processo histrico, devem fhonopolizar a mediao correia
entre teoria e prxis.
J. Habermas considera a situao da tica atual7 a partir de sua
interpretao do processo de modernizao das sociedades ocidentais,
elaborada em confronto com a anlise dos processos de modernizao em
M. Weber. A linguagem, para ele, tem imanente a si um potencial de
criticidade, de sorte que o processo de racionalizao do mundo
vivido vai emergir como desenvolvimento atravs do qual a linguagem
explicita sua criticidade imanente. Mas essa racionalizao do mundo
vivido, medida que libera a vida humana do peso de tradies
culturais no-problematizadas que a regem, vai
[6 Notas: fl. A respeito da crtica de Popper ao futurismo, ver
K. Popper, Das Elend des Historiaismus, 2a ed., Tbingen, 1969; Die
offene Ge-selischaft und livre Feinde, Bonn, 1958, vol. II,
sobretudo cap. 12.
7. J. Habermas, Diskursethik: Notizen zu einen
Begrndungspro-gramm, in: Moralbevmsstsein und kommunikatives
Handeln, Frank-turt am Main, 1983, pp. 53ss.; Webers Theorie der
Rationalisierung, in: Theorie des kommunikativen Handelns, vol. I,
Frarikfurt am Main, 1981, p. 225s.; Entkoppelung von System und
Lebenswelt, vol. II, pp. 229ss.]
[14] provocar a introduo de novos mecanismos de ao: assim, vo-se
destacar dele campos de ao formalmente organizados, isto , regidos
por leis positivas, como a economia e a administrao estatal, onde a
sociabilidade no se gestar mais a partir de normas tradicionalmente
transmitidas e partilhadas. A coordenao das aes dos sujeitos no
ocorrer mais atravs dos processos de entendimento, mas de valores
instrumentais, como dinheiro e poder. O processo de modernizao das
sociedades ocidentais significar ento novo nvel de diferenciao
sistmica, posto que os subsistemas economia e Estado se distinguem,
atravs do dinheiro e do poder, do sistema institucional, radicado
no horizonte do mundo vivido, e fazem, assim, surgir campos de ao
formalmente organizados, que no so mais integrados pelo mecanismo
do entendimento, portanto, que se distanciam dos contextos do mundo
vivido, constituindo um outro tipo de sociabilidade.
Ora, a autonomia das novas organizaes vai ser conquistada
precisamente por uma demarcao neutralizante em relao s estruturas
simblicas do mundo vivido, fazendo-se indiferentes aos elementos
constitutivos do mundo vivido ou seja, cultura, sociedade e
personalidade. Essas organizaes funcionam independentes das
disposies de ao e dos fins pretendidos por seus membros; abstraem
sistematicamente dos contextos particulares de vida de seus
membros, que poderiam perturbar o processo sistmico. Exemplo claro
disso a empresa capitalista, que funciona abstraindo plenamente dos
contextos vitais privados de todos os que nela trabalham. A mesma
indiferena se observa em relao cultura e sociedade, pois as
organizaes modernas funcionam em independncia de cosmovises
legitimadoras, neutralizam toda a tradio cultural e at se imunizam
contra o poder exercido pela tradio atravs da neutralidade
ideolgica: trata-se, em ltima anlise, de neutralizao diante do pano
de fundo normativo dos contextos de ao. outro tipo de integrao que
agora assume a primazia no processo de socializao: o mecanismo
essencial na integrao social, a compreenso lingustica, de algum
modo posto de lado e dispensado pela atuao dos valores
instrumentais nos contextos de ao formalmente organizados. No
entanto, esses novos mecanismos vinculam-se ao mundo vivido atravs
do direito: todo o processo de modernizao vai significar, assim, de
certo modo, uma substituio da tica pelo direito, no processo de
regulao das aes sociais. Habermas chama esses [15] contextos de ao
de formalmente organizados, ate porque eles so gostados pelo
direito positivo, tornando possveis as relaes de troca e poder.8As
instituies primrias das sociedades tradicionais so ilidas, nas
sociedades modernas, por instituies jurdicas. Ocorre que o direito
moderno se desatrela de motiva-
[Nota: 8- Habermas, Theorie des kommunikativen Handeins, vol. I,
Jp. 332ss. Habermas, partindo das sugestes d& Kohiberg, i1
evoluo moral fundamentalmente em trs nveis. Na fase rencional da
conscincia moral, o moralmente relevante so as todas da ao, e no as
intenes dos agentes; assim, a para as faltas praticamente nada tem
a ver com a intrao dual de uma norma, mas tem a funo de afastar da
coletividade irigos que a ameaam como consequncia do crime.
Portanto, a e de normas radica imediatamente nas aes rituais da
comu-de culto. A pena assim uma espcie de expiao do delito a ordem
sagrada. J nas sociedades estatalmente organizadas, o de normas
avaliado em relao as intenes de um sujeito age com
responsabilidade, e a pena se refere a uma ao culposa rtanto, no
mais considerada como compensao para as con-incias desvantajosas
das aes. Trata-se, agora, no de refazer minado estado anterior, mas
de destruir a injustia cometida. o direito tem a posio de
metainstituio: a totalidade da ordem poltica constitui-se como
ordem de direito. Enquanto na fase pr-vencional so julgadas as
consequncias das aes, na fase convencional a orientao em normas ou
sua infrao passa para o centro consideraes. Na fase
ps-convencional, as prprias normas so avaliadas luz dos princpios.
aqui, ento, na instncia dos princpios, que se vai considerar a
problemtica fundamental do tico. Nas sociedades modernas, surge um
sistema de ao eticamente neutralizado pela diferenciao da economia,
que passa a reger-se pelo mecanismo do dinheiro. Essa esfera
imediatamente institucionalizada nas formas do direito civil
privado. O direito se desvincula de motivos ticos e se caracteriza
pela positividade, pelo legalismo e pelo formalismo. Toda essa
reviravolta encaminha-se, segundo Habermas, para o universalismo no
direito e na moral, o que, ao mesmo tempo, expresso da racionalizao
do mundo vivido. Parsons chama generalizao de valor tendncia
observada no processo de evoluo, de que as orientaes valorativas se
tomem cada vez mais p (Biversais e formais. A sociedade moderna
exige um grau de generalizao mais alto que o de todas as sociedades
anteriores, pois medida que a eticidade tradicional se divide entre
moralidade e legalidade, exige-se, na esfera privada, a aplicao
autnoma de princpios universais, e, na esfera profissional, a
obedincia ao direito positivamente estabelecido. A obedincia
abstraia ao direito se faz assim a nica vinculao normativa para o
agente, num campo de ao formalmente organizado. Ora, para Habermas
esse processo de generalizao faz surgir duas tendncias
contrapostas: quanto mais progride a generalizao, mais se afasta o
agir comunicativo dos padres]
[16] es ticas: ele funciona como mediao de demarcao de campos de
arbtrio legtimo para pessoas jurdicas privadas e para o exerccio
pblico de cargos. Na perspectiva da nova forma de socializao, as
normas jurdicas tomam o lugar da eticidade tradicional: o direito
no mais se radica nas estruturas tradicionais da comunicao, mas
gera formas de relaes sociais independentes do contexto normativo
de comunicao das tradies culturais. A modernizao da sociedade
significa ento o processo de marginalizao da ao comunicativa e a
constituio de contextos de ao regrados pelo direito positivo. Na
medida mesma em que as empresas se transformam em sistemas
auto-regulados, passa para o primeiro plano da vida social a
organizao jurdica. Isso vai acarretar, por consequncia, um processo
de formalizao das relaes interpessoais, que agora so regidas por
regulamentaes formais: no que a ao comunicativa desaparea, porm
cada vez mais perde poder sua base normativa e transforma-se a
situao das aes, j que de agora em diante elas so coordenadas por
novos mecanismos. O avano do processo de modernizao implica
autonomia crescente para os subsistemas de ao instrumental da
perspectiva
[Nota: normativos de comportamento concretos e tradicionais.
Isso significa que a integrao social cada vez menos se faz pela
mediao da religio e cada vez mais radica no processo linguistico de
formao de consenso. Assim, a generalizao de valores emerge como a
condio necessria de possibilidade para a liberao do potencial de
racionalidade implcito na ao comunicativa. Mas, por outro lado, a
liberao do agir comunicativo de orientaes valorativas particulares
vai provocar a separao entre ao orientada no sucesso e ao orientada
no entendimento. Cada vez mais agora vai emergir uma rede de
interaes que no mais se orientam por valores e normas, ou seja, no
mais se orientam pelo entendimento, mas se apoiam em mecanismos de
descarga, que evitam os riscos da dissidncia e a problemtica de um
consenso conquistado pelo debate. Tais mecanismos, assim,
substituem a linguagem como meio de coordenao de aes. Isso vai, ao
longo da evoluo, abrir espao ao que Habermas denomina colonizao do
mundo vivido, que constitui a patologia tpica das sociedades
modernas: o principio sistmico de integrao invade o mundo vivido e
desintegra-o. Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, o
sistema econmico toma-se o princpio de organizao de toda a
sociedade e pretende submeter tudo a seus imperativos. Nas
sociedades do socialismo burocrtico, o sistema administrativo
exerce funo semelhante. Nessa tica, portanto, a contradio
fundamental das sociedades modernas entre a racionalizao da
comunicao cotidiana, radicada no processo de entendimento,
portanto, alicerada nas estruturas da intersubjetividade do mundo
vivido, e a crescente complexidade e influncia dos subsistemas de
ao teleolgica, o que, em ltima anlise, significa atrofia da dimenso
tica da vida humana.]
[17] vividos. Isso vai provocar afastamento progres-I'relaes
sociais da identidade dos agentes: a esfera comunicativo, cada vez
mais, passa periferia da n social sistemicamente integrada. Na
sociedade ca-, primeira forma de sociedade moderna, a produ-s
centralizada e regrada, no politicamente, mas atra-"mercado". O
Estado, que no produz e recolhe, r de tributos, os recursos
necessrios para suas tare-ganiza e assegura o relacionamento
jurdico entre os Itcipam da concorrncia do mercado, portanto, entre
enquanto produtores privados, sustentam o proces-Iroduo. O Estado
pe, ento, os pressupostos jurf-do processo de troca: o direito
moderno substitui a de tradicional de normas por um consenso
racional-conseguido.
Ocorre na modernidade um processo de positivao do : direito o
que estabelecido enquanto tal, que vem ado a um processo d
legalizao e formalizao. exa-tite a separao tpica da modernidade
entre legalidade ralidade que condio de possibilidade da
institucionalizao do dinheiro e do poder e, portanto, da organizao
onomia e do poder numa perspectiva funcional. O desen-nento da
sociedade moderna , assim, a institucionali- das relaes mercantis e
do poder poltico atravs do o positivo. Uma vez estabelecida a
economia capitalista subsistema de ao instrumental, ela no
necessita mais tentao de ordem tica. Literalmente, a tica
substituda pelo direito ou seja, os contextos de ao, eticamente
neutralizados, podem ser separados legitimamente, por procedimentos
formais, do estabelecimento, e da fundamentao de normas.
Mas isso no tudo: a sociedade moderna caracteriza-se no s pelo
desengate dos subsistemas de ao instrumental do mundo vivido, mas
tambm pela invaso crescente da economia e da administrao no mundo
vivido, o que Habermas ama de colonizao do mundo vivido.8 A grande
contra-Qo de fundo da sociedade moderna a contradio entre os dois
princpios de integrao da sociedade, dado que, segundo Habermas,
pode-se interpretar o processo histrico de racionalizao do mundo
ocidental como crescente invaso do mundo vivido plos subsistemas de
ao instrumental, o
[Nota: 9. J. Habermas, "Marx und die These der inneren
Kolonisierung", In: Theone des kommunikativen Handetns, op. cit.,
vol. II, pp. 489ss.]
[18] que significa que a vida dos homens vai-se reger muito mais
por mecanismos funcionais inconscientes do que por normas ticas.
Nas sociedades capitalistas, o mercado o eixo organizador, a
modernizao revela-se como processo de reitica-o das relaes
comunicativas, a lgica sistmica invade a vida privada e pblica do
homem, recalcando para a marginalidade sua dimenso tica. As
sociedades socialistas-buro-crticas passam por processos anlogos,
que se manifestam na pseudopolitizao atravs da coao burocrtica.
Aqui tambm economia e administrao estatal seguem uma lgica
sistmica. A modernizao significa ento, em ambas as vertentes, a
substituio do tico pelo sistmico, no processo de regulao da vida
humana.2. Onde se situa o tico na vida humana.A primeira tarefa da
reflexo filosfica, nessa esfera, , para Habermas, de ordem
teraputica: ela deve apontar para a dimenso do tico na vida humana,
no sentido fundamental de explicitar os fenmenos que exigem reflexo
tica; por isso ele se vale de um clebre trabalho de P. F.
Strawson,10 j que . pela determinao da especificidade do fenmeno
tico que se vai estabelecer uma discusso racional sobre o tico,
impossibilitada pela mentalidade tcnico-cientfica vigente. Strawson
parte das atitudes com as quais reagimos a ofensas, que podem
desembocar no ressentimento, que para ele significa uma expresso de
juzo moral: trata-se da desaprovao de uma injustia cometida pelo
outro. Nesse contexto entra a possibilidade do pedido de desculpa,
que precisamente a recuperao de uma relao interativa, rompida por
um sujeito capaz de responsabilizar-se por suas aes, Com isso se
manifesta a esfera em que emerge o tico na vida humana: a esfera da
interao de sujeitos capazes de talar e agir. Mas como se manifesta
o propriamente tico nesses sentimentos? Precisamente medida que a
reao dirige-se contra a infrao de uma expectativa normativa
subjacente, que no diz respeito apenas a duas pessoas envolvidas no
ato, mas a todos os membros de um grupo social; mas ainda, no caso
de normas morais, no sentido estrito da palavra, trata-se de uma
validade em relao a todo e qualquer sujeito capaz de
responsabilidade, ou seja, na pessoa do ofendido est sendo
infringida uma expectativa impessoal,
[nota: 10. P. F. Strawson, Fredom and Jtesentment, London,
1914.]
[19] que vale para qualquer homem enquanto ser capaz de
responder por seus atos.
O emerge na interao de sujeitos, mas aponta para ao de qualquer
particularismo: s se pode falar propriamente de norma moral quando
se leva em conta a de validade universal. O tico diz respeito a um
de possvel reconhecimento recproco entre sujeitos l. dignidade. Mas
tal sentimento, que aponta para a ide de normas ticas, s se
sustenta se for possvel demonstrar que tais normas tm fundamento.
Dever fazer nifica ter fundamento para sua ao. Normas ticas toda a
autoridade sem um contedo cognitivo, se se puder mostrar que
possuem razo de ser. Portanto, qualquer reflexo sobre o tico
implica que levemos em considerao essa rede de sentimentos ticos
que perpassa a prxis comunicativa da cotidianidade dos homens.
Certamente, diz Habermas, esses sentimentos ticos tm para a
legitimao moral de normas de ao papel semelhante ao ('percepo na
explicitao terica de fatos. Toulmin esta-ece um paralelo entre
percepes e sentimentos: opinies e sentimentos funcionam no
cotidiano como mediadores no-problematizados de interaes11. Quando
tais proferimentos esbarram em contradies, a pretenso de validade a
eles vinculada entra em crise: passa-se ento a uma avaliao crtica
da pretenso de validade. Nessa perspectiva, um argu-i9ento tico
refere-se rede de sentimentos morais de modo anlogo como um
argumento terico relaciona-se com a corrente de percepes. Assim,
pode-se falar de verdade tica. Aqui se situa a questo, pois se pode
pensar que as sentenas normativas so da mesma natureza que as
sentenas descritivas, de tal maneira que ento seria possvel
concluir que s sentenas normativas poderiam ser verdadeiras ou
falsas, rio mesmo sentido das descritivas.
Toulmin percebeu com lucidez que o sbjetivismo e o objetivismo
ticos so duas faces de uma mesma medalha: ambos partem da falsa
premissa de que a validade de sentenas descritivas o nico modo como
sentenas podem ser fundamentadas. Ambas as posies passam por cima
da questo fundamental: o modo especfico de fundamentao das sentenas
ticas. Aqui se situa propriamente a questo[Nota: 11- 5t. Toulnn,
Are examination of the place of reason in ethics, Cambridge, 1970,
p. 121s.]
[20] bsica de uma tica filosfica: que tipo de argumento est em
jogo na justificao de normas? Qual o modo prprio de fundamentao das
sentenas normativas? Que critrios nos podem levar a aceitar
exigncias como obrigaes morais?
3. A especificidade da sentena normativa.A fenomenologia do tico
desemboca na questo fundamental de uma tica filosfica: em que
sentido e de que modo normas morais podem ser fundamentadas. A tica
do discurso marca aqui sua posio diante do emotivismo e do
decisionismo: a tica tem a forma de uma argumentao moral. Contudo,
para poder diferenciar, em nvel de argumentao, a especificidade do
argumento tico, necessrio detectar, no horizonte do mundo vivido, o
carter prprio da pretenso de validade das normas morais. Habermas12
empreende essa anlise a partir da esfera das interaes
comunicativas, nas quais participantes orientam e coordenam suas
aes, base de um consenso que se estabelece na vida comum pela
aceitao recproca no-problematizada das pretenses de validade
implcita ou explicitamente levantadas na fala. A interao
simbolicamente mediada se faz a partir de um horizonte de sentido
intersubjetivamente partilhado, que a condio de possibilidade do
entendimento entre os diferentes sujeitos a respeito de algo no
mundo objetivo dos fatos, no mundo social da regulao das relaes
inter-subjetivas e no mundo subjetivo das vivncias.
No caso da pretenso veracidade, o sujeito pode prov-la a partir
das consequncias de suas aes. Quanto s duas primeiras pretenses,
pode-se passar da simples aceitao tcita a uma avaliao discursiva de
sua validade. No entanto, guardada a homologia de base, trata-se de
duas pretenses de validade cuja consistncia se pode testar com a
apresentao de razes, uma vez que h, j na prxis cotidiana, diferenas
essenciais entre ambas as pretenses de validade. Na aparncia, elas
manifestam as mesmas propriedades, mas, de fato, h uma diferena
profunda na relao entre ao lingustica e normas e ao lingustica e
fatos. Assim, por exemplo, uma norma moral levanta a pretenso de
sentido
[Nota: 12. J. Habermas, Diskursethik, op. cit., p. 67ss. Cf.
tambm S. P. Rouanet, "atia llumtnista e tica discursiva", in: Jrgen
Habermas:
60 anos, Tempo Brasileiro, 98 (1989), 23-78.]
[21] e validade, independentemente de ser proclamada. Numa
pa-nses de verdade situam-se nica e exclusivamen-s lingusticas,
enquanto pretenses de validade pem-se primeiramente em normas e s
depois, rivado, em aes lingusticas. Da a diferena fundamental entre
a ordem da natureza e a ordem da sociedade. r da natureza
constituda sem relao a valores e podemos assumir diante dela uma
posio de neu->, objetivante, impossvel no caso da ordem social,
co qual nos comportamos em conformidade
Portanto, de antemo, a realidade social situa-se numa relao
interna com pretenses normativas de validade. etenses de validade
da verdade no esto nas coisas, tcnicamente nos atos de fala
constatativos, com os quais telacionamos aos estados de coisa.
partir daqui se aperceber a ambiguidade da pretenso normativa de
bde. Enquanto existe relao unvoca entre estados de ^existentes e
sentenas verdadeiras, o existir, ou seja, a ida social de normas,
ainda no decide sobre sua vali-!jfe. Do ponto de vista tico,
fundamental, portanto, a ICo entre o fato social do reconhecimento
ntersubjetivo ^capacidade de reconhecimento de uma norma: uma
nor-^pode, de fato, valer socialmente, sem que se possa
legiti-fySem. que seja possvel apresentar razes para sua pr-Bo de
validade. Mas tambm possvel que uma norma seja legitimvel sem que,
de fato, encontre reconhecimento; em sntese, o simples
estabelecimento ou a promulgao de (loba norma no garante, a longo
prazo, sua vigncia flica18. [Notas: 13. Para Habermas, isso
constitui uma das grandes conquistas prtpdolgicas de M. Weber, que,
tendo partido da distino unda-jDantal no neokantismo entre ser e
dever-ser (ser e valor), esclarece A distino e a relao entre uma
pretenso de validade normativa e s"j validade social de normas de
ao, o que, por sua vez, o leva a fM distino fundamental entre a
"regularidade fca" de comportamento e a regulao normativa" da ao.
Da por que no se podem confundir sentenas descritivas com sentenas
normativas, ou seja, juzos de valor com juzos de fato. Fatos, no
caso a validade social d normas, podem ser captados pela posio do
observador, mas a validade ideal de normas s atingvel pelo terico,
numa postura periormativa, na qual, de algum modo, ele toma posio
quanto pretenso de validade em tela. Cf. J. Habermas, Theorie des
kommunikativen Handelns, op. cit., vol. I, p. 267s]
[22]
4. A validao intersubjetiva de normas.A validade de qualquer
proposio determinada pela argumentao, que busca estabelecer
consenso fundado. No caso dos discursos tericos, o princpio de
induo que liga as observaes e as hipteses universais. validao de
normas necessita de um principio anlogo, que Habermas vai buscar na
proposta de Kant, ou seja, na "exigncia de universalizao",
repensada luz de uma teoria da ao comunicativa. Para Habermas, o
princpio moral, a regra de procedimento correto para a validao de
normas, compreendido de tal modo que exclui as normas que, em
princpio, no possam ser aceitas por todos os interessados. As
normas s valem quando exprimem uma vontade universal, fi
precisamente nessa perspectiva que Habermas interpreta o imperativo
categrico kantiano, isto , como princpio que exige a capacidade de
universalizao das mximas de ao ou dos interesses por elas
contemplados. Portanto, normas vlidas devem poder merecer o
reconhecimento de todos os implicados: na avaliao dos interesses,
cada um obrigado a levar em considerao a perspectiva de todos os
outros14. Exatamente aqui se mostra a diferena entre Kant e a tica
do discurso: para Kant, validao pensada monologicamente, medida que
uma reflexo puramente subjetiva pode decidir a priori se a norma
legitima ou no. Para Habermas, princpio de validao das normas regra
argumentaes entre participantes diferentes de uma ao interativa. A
fundamentao aqui de ordem pragmtico-lingistica: as normas so
justificadas num discurso pblico, a posteriori, conduzido de acordo
com o princpio de validao normativa, pois a argumentao moral est
fundamentalmente a servio da soluo consensual de conflitos na
esfera de interaes orientadas em normas que se radicam num consenso
normativo rompido. A superao do conflito consiste em assegurar o
reconhecimento de uma pretenso de validade. Esse tipo de consenso
exprime uma vontade comum: para chegar a ele
[Nota: 14. Isso significa que o objetivo do discurso prtico o
acordo, o consenso racionalmente motivado, pela mediao da prxis
argu-mentava de pretenses de validade levantadas na prxis
comunicativa ordinria e que atingem o estgio de problematizao.
Quando tal ocorre, a validade f tica das normas deixa de ser
fundamentao suficiente de sua aceitao. Ao contrrio da natureza, na
esfera da sociabilidade a existncia de normas (sua validade
normativa) depende do reconhecimento mtersubjetivo. que, no caso de
problematizao, deve ser reconquistado pela mediao da
argumentao.][23] necessrio o esforo cooperativo. S num processo
intersubjetivo de compreenso possvel atingir um consenso de
natureza reflexiva, em que os participantes possam saber que eles,
comunitariamente, se convenceram a respeito de algo. Da a nova
formulao do imperativo categrico: a nfase vai deslocar-se do que
cada um pode querer, sem contradio com a lei universal, para que
todos devem reconhecer de acordo com a norma universal. A
argumentao tarefa comunitria e no-solipsista.155. A fundamentao
pragmtico-transcendental do princpio de validao de normas.O
cognitivismo tico a postura que considera possvel fundamentar as
normas ticas e, nesse sentido, contrape-se radicalmente ao
irracionalismo, ou seja, s posies que defendem a impossibilidade
lgica de qualquer fundamentao na esfera do tico. Aqui o homem
estaria condenado ao decisionismo, ao moral sem fundamentos,
radicada, em ltima instncia, no arbtrio dos indivduos. A tica do
discurso sustenta, portanto, a racionalidade da ao moral e
compreende uma sentena normativa como sujeita argumentao
discursiva, em que so levantadas pretenses de validade decidiveis
atravs da argumentao16.
Habermas compreende a argumentao como processo com diferentes
degraus, e ele articula essa via de fundamentao na forma de dilogo
entre o ctico e o cognitivista17. O primeiro momento do processo
consiste em abrir os olhos do clico para os fenmenos morais, ou
seja, para o explicandura em todo esse debate. No segundo momento,
mostra--se que, nas sentenas normativas, h pretenses de
validade
[Notas: 15. Para Habermas, o esclarecimento atravs da argumentao
de pretenses de validade de verdade e de retido nada mais nada
menos que a efetivao plena de competncias que so universais na
espcie humana. J uma anlise da linguagem ordinria (contexto
no-discursivo) mostra que, em toda linguagem, h pretenses de
validade, pelo menos implicitamente levantadas, que apontam para a
possibilidade de legitimao discursiva. A ideia, portanto, do
discurso racional radica nas estruturas bsicas do agir
linguistico.
16. Aqui est a especificidade da tica comunicativa em relao a
outras posturas cognitivistas: s a tica comunicativa fundamenta a
universalidade das normas e a autonomia dos agentes atravs da
"avaliao discursiva" das pretenses de validade, que esto embutidas
nas normas que emergem nas comunidades histricas.
17. J. Habermas, Diskursethik, op. cit., pp. 88ss.]
[24] das sentenas tericas. Depois disso, o ctico pode apelar
para o inevitvel pluralismo tico reinante nas comunidades humanas,
o que significa a impossibilidade de atingir o consenso. O
cognitivista v-se portanto, diante da tarefa de demonstrar um
princpio de ponte possibilitador de consenso. Demonstrado o
principio moral, a fase posterior do processo de fundamentao
concentra-se na questo do rela-tivismo cultural: o ctico pode
argumentar que o princpio moral demonstrado nada mais significa que
a universalizao das intuies morais da cultura ocidental, o que leva
a tica do discurso a empreender a fundamentao
pragmtico-trans-cendental do prprio princpio de validao de normas
ticas.
K-O. Apel18 repensa a fundamentao transcendental de Kant a
partir da perspectiva da filosofia da linguagem mais recente. Para
mostrar a especificidade da fundamentao transcendental, ele se
confronta com a escola popperiana, sobretudo com a formulao da tese
da impossibilidade de qualquer fundamentao no famoso trilema de
Mnchhausen, de H. Albert." Nessa perspectiva, qualquer tentativa de
fundamentao ltima lgico-formal de frases a partir de frases
desemboca necessariamente no trilema lgico: ou surge um regresso
infinito, ou se interrompe arbitrariamente a corrente de dedues, ou
emerge um crculo lgico. Assim, qualquer fundamentao racional
logicamente impossvel. A primeira coisa por fazer aqui, segundo
Apel, explicitar o conceito de fundamentao em jogo: trata-se de
"conceito semntico de fundamentao", que se orienta fundamentalmente
na relao dedutiva entre sentenas e se apoia com exclusividade no
conceito de sequncia lgica. A teoria dos atos de fala da Escola de
Oxford persiste em perceber, segundo Apel, que essa concepo de
fundamentao radica numa concepo reducionista da linguagem humana,
pois
[Notas: 18. K.-O. Apel, "Das Apriori der
Kommunikationsgemeinschaft und die Grundiagen der Ethlk", In:
Trans/ormafion der Philosophie, vol. II, Frankfurt am Main, 1976,
pp. 358-435; "Kann der postkantische Standpunkt der Moralitt noch
einmal in substantielle SittUchkeit 'autgehoben' werden? Das
geschichtsbezogene Anwendungsproblem der Diskursethik zwischen
topie und Regression", in: Disfcurs und Verantwortung, op. dt., pp.
llOss. Cf. tambm W. Kuhimann, Reflexivo LetzfbegrUnung,
Untersuchungen sur Transaendentaipragmatik, Fri-burgo-Munique,
1985. D. Bnler, Rekonstruktive Pragmatik, Frankurt am Main,
1985.
19. H. Albert, Tratado da razo critica. Rio de Janeiro, 1976,
pp. 24ss.]
[25] toda tala tem sempre duas dimenses: a dimenso
preposicional, que diz respeito ao contedo, e a dimenso
perfomativa, em que se estabelecem relaes comunicativas entre os
participantes da fala.
A concepo semntica da argumentao reduz-se dimenso preposicional
da linguagem, esquecida de que toda sentena tambm proferimento, est
inserida num contexto de aes comunicativas que so suas condies de
possibilidade. Assim, tambm toda sentena descritiva pressupe uma
dimenso performativa na estrutura profunda, pragmtica, da
linguagem. A dimenso pragmtica da linguagem pode ser chamada de
transcendental precisamente porque condio de possibilidade da
dimenso preposicional. Podemos distinguir, pois, uma fundamentao de
ordem semntica, que a questionada por H. Albert e a fundamentao
transcendental, por ele desconhecida. O ctico pode
con-tra-argumentar que a fundamentao transcendental no est isenta
do trilema lgico. Mas, argumentando, ele aceita implicitamente os
pressupostos da argumentao, do contrrio incorreria inevitavelmente
numa contradio performativa: enquanto argumenta, levanta
implicitamente uma pretenso de validade, que nega pelo contedo de
seu proferimento. Ora, a argumentao pressupe o princpio tico
fundamental: a aceitao recproca de todos os participantes como
parceiros de discusso de iguais direitos. E todas as expresses
humanas, enquanto so, em princpio, verbalizveis podem ser
consideradas argumentos virtuais, ou seja em todas elas est o mesmo
pressuposto tico: o reconhecimento mtuo de todos os homens como
sujeitos capazes de captar sentido e pautar suas vidas a partir de
razes. Dessarte, quem argumenta aceita inevitavelmente a exigncia
do reconhecimento mtuo das pessoas como sujeitos da argumentao.
Ora, o ctico tico argumenta a partir do trilema lgico e conclui
pela impossibilidade de qualquer fundamentao. Com isso, ele se
enreda numa contradio performativa, pois, enquanto argumenta,
inevitavelmente tem de fazer as pressuposies de qualquer
argumentao, que so sujeitas a prova crtica. Mas o contedo dessas
proposies contrape-se a sua tese. Portanto, ele no pode
contrapor-se tese do cognitivista, exceto argumentando: se o faz,
pressupe inevitavelmente o princpio moral, que assim emerge como
condio de possibilidade do falar humano.
Portanto, o cerne da argumentao pragmtico-transcendental
consiste no seguinte: toda argumentao, em qualquer[26] contexto,
radica em pressupostos pragmticos, de cujo contedo preposicional
pode-se deduzir o princpio bsico de universalizao, que Habermas
denomina o princpio U princpio de validao das normas ticas. Em
suma, o princpio deriva simplesmente dos pressupostos necessrios de
toda e qualquer forma de argumentao, terica ou prtica. A
inevitabilidade desses pressupostos se demonstra precisamente pelo
fato de que todo aquele que os rejeita obrigado a utiliz-los em sua
argumentao. A contradio performa-tiva significa que o ato
lingustico executado alicera-se em pressupostos necessrios, cujo
contedo preposicional contradiz a afirmao feita. Assim, ao contrrio
de Kant, para quem o imperativo categrico era "fato de razo", a
tica discursiva justifica o princpio de universalizao atravs de
procedimento pragmtico-transcendental, e para Apel esse o modo
prprio a uma justificao filosfica; ela reflexo transcendental a
respeito das condies de possibilidade e validade de toda
argumentao. Justamente por ter abstrado da dimenso pragmtica da
argumentao, a filosofia analtica reduziu o problema da argumentao
ao dos pressupostos lgicos da frase e da proposio; reduziu o
tratamento da linguagem esfera da sintaxe e da semntica. Nessa
perspectiva, no h sujeito da argumentao: sem sujeito, impossvel a
reflexo sobre as condies desde sempre pressupostas da argumentao, o
que a tarefa de uma reflexo pragmtico-transcendental. Para Apel,
fundamental distinguir com clareza dois tipos de operao: a prova
emprica de pretenses de validade, como ela empreendida pelas
cincias, e a especificidade da filosofia, que consiste no esforo de
reconstruir, do modo mais completo possvel, as condies necessrias
da argumentao humana Apel encontra, assim, o ctico em seu prprio
terreno: ao objetar ou defender-se, ele j entrou num jogo
argumentativo e se envolveu com pressupostos que ele nega; por isso
sua postura desemboca numa contradio performativa.
6. A controvrsia Apel-Habermas acerca da fundamentao ltima.Para
Apel, o especfico da filosofia , atravs da reflexo
pragmtico-transcendental, chegar fundamentao ltima do princpio de
validao das normas ticas, Hbermas resolve elaborar as objees
apresentadas contra esse procedimento e, atravs desse recurso, expe
a fundamentao de outra
[27] Forma20. Uma objeo que no se compreende como regras, que na
esfera dos discursos so inevitveis, possam levantar pretenses de
validade fora de argumentaes. Ou seja, a necessidade dessas normas
no se transfere do discurso para a ao. Apel mesmo j se confrontou
com essa objeo e sua sada extrair imediatamente normas ticas bsicas
dos pressupostos da argumentao. Ora, na realidade, para Habermas,
no so normas ticas o objeto de reflexo pragmtico-transcendental,
mas as "regras de argumentao", de carter normativo, de que sempre
fazemos uso em nossos discursos. Da por que, para ele, a tarefa
prpria da reflexo pragmtico-transcendental demonstrar como o
princpio de universalizao, que funciona como regra de argumentao,
implicado pelos pressupostos da argumentao enquanto tal.
Seguindo a perspectiva aberta por Aristtels, Habermas distingue
trs nveis na argumentao: em primeiro lugar, o nvel dos produtos, ou
seja, a argumentao destina-se, antes de tudo, a produzir argumentos
convincentes. Pressupostos, nesse nvel, so regras lgicas e
semnticas, que no possuem contedo tico. No segundo momento, a
argumentao pode ser considerada pelo aspecto procedurstico; aqui
ela emerge como processo de entendimento regrado, de tal modo que
seus participantes podem, hipoteticamente, pr prova pretenses de
validade que se tomaram problemticas. Nesse nvel, situam-se os
pressupostos pragmticos de uma forma especial de interao, ou seja,
tudo o que necessrio busca da verdade cooperativamente organizada
como uma espcie de competio, por exemplo, o reconhecimento da
imputabilidade e da sinceridade de todos os participantes. Algumas
dessas, regras tm contedo tico, por exemplo, as relaes de
reconhecimento recproco, que uma pressuposio que b discurso e a ao
orientada para o entendimento possuem em comum. Por fim, a
argumentao pode ser considerada em seu aspecto processual, e
enquanto tal ela um evento comunicativo que, em funo de um consenso
motivado racionalmente, deve satisfazer a determinadas condies.
na fala argumentativa que se revelam estruturas de uma situao de
fala que, de modo especial, imunizada contra a represso e a
desigualdade. Condies universais de simetria entre todos os homens
emergem como fator pos-
[Nota: 20. J. Habermas, Disfcurseftifc.op.eit., pp.94ss.]
[28] sibilitador da argumentao. No se trata, porm, de simples
convenes, pois as regras do discurso so pressupostos inevitveis,
sem os quais a fala no existe. Agora s podemos tematizar esses
pressupostos pela mediao da negati-vidade: mostrando que quem os
nega se envolve em contradio performativa. Por isso a reflexo
transcendental tem necessariamente de apelar para a pr-compreenso
intuitiva, com a qual todo sujeito capaz de linguagem e ao entra em
processo argumentativo.
Pode-se comparar a argumentao a um jogo de xadrez, mas nele as
regras determinam uma prxis flica de jogo, ao passo que as regras
do discurso so apenas uma forma de exposio de pressupostos
pragmticos j dados e intuitivamente sabidos de uma prxis de fala
especfica. A preocupao fundamental de Habermas evitar os
mal-entendidos originados da forma como a demonstrao
pragmtico-trans-cendental foi feita e conseqentemente o princpio
moral que se atingiu atravs dela. Para ele, o nico princpio moral o
de universalizao, que vale como regra de argumentao e pertence,
assim, lgica do discurso prtico. Por isso, esse princpio deve ser
claramente diferenciado tanto de qualquer princpio de contedo ou de
normas fundamentais, que precisamente devem constituir o objeto das
argumentaes morais, como do contedo normativo das pressuposies da
argumentao que podem ser explicitadas na forma de regras. Alm
disso, necessrio distinguir esse princpio do que Habermas denomina
o princpio D, ou seja, a sentena bsica da tica do discurso: s podem
levantar pretenso de validade as normas capazes de encontrar a
aprovao dos indivduos enquanto participantes de um discurso prtico.
Essa sentena a representao de fundo de uma teoria moral, mas no
pertence lgica da argumentao. Reside precisamente aqui, segundo
ele, a dificuldade das tentativas at agora apresentadas para
fundamentar a tica do discurso: confundem-se regras de argumentao
com contedos de argumentao e com pressupostos de argumentao e tudo
isso, em ltima anlise, com "princpios morais" como sentenas bsicas
de uma tica filosfica.
Ora, o programa de fundamentao apresenta como caminho promissor
a fundamentao pragmtico-transcendental de uma regra de argumentao.
Como regra de argumentao, ela no decide a priori as regulaes de
contedo, e assim, em princpio, todos os contedos, mesmos os que
indicam normas fundamentais de ao, devem poder ser [29] postos em
dependncia de discursos reais. O terico da moral pode participar da
discusso, mas no simplesmente dirigir o discurso. Portanto, a
demonstrao pragmtico--transcendental da regra de argumentao dos
discursos no decide a priori o resultado dessa argumentao. O
princpio U funciona apenas como regra que elimina todas as
orientaes concretas da vida que no so contedos universalizveis, e
nesse sentido a tica do discurso contrape-se s afirmaes bsicas de
ticas materiais que se orientam na pergunta pela felicidade e
sempre distinguem ontologicamente um tipo determinado de vida tica.
Por essa razo, a tica do discurso diferencia com clareza o campo do
moralmente vlido dos contedos culturais valorativos. Portanto, a
tica do discurso no fornece orientaes de contedo, mas um
"procedimento", pleno de pressupostos, que deve garantir a
objetividade do juzo tico. Assim, o discurso prtico no um
procedimento para a gestao de normas legitimidas, mas antes para a
prova de validade de normas hipoteticamente apresentadas.
Esse carter de procedimento o que distingue a tica do discurso
de outras ticas cognitivistas, uriiversalistas e frmalistas.
Exatamente p princpio D traz & conscincia que o princpio U
apenas exprime o contedo normativo de um procedimento de formao
discursiva da vontade e no propriamente contedos normativos. A tica
do discurso probe a gestao, em nome da autoridade da filosofia, de
contedos morais vlidos para sempre. esse procedimento discursivo
que permite uma distino muito clara entre estruturas cognitivas e
os contedos de juzos morais. O formalismo da tica do discurso um
"formalismo de procedimento", que aponta para uma discusso real
sobre normas historicamente gestadas. Desaparece aqui, em princpio,
a contradio que Hegel apontava entre formalismo e historicidade no
nvel da esfera da normatividade. A grande questo sobre a natureza
da fundamentao, apreendida. A pragmtica transcendental, em radical
contraposio ao falibilismo da Escola de Popper, levanta a pretenso
de apresentar uma fundamentao ltima capaz de fornecer uma base
inabalvel a nosso conhecimento. Enquanto participantes de uma
argumentao, j sempre reconhecemos com necessidade as sentenas e as
regras que a ela pertencem. Para Habermas, a coisa no to simples
assim: a demonstrao atravs da contradio performativa s capaz de
identificar a regras sem as quais o jogo argumentativo no funciona.
O que se demonstra ento
[30] a falta de alternativa dessas regras, no as regras mesmas,
pois em princpio permanece aberta a possibilidade de os sujeitos
modificarem sua maneira de pensar o mundo. As afirmaes de Apel
significam para Habermas, de fato, um retomo filosofia da
conscincia, que ele j tinha superado com a mudana de paradigma da
filosofia da conscincia para a filosofia da linguagem. Ocorre em
sua tese uma identificao tpica da filosofia moderna da
conscincia:
a identificao entre a verdade da sentena e a vivncia da certeza.
Uma filosofia que leva a srio a mudana de paradigma sabe que
trabalha com hipteses, pois sua tarefa nada mais que a reconstruo
hipottica que apenas mais ou menos capaz de traduzir as intuies.
afirmao de que no h alternativa apenas suposio que deve ser testada
plos fatos. Sem dvida, o saber intuitivo no falvel, mas no podemos
dizer o mesmo do esforo reconstrutivo desse saber pr-terico. Numa
palavra, a certeza com que praticamos nosso saber de regras no se
transfere sem mais verdade das propostas de reconstruo empreendidas
pela filosofia.
A tentativa de Apel de responder a Habermas o obriga a
rearticular todo o sentido da reflexo pragmtico-transcen-dental.a1
Para ele, a possibilidade de fundamentao ltima
pragmtico-transcendental provm da percepo da "inevita-bilidade do
discurso argumentativo" e, com isso, de suas condies de
possibilidade tico-normativas. Quando levantamos seriamente uma
questo filosfica, no podemos mais considerar a argumentao e suas
condies necessrias um fato contingente. Isso significa que no
possvel imaginar que possamos arbitrariamente comear com a
argumentao ou interromp-la, ou, com Popper, que podemos decidir a
fav"r ou contra a argumentao, ou, mais ainda, imaginar a
possibilidade de pensar um tipo de razo completamente diferente, em
relao & qual teramos de relativizar nossa razo, ou poderamos
testar empiricamente a existncia ou a validade da argumentao. Tais
testes so inconciliveis com a ideia de que o poder argumentar
condio de possibilidade de todos esses experimentos pensados, acima
sugeridos. Onde se situa ento a diferena da forma atual da reflexo
transcendental e seu modo originrio em Descartes e
[Nota: 21. Cf. sobretudo: K.-O. Apel, "Kann der postkantische
Standpunkt der Moralitat noch elnmal ta substanelle Sittlichkeit
'autgehoben' werden?", op. cit. sobretudo pp. 110ss.]
[31] Kant? No pode estar no sentido de enfraquecer a
radicalidade da pergunta transcendental em funo de argumentos meio
empricos ou transcendentais, mas de forma atenuada. A diferena que
hoje temos conscincia de que ns mesmos, no distanciamento reflexivo
radical e questionamento de todos os pressupostos contingentes de
nossa existncia, no s devemos retroceder at a conscincia
transcendental, mas estamos orientados, com as pretenses apriricas
de verdade e de validade de sentido do pensamento, para os
pressupostos da linguagem e de uma comunidade, em princpio,
ilimitada de comunicao. essa dimenso nova da transcendentali-dade
que vai transformar profundamente o ponto de partida e a forma da
reflexo transcendental.
Ora, num primeiro momento, a impresso que essa reviravolta
implica, de fato, uma atenuao da reflexo transcendental, porque o a
priori da linguagem aponta para condies contingentes de realizao
convencional de significaes intersubjetivamente vlidas em
determinadas lnguas, e os a priori da comunidade, para a pertena a
comunidades histricas de tradio, lngua e cultura. Numa palavra,
para Apel, os pressupostos contingentes do ser-no-mundo
compreensivo s constituem parte da pr-estrutura do ser-no--mundo.
Na medida mesma em que o homem comea a refle-tir sobre o a priori
existencial da faticidade, ele se pe em relao com "pressupostos
no-contingentes", que so, em sentido pragmtico-transcendental,
condies inevitveis de possibilidade para o pensamento dos
pressupostos contingentes. Ignorar esses pressupostos o que
constitui para Apel o "esquecimento do Logos",22 que caracteriza
algumas dimenses do pensamento contemporneo. A diferena, ento, em
relao forma clssica da filosofia transcendental, mostra-se aqui no
fato de que, j no discurso terico, o "ponto mais alto" na deduo
transcendental das condies de validade no , como no pensamento
solipsista, a sntese transcendental da apercepo (Kant), mas a
sntese transcendental dos signos lingusticos. Esse ponto to
inevitvel quanto o prprio discurso argumentativo, e a partir daqui
se pode mostrar a inevitabilidade das regras tico-normativas do
jogo. Com isso desaparecem duas questes problemticas na filosofia
de Kant: o fato de razo e os resqucios da metafsica na teoria dos
dois reinos26.
[Notas: 22. K-O. Apel, op. cit. p. 114s.
23. Sem dvida, como multo acentuado, a tica comunicativa uma
tentativa de reconstruo da tica kantiana, porm com um][32] Que se
obtm com essa demonstrao? As normas de uma comunidade ideal de
comunicao enquanto regras de argumentao. Claro que no temos aqui
normas materiais, exigidas por uma moral situada concretamente na
histria, nem mesmo a legitimao moral das normas jurdicas. Mas essas
so obrigantes para a fundamentao de um princpio
formal-proceduristico da fundamentao de normas materiais. Com essas
regras, ganhamos, portanto, o principio tico relevante do
procedimento, que nos deve conduzir a uma soluo racional dos
conflitos em tomo de pretenses de validades normativas nos
contextos histricos especficos. Assim, as condies normativas de
possibilidade do discurso argumentativo no s contm a igualdade de
direitos de todos os parceiros da comunicao, mas tambm a obrigao de
responsabilidade para com a soluo dos problemas moralmente
relevantes que emergem no mundo vivido. Sendo assim, a tica do
discurso no pode ser interpretada como uma tica especial para os
discursos argumentativos, mas como uma tica da responsabilidade
solidria dos que podem argumentar sobre todos os problemas do mundo
vivido que sejam suscetveis de tratamento discursivo.2