A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO Michiko Okano – Unifesp RESUMO: Apresenta-se um estudo do conceito estético japonês kawaii, hoje conhecido internacionalmente pelos mangás, animês e games que circulam por diversos países. Ilustradores como Takehisa Yumeji e Nakahara Jun’ichi foram os primeiros a desenvolver tal estética no período moderno. Na contemporaneidade, ela foi transposta para as artes plásticas por artistas japoneses como Murakami Takashi, Nara Yoshitomo ou Takano Aya. Os ilustradores, no início do século XX, tinham mais liberdade no seu processo criativo que os artistas plásticos hoje e, influenciados pela cultura ocidental, passaram a produzir meninas delicadas e graciosas, com os olhos cada vez maiores. Os contemporâneos ficaram mais circunscritos à estética dessas ilustrações, que fazem parte da sua vivência juvenil, e representam-na diretamente. No Brasil, pode-se estabelecer um diálogo entre o kawaii e alguns artistas, como Rogério Degaki e outros que trabalham com grafite, como Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz. Esse intercâmbio é um dos objetos da discussão que será apresentada a seguir. Palavras-chaves: kawaii, artista moderno japonês, artista contemporâneo japonês, artista brasileiro. ABSTRACT: This study refers to the Japanese art of kawaii, internationally known as manga, anime and games that are popular in many countries throughout the world. The Illustrators Takehisa Yumeji and Nakahara Jun’ichi were the first ones to develop the kawaii style. Contemporary Japanese artists like Murakami Takashi, Nara Yoshitomo and Takano Aya treated this aesthetic style as fine art. Illustrators, at the beginning of 20th century, enjoyed more freedom in their creative process than contemporary artists and, influenced by Western tastes, developed the delicate and cute girls with eyes bigger and bigger. In the universe of manga, the contemporary artists work directly in the kawaii style in their anime and games, as it was an important part of their youth. In Brazil, we can establish a dialogue between kawaii and the story has been adopted and inherited by some artists, especially those who work with graffiti, such as Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz and Rogério Degaki. This exchange is one of the subjects of the discussion that will be presented bellow. 1
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO
Michiko Okano – Unifesp
RESUMO: Apresenta-se um estudo do conceito estético japonês kawaii,hoje conhecido internacionalmente pelos mangás, animês e games quecirculam por diversos países. Ilustradores como Takehisa Yumeji eNakahara Jun’ichi foram os primeiros a desenvolver tal estética noperíodo moderno. Na contemporaneidade, ela foi transposta para asartes plásticas por artistas japoneses como Murakami Takashi, NaraYoshitomo ou Takano Aya. Os ilustradores, no início do século XX,tinham mais liberdade no seu processo criativo que os artistasplásticos hoje e, influenciados pela cultura ocidental, passaram aproduzir meninas delicadas e graciosas, com os olhos cada vezmaiores. Os contemporâneos ficaram mais circunscritos à estéticadessas ilustrações, que fazem parte da sua vivência juvenil, erepresentam-na diretamente. No Brasil, pode-se estabelecer umdiálogo entre o kawaii e alguns artistas, como Rogério Degaki eoutros que trabalham com grafite, como Erica Mizutani, NinaPandolfo, Toz. Esse intercâmbio é um dos objetos da discussão queserá apresentada a seguir.
Palavras-chaves: kawaii, artista moderno japonês, artista contemporâneo japonês, artista brasileiro.
ABSTRACT: This study refers to the Japanese art of kawaii,internationally known as manga, anime and games that are popular inmany countries throughout the world. The Illustrators Takehisa Yumejiand Nakahara Jun’ichi were the first ones to develop the kawaii style.Contemporary Japanese artists like Murakami Takashi, Nara Yoshitomoand Takano Aya treated this aesthetic style as fine art.Illustrators, at the beginning of 20th century, enjoyed more freedomin their creative process than contemporary artists and, influencedby Western tastes, developed the delicate and cute girls with eyesbigger and bigger. In the universe of manga, the contemporaryartists work directly in the kawaii style in their anime and games, asit was an important part of their youth. In Brazil, we can establisha dialogue between kawaii and the story has been adopted and inheritedby some artists, especially those who work with graffiti, such asErica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz and Rogério Degaki. This exchangeis one of the subjects of the discussion that will be presentedbellow.
1
Key words: kawaii, Japanese modern artist, Japanese contemporaryartist, Brazilian artist
A palavra kawaii, proveniente do universo da cultura pop
japonesa (mangá, animê, cosplay e game) é hoje conhecida por
muitos brasileiros, principalmente pelos jovens. Kawaii faz
referência às coisas fofas e bonitinhas, como Hello Kitty,
Pokémon e meninas de olhos geralmente grandes, com gestos e
ações infantis, entre outros elementos. Tal estética é hoje um
símbolo nacional e está sendo adotada como estratégia cultural
pelo governo japonês, que pretende divulgá-la em âmbito global.
Algumas brasileiras aderem a essa tendência, seguindo a
Moda Lolita, originária do Japão do final da década de 1970 para
o início de 1980. Trata-se da evocação da beleza de meninas
vestidas como bonequinhas, cujas roupas têm babados, fitas e
estampas de doces, animais, flores e frutas. As cores variam de
acordo com o sub-estilo adotado: sweet, gothic, classical, princess, punk,
natural ou walori (à moda japonesa). Temos uma Embaixadora Kawaii do
Brasil, título concedido, em 2013, à Lolita brasileira Akemi
Matsuda, pela Japan Lolita Association.
A investigação da origem da palavra kawaii, mostra que ela
não surgiu nestas últimas décadas no Japão, mas tem raízes
mais profundas. Apesar da sua procedência ser japonesa e de
ter o seu desenvolvimento dentro do território nipônico, tal
estética tornou-se, a partir da Era Moderna japonesa, um
produto híbrido de circulação e de conexão entre ideias e
conceitos estéticos do Oriente e do Ocidente.
2
Essa hibridização pode corroborar a aceitação dessa
estética no Ocidente, como aconteceu com a famosa xilogravura A
Grande Onda de Kanagawa, de Katsushika Hokusai, a qual
incorporou a técnica ocidental de pintura (luz e sombra,
perspectiva linear), o que permitiu uma identificação maior
dos estrangeiros com a obra.
Uma vez que essa estética híbrida circula para os outros
países, e sabendo que os signos se modificam de acordo com as
novas relações estabelecidas com o contexto, procura-se
estudar, neste texto, ainda que em estágio incipiente, algumas
similaridades e diferenças encontradas nas representações
visuais do kawaii no território brasileiro.
Origem do kawaii
O termo kawaii é antigo, originário da palavra kawayushi ou
kawowayushi, cujo registro pode ser encontrado na literatura
Konjaku monogatari (Narrativas do presente e do passado) do
século XII, final da era Heian. Contudo, Kawayushi tinha outra
semântica, diferente da que conhecemos hoje: significava ter
pena, ter vontade de fechar os olhos por estar diante de uma
situação dolorosa1. A palavra kawayushi foi substituída, após a
Segunda Guerra Mundial, por kawayui, que mais tarde se
transformou em kawaii, como a conhecemos atualmente. O vocábulo
que era utilizado com o significado atual do kawaii era utsukushii
(utsukushiki). A literatura clássica japonesa da era Heian
(794-1185), Makura no Sôshi (Livro de Cabeceira ou Livro do Travesseiro), de
Sei Shônagon, ilustra esse uso de “utuskushiki”:
3
Utsukushiki mono – Coisas que são graciosas
Coisas que são graciosas. Rosto de criança desenhado emum melão. Pardalzinho que vem saltitando, ao imitarmosguinchos de rato. É muito graciosa a criança de dois,três anos, que engatinha rapidamente e, com vivacidade,descobre um pequeno cisco no chão, pega-o com seus dedosmuito encantadores e mostra-o a cada um dos adultos. Égraciosa também a menina de cabelo cortado rente aosombros como o das monjas, que, para ver alguma coisa,inclina o rosto ao invés de afastá-lo quando este lhecobre os olhos. (SHÔNAGON, 2013, p. 7)
Como vemos, utsukushiki é utilizado com a semântica de coisas
graciosas que se relacionam ao tamanho reduzido, como pássaros
e crianças, referindo-se aos seus gestos e às suas aparências.
Essas características de ser “pequeno” e “infantil” são
apontadas na descrição do conceito de kawaii dos pesquisadores
japoneses estudados (Ôtsuka, Miyadai, Yomota).
Segundo Cordaro e Wakisaka, emanam do livro de Sei
Shônagon, que descreve o cotidiano da vida da corte do século
XI, “a ética e a estética que doravante se tornarão basilares da
cultura japonesa, naturalmente filtradas por uma autora que
possuía um olhar, digamos assim, múltiplo e multifocal”
(SHÔNAGON, 2013), o que demonstra que o utsukushii, isto é, o
atual kawaii é um elemento estético fundamental da cultura
japonesa existente desde a era Heian.
O kawaii tem, portanto, raízes profundas na sociedade
japonesa, o que nos permite classificá-lo em três fases: a
primeira, é a tradicional, sobre a qual acabamos de discorrer;
a segunda é o seu desenvolvimento no período moderno, quando a
sociedade japonesa, da era Meiji (1868-1912) até início da
era Taishô (1912-1926), recebe intensa influência ocidental; e
4
a terceira é o kawaii contemporâneo, que nasce na década de
1970.
Kawaii moderno e suas representações
Contrastando com a era Edo (1603-1868), quando o Japão
fechou os seus portos para as nações estrangeiras, com exceção
da Holanda e da China, a era Meiji é marcada pela abertura do
país ao Ocidente, com a gradual absorção da cultura e da
estética ocidentais.
Foi nesse contexto de intenso acesso à cultura externa que
ocorreu a segunda fase do kawaii, na qual ele foi representado
pelas ilustrações de artistas como Takehisa Yumeji (1884-
1983) e Mizumori Ado2. Essa representação foi divulgada,
sobretudo, pelas revistas femininas.
A categoria kawaii é analisada pelo sociólogo japonês
Miyadai Shinji (2007, p. 120-122) por meio de três variáveis:
o ergonômico, o romântico e o gracioso. A primeira faz
referência à leveza, maciez e brancura resultantes da busca de
algo ergonômica e sensitivamente carinhoso, representado, por
exemplo, pelos bichos de pelúcia. A segunda tem relação com a
romantização de si e do que está ao redor por meio de uma
visão subjetiva, como o desejo de construir “um universo
envolvido pelo amor”. O último aspecto, o gracioso, faz parte
do que é infantil, inocente, puro, alegre e dinâmico.
5
O romântico pode ser correlacionado com o conceito de
kawaii elaborado pelo pesquisador japonês Yomoi Inuhiko (2006),
que define essa estética como algo que tem um sentimento de
nostalgia, frágil e efêmero, ao passo que a questão do
“gracioso” corresponde, na visão do mesmo autor, a algo
vulnerável que provoca um desejo de proteção ou remete à
utopia construída pela inocência e a imaturidade.
Ao cruzar esses conceitos desenvolvidos por Miyadai e
Yomota, podemos sinalizar que Takeshita Yumeji e Nakahara
Jun’ichi trabalham, principalmente, com a variável do
romântico – as figuras por eles retratadas são frágeis e
possuem ar de nostalgia – e que Matsumoto Katsuji e Mizumori
Ado elegem o gracioso como representação das suas imagens – na
maioria shôjo, isto é, meninas com ar infantil, imaturas,
fofinhas e bonitinhas. Matsumoto adota o gracioso infantil,
diferentemente de Mizumori, que vai além e introduz o erótico
gracioso nos seus desenhos.
Takehisa Yumeji foi um dos pioneiros a criar a estética
kawaii moderna. Ele recebeu influências ocidentais como art
nouveau, que foram trazidas, no início do século XX, por
artistas recém-chegados da Europa como Kuroda Seiki e o
renomado escritor Natsume Sôseki. “As mulheres bonitas estilo
Yumeji”, são típicas das obras de Takehisa, e ainda guardava
alguns vestígios da estética das “mulheres bonitas” de ukiyo-e,
com seus corpos e rostos alongados, vestidas de kimono, com
delicada sinuosidade própria das mulheres japonesas da era
anterior, mas com a grande diferença de que, para ele, a sua
6
obra não existiria sem o desenho de observação (ISHIKAWA,
2010, p. 13), que é um método ocidental de elaborar a pintura.
Os rostos brancos das mulheres contêm uma maior
expressividade, com olhos e bocas mais pronunciados e os
braços, também esbranquiçados, são longos. Os traços são mais
soltos e há a ênfase do desenho do rosto em perfil, raro nas
épocas precedentes, e mostra a lateralidade do pescoço, que
transmite uma delicada sensualidade.
É importante observar que Yumeji não teve uma educação
artística acadêmica e, provavelmente por esse motivo, sentiu-
se mais livre para receber a influência ocidental. No entanto,
nota-se também a aprendizagem da pintura tradicional nihonga3
por intermédio de sua mulher, Kishi Tamaki, viúva de um
artista desse estilo, que se tornou seu modelo enquanto durou
o relacionamento. Vê-se, desse modo, um amálgama entre os
elementos ocidentais e japoneses representado nas suas
criações.
Fig.1 Obras de Takehisa Yumeji (lado esquerdo), Nakahara Jun’ichi (centrosuperior), Matsumoto Katsuji (lado direito superior) e Mizumoro Ado (lado
esquerdo inferior).4
7
O início da carreira de Takehisa data de 1908, no caso de
Nakahara Jun’ichi, isso ocorreu mais tarde, em 1932, por meio
das ilustrações da capa da revista feminina Shôjo no tomo (Amiga
da mocinha).
As meninas de Nakahara são melancólicas, poéticas,
imbuídas de uma elegância e refinamento citadinos (Fig.1). Os
olhos grandes são reforçados por cílios pronunciados, ora em
representações de garotas japonesas, ora ocidentais, modelo
que se tornou fonte de inspiração dos mangás atuais. As pupilas
estão quase sempre direcionadas para cima, conferindo um ar
sonhador às figuras, cuja composição da delicadeza se completa
com queixos pontiagudos, sobrancelhas finas e levemente
arqueadas, bocas pequenas em biquinhos e faces rosadas.
Foi também Nakahara quem introduziu a moda de roupas
ocidentais por meio de ilustrações, ensinando também como uma
moça deveria comportar-se em algumas ocasiões específicas,
ensinando modos de andar, de sentar-se na cadeira, no tatame,
de descer as escadas, etc. A sua afinidade com o Ocidente pode
também ser notada na descrição que o artista faz da
arquitetura de interiores europeus, cujo detalhamento só pode
ser explicado pelo fato de ele ter convivido, desde a sua
infância, com um jesuíta europeu, pois seu pai era cristão.
A figura de shôjo (menina) evidenciada por Nakahara
corresponde a uma fase intermediária em que a mulher não é nem
criança, nem adulta:
Modo de se sentar: a forma correta de se sentar é juntara parte superior dos joelhos e deixar ambas as pernas
8
encostadas. Pode ser frontal, mas é uma pose bonita edelicada inclinar um pouco as pernas, mantendo-ascoladas uma à outra. (UCHIDA, 2013, p. 82)5
Para as shôjo japonesas, as cores kawaii são as que maiscombinam. (UCHIDA, 2013, p. 83)6
Essa valorização da fase shôjo é explicada pelo pesquisador
e crítico social Ôtsuka Eiji (1997), no seu livro Shôjo
minzokugaku (Etnologia da shôjo). O autor afirma que shôjo é um produto
inventado pela sociedade moderna, porque, antes disso, havia
apenas as meninas sexualmente imaturas que passavam, a partir
do momento da menstruação, a ser mulheres maduras prontas para
assumirem o papel de reprodutoras e de força de trabalho. Essa
obra esclarece, ainda, que essa fase intermediária, em que as
meninas deveriam ser conservadas e “sem uso”, como um objeto
de troca futura, foi criada pela sociedade de consumo. Para
tanto, a educação da era Meiji trazia, como ideal da sociedade
moderna, a formação de uma “boa esposa e mãe inteligente”
(ryôsai kembo 良良良良).
Dessa perspectiva, shôjo, cujo comportamento era criado
pelas normas publicadas na revista feminina, configurou-se
como uma jovem que, apesar de ter corpo de adulta, e,
portanto, ser capaz de procriar, era colocada fora da linha de
produção, em compasso de espera.
No entanto, esses sonhos interromperam-se com a entrada do
Japão na Segunda Guerra Mundial, quando as meninas tiveram de
repetir “não desejaremos nada, até a vitória” (Hoshigarimasen,
katsumade wa 良良良良良良良 良良良良良、 ). Introduz-se, então, outro tempo de espera
para as shôjo, desta vez por razões diferentes.
9
Na época pós-guerra, Matsumoto Katsuji e Mizumoto Ado
foram os formadores das figuras femininas representativas da
estética em estudo.
Matsumoto ficou conhecido, sobretudo, pela criação da
personagem de mangá intitulado Kurumi-tchan (Fig.1), que apesar
de ter estreado em 1938, teve a sua continuidade pós-guerra,
de 1949 até 1954. Trata-se de uma menina com idade inferior às
outras kawaii, mais infantil, cuja alegria, simpatia, energia e
amorosidade conquistavam as fãs. Apresenta uma cabeça enorme
em relação ao corpo e um rosto mais largo, proporções do corpo
de uma criança, uma boca grande, olhos redondos e um laço
grande em volta dos cabelos.
Mizumori Ado é uma artista múltipla – cantora, atriz,
ilustradora – e destaca-se por introduzir o kawaii erótico, o
que era tabu até então. Em suas obras, as shôjo vêem-se
representadas na proporção de menina, com uma cabeça que ocupa
um terço do comprimento do corpo, mas com sapatos de salto
alto e nádegas arrebitadas. Podem ser retratadas dando um
beijo, sempre de modo gracioso. (Fig.1) O desenho torna-se
mais caricatural, os olhos mais simplificados, as bocas ora
rasgando o rosto, ora em biquinhos. Em uma de suas obras,
temos a aparição conjunta da menina com um menino.
De acordo com Miyadai (2007), a subcultura japonesa pode
ser subdividida em quatro períodos: o primeiro começou no
final da era Meiji, chegando ao início da era Taishô, até
1950, e corresponde, no nosso caso, à fase de Takehisa Yumeji
e Nakahara Jun’ichi. Nessa época, as meninas deveriam ser
10
“inocentes, corretas e alegres“ ( 良良 良良良良、 、 良 良 良 ), traços que
correspondem ao momento em que se buscava um padrão perfeito,
idealizado, e, portanto, inexistente. Segundo o mesmo autor,
estabeleceu-se, assim, o modelo da “experiência substitutiva”,
no qual o leitor, ao apreciar as obras, se colocava no lugar
do personagem.
O segundo período, que compreendeu de 1950 até 1970, era o
tempo em que não se procurava mais o restabelecimento da
ordem, mas um coletivo de jovens que se revoltavam contra os
adultos. Originou-se, assim, um “modelo relacionável”, por
meio do qual os jovens podiam sentir-se unidos e as relações
construídas eram extremamente próximas à vida real. As
personagens, portanto, teriam de ser facilmente reconhecíveis
como pessoas reais existentes ao seu redor. Se, na primeira
fase, a relação entre a mãe e a filha era enfatizada, nesta
segunda, é o coletivo de jovens que convivem nas escolas que
se destaca.
A grande diferença entre a expressão do kawaii nesses dois
períodos é o fato de o corpo de shôjo tornar-se sexualizado como
denotam os personagens kawaii eróticos de Mizumori.
Kawaii contemporâneo e suas representações
Seguindo a divisão da subcultura japonesa realizada por
Miyadai, o terceiro período (de 1973 até os dias atuais)
corresponde à dissolução de um código comum marcado pela
dualidade adulto/jovem e surge a busca exclusiva do “eu”, da
“minha felicidade” ou do “meu amor”. Adota-se o “modelo
11
identificável”: as leitoras identificam-se com as personagens
de mangás e animês, que são similares a elas, incompreendidas
pela sociedade. Na quarta fase (de 1983 até os dias atuais),
que convive com a terceira, tem-se uma complexidade do “modelo
relacional”, no qual surge o fenômeno otaku9, em que a
sexualidade é introduzida e o mundo apocalíptico é
frequentemente representado.
Talvez possamos entender essa busca do “eu” da terceira
fase concebida por Miyadai, na formação de tribos urbanas como
Lolitas, cosplays, gyarus: essas identificações têm ocorrido muito
mais em grupo de afinidades, muitas vezes extremas. Nesses
grupos, as meninas encontrariam uma compreensão mútua nas
pessoas a eles pertencentes. Uma vez que se trata de um
coletivo que parte da busca individual, é distinto daquele da
segunda fase, que almejava o ideal de um grupo.
É justamente neste terceiro período, no início da década
de 1970, que há a emergência do termo kawaii contemporâneo que,
vinculado à sociedade de consumo, cria fancy goods (produtos da
fantasia) inspirados em mangás e animês. Tais artefatos
serviriam para construir um ambiente de fantasia, geralmente
nos quartos das meninas, para que elas, com corpos de mulher,
mas sem possuir tal função social, possam viver enclausuradas
até chegar o momento de se tornarem adultas, conforme Ôtsuka,
ou na busca do “eu”, do “meu amor” e da “minha felicidade”
segundo Miyadai.
Houve até mesmo o surgimento de caracteres redondos com ar
infantil escritos na horizontal, criados pelas jovens que
12
escreviam poemas para si mesmas, os quais eram trocados entre
elas.
As revistas femininas representativas dessa estética na
década de 1970 eram an-an e non-non. Em maio de 1975, um artigo
da revista an-an introduzia o novo conceito de kawaii:
Brinque! Kawaii! Procure um tema jovem! A gente quersentir, mas as roupas parecem ser de mulheres velhas! Éa hora de expressar quem você realmente é. Seja o quefor, coordenar um tema muito jovem é ser kawaii. Tenteusar coisas como uma combinação francesa e, paraacessório, uma pulseira pequena e graciosa. Mas veja! Vcvai parecer mais kawaii se você não usar materiaisexclusivos de alta qualidade. Um plástico com aparênciagraciosa e madeira compensada parecerá mais jovem.(KINSELLA, 1995, p. 229)
Da mesma forma que a revista Shôjo no tomo ditava as normas
para ser kawaii nas eras Meiji e Taishô, as revistas femininas
continuaram, na década de 1970, a informar o que deveria ser
feito para se ter uma aparência kawaii. No entanto, o enfoque
não é mais no modo pelo qual as meninas deveriam se comportar,
mas, sobretudo, no consumo das roupas e dos acessórios como um
meio para alcançar a felicidade.
A relação direta entre a estética e o consumo é detectada
pela socióloga pesquisadora da subcultura japonesa, Sharon
Kinsella: “kawaii pareceu ser acessível exclusivamente pelo
consumo”, fato este que tem suas origens em dois fatores: o
aumento de renda das jovens na década de 1980 e a
inventividade da indústria japonesa em fornecer produtos de
valores razoáveis para fazer parte da cultura kawaii (KINSELLA,
1995, p. 245). Acrescenta a antropóloga americana
especializada em sociedade contemporânea japonesa, Anne
13
Allison (2004, p. 41).: “Kawaii não se tornou apenas uma
mercadoria, mas também equivalente ao próprio consumo”.
Kinsella ainda esclarece a função do kawaii na sociedade de
consumo: “o que o processo capitalista despersonaliza, um bom
design kawaii repersonaliza” (KINSELLA, 1995, p. 228). A difusão
do kawaii pode ser mais bem visualizada em diversas áreas da
sociedade japonesa, como em companhias e bancos de renome como
Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo, Sanwa, etc., e até em lojas de
pachinko (jogos eletrônicos) que são, geralmente, administradas
pela máfia japonesa yakuza.
Dentsu, uma das maiores companhias publicitárias
japonesas, explica o motivo pelo qual os símbolos kawaii são
apropriados para expressar a identidade pessoal, corporativa,
grupal ou nacional: é porque “une a sociedade pela raiz”.
(DENTSU, apud ALLISON, 2004, p. 40). Verifica-se, assim, a
importância dessa cultura no seio da sociedade japonesa.
A infantilização dos adultos é outro tema que pode
justificar essa preferência japonesa. Para Kinsella, a fase
adulta para os japoneses não é vista como propiciadora de
liberdade e independência, mas como repleta de
responsabilidades para com a sociedade e a família, como
sinônimo de obrigação, restrição e falta de tempo livre.
Conforme a autora, as manifestações japonesas e ocidentais se
diferem:
A moda kawaii foi uma espécie de rebelião ou rejeição dacooperação com o valor social estabelecido e arealidade. Foi mais uma modesta, uma pequena rebelião doque uma manifestação consciente, agressiva e sexualmente
14
provocativa, típica da cultura jovem ocidental.(KINSELLA, 1995, p. 243)
Esse desejo de permanecer na adolescência pode ser também
correlacionado com o que o historiador Igarashi Yoshikuni
(2011, p. 81) chama de “narrativa fundadora do pós-guerra
japonês”, associada à derrota japonesa na Segunda Guerra
Mundial, episódio que foi o deflagrador da “conversão do Japão
de um Estado militarista para um Estado pacífico”. Essa
narrativa faz do Japão um personagem que se coloca em posição
de submissão e consequente infantilização perante os Estados
Unidos. A correlação entre a história japonesa e o modo de ser
kawaii da fase contemporânea teria assim, uma ligação direta,
refletindo naquilo que alguns consideram como a base da
cultura japonesa atual.
Tal estética representativa da infantilização é objeto da
obra de alguns artistas como Murakami Takashi (1962-) Takano
Aya (1976-) e Nara Yoshitomo (1959-). Em seus trabalhos pode-
se perceber a complexidade sinalizada por Miyadai no quarto
período kawaii, em que esse estilo se manifesta ambíguo e
híbrido, como no kawaii sexual que, diferentemente daquele
erótico, fundamentalmente gracioso, é a mistura de menina e de
adulta, na sua qualidade de ser sexual.
Visível em obras como Hiropon de Murakami, a menina parece
personagem de animê, com um corpo alongado, pernas compridas e
um busto avantajado no qual o biquíni mal consegue esconder os
seios. Hiropon, com olhos enormes de personagem de mangá e
cabelos volumosos, ora azuis, ora cor de rosa, derrama leite
15
pelos seios, que se transforma em uma corda para pular: é a
representação do kawaii sexual.
É precisamente a cultura otaku7 que motiva Murakami na
produção de suas obras:
(...) a cultura otaku é o fato mais importante no Japãopós-guerra, entendendo por otaku algo similar à pop art,mas algo particularmente japonês e específico, possívelde ser criado numa situação econômica pobre, combinado àsexualidade. (...) uma sexualidade que os otakus possueminternamente e tentam expressar em mangá ou animê(Entrevista de Murakami Takashi, no Japanorama). 8
Mestre e doutor em nihonga5, Murakami é um artista que
traduz elementos da arte tradicional japonesa, quer seja da
escola Rinpa, do ukiyo-e ou da Kanô, de modo contemporâneo,
misturando-os com elementos da arte pop japonesa, sobretudo do
animê e do figure. Ele afirma que o mangá foi importante por
constituir um modo de “entretenimento razoável numa situação
economicamente difícil”12, e, portanto, acessível a todos.
Cunhou o termo Superflat, que faz referência à bi-
dimensionalidade da arte japonesa, bem como à planificação
rasa da sociedade de consumo nipônica.
Takano Aya é discípula de Murakami, pertencente à
companhia Kaikai Kiki, a qual dirige. Takano é uma artista
tímida, sorridente, graciosa e cria meninas com olhos enormes
que, muitas vezes, se assemelham a buracos no rosto que
parecem não olhar a lugar nenhum. Algumas delas mostram o
corpo apenas com calcinha ou nu e outras, em relação sexual.
Seus corpos são retos e sem seios, de pré-adolescentes. Elas
voam, convivem com animais, localizam-se na cidade ou num
mundo fantástico e num tempo futuro.16
A estética kawaii presente nas obras de Takano é, portanto,
fundamentada numa ambivalência em que coexistem a graciosidade
do corpo de menina e atitudes adultas, estranhas e obscenas,
como fazer malabarismos nuas no céu ou passearem nuas com os
cachorros pela cidade. O romantismo que a sua obra emana
confronta-se com a apresentação crua dos corpos assexuados das
garotas.
A mesma ambivalência pode ser encontrada nas obras de Nara
Yoshitomo, que reside, desde 1988, na Alemanha. Sua expressão
do kawaii retrata menininhas que possuem um corpo cujas
proporções infantis divergem da forte e adulta expressão do
seu rosto. Os seus olhos são grandes, em algumas pinturas
sobem diagonalmente, como se elas estivessem bravas ou
revoltadas e, em outras, apresentam certo ar de mistério ou
pavor. O artista declara que a sua obra vem da memória da
infância e é espelho da sua pessoa: a revolta, a solidão são
representações dele mesmo e que, se existe uma mensagem, ela é
direcionada a ele próprio.9
O kawaii é representado nesses artistas contemporâneos
japoneses de modo ambivalente, misturado a elementos
conflitantes como sexo, pavor, ira e revolta, que transpõem a
graciosidade da era moderna para chegar a uma estética
híbrida. No caso de Nara, é a infantilidade que se associa à
ira e, em Takano e Murakami, a graça e a sexualidade, com a
diferença de que a primeira adota o corpo de uma menina pré-
adolescente e o segundo, o de uma mulher adulta.
17
A circulação do kawaii contemporâneo
Se o Japão foi conhecido mundialmente, desde a década de
1970 até 1990, pelo seu processo econômico na produção de
eletrônicos de alta qualidade, como Sony e Toyota, com o
subsequente estouro da bolha econômica e da recessão, o
crescimento da indústria de jogos eletrônicos foi uma das
poucas histórias de sucesso após 1990 e a estética Kawaii faz
parte dessa manufatura que hoje atinge vários países do mundo.
Trata-se do fenômeno que um jornalista americano denominou
GNC (Gross National Cool), léxico do “cool”, “Japanese cool”, que se
tornou “(...) rapidamente referência de como os produtos de
diversão japoneses são vendidos com sucesso, fora do país”
(ALLISON, 2007, p. 1), revelando-se também uma estratégia
política do governo japonês para disseminar a sua cultura no
exterior.
Com essa mesma orientação política, Aoki Misato, Fujioka
Shizuka e Kimura Yu foram nomeadas Embaixadoras Kawaii entre
fevereiro 2009 e março de 2010 pelo Ministério de Relações
Exteriores do Japão e visitaram também o Brasil. Quatro anos
depois, a brasileira Akemi Matsuda seria nomeada Embaixadora
Kawaii do Brasil.
Da mesma forma que se estabelece um diálogo entre as
Lolitas japonesas e as brasileiras, alguns artistas
brasileiros conversam com os artistas contemporâneos japoneses
no uso da estética kawaii nas suas obras.
18
Foram pesquisadas as obras de quatro artistas: os
descendentes nipo-brasileiros Érica Mizutani e Rogério Degaki,
e os não descendentes Nina Pandolfo e Toz. Não à toa, os três,
exceto Degaki, têm a arte do grafite como elemento comum nas
suas obras, provando que o espaço dominante é a área da
subcultura.
Erica trabalha com ilustração em aquarela e ponta seca,
tela, parede e design de produtos como bolsas e agendas. As
meninas do universo de pintura da Erica possuem, geralmente,
uma veste ora preta cheia de pelos animalescos, ora de flores
e folhas, em tons aquarelados e suaves, que as envolvem da
cabeça até o joelho e escondem as linhas do seu corpo.
É comum elas calçarem botas pretas e meias listradas
branco e preto. Os rostos são brancos com olhos redondos e
bochechas marcadas por uma bola vermelha e a boca pequena,
quase um traço. Os cenários em que as meninas se situam são,
muitas vezes, fantásticos, repletos de árvores, flores
estilizadas, cogumelos voadores, nuvens, lua povoada de
minhocas, em contextos e atitudes inusitados e graciosos, como
uma menina que puxa a corrente da chuva que se prende a uma
nuvem (Rain Yourself) ou que segura uma vara que prende o regador
que rega a si mesma (Love Yourself) (Fig. 2) etc.
Existem sonho e romance revelados nas suas obras e as
graciosas meninas são capazes de fazer chover, de molhar a
Terra ou a Lua, de voar e de balançarem-se no cosmos. Em uma
entrevista realizada em março de 2014, as palavras-chaves que
ela mesma adota para exprimir suas obras são: “aconchego, pink,
19
cócegas, proteção e choro”, que perfazem um diálogo
interessante com as peculiaridades do kawaii, como a procura da
proteção e aconchego, chorar e cócegas que são qualidades
infantis, e a feminilidade representada pela cor pink.
Fig. 2 Obra Love Yourself de Erica Mizutani. Imagem fornecida pela artista.Fig.3 Obra Fugir e fingir de Nina Pandolfo. Imagem fornecida pela artista.
Erica define a sua própria obra como um “cheirinho da
infância” e ressalva que a sua obra “é kawaii para quem quer
carinho”, mas não pode ser resumida apenas a isso, e que
existem “muitas outras mensagens para quem a observa com maior
concentração”. Em seus trabalhos, portanto, o kawaii não se
restringe ao gracioso da era moderna, mas está no âmbito do
complexo e contemporâneo, que reserva outras semânticas.
20
A brasileira Nina Pandolfo trabalha com tinta acrílica
sobre tela, tecido, parede, instalação e bonecas. As meninas
da Nina são graciosas, rostos geralmente largos como os das
crianças, olhos enormes, cílios pronunciados e revelam seus
sonhos e seus medos. As suas pinturas são extremamente
coloridas. (Fig.3)
Nina declara que seu trabalho é “como um alegre
ecossistema de fantasias no qual a inocência ou a memória de
felicidade inata que sentíamos como crianças não fossem
corrompidos.” Ela descreve as suas obras como “um trabalho
onde o lúdico e a realidade se intercalam, trazendo um pouco
de nostalgia misturada com sentimentos de amor, paz, alegria”
e as palavras-chaves escolhidas por ela para suas obras são:
onírica, cores, olhar, sensual, ingênuo e feminilidade.
(entrevista dada em março de 2014).
Assim, ela procura a inocência inata das crianças, a
memória infantil, a nostalgia, num espaço entre o fantástico e
o real, o que faz que as suas meninas sejam kawaii. A qualidade
concomitante do sensual e do ingênuo traz uma ambiguidade que
muito dialoga com as obras de Takano.
A artista começou pintando nas ruas, porque era o que
gostava de fazer. Sobre a sua escolha temática, conta que é
“provavelmente porque as meninas estão sempre correndo para
crescer, para se tornarem mulheres. Apesar de pintar as
meninas, as suas emoções nos seus olhos, suas expressões
refletem desejo de crescer.” (Mid Day Mumbai, November 13,
2008). Se as meninas kawaii japonesas espelham, como vimos, a
21
vontade de parar de crescer, as de Nina, ao contrário,
retratam a aspiração de se tornarem adultas, o que demonstra
as diferenças sociais e culturais inerentes aos dois países.
Tomaz Viana, o Toz, brasileiro, artista plástico e
grafiteiro, relata que seu trabalho é autobiográfico e trata
de situações e possibilidades inerentes ao seu cotidiano. As
palavras-chaves escolhidas para refletir sua obra são: amor,
alegria, renovação, sugestão e energia (entrevista concedida
em março de 2014).
Uma das suas personagens, Nina, uma mocinha linda e
flutuante que, frequentemente, ganha uma cauda de sereia, tem
geralmente um rosto largo, olhos afastados, representados por
linhas localizadas nas extremidades do rosto, traços quase
idênticos às sobrancelhas, a bochecha em círculos rosados
abaixo dos olhos, uma boca vermelha e pequena, em bico, e um
nariz que é apenas uma linha horizontal acima da boca. Os
cabelos são compridos e divididos ao meio na nuca.(Fig.4)
Ele afirma fazer “uma versão brasileira de mangá” e que
“sua obra é kawaii pelas formas e técnicas utilizadas”, contudo,
diferem das japonesas por usar “mais cores, talvez por ser
brasileiro” (entrevista dada em março de 2014). O uso de
múltiplas cores bem como de tonalidades fortes parecem ser um
dos diferenciais dos brasileiros, principalmente em Toz, Nina
e Rogério.
Erica é mestiça e conviveu com a cultura japonesa desde a
sua infância, assim os estilos orientais aparecem, para ela,
22
de forma natural, ao passo que Toz, apesar de ser baiano,
cresceu vendo “seriados japoneses de super-robôs e ficou
encantado ao ver desenhos animados e produtos orientais”.
Dessa maneira, é possível ver a influência japonesa em ambos
os artistas, embora, em cada um, ela seja distinta.
Entretanto, para Nina, que curiosamente tem, dentre os
artistas brasileiros mencionados, um desenho mais parecido com
os personagens de mangá japonês, diz não ter nenhuma ligação
direta com a cultura japonesa e esclarece que os olhos grandes
surgiram em sua arte como uma expressão da auto-representação,
o que corrobora o fato de que na multiplicidade das
representações artísticas não é possível estabelecer uma
relação automática entre o kawaii, os olhos grandes e a
influência japonesa.
A similaridade entre os três artistas pode ser verificada
no grafite, que conta com a característica da efemeridade,
muito presente na cultura japonesa, além de fazer parte da
subcultura e arte urbana. No entanto, é pelo mangá e pelo animê
que eles recebem influências, embora em níveis distintos:
Nina, apesar de mais distante da cultura japonesa, diz ter
recebido influência de Hayao Miyazaki (Time Out Mumbai, November
1-27 2008, vol. 5 issue 6: 52).
Rogério Degaki (1974-2013) foi um artista nipo-brasileiro
que introduziu na sua obra uma mistura de elementos de mangá,
animê, obras de Jeff Koons e Takashi Murakami. As suas obras
escultóricas, feitas de resina plástica, fibras de vidro e
polietileno expandido e pintadas com tinta automotiva cromada,
23
possuem a estética kawaii não só pela temática – geralmente de
animais, figuras, doces e objetos – mas também pelo seu
colorido alegre e brilhante (Fig.5).
Fig.4 Obra Mãe de Toz no muro da Gávea. Fig.5 Obra Art Nouveau, 2013 de Rogério Degaki.Fotografia fornecida pelo artista. Extraído do site http://www.rogeriodegaki.com.
As suas pinturas, cujos personagens, que não são meninas
como nos casos anteriores analisados, vêm do universo lúdico e
infantil da cultura pop e de estampas de roupas de crianças,
imitam o bordado ponto cruz. Ultimamente, Rogério vinha
desenvolvendo a série mockup, na qual reproduzia alimentos do
cotidiano em uma dimensão agigantada. As suas obras são
ambivalentes: a pintura apresenta uma aparente visualidade do
bordado e o suposto tema infantil traz problemas
desconcertantes relacionados a corpo, sexualidade, melancolia
24
e morte, trazendo à tona uma ambivalência semelhante à vista
nos trabalhos dos outros artistas.
Na obra Felix II, Rogério dialoga com as flores
sorridentes de Murakami Takashi, difundidas mundialmente pelas
bolsas Louis Vuitton. Essas flores foram transformadas em
doces e expostas no chão, como as balas de Felix Gonzalez
Torres, mas são não consumíveis e agigantadas. É uma obra que
carrega em si a reflexão a respeito da imagem que muda de
material, dimensão e cor.
Considerações finais
O capitalismo atual é marcado pela transição do enfoque
dos produtos materiais para a imaterialidade da informação,
comunicação e afeto, segundo o teórico literário e filósofo
político estadunidense Michael Hardt (1999). O trabalho
imaterial tem duas formas principais: aquele intelectual e
computacional, o qual envolve ideias, códigos e símbolos, e
outro que trata do trabalho afetivo que engaja sensações como
bem-estar, excitação e tranquilidade. Os produtos J-cool
japoneses simbolizam esse segundo tipo de capitalismo pós-
moderno, pois proporciona tais afetos, intimamente
relacionados ao contexto biopolítico, nesta sociedade
estressante que caracteriza a contemporaneidade. Conforme o
filósofo Uchino Tadashi (2008, p. 136), depois de 1995, após o
estouro da bolha econômica e de duas catástrofes, o terremoto
de Hanshin-Awaji e o ataque de gás sarin da seita Aum Shinri-
kyô nas linhas do metrô de Tóquio, as palavras para se
25
entender o Japão são: kireru (estourar-se), hikikomoru (recolher-
se) e iyasu (curar-se).
As pessoas, no limite do seu stress, suicidam-se, matam-se
sem motivo aparente (“kireru”), recolhem-se dentro das suas casas
(“hikikomoru”) ou tentam curar-se adotando uma alternativa menos
radical (“iyasu”) – uma viagem a Bali, uma simples massagem ou
aulas de dança. Muito utilizados nos contextos metropolitanos
japoneses, os três verbos intercalam-se para representar o seu
estado de espírito.
Nesse contexto, a fuga para o universo nostálgico da
infância, da dependência, da vontade de não crescer é uma das
modalidades de “iyasu” que proporciona a tranquilidade, a
proteção, o conforto, e faz emergir o trabalho imaterial
afetivo apontado por Hardt. É justamente pela aquisição
desenfreada dos produtos kawaii que as pessoas expressam o
desejo de serem confortadas e tranquilizadas, num processo de
“curar-se” da realidade da sociedade atual.
Esses produtos contêm algo que o antropólogo japonês
良). O autor afirma que uma das características do Japão pós-
moderno é o fato de este ter conservado o “pensamento
selvagem”, a capacidade inata de criar arte e mitos, que se
manifesta em seus jogos industriais, os quais capturam a
imaginação das crianças e dos adultos. Tal conexão do iyashi10
high-tech com essa inconsciência primitiva é materializada na
mercadoria que o Japão exporta agora para o resto do mundo.
26
Vimos assim, no decorrer do texto, a transformação do
kawaii ao longo dos séculos, de sua origem na antiguidade,
verificável na literatura da era Heian, passando pela
modernização e consequente ocidentalização japonesa, pelas
quais se torna um kawaii mais híbrido, até configurar-se, na
atualidade, como uma estética que oferta o conforto perante as
vicissitudes da pós-modernidade.
O kawaii, hoje, é transnacional, talvez pela necessidade
contemporânea global do trabalho afetivo, a qual pode variar
de acordo com grau de afetividade que cada povo expressa. No
Brasil, por exemplo, a função do iyashi pode ser minimizada.
Verifica-se, nos artistas brasileiros entrevistados, uma
multiplicidade de posições, de influências, japonesas ou não,
mas o que fica evidente é a força com que todos representam o
seu “eu” emocional. Segundo Érica, sua criação é “um momento
de intensidade emocional”; Nina ressalta: “estou 100% nas
obras que faço, não é um autorretrato, mas tudo que gosto,
vejo, quero e sonho”, e Toz afirma: “Acho que faço tudo com
muito amor e isso aproxima as pessoas”. Miyadai classificou
kawaii em três variáveis – o ergonômico, o romântico e o
gracioso – mas verifica-se aqui, talvez, uma outra vertente: o
afetivo centrado na emoção do artista.
Além das diferenças entre o kawaii japonês e o brasileiro,
esses depoimentos revelam, talvez com mais intensidade que no
caso nipônico, como o kawaii está fortemente vinculado ao
aspecto afetivo emocional do artista, e isso tem conquistado
seus fãs brasileiros, e vem enraizando a estética
27
transnacional como resposta às mudanças das sociedades, o que
faz desse fenômeno um objeto riquíssimo para estudo.
Notas:
1 Kogo Daijiten - Grande Dicionário de Palavras Antigas.2 Hashimoto Cordaro, 2013:7.3 Foi atriz, cantora, ilustradora e artista, com uma forte aparição entre os
anos de 1945 e 1965, mas a data de seu nascimento não é informada.4 Nihonga é pintura tradicional japonesa, assim denominada a partir da era
Meiji, para distinguir do Yôga (pintura ocidental). É uma pintura feita compigmentos à base d’água, de origem mineral ou vegetal, cujo suporte é geralmentepapel artesanal washi ou seda.
5. Imagens respectivamente extraídas de http://chasingbawa.com/2012/03/09/my-life-in-books/; http://gallery.minitokyo.net/download/568810;http://www.mattthorn.com/shoujo_manga/prewar_shoujo/index.php;http://sumato.net/33007/%E6%B0%B4%E6%A3%AE%E4%BA%9C%E5%9C%9Fandroid%E7%94%A8/ acesso no dia 30/03/2014
6 Publicado na revista Shôjo no tomo de dezembro de 1938.7 Publicado na revista Shôjo no tomo de maio de 1940.8 Otaku é um termo genérico que se refere àqueles que se viciam em formas da
subcultura fortemente relacionados com animê, vídeo, games, computadores, ficçãocientífica, filmes de efeitos especiais, figurinos de animê. (Azuma, 2009, p. 3)
9 Entrevista de Murakami Takashi, no Japanorama, disponível no sitehttps://www.youtube.com/watch?v=5-qoRmeDd-8(acesso no dia 14.03.2014)
10 Entrevista com Nara Yoshitomo disponível no sitehttps://www.youtube.com/watch?v=_t8gLVNhXAs
11 Iyasu é verbo no infinitivo e significa curar-se. Iyashi é o substantivo cujasemântica é a cura.
A grafia dos nomes japoneses estão na forma original, em ordem de sobrenome enome.
Referências bibliográficas:
ALLISON, Anne. Millennial Monsters: Japanese toys and the globalimagination. Berkeley e Los Angeles: University of California Press,1006.______________. Cuteness as Japan’s Millennial Product. In TOBIN,Joseph (Ed.), Pikachu’s Global Adventure: the rise and fall ofPokemon. Durham: Duke University Press, 2004. (pp.34-49)______________. The Cool Brand, Affective activim and Japaneseyouth. In Theory, Culture and Society. Los Angeles, London, NewDelhi e Singapore: Sage Publications, 2009. Vol. 26 (2-3): 89-1______________. “J-brand: What image of youth is getting sold inJapan’s “gross national cool”?”. Berkeley: University of California,2007.
CRUZ, Amada, MATSUI, Midori e FRIIS-HANSEN, Dana. Takashi Murakami:the meaning of the nonsense of the meaning. New York: Center forCuratorial Studies Museum, Harry N. Abrams, 1999.HARDT, Michael. Affective Labor. Boundary 2 26:2. Durham: Duke University Press, 1999.HIROKI, Azuma. Dôbutsuka suru posutomodan: otaku kara mitanihonshakai. (Pós-moderno que se animaliza: a sociedade japonesavista pelo otaku). Tokyo: Kôdansha, 2001.IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da Memória: narrativas do pós-guerra nacultura japonesa (1945-1970). Tradução: Marco Souza e MarcelaCanizo. São Paulo: Editora Annablume, 2011.ISHIKAWA, Keiko. Takehisa Yumeji: Bi to ai e no shôkei ni ikitahyôhaku no gajin. (Yumeji Takehisa: Artista perambulante que viveu apaixão pela beleza e amor). Tokyo: Rikuyô-sha, 2010. KINSELLA, Sharon. Cuties in Japan. In MOERAN, Brian&Scov, Lise. (eds.). Women, media and consumption in Japan. Hawaii: Curzon &Hawaii University Press, 1995.MAEDA, Tetsuji (ed.). Nara Yoshitomo: Naibu wandarando. (Yoshitomo Nara: naïve wonderland). Tokyo: NHK Top Runner, KTC Chûo Shuppan, 2003.MIYADAI, Shinji. ISHIHARA, Hideki e OUTSUKA, Meiko. Sabukaruchâ Shinwa Kaitai: shôjo, ongaku, manga, sei no henyô to genzai (Desmantelamento do mito da subcultura – meninas, música, mangá, mudança de gênero e contemporaneidade). Tokyo: Chikuma Bunko, 2007. MURAKAMI, Takashi. Superflat Takashi Murakami. Madras Publishing, 2000.NAKAZAWA, Shin’ichi. Pokketo no naka no yasei: Pokemon to kodomo. (Oselvagem de dentro do bolso: Pokemon e criança). Tokyo: Shinchô Bunko, 1997.OUTSUKA, Eiji. Shôzo minzokugaku: seikimatsu no shinwa wo tsumugu miko no matsuei. (Etnologia de Shôjo: a descendência do médium que prolonga a mitologia do final do século). Tokyo : Kôbunsha, 1997.SHÔNAGON,SEI. O livro do travesseiro. Trad. Geny Wakisaka, Junko Ota,Lika Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro.São Paulo: Editora 34, 2013.TAKANO, Aya. Tokyo Space Diary.Tokyo: Hayakawa Publishing Corporation, 2006.UCHIDA, Shizue. Nakahara Jun’ichi to “Shôjo no tomo” (Jun’ichi Nakahara e “Shôjo no tomo”. Tokyo: Jitsugyô no Nihonsha, 2013.UCHINO, Tadashi. Rupturas, falhas: dois momentos “nacionalistas” e acultura da dança no Japão. In GREINER, Christine e FERNANDES, Ricardo Muniz (org.). TOKYOGAKI: Um Japão imaginado. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2008. Pg.130-141.YAMAGUCHI, Hiromi. Cool Japan: the exploding Japanese contemporay arts. Tokyo: NN Shinsha, 2005.
29
YOMOTA, Inuhiko. Kawaii-ron (A teoria do kawaii). Tokyo: Chikuma Shobô, 2006.
Michiko Okano Professora de História da Arte da Ásia na Universidade Federal deSão Paulo (UNIFESP), com graduação na Faculdade de Arquitetura daUSP, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora do livro Ma: entreespaço da arte e comunicação no Japão (Ed. Annablume), pesquisa a artejaponesa e suas circulações e transferências em diferenteslocalidades.