A CIDADE 1 Luis André Bruneto Oliveira 2 A Espacialidade da Missão Urbana de Paulo: sua Dimensão Geográfica Onde fazer Missão? Já por razões de convicção e estratégias, Paulo não plantou igrejas por todo canto que passou. Aparentemente, Paulo parecia não querer perder tempo com cidades menos importantes. Ele escolhia cuidadosamente as cidades e planejava como seria a proclamação da mensagem de salvação. Além de evangelizar essas cidades, Paulo não parou por aí. Ele centralizou suas atividades em importantes centros urbanos, considerado por ele estratégicos. Segundo Nicodemus Lopes 3 , a cidade de Tessalônica tornou-se a base missionária para a província da Macedônia; Corinto a base para a província da Acaia; e Éfeso, a sua base para a Ásia proconsular. A partir desses centros escolhidos Paulo tinha bases para evangelizar as regiões que essas cidades compreendiam. Por isso, é de se pensar que ele tinha consigo alguma forma de olhar a cidade, destacando elementos importantes para a realização desse objetivo, sempre visando a evangelização do mundo que vivia. Isso nos leva a pensar no que fazia Paulo escolher essas cidades. O motivo dessa escolha Jorge H. Barro 4 explica bem: Não há dúvida de que uma das estratégias da missão de Paulo eram os centros urbanos. Paulo escolhia as cidades mais urbanizadas, influentes e estratégicas a partir das quais as boas novas do Reino poderiam se espalhar. As cidades que Paulo entrou eram centros de administração romana, sob a influência grega e judaica, além de serem importantes centros culturais, sociais e comerciais. Quando passava pelos centros romanos, procurava proteção legal do governo e ainda usava um modo de influenciá-los para a aceitação do evangelho. 1 O Presente texto é o segundo capítulo da Tese de Mestrado do mesmo autor, sob o título de Perspectivas para uma Missiologia Urbana Contemporânea a partir das viagens missionárias de Paulo em Atos. Orientador : Dr. Jorge Henrique Barro, FTSA, Londrina, 2004. 2 Natural de Londrina - PR, é casado com Mércia, e tem dois filhos: Sarah, e Lucas. É pastor da Comunidade Evangélica de Pirapozinho - SP. Coordenador Nacional de Pesquisa do Brasil 21 da SEPAL. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Antonio de Godoy Sobrinho da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Pós Graduação em Missiologia pela Faculdade Teológica Sul-Americana, em 2007, os dois em Londrina - Pr. Sites: www.full.org.br ; www.avivamento.org.br ; e-mails: [email protected], [email protected]; fones de contato: (18) 3269- 5982; (18) 9745-2320 3 Augustus Nicodemus LOPES, Op. Cit. p. 12 4 Jorge Henrique BARRO, De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002. p. 132
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A espacialidade da missão urbana de paulo sua dimensão geográfica
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A CIDADE 1
Luis André Bruneto Oliveira2
A Espacialidade da Missão Urbana de Paulo: sua Dimensão Geográfica
Onde fazer Missão?
Já por razões de convicção e estratégias, Paulo não plantou igrejas por todo canto que passou.
Aparentemente, Paulo parecia não querer perder tempo com cidades menos importantes. Ele escolhia
cuidadosamente as cidades e planejava como seria a proclamação da mensagem de salvação.
Além de evangelizar essas cidades, Paulo não parou por aí. Ele centralizou suas atividades em
importantes centros urbanos, considerado por ele estratégicos. Segundo Nicodemus Lopes3, a cidade de
Tessalônica tornou-se a base missionária para a província da Macedônia; Corinto a base para a província da
Acaia; e Éfeso, a sua base para a Ásia proconsular.
A partir desses centros escolhidos Paulo tinha bases para evangelizar as regiões que essas cidades
compreendiam. Por isso, é de se pensar que ele tinha consigo alguma forma de olhar a cidade, destacando
elementos importantes para a realização desse objetivo, sempre visando a evangelização do mundo que
vivia. Isso nos leva a pensar no que fazia Paulo escolher essas cidades.
O motivo dessa escolha Jorge H. Barro4 explica bem:
Não há dúvida de que uma das estratégias da missão de Paulo eram os centros
urbanos. Paulo escolhia as cidades mais urbanizadas, influentes e estratégicas a
partir das quais as boas novas do Reino poderiam se espalhar. As cidades que Paulo
entrou eram centros de administração romana, sob a influência grega e judaica,
além de serem importantes centros culturais, sociais e comerciais. Quando passava
pelos centros romanos, procurava proteção legal do governo e ainda usava um
modo de influenciá-los para a aceitação do evangelho.
1 O Presente texto é o segundo capítulo da Tese de Mestrado do mesmo autor, sob o título de Perspectivas para uma
Missiologia Urbana Contemporânea a partir das viagens missionárias de Paulo em Atos. Orientador : Dr. Jorge Henrique Barro, FTSA, Londrina, 2004. 2 Natural de Londrina - PR, é casado com Mércia, e tem dois filhos: Sarah, e Lucas. É pastor da Comunidade Evangélica
de Pirapozinho - SP. Coordenador Nacional de Pesquisa do Brasil 21 da SEPAL. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Antonio de Godoy Sobrinho da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Pós Graduação em Missiologia pela Faculdade Teológica Sul-Americana, em 2007, os dois em Londrina - Pr. Sites: www.full.org.br; www.avivamento.org.br ; e-mails: [email protected], [email protected] ; fones de contato: (18) 3269-5982; (18) 9745-2320 3 Augustus Nicodemus LOPES, Op. Cit. p. 12
4 Jorge Henrique BARRO, De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002. p. 132
Consideramos importantes as cidades fazer um levantamento de todas as cidades que ele
evangelizou, mas já existem boas pesquisas a esse respeito. O que existe da nossa parte é uma preocupação
em apresentar elementos do ambiente urbano que mostram como Paulo via e abordava essas cidades.
Diferentes abordagens feitas por ele acabaram determinando diferentes ações.
Para tanto analisaremos três perspectivas que revelam o olhar Paulo sobre a cidade. Obviamente
não pretendermos ser os donos da verdade afirmando que era só essa ou aquela visão paulina a respeito da
cidade, mas optamos pelo que consideramos um caminho muito mais interessante, ou seja, o conceito de
espacialidade de Paulo. Na primeira subdivisão, vamos descobrir este conceito; na segunda, os elementos
formativos desse conceito e no terceiro como ele o utilizava.
1. Conceito de Espacialidade de Paulo
Ricardo Mello5, analisando a obra do artista Hélio Custódio Fervenza, sintetiza espacialidade como
sendo conceitos que abordam as diversas maneiras como as pessoas percebem o espaço à sua volta, e sob
quais pontos de vista.
De maneira mais explícita, a geógrafa Maria Encarnação Beltrão Sposito, da UNESP de Presidente
Prudente, diz em seu artigo Espacialidade, Cotidiano e Poder que:
A espacialidade expressa, sustenta, determina, e portanto, faz parte e ao mesmo
tempo designa a formação social e econômica, e por tal também reforça a
acentuação da diferenciação (e da separação) entre as pessoas e os lugares, entre
o ser, o estar e o fazer. Numa sociedade de classes, esta espacialidade contém a
lógica e o sentido dado pela diferenciação social e econômica, e o poder de
produzir / transformar / consumir esta espacialidade está também determinado
por esta diferenciação.
Os elementos formativos de Paulo6 faziam com que ele percebesse os espaços à sua volta e reagisse
a eles de forma evangelizadora. Parafraseando Beltrão Sposito, a espacialidade paulina expressa e designa a
formação cultural e religiosa forçando uma acentuação da diferenciação entre as pessoas e os lugares, entre
o ser, o estar e o fazer. Ou seja, a análise de Paulo não se diluía com o tempo, mas era pragmática, trazendo
à cidade um apelo decisivo quanto ao Reino de Deus. No meio teológico, essa diferenciação é chamada de
contextualização ou em outros momentos de adaptação missionária.
Sua especialidade era colocada em prática através da especificidade do seu pensamento, em que
era articulada a análise por meio de conceitos e imagens. Para Paulo faz-se valer aquela máxima: “uma
imagem vale mais do que mil palavras.” Seu exame minucioso da cidade era feito também através delas.
difamações (At 13:45, 14:2, 16,20-21, 17:5, 17:18, 18:6a, 18:12, 19:9, 21:28, 24:2). Como instrumento da
revelação divina Paulo sofrerá as lutas e agruras do evangelho.
Não há como negarmos que Paulo teve em sua formação a respeito da cidade um caráter divino. No
tempo em que esteve na Arábia, Paulo passou por momentos extremamente íntimos com os Céus. Esses
momentos ele descreve de uma forma impressionante: conheço um homem em Cristo que, há catorze anos,
foi arrebatado até ao terceiro céu (se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe) e sei que o tal homem
(se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, as
quais não é lícito ao homem referir. (2 Co 12:2-4).
Não só essa experiência singular, mas a da conversão também, foram de fundamental importância
na construção do olhar Paulino sobre a cidade.
2.4. Barnabé
Barnabé não foi só o primeiro companheiro de viagem de Paulo, mas alguém de fundamental
importância na construção de seu olhar sobre a urbe. Enquanto o aspecto religioso-teológico foi enfatizado
por Gamaliel, Barnabé ajudou Paulo a ver a cidade com olhos de misericórdia.
Barnabé, cujo nome significa filho de exortação (At 4:36s) ou aquele que dá coragem, era sobrenome
de José, um levita rico, natural da ilha de Chipre e convertido ao cristianismo. Esse homem tinha um campo,
vendeu e trouxe todo o dinheiro, depositando aos pés dos apóstolos, para que esses usassem de maneira
que bem entendessem.
O primeiro encontro dele com Paulo acontece em Atos 9:27, depois da espetacular fuga deste,
descendo em um cesto pela muralha de Damasco. Barnabé leva Paulo aos discípulos, narrando o que
acontecera no caminho e como Paulo anunciava ousadamente a Palavra de Deus em Damasco.
Temendo retaliações dos judeus, os discípulos enviam Paulo a Cesaréia e daí para Tarso, região
onde recebe as revelações que comentamos no tópico anterior. Depois de alguns anos, Barnabé é enviado
para cuidar da comunidade de Antioquia, que se formara dos que foram dispersos depois do martírio de
Estevão. Esses evangelizaram judeus em gregos, e muitos se converteram (At 11:19-22). Barnabé,
reconhecendo a difícil tarefa de cuidar da igreja emergente, sai a procura de Paulo (At 11:25), trazendo-o a
Antioquia, onde se reuniram por todo um ano. Aqui em Antioquia, os discípulos foram chamados de cristãos
pela primeira vez (At 11:26).
Com Barnabé, Paulo inicia sua primeira viagem missionária (At 13:2-4). Seu companheiro de
viagem continua com ele até a escolha da equipe para a segunda viagem (At 15:36ss). Houve uma separação
entre Paulo e Barnabé por questões de personalidade, ficando claro aqui o aspecto misericordioso de um e o
zelo pela obra de outro. Por causa de João Marcos, que havia abandonado a primeira expedição e voltado
para Jerusalém (At 13:13), os dois se desentendem. Enquanto Barnabé achava que Marcos merecia mais
uma chance, Paulo achava que não se podia agir daquele jeito na obra de Deus. Vai Paulo e Silas para um
lado (mais precisamente para a Síria e Cilícia), e Barnabé e Marcos para outro (Chipre).
Contudo, as lições que Paulo aprendeu com Barnabé a respeito da misericórdia ficaram imprimidas
em sua alma. Podemos ver isso em sua missão e em suas cartas.
Podemos concluir este segundo tópico dizendo que a construção do olhar Paulino sobre a cidade se
deu: no enfoque amor-cidadania – através de sua relação com sua cidade natal e outras que ele morou; no
enfoque religioso-teológico: com a sua religião de berço e seu professor Gamaliel; no aspecto divino: através
de suas experiências no caminho de Damasco e na Síria; e finalmente no aspecto da misericórdia: em seu
estreito relacionamento com Barnabé.
3. A Construção de um Olhar Sobre a Cidade – Como Paulo usava seus conceitos
Para se compreender a construção do olhar de Paulo sobre a cidade, utilizaremos duas abordagens:
seus personagens-tipo e os retratos/paisagens urbanos.
Já que vimos os aspectos que formavam a mente de Paulo sobre a cidade, precisamos analisar como
ele fazia uso desses conceitos e chegarmos a uma forma de uma atual utilização desses para a igreja de hoje.
Seguindo a linha de pensamento de Willi Bolle, na análise de Walter Benjamim sobre a metrópole
moderna podemos destacar alguns pontos em comum das formas construtivas do olhar Paulino sobre a
cidade.
3.1. Personagens-tipo urbanos
Walter Benjamim, em sua análise da metrópole moderna, constrói o seu flâneur, que é um
personagem urbano, um abreviado, um mítico caráter social, uma imagem dialética através do qual é
possível obter um conhecimento mais aprofundado do fenômeno da metrópole moderna. 17
Esse flâneur é construído com a finalidade de se dar uma idéia à forma, uma concepção da história
que se expressa por meio dramático, condensado em uma imagem alegórica: o personagem-tipo. Com
certeza, um personagem-tipo é formado em seu próprio ambiente urbano, que na realidade é uma colcha de
retalhos sem precedentes. Para tentar analisar os personagens-tipo de Paulo, teremos que recorrer ao texto
bíblico e às inferências sobre eles.
3.1.1. O Negociante
Dentro dos personagens- tipo que encontramos em Paulo o primeiro que destacamos é o
negociante. Não em ordem de escalas de valores, nem de importância, mas simplesmente por um fator de
classificação social. Dentro dessa estratificação social encontramos dois tipos de negociantes: o alto
negociante, que importa de longe sua mercadoria, estoca em grandes armazéns e faz parte da classe rica; e
o pequeno negociante, que explora sua atividade através de sua pequena loja num dos mercados da cidade.
Os altos negociantes importavam todo o tipo de material, desde madeira, vidros, até bálsamos,
perfumes, especiarias. Eles traziam grandes quantidades de produto que eram guardados em grandes
armazéns e distribuídos aos pequenos comerciantes, que colocavam seu preço e vendiam ao consumidor
final.
Lídia faz parte desse personagem-tipo de Paulo. Essa mulher, vendedora de tecidos de cor púrpura,
era natural de Tiatira, mas morava em Filipos, onde desenvolvia sua atividade comercial (At 16:14). A
púrpura era um tecido caro de cor vermelho-arroxeado e era usado como símbolo de riqueza e de alta
posição social18. Isso mostra que Lídia era pessoa de alto poder aquisitivo.
3.1.2. O Escravo
O próximo personagem-tipo urbano encontrado em Paulo e o escravo. Em suas viagens ele se
deparou com eles. Faziam parte da sociedade e muitos se converteram através do ministério do apóstolo.
Durante seu ministério entre algemas, Paulo ganha um escravo chamado Onésimo, que havia fugido da casa
de Filemôm onde servia. Filemôm era irmão em Cristo e agora Onésimo é enviado de volta por Paulo.
Os escravos eram parte integrante da sociedade e se dividiam em classes de importância. Haviam
escravos de governadores, e logicamente esses tinham oportunidades diferentes de serviçais de pessoas
menos favorecidas. Sabe-se até de escravos que possuíam bens materiais. Entre os israelitas os escravos
eram normalmente bem tratados e até tinham a oportunidade de comprar a sua liberdade (Êx 21.5; Lv
25.47-55). Wayne N. Meeks resume bem como os escravos viviam naqueles dias:
17
W. BOLLE, pp. 365-366 18
Bíblia On line 3.0 – Verberte: Púrpura
A mudança de status mais fundamental pra alguém das classes mais baixas era a
passagem da escravidão para a liberdade – ou vice-versa. Isso não significa que
todos os livres vivessem melhor que todos os escravos; a realidade era bem
diferente. Havia escravos que possuíam escravos; que manipulavam grandes
quantias de dinheiro no que constituía, efetiva, porém não legalmente, seus
próprios negócios; que exerciam profissões altamente qualificadas. E havia
trabalhadores livres que morriam de fome. Não obstante, os escravos trabalhavam
duramente para obter a alforria e muitas vezes conseguiam. 19
Entre essa classe social haviam os libertos, que ocupavam uma camada social que era uma
transição entre escravos e livre. Esses conservavam obrigações com seus antigos senhores, eu agora eram
seus patronos ou protetor, debaixo de aspectos legais e informais.
Haviam também o que J. Jeremias chama de diaristas. Esses eram mais numerosos que os escravos.
É diarista aquele homem alugado por um rico hierosolimitano como cursos. Os diaristas ganhavam uma
média de 1 denário, com refeição. 20 Jesus menciona diaristas em sua parábola sobre o Reino de Deus, em
Mateus 20: 1-16:
Porque o reino dos céus é semelhante a um dono de casa que saiu de madrugada
para assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, tendo ajustado com os
trabalhadores a um denário por dia, mandou-os para a vinha. Saindo pela terceira
hora, viu, na praça, outros que estavam desocupados e disse-lhes: Ide vós também
para a vinha, e vos darei o que for justo. Eles foram. Tendo saído outra vez, perto
da hora sexta e da nona, procedeu da mesma forma, e, saindo por volta da hora
undécima, encontrou outros que estavam desocupados e perguntou-lhes: Por que
estivestes aqui desocupados o dia todo? Responderam-lhe: Porque ninguém nos
contratou. Então, lhes disse ele: Ide também vós para a vinha. Ao cair da tarde,
disse o senhor da vinha ao seu administrador: Chama os trabalhadores e paga-lhes
o salário, começando pelos últimos, indo até aos primeiros. Vindo os da hora
undécima, recebeu cada um deles um denário. Ao chegarem os primeiros,
pensaram que receberiam mais; porém também estes receberam um denário cada
um. Mas, tendo-o recebido, murmuravam contra o dono da casa, dizendo: Estes
últimos trabalharam apenas uma hora; contudo, os igualaste a nós, que
suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas o proprietário, respondendo, disse a um
deles: Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o
que é teu e vai-te; pois quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura, não
me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque eu
sou bom? Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos porque
muitos são chamados, mas poucos escolhidos.
19
W.N.Meeks, pp. 38 20
J. JEREMIAS, Jerusalém no tempo de Jesus, pp.159
No meio desses diaristas havia um sentimento catastrófico: o de não encontrar serviço. Daí a
entender essa particular revolta dos primeiros trabalhadores do dia.
Havia ainda um quadro particular de escravos e de libertos que constituíam a categoria de mais
mobilidade que se pode encontrar na sociedade romana...
... e entre os quais sabemos bem explicitamente que havia cristãos do círculo
Paulino. Eram os membros da familia caesaris, a “família de César”. Como os ricos
comuns transferiam boa parte das responsabilidades nos negócios a seus escravos
e libertos, também Augusto e seus sucessores empregavam suas familiae nos
negócios do império. Cláudio ampliou muitíssimo essa prática, que vigorou por
mais de um século até Domiciano; Trajano e Adriano procuraram reduzir o poder
dos homens líberos; a familia caesaris era virtualmente o serviço civil do império,
nas províncias não menos do que em Roma. 21
Esse tipo de escravos que mencionamos são os escravos sociais, presos em suas rotinas por alguma
associação com seu nascimento ou ação durante a vida. Entretanto, sabemos de outro tipo de escravo que
Paulo se deparou em seu ministério: escravos espirituais. Em pelo menos dois textos (At 13:8ss e At 16:17ss)
encontramos Paulo em batalha espiritual e no caso da moça em Filipos, vemos uma ação de misericórdia do
apóstolo que desencadeia em uma de suas primeiras prisões.
3.1.3. Os Senhores
Este é um grupo distinto, por constituir de diversos personagens-tipo que se caracterizam por sua
posição social de proeminência. São identificados como os membros do areópago22, os políticos e os
patrões. Os areopagitas assentavam-se como juízes e tratavam de leis, religião e educação. Estes homens
eram de poder aquisitivo relativamente alto para sociedade daquela época. Isso se demonstra pelo fato de
serem educados e tratarem de elementos que envolviam toda a cultura da sociedade ateniense. Eram
membros da mais nobre e venerável academia do saber de Atenas, capital cultural da época.
O outro personagem-tipo pertencente a essa categoria eram os políticos. Esses homens, também de
destaque financeiro, coordenavam toda a cidade. Especialmente em Atenas, esses homens faziam parte do
Senado.
Embora os dois personagens-tipo anteriores tivessem escravos, os patrões, terceiro personagem-
tipo desta categoria, dependiam desse subterfúgio para seus negócios. Muito embora boa parte desses
“micro-empresários” usassem de escravos, ainda existiam os empregados, homens e mulheres pagos para a
funções de processo e distribuição de alimentos, cosméticos, especiarias, animais etc.
21
W.N. MEEKS, pp. 40 22
Os membros do areópago entram aqui não como produtores de cultura, mas por causa de seu poder econômico e político.
A vida do apóstolo e seu particular interesse mostra que ele se esmerou em alcançar esses senhores
em primeiro lugar. Em Gálatas 2:10, encontramos uma palavra que ele se esforçou também para lembrar
dos pobres em se evangelismo. O primeiro convertido na sua primeira viagem missionária demonstra isso.
Paulo e Barnabé são instigados a pregarem para um homem chamado Sérgio Paulo, procônsul (At 13:12).
Esse era um título atribuído a um governador de província, nomeado pelo senado romano, geralmente por
um ano.
A evangelização de Lídia em Filipos (At 16:14-15) é outro texto que comprova esta experiência.
Lídia era uma vendedora de púrpura, e por isso, muito rica. Paulo evangeliza essa mulher e esta oferece sua
casa como hospedaria para eles enquanto estivessem ali.
Em Atos 17:12 vemos Lucas mencionando que em Beréia muitos deles creram, mulheres gregas de
alta posição e não poucos homens. Em Atos 17:34, encontramos a conversão de Dâmaris e seu esposo
Dionísio, membro do areópago. Em Atos 18:8, vemos que Crispo, o principal da sinagoga abraçou o
evangelho.
Paulo tinha, portanto, um interesse especial nessas pessoas de classe média e alta, se podemos
classificar assim. Mas qual o motivo disso? Se observarmos que ele veio de uma cultura de classe média e
que essas pessoas eram formadoras de opinião vamos encontrar suas motivações. Podemos pensar assim: o
areopagita Dionísio, agora cristão, se tornara um porta-voz do Evangelho muito mais eficaz do que um
cristão de classe mais pobre. Pode soar até como preconceito, mas a realidade é que Paulo concentrou-se
nessas pessoas.
3.1.4. A Mulher
A mulher é o quarto personagem-tipo de Paulo. O apóstolo dava atenção e importância a esse
contingente tão valoroso na obra do reino. Em Filipos ele dirige-se, juntamente com Silas, até a beira do rio,
o ponto de encontro de mulheres de várias classes sociais, e falam a elas. Entre as que se convertem está
Lídia, vendedora de púrpura23, provavelmente uma das mulheres mais ricas de toda a região. Essa mulher,
encantada com a mensagem de Paulo se torna uma das financiadoras de seu ministério. W.N. Meeks afirma
que:
... os nomes gregos de Evódia e Síntique (Fl 4:2s) podem sugerir que elas se
achavam entre os grupos de comerciantes mestiços em Filipos. Além disso
devemos observar que eram mulheres com suficiente independência para terem
seus direitos reconhecidos como membros atuantes da missão paulina.
Entre muitas mulheres haviam as que se destacavam na vida pública, atuantes no comércio e no
artesanato, usando parte do seu dinheiro para obter reconhecimento em suas cidades, assim como os
homens. Cada vez mais, no mundo dirigido pelo império romano, e influenciado pelo pensamento grego, as
23
Púrpura: tecido vermelho-arroxeado, de alto valor comercial, usado principalmente por reis e nobres. O uso desse tecido denotava alta posição social e ostentava riqueza.
mulheres surgem como litigantes independentes. Nesse contexto, as mulheres se reuniam em associações,
geralmente nas mesmas associações com os homens, o que já denota um grande avanço social, se
comparado com o mundo judeu, especialmente o de Jerusalém.
J. Jeremias afirma que a mulher, em Jerusalém, não participava da vida pública, e quando esta saía
de casa deveria ter o rosto coberto, com algo parecido com a burka, que ficou famosa depois da invasão do
Afeganistão pelos Estados Unidos.
Essa mulher, relatada por J. Jeremias,
...que saía de casa sem ter a cabeça coberta, quer dizer, sem o véu que ocultava o
rosto, faltava de tal modo aos bons costumes que o marido tinha o direito, até
mais, tinha o dever de despedi-la sem ser obrigado a pagar a quantia que, no caso
de divórcio pertencia à esposa, em virtude do contrato matrimonial. [...] As regras
do decoro proibia encontrar-se sozinho com uma mulher, olhar para uma mulher
casada, e até mesmo cumprimentá-la. Seria vergonhoso para um aluno de escriba
falar com uma mulher na rua. Aquela que conversasse com alguém na rua ou
ficasse do lado de fora de sua casa podia ser repudiada sem receber o pagamento
previsto no contrato de casamento.
Podemos observar, portanto, dois mundos distintos em que Paulo circulava. O primeiro era seu
mundo já globalizado (se podemos chamar assim) dominado politicamente por Roma e culturalmente pela
Grécia. Nesse mundo as mulheres gozavam de uma liberdade maior, podendo conversar, trabalhar e até
mesmo negociar com homens sem nenhum problema. No outro mundo a realidade era bem diferente: um
mundo dominado especialmente por homens, onde a mulher não ascendia socialmente a não ser que seu
marido assim a fizesse, um mundo onde as mulheres eram totalmente restringidas à vida doméstica, sem
contato demasiado com o mundo exterior.
3.1.5. O Trabalhador
Outro personagem-tipo de Paulo é o trabalhador. Essa figura presente no olhar paulino sobre a
cidade trabalha com duas vertentes. O primeiro é aquele que vê a pessoa que trabalha para alguém, que não
é independente, mas depende financeiramente de um patrão. Esse trabalhador eram
O outro é aquele que trabalha por conta própria tirando da terra e do comércio informal24 o seu sustento.
Entram aqui os carpinteiros, artesãos, pedreiros, pequenos agricultores, criadores de gado etc. Tanto um
como outro são da classe baixa da população. Não possuem recursos para esbanjar, senão somente para
sobreviver.
O próprio Paulo era um trabalhador da classe artesã. Ele se dedicou à fabricação de tendas
especialmente durante sua estada em Corinto, juntamente com Áquila e Priscila, também artesãos do
24
O comércio formal, se podemos chamar assim, é aquele comércio dentro das cidades, dos mercados. Chamamos de comércio informal, aquele gerado nas vielas, de porta em porta, de boca em boca.
mesmo ofício (At 18:3). Paulo precisou recorrer a esse subterfúgio para sobreviver enquanto evangelizava
Corinto. Paulo se hospedava na casa deste casal e trabalhavam juntos. Sabemos que não foi somente aqui
que Paulo trabalhou para se sustentar, mas mesmo em Tessalônica (1 Ts 2:9, 2 Ts 3:8) e posteriormente em
Éfeso (At 18:18, 26, 20:34, 1 Co 16:19). 25
De acordo com sua prática regular, Paulo se sustentou em Corinto com seu próprio
trabalho, e encontrou emprego em uma empresa que fabricava barracas, cujos
donos eram um judeu originário do ponto, Áquila, e sua esposa, Priscila. O casal
morara até pouco tempo em Roma, cidade natal de Priscila, mas fora obrigado a
deixar a cidade, por causa do Edito de Cláudio, expulsando a colônia judaica de
Roma. Eles parecem ter sido um casal bem de vida, e sua fábrica de barracas pode
ter tido filiais em vários centros, com um gerente nos lugares em que eles não
residiam. Com isso, eles podiam locomover-se facilmente entre Roma, Corinto e
Éfeso. Depois de se encotrarem em Corinto, Paulo não teve amigos ou ajudantes
mais leais do que Priscila e Áquila, aos quais agradeço, diz ele alguns anos mais
tarde, e não somente eu, mas todas as igrejas dos gentios (Rm 16:4), os serviços
que eles prestaram à causa cristã evidentemente excediam em muito os serviços
prestados pessoalmente a Paulo.26
Isso certifica nossa posição do tópico acima, quando afirmamos que Paulo se concentrava nas
pessoas de classe média, média-alta para evangelizar e treinar.
Na realidade, não sabemos porque somente na segunda viagem missionária é que ele faz uso de
sua arte, mas ao que tudo indica foram a falta de envio de recursos das igrejas para o sustento missionário,
prática bem comum hoje em dia. A única igreja que se associou com o apóstolo durante sua estada em
Corinto foi Filipos (Fl 4:15-16), e mesmo assim não deve ter sido um grande sustento, pois precisou recorrer
ao seu ofício para manter o evangelismo.
3.1.6. Os Produtores da Cultura
O sexto personagem tipo de Paulo são produtores de cultura. Como dissemos anteriormente eram
esses os quais Paulo mais se identificava. Aqui entram os professores, filósofos, pensadores, pesquisadores,
legistas etc., enfim todos os que de alguma forma estão ligados à produção do saber. Os membros do
areópago aparecem novamente aqui, mas agora como um desses produtores.
Paulo se dava muito bem no meio dessas pessoas por também ser um produtor de cultura. Isto
está claro em Atos 17:22ss, precisamente no meio dos areopagitas, e na carta aos romanos, mais elaborada
e teológica de todas.
25
Imagines verbales em el Nuevo Testamento, pp. 308. 26
F.F. BRUCE. Paulo, o apóstolo da graça, pp. 243.
3.2. Os Retratos/Paisagens Urbanos
Walter Benjamim faz uso de uma técnica de montagem de imagens chamada superposição. Nesta
técnica ele tenta radiografar o imaginário coletivo. Em última instância, Benjamim faz uso desse método
para decifrar o espaço imagético político-social.27
Não sabemos, obviamente, se Paulo usou a técnica da superposição, mas o fato é que as imagens
eram construídas em sua mente, montando uma tessitura político-social capaz de revelar o imaginário
coletivo, imprescindível de ser analisado para sua obra de evangelização. A sua capacidade de fazer isso está
intimamente ligado a dois aspectos: sua educação e sua necessidade. Primeiramente, ele havia sido educado
para ser um pensador dentro de sua religião e depois a necessidade produz a busca.
Os lugares a seguir que vamos destacar possuem dois lados em Paulo. O primeiro é o efeito que
esse lugar produziu sobre ele, e depois o efeito que ele produziu no lugar. Importante notar que isso
acontece em todos esses lugares. Além de influenciar e serem influenciados, esses retratos/paisagens
urbanos mostram a realidade do espaço imagético que Paulo estava inserido.
3.2.1. A Sinagoga
As sinagogas eram as casas de oração dos judeus, que começaram a existir provavelmente durante
o cativeiro babilônico. Essas sinagogas se espalharam por toda a região conhecida naquela época, e eram
lugares em que os judeus adoravam a Deus, oravam e estudavam as Escrituras.
Uma das estratégias missionárias de Paulo era usar essas sinagogas como ponto de partida para a
pregação do evangelho nas cidades onde passava. Isso se dava por motivos claros. Primeiramente, que ele
era judeu,e todo que se prezasse deveria ir às sinagogas adorar no dia sétimo. Depois que ele era discípulo
de Gamaliel, um dos mais respeitados mestres daquela época e muito conhecido dos judeus. Por isso
mesmo, surge o terceiro motivo, que era que nas sinagogas, espaço para se estudar as Escrituras, ele tinha
essa oportunidade de falar aos seus, explicando tudo a respeito do Encontro em Damasco.
De acordo com G. Hawthorne e R. Martin:
O cristianismo entrou no mundo antigo por meio de leis de proteção
proporcionada ao Judaísmo muitos anos antes. A sinagoga providenciava a Paulo
uma plataforma imediata para sua mensagem e serviço de muitas maneiras, quase
que completa, como modelos para as igrejas emergentes. As igrejas primitivas
imitavam as sinagogas em suas Escrituras lidas e expostas, orações e comunhão e
se abstinham de sacrifícios que eram comuns em cultos pagãos.
Nesse pano-de-fundo religioso se confirma o ponto que afirmamos acima: que Paulo era
influenciado pelos lugares e os influenciava com sua presença.
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W. BOLLE, pp. 98-101
3.2.2. A Rua e a Praça
A rua era um lugar comum para Paulo. Logo no início de sua primeira viagem missionária (At 14:8ss)
ele encontra assentado num lugar público um homem coxo de nascença e conhecido do povo de Listra, e o
cura. Desse milagre desencadeia uma série de eventos na rua dessa cidade, que culmina com o
apredejamento de Paulo.
Nas ruas da cidade de Filipos, Paulo juntamente com Silas se deparam com uma jovem possessa de
um espírito imundo, a qual os perseguiam por muitos dias. O fato indignou a Paulo, e este expulsa o espírito,
provoca uma sucessão de eventos nas ruas de Filipos que termina com a prisão do apóstolo e seu
companheiro.
Por um espaço de dois anos que Paulo permaneceu em Éfeso (At 19:10), outros eventos nas ruas
acontecem. Os filhos de Ceva, sumo sacerdote, fogem feridos e nus depois de um exorcismo mal-sucedido.
Esse fato dá notoriedade a Paulo pelo fato do espírito imundo haver dito que conhecia a Paulo e a Jesus,
dando a entender que eles tinham autoridade enquanto os filhos de Ceva não.
Desse fato surge nos habitantes de Éfeso um grande temor de Deus, e conseqüentemente de seu
servo Paulo. Então acontece outro evento nas ruas. Os habitantes dessa cidade reconheciam seus pecados
publicamente e se arrependiam. Muitos praticantes de artes mágicas reuniram seus livros e queimaram nas
ruas. Assim, a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente (At 19:20).
As ruas e as praças são portanto portas de evangelismo para Paulo. Nas ruas ele se decepciona pela
incredulidade, mas se alegra pela conversão. São lugares de ambíguos sentimentos. Ao mesmo tempo em
que há libertação pública, por causa dela existe a prisão. Podemos dizer que os dois primeiros eventos
afetaram seu modo de ver as ruas. Vemos nos primeiros um ímpeto fora do comum. A prisão em Filipos
parece ter direcionado o apóstolo para outros lugares não tão expostos, mas que de modo algum denuncia
falta de fervor evangelístico, pelo contrário, mostra zelo pela obra do Senhor.
3.2.3. A Casa e a Igreja
O principal lugar de reunião dos cristãos primitivos eram as casas, razão pela qual colocamos juntos
os termos neste tópico. A palavra grega usada por Paulo para designar a assembléia que se reunia, quase
sempre, na casa de alguém é ekklesia, o mesmo usado por Jesus em Mateus 18:17. Esse termo era usado
para designar a assembléia de votação dos cidadãos livres, e Paulo cita este termo 63 vezes em suas cartas.
Paulo deixa isso bem evidente quando se saúde e se refere às igrejas que se reúnem nas casas (At