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21 ESCOLA MODERNA Nº 36•5ª série•2010 1 – Introdução R espondendo a mais um desafio lançado no interior do Movimento da Escola Mo- derna, Associação de Professores que tem constituído, para mim e para muitos dos seus associados, uma escola de formação perma- nente e um motor de desenvolvimento profis- sional, propus-me dar continuidade ao traba- lho iniciado no ano anterior, no domínio da aprendizagem e desenvolvimento da escrita, com um grupo de alunos de uma escola pú- blica – a EB1 Frei Luís de Sousa, do Agrupa- mento de Escolas Professor Delfim Santos – agora no 2.º ano de escolaridade. O projecto actual consiste em estimular e observar os alunos, de modo participado, no desenvolvimento da escrita da matemática, procurando perceber como essa escrita pode promover o desenvolvimento do pensamento matemático, através da aferição e da adequa- ção progressiva da linguagem matemática du- rante o processo de descrição dos procedimen- tos e dos modos de pensar esta área do currí- culo. O presente artigo integra várias narrativas, que correspondem à organização de notas de campo, as quais tinham como finalidade a ela- boração de um diário profissional. Apesar de manter essa designação para referenciar as nar- rativas, não podemos considerá-lo como tal, tendo em conta a sua descontinuidade no tempo. Ainda assim, essa escrita constituiu um excelente auxiliar para a análise situada de al- guns acontecimentos mais significativos. Deste modo, depois de uma breve contex- tualização teórica, que procura enquadrar este percurso, farei uma descrição de situações prá- ticas e de produções dos alunos no domínio da escrita da matemática. Por fim será feita uma breve reflexão sobre o processo vivido. 2 – Enquadramento teórico A ideia da escrita para aprender surge nos Estados Unidos nos anos 80, a partir de um movimento de opinião designado por “escrita através do curriculum” nascido em meados da década anterior (Segev-Miller, 2005). Trata-se da escrita para aprender as diversas áreas do saber e tem vindo a ser desenvolvida e apro- fundada nos últimos anos, por constituir “um indispensável instrumento de conceptualiza- ção” (Rey, 1996, p.179). Se pensarmos que, de acordo com Vy- gotsky (1987), “um conceito não é uma forma- ção isolada, fossilizada e imutável, mas sim uma parte activa do processo intelectual, cons- tantemente ao serviço da comunicação, do en- tendimento e da solução de problemas” (p. 46), e se adoptarmos a definição de Bruner (1990) de que o “conhecimento é aquilo que se parti- lha num quadro de discurso, dentro de uma A escrita para aprender matemática Inácia Santana* * 1.º Ciclo do Ensino Básico. REVISTA N.º 36 08/07/10 12:31 Page 21
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1 – Introdução

Respondendo a mais um desafio lançado no interior do Movimento da Escola Mo-

derna, Associação de Professores que temconstituído, para mim e para muitos dos seusassociados, uma escola de formação perma-nente e um motor de desenvolvimento profis-sional, propus-me dar continuidade ao traba-lho iniciado no ano anterior, no domínio daaprendizagem e desenvolvimento da escrita,com um grupo de alunos de uma escola pú-blica – a EB1 Frei Luís de Sousa, do Agrupa-mento de Escolas Professor Delfim Santos –agora no 2.º ano de escolaridade.

O projecto actual consiste em estimular eobservar os alunos, de modo participado, nodesenvolvimento da escrita da matemática,procurando perceber como essa escrita podepromover o desenvolvimento do pensamentomatemático, através da aferição e da adequa-ção progressiva da linguagem matemática du-rante o processo de descrição dos procedimen-tos e dos modos de pensar esta área do currí-culo.

O presente artigo integra várias narrativas,que correspondem à organização de notas decampo, as quais tinham como finalidade a ela-boração de um diário profissional. Apesar demanter essa designação para referenciar as nar-rativas, não podemos considerá-lo como tal,

tendo em conta a sua descontinuidade notempo. Ainda assim, essa escrita constituiu umexcelente auxiliar para a análise situada de al-guns acontecimentos mais significativos.

Deste modo, depois de uma breve contex-tualização teórica, que procura enquadrar estepercurso, farei uma descrição de situações prá-ticas e de produções dos alunos no domínio daescrita da matemática.

Por fim será feita uma breve reflexão sobreo processo vivido.

2 – Enquadramento teórico

A ideia da escrita para aprender surge nosEstados Unidos nos anos 80, a partir de ummovimento de opinião designado por “escritaatravés do curriculum” nascido em meados dadécada anterior (Segev-Miller, 2005). Trata-seda escrita para aprender as diversas áreas dosaber e tem vindo a ser desenvolvida e apro-fundada nos últimos anos, por constituir “umindispensável instrumento de conceptualiza-ção” (Rey, 1996, p.179).

Se pensarmos que, de acordo com Vy-gotsky (1987), “um conceito não é uma forma-ção isolada, fossilizada e imutável, mas simuma parte activa do processo intelectual, cons-tantemente ao serviço da comunicação, do en-tendimento e da solução de problemas” (p. 46),e se adoptarmos a definição de Bruner (1990)de que o “conhecimento é aquilo que se parti-lha num quadro de discurso, dentro de uma

A escrita para aprender matemática

Inácia Santana*

* 1.º Ciclo do Ensino Básico.

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comunidade textual”, em que “as verdades sãoo produto da prova, do argumento e da cons-trução, mais do que da autoridade textual oupedagógica” (p.46), então podemos afirmarque só se conceptualiza através da linguagem,a qual será tanto mais estruturada e estrutu-rante se for mediada pela escrita enquanto dis-curso construído internamente. De acordocom as teorias socioculturais e no quadro daperspectiva discursiva do Movimento da Es-cola Moderna, Sérgio Niza (2007) sustenta queé assim “para todas as aprendizagens curricu-lares de que a própria escrita é a estrutura, oandaime e a expressão” (p.14).

O ensino da matemática na escola

O ensino da matemática na escola, como damaior parte das disciplinas, tem sido domi-nado pelo ensino expositivo do professor paratodos ao mesmo tempo, com a posterior apli-cação, pelos alunos, de exercícios do manualque visam o treino de procedimentos e de ha-bilidades, bem como a memorização dos con-teúdos. Estes conhecimentos mecanizados, deque os alunos não sabem, muitas vezes, expli-car as razões, focalizados que estão apenas noresultado correcto, confundem-se com sabermatemático. Lladó e Jorba (2001) comparamesta metodologia à exposição dos alunos a se-quências de fotografias, que podem abarcaruma grande quantidade de noções mas de quese desconhece o processo e as razões que estãopor detrás de tal selecção, só se podendo ver oproduto final, as imagens.

Segundo os mesmos autores, “esta opçãodidáctica vem, frequentemente, acompanhadade uma validação das matemáticas como umsistema hipotético-dedutivo e da opinião deque o seu estudo é necessário para aprender a‘pensar correctamente’ em termos de abstrac-ção e de dedução” (p. 219).

Genericamente, neste tipo de ensino, poucose recorre à explicitação argumentativa das op-ções tomadas na resolução dos vários proble-mas ou “à interpretação de resultados numéri-cos no interior de um determinado contexto”

(Lladó & Jorba, 2000, p. 220) já que a sua lin-guagem, com a simbologia que a identifica, seauto-sustenta enquanto fundamentação.

A matemática como actividade humana

A reflexão sobre o que se aprende no domí-nio da matemática, para quê e em que contexto,enquadra-se num outro domínio de preocupa-ções. Trata-se de “tornar os alunos capazes deinterpretar e de construir modelos matemáticosda realidade através de um tipo de actividadedidáctica expressamente delineada que permitaexplicitar as características daquilo que pode-ríamos denominar de actividade matemática”(ibidem. p. 221) ou matematização.

De acordo com Fosnot e Dolk (2001)

É impossível falar de matematização sem fa-lar de modelização. Os modelos matemáticossão mapas mentais de relações que podem serusados como ferramentas para resolver proble-mas. Estas imagens ou mapas mentais são for-mas poderosas de ajudar a compreender e re-presentar o nosso mundo.

Situarmo-nos nessa perspectiva implica re-flectirmos sobre a dimensão da matemáticaenquanto actividade humana e as suas caracte-rísticas, as quais, segundo Lladó y Jorba (2000),apresentam:

– uma finalidade, resolver problemas e cam-pos de problemas, gerados por determinadasnecessidades sentidas ao longo da história.

– um aspecto polifónico, isto é, tal comoacontece em qualquer outra actividade humana,não tem sentido considerar uma pessoa levandoa cabo, isoladamente, uma actividade matemá-tica.

– elementos mediadores, instrumentos se-mióticos, em particular o uso da linguagem.

– modelos de sistemas mais complexos quese identificaram e separaram do âmago da expe-riência humana. (p. 222).

Equacionar o papel da matemática no de-senvolvimento humano conduz-nos, inevita-velmente, a uma outra forma de enquadrar o

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seu ensino e a sua aprendizagem na escola. Se-gundo as Professional Standarts for TeachingMathematics, traduzido e editado pela Asso-ciação de Professores de Matemática (APM,2008), é preciso cuidar das condições do ensinoda matemática, dando relevo a:

tarefas matemáticas significativas;papel do professor no discurso;papel do aluno no discurso;instrumentos para aperfeiçoar o discurso;ambiente de aprendizagem;análise do ensino e da aprendizagem (p. 18).

Estamos no domínio dos modelos de en-sino e de aprendizagem, os quais se organizampara além das áreas disciplinares, num sentidounilateral ou, pelo contrário, atribuindo aosalunos e aos professores um outro papel, “re-colocando-os como mutuamente envolvidosem empreendimentos compartilhados” (Ro-goff, Matusov & White 2000, p. 329). Trata-se,neste caso, da criação de condições ecológicaspara a emergência de uma comunidade deaprendizagem, como tem vindo a ser desen-volvido pelo Movimento da Escola Modernanas últimas décadas em Portugal. Num tal con-texto, assume-se que o conhecimento não éexclusivo de alguns, nem é objecto de compe-tição entre os alunos. Pontecorvo (2005), sus-tentando-se em Bruner (1990), considera que aaprendizagem que se constrói na escola cor-responde, nesta perspectiva, a um conheci-mento situado e distribuído

no sentido de que não está apenas contidona mente de um só, mas também na mente dosoutros, com os quais se pode falar, nos instru-mentos que são usados, nos livros lidos, nasanotações de livros ou de comunicações recebi-das, nos arquivos do próprio computador, na ca-pacidade de servir-se dos outros como recursos,consultando-os quando for necessário (p. 191).

É numa dinâmica desta natureza que a es-crita se inscreve, como um dos principais arte-factos cognitivos, na designação de Norman(1989), citado por Pontecorvo (2005), ou ampli-

ficadores culturais, como prefere chamar-lheBruner (1990, cit. Pontecorvo, 2005), já queconstitui uma ferramenta essencial para a es-truturação de “práticas discursivas articuladas”(Pontecorvo, 2005, p. 190) para a construçãocompartilhada dos conceitos.

As funções da escrita na apropriação da linguagem matemática

As diversas funções da escrita cumprem-senum processo de escrita para aprender.

Lembrando Miras (2000), a escrita desem-penha uma função comunicativa, que estevena sua génese, uma função representativa, jáque através dela nos apercebemos melhor dasnossas representações do mundo, e uma fun-ção epistémica que, numa interacção dinâmicacom o próprio pensamento e com outras vozes(Camps, 2003) internalizadas, promove a cons-trução de conhecimento. A mesma autora con-clui que a última função integra as duas pri-meiras, num movimento do inter para o intra--subjectivo, mediado pelas práticas discursivasde uma comunidade textual.

Smole (2001) defende:

Escrever pode ajudar os alunos a aprimora-rem percepções, conhecimentos e reflexões pes-soais. Além disso, ao produzir textos em mate-mática, tal como ocorre em outras áreas do co-nhecimento, o aluno tem oportunidades de usarhabilidades de ler, ouvir, observar, questionar,interpretar e avaliar seus próprios caminhos, asacções que realizou, no que poderia ser melhor.É como se pudesse reflectir sobre o próprio pen-samento e ter, nesse momento, uma consciênciamaior sobre aquilo que realizou e aprendeu(p. 31).

Trata-se de criar condições para a produçãode uma escrita com sentido comunicativo nasala de aula, de modo a que o discurso argu-mentativo se vá construindo nas produções es-critas dos alunos. Tendo em conta que a es-crita, enquanto registo do pensamento, não seperde, cada um pode sempre voltar ao quepensou em determinado momento e interagir

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com as suas próprias concepções, assim comocom as dos colegas, negociando enunciadosprogressivamente mais próximos do vocabulá-rio formal, na procura de argumentos matema-ticamente válidos (Boavida et al., 2008).

Por outro lado, ao analisar produções escri-tas no domínio das aprendizagens matemáti-cas, tornam-se evidentes as concepções dosalunos acerca do assunto sobre o qual reflecte,quais as suas conquistas e as suas incompreen-sões, o que se enquadra na função representa-tiva da escrita, permitindo ao professor intervirmais assertivamente (Smole, 2001).

A ideia de Bruner de que a construção deconceitos implica a apropriação de um dis-curso específico de cada área do saber, aceitenuma comunidade textual, reenvia para umaforma de estruturação do conhecimento a par-tir de um complexo processo de intertextuali-dades, através da interacção com os diversosenunciados, orais ou escritos, cuja apropriaçãoé facilitada pela escrita comunicativa.

Segev-Miller (2005), num estudo realizadosobre os efeitos da escrita pessoal (elaboraçãode diários de bordo), na realização de tarefasacadémicas que implicavam a paráfrase e a in-tertextualidade, mostra que, “quando escre-vem a partir de outras fontes, os alunos são so-licitados a inventar as suas próprias macro-pro-posições (novas ideias) a partir de diferentes –e às vezes mesmo contraditórias – macro-pro-posições de múltiplas fontes textuais, e organi-zar estas numa estrutura conceptual não exis-tente anteriormente” (p. 583), o que se enqua-dra num processo de transformar o conhecimento(Scardamalia & Bereiter, 1987) para dele seapropriar, ao ter de o dizer por escrito.

Mas o efeito mais notável deste estudo foi orecurso, pelos estudantes, a estratégias metacog-nitivas que “incluem o conhecimento declara-tivo e procedimental do processo cognitivodos aprendentes” (Segev-Miller, 2005, p. 539).

Com efeito, tendo em conta o carácter re-cursivo da escrita e o diálogo interno que pres-supõe, podemos afirmar que o esforço de ar-gumentar por escrito as razões das opções to-

madas durante as actividades matemáticas es-timula o pensamento metacognitivo e favoreceo processo de conceptualização.

3 – Descrição do processo

A instituição da escrita da matemática, numcontexto onde os alunos escrevem por inicia-tiva própria com fins comunicativos, colocavao problema do sentido social, isto é, como sepoderia integrar nos circuitos de comunicaçãoexistentes. Parece uma questão paradoxal,uma vez que as condições comunicativas, mui-tas vezes as mais difíceis de conquistar na es-cola, estavam adquiridas. No entanto, face àespecificidade da escrita da matemática, houveque percorrer internamente um caminho, en-quanto professora, na procura da forma de in-tegrar esta escrita nos quotidianos da turmasem que se tornasse apenas em mais uma ta-refa escolar a mando da professora, mas quefosse sentida como útil e comunicativa, man-tendo as características de uma escrita paraaprender.

Não se tratava de insistir na escrita da ma-temática como um fim em si, mas porque ogrupo apresentava dificuldades reais neste do-mínio, como é visível no diário de 19/09/09:

No cálculo mental estão muito “perros”. De facto,fui ficando cada dia mais desanimada quando, naApresentação de Produções, lançavam desafios decálculos a que só dois ou três se propunham respon-der.

Decidi então, no dia em que lemos o programa dematemática, propor-lhes que registássemos já o queestava adquirido por ter sido trabalhado no ano ante-rior. Então perguntei, a propósito das contagens,quem se propunha ser avaliado nas contagens de 2em 2 e de 3 em 3 e nas contagens regressivas. Poucoa pouco foram levantando o dedo e, os mais receosos,aventuraram-se. Combinámos que as contagens ti-nham de ser rápidas para se pintar o rectângulo todo.Se fosse mais lento ou mais hesitante, pintava-se me-tade do rectângulo. Os que se enganavam ou faziampausas grandes, deixávamos por pintar para retomarmais tarde. Ainda foram alguns os que deixámos por

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pintar, o que me preocupa bastante. (Diário profissio-nal – 19/09/09)

Fui-me apercebendo do meu sistema decrenças acerca do ensino da matemática (Vila& Callejo, 2006), o que foi fundamental paradesmontar concepções implícitas (Bruner,1996) neste domínio.

Assim, nos primeiros tempos, tratei os tex-tos da matemática como os demais escritossurgidos na sala, embora de forma mais for-çada, ou seja, a partir de propostas de escrita,na convicção de que, lidos à turma, revistos co-lectivamente e coleccionados no livro de tex-tos, passariam a criar nos alunos apetênciapara essa escrita. Depois de diversas conversassobre a importância da escrita para aprender,procurando que essa designação entrasse nonosso vocabulário, negociei com os alunosmais um momento para a revisão colectiva detextos na agenda semanal. Alguns excertos dodiário de aula mostram o início do processo:

Ligando ao objecto de estudo pensei que, havendodois momentos de revisão colectiva de texto, num de-les podíamos trabalhar um texto narrativo ou de opi-nião e no outro um texto explicativo ou informativo,onde cabiam os textos para aprender outras áreas docurrículo. O momento de escrita serviria para lançardesafios sobre aspectos curriculares em desenvolvi-mento e, no segundo tempo para trabalho de texto,poderíamos trabalhar um desses textos. De facto, a li-teratura reforça a ideia fundamental de que não bastaescrever para aprender com a escrita. É preciso reveresses textos para avançar na reflexão sobre a escrita.(Diário profissional– 11/10/09)

Nos momentos de escrita já fiz algumas propostasdecorrentes de aspectos que estão a aprender ou quejá aprenderam. Deste modo, propus uma escrita sobreos números – para que servem, porque estão organi-zados desta forma (na base 10, já que temos estado atrabalhar a dezena). Não me pareceram muito entu-siasmados e, sobretudo, vejo que lhes é difícil escreversobre estas coisas. Se já é difícil tomar consciência doque se pensa sobre o assunto, quanto mais escrever!

Os que se aventuraram a dizer mais coisas paraalém de “os números são importantes para aprender-mos”, fizeram coisas como:

“Eu gosto dos números porque eles aju-dam-nos a contar as horas e para a mate-mática. Os números servem para tudo e es-tão em todo o lado.” – João

“Uma dezena são dez e se pomos 3+4=7porque os números são importantes por-que podemos aprender matemática. Eugosto de fazer contas de dezenas. A mate-mática é divertida.” – Gonçalo

“Eu gosto dos números porque ajudam acontar porque dá para contar de várias ma-neiras e também dá para contar na recta.Vemos os números nos autocarros, nasmatrículas dos carros e nos supermercadose nos postes das ruas e também tenho nomeu micro-ondas, nos ténis e nas camiso-las e na balança.” – Nadine

Na próxima semana iremos trabalhar um destestextos, depois de se lerem todos.

Acho que precisamos de conversar um pouco an-tes de se iniciarem na composição escrita. Talvez pos-samos mesmo elaborar alguns tópicos para que sepossam balizar.

(Diário profissional– 18/10/09)

Esta semana revimos o texto sobre os números. Aocontrário do que fazemos com os textos de opinião ecom as narrativas, lemos os textos de todos os alunose combinámos começar pelo que tivesse mais informa-ção, acrescentando depois aspectos que outros tives-sem escrito nos seus textos. Escolheram o da Mat-hilde. Tal como eu imaginava, esta construção acabapor ser uma forma de reflectir sobre o que estamos atrabalhar e permite clarificar e generalizar conceitos.Ficou então:

Os números

Nós gostamos de fazer coisas com os nú-meros. Eles servem para fazer contas e paracontar de várias maneiras: de dois em dois, detrês em três, de quatro em quatro, de cinco emcinco, etc.

Servem para ler as medidas da tempera-tura e outras coisas, para ordenar, para con-tar,…

Existem números em todo o lado: nas por-tas das casas, nos autocarros, nas matrículasdos carros, nos preços dos supermercados, no

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dinheiro, nas balanças, nas camisolas, nos sa-patos, nas fichas, no computador, nas réguas,nas páginas dos livros, nos Planos de Traba-lho Individual,…

Os números nunca acabam. Podem orga-nizar-se em grupos de dois e chamam-se pa-res, em grupos de doze e são dúzias. Os nú-meros na grelha estão organizados em gruposde dez. Dez unidades é uma dezena e dez de-zenas é uma centena.

Texto construído pela turma a partir darevisão do texto da Mathilde – 22/10/09

(Diário profissional – 25/10/09)

No entanto, este foi o único texto desta na-tureza trabalhado colectivamente, uma vezque me fui apercebendo de que o tratamentodesses textos não seria da mesma ordem. So-corri-me, então, de diversos instrumentos paraalimentar a necessidade de escrever sobre amatemática: a disponibilização de um diário(apareceu na sala, por doação, um diário, quedecidimos ser para quem quisesse escrever oque quisesse sobre a matemática, independen-temente de o ter escrito em outros sítios); aconstrução de um dossiê que coleccionasse to-das as aquisições do grupo e que constituísseuma espécie de memória do nosso patrimóniode saberes da matemática, consultável porqualquer um a qualquer hora.

Desde o início percebi que este era um projectocomplicado e não sabia se conseguiria desafiar os me-ninos para esta ousadia. Tentei encontrar instrumen-tos de registo que dessem sentido à escrita da mate-mática, pelo que combinámos organizar um dossiêcom separadores (estratégias de cálculo mental, dicio-nário da matemática, textos de opinião sobre a mate-mática, descobertas e outras coisas que aprendemos eproblemas) para ir registando as coisas do quotidiano.

Também senti que era preciso ajudá-los a perce-ber o sentido desta escrita, para não se transformarapenas numa tarefa imposta ou proposta pela profes-sora em momentos destinados para o efeito. Depois dealgumas propostas dessa natureza, isso tornou-se-memais claro. Assim, a última vez (no dia 26 de No-vembro) que lhes propus escreverem sobre a matemá-tica, pedindo-lhes que se focalizassem no cálculo men-

tal, percebi que não iam muito além do que já tinhamdito genericamente, para me agradarem, sobre a im-portância da matemática e dos números, à seme-lhança do texto da Mathilde trabalhado colectiva-mente. Destaca-se o texto da Constança, pela sua ca-pacidade metacognitiva, a quem tive de servir deescriba, a partir de certa altura, para registar a ri-queza de pensamento, já que a lentidão da sua escritanão se compadece com o desenvolvimento do seu ra-ciocínio:

O cálculo ajuda-nos a pensar algumasmaneiras de fazer contas que não conse-guimos resolver logo. A estratégia que maisgosto é tirar as dezenas e as unidades e adecomposição de números, porque [osmais pequenos] são mais fáceis.

Tiro as dezenas das unidades, meto nofim as unidades e primeiro as dezenas evou fazendo as unidades partindo-as aomeio. Vou fazendo aos bocadinhos para fa-zer contas mais fáceis.

Já usava isto no primeiro ano mas nãosabia que usava.

Constança

Penso que à estrutura e linguagem desta escritanão é indiferente o trabalho que fizemos colectiva-mente para tomada de consciência das estratégias decálculo mais utilizadas por eles. Assim, numa sessãocolectiva de cálculo mental, registámos no quadro asdiversas formas que surgiram para resolver o mesmocálculo:

Relativamente a cada uma das estratégias, emconjunto tentámos dar-lhe um nome para a identifi-carmos e para fazermos uma breve descrição.

1) Juntar as Dezenas e as UnidadesJuntámos as dezenas com as dezenas e transforma-mos as dezenas em unidades. Depois juntamos asunidades com as unidades. A seguir somamos os doisresultados.

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2) Decomposição de númerosPodemos fazer a decomposição dos números(24=20+4) e depois contamos tudo. Podemos de-compô-los em grupos 10.

3) Contar de 10 em 10 a partir do primeiro número24 mais 10 é 34 e depois é só juntar os que faltampara chegar a 36.

4) Estratégia dos duplosJuntamos primeiro os iguais e depois junta-se o resto.

O termo decomposição fui eu que avancei, masdesafiei a explicarem o que significava. Como é aConstança que mais usa esta estratégia logo expli-citou:

É transformar números maiores em números maispequenos. (Constança)

Foi com esta definição da Constança que iniciá-mos o dicionário da matemática.

Numa outra sessão, depois de experimentaremconstruir figuras simétricas e não simétricas no geo-plano, e da discussão a partir da apresentação dostrabalhos, foi a vez do Pedro definir o conceito de fi-guras simétricas:

É quando uma é o espelho da outra. (Pedro)

E o eixo da simetria É uma linha ao meio como se fosse o espelho da si-

metria. (Pedro)

Olho de novo para os textos sobre o cálculo mental,agora com um olhar menos censurante e vejo que afinaloutros meninos reflectem sobre aquelas estratégias:

Eu gosto da matemática porque gosto deaprender. A minha maneira melhor de pen-sar é juntar as dezenas e as unidades por-que nunca me engano. A matemática ajudaa desenvolver a matemática e o cálculomental. Existem cinco maneiras que são: osduplos, juntar dezenas e unidades, decom-posição de números, contar de 10 em 10 apartir de números, fazer rectas e escrever amaneira como pensamos. A matemática é:figuras simétricas, as maneiras como pen-samos, as contas, a tabuada, saber o que énúmeros por extenso e saber o que signi-fica os sinais da matemática.

Francisco

Eu já sei todo o cálculo mental. Eu nuncatinha aprendido a juntar as dezenas com as

unidades mas já tinha usado estas contas.Eu gosto de todas as estratégias mas a maisfácil para mim é contar de 10 em 10. Eugosto de fazer cálculo mental.

Fábio Teixeira

Eu gosto muito da matemática porqueaprende-se muitas contas de menos e demais e quando fazemos contas dá maisjeito juntar as dezenas e as unidades. Hámuitas estratégias que são importantes masas dezenas são mais fáceis. A matemáticaajuda muito nas contas: são as dezenas quesão mais fáceis porque numa conta é sójuntar as dezenas com as dezenas e as uni-dades com as unidades. As contagens sãomuito importantes e também os númerosimpares. Eu gosto muito de contar.

Nadine

No entanto, o hábito de escrever para explicar umraciocínio ou uma forma de pensar está longe de estarintegrada. Como diz Lladó e Jorba (2000), essa es-crita deve ocorrer no âmbito de uma sequência deaprendizagem, ou seja, no decorrer de algum trabalhoou desafio colectivo. Segundo estes autores, “A lin-guagem assume então um papel mediador na interac-ção social entre os alunos e entre estes e o professor.O pedido sistemático de verbalização por parte doprofessor favorece nos alunos a construção (por inte-riorização das interacções sociais já vividas e das ima-ginadas no futuro) de um ‘espaço mental’ em que sepodem mover utilizando uma ‘linguagem interna’para decidir caminhos de resolução, para avançar ar-gumentos e contra argumentos, para controlar o pró-prio processo de modelização ou de resolução, paravoltar atrás e refazer o caminho ou para mudar deponto de vista: em suma, podem utilizar a função pla-nificadora da linguagem” (pp. 231, 232) (Diário pro-fissional).

O diálogo que fui fazendo com os autoresfoi fundamental para me situar face aos dile-mas entre o medo de uma didáctica sempre di-rigista e a necessidade de intervir na constru-ção de uma linguagem matemática; entre omedo de condicionar uma escrita mais genuínae a importância de ajudar a estruturar um dis-curso promotor do desenvolvimento do pensa-mento matemático. Foi-se-me tornando claroque os textos sobre a matemática podem sur-

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gir em diversas situações, mas naturalmentedecorrem, muitas vezes, do trabalho curricularna turma, sendo que, “o objectivo da produçãode texto é que determina quando ele será soli-citado ao aluno” (Smole, 2001, p. 35).

Llardó e Jorba (2000), autores que me foramguiando neste percurso, reforçam a ideia deque a interacção entre as situações criadas emsala de aula, com a negociação de significadosdaí decorrentes, e a escrita dos alunos deve serconstante. Segundo eles, para desenvolver asactividades cognitivo-linguísticas no domínioda matemática, importa:

Criar situações comunicativas relevantes: b) Colocar os alunos em situação de produ-

ção de textos a partir do início da escolaridade. c) Considerar os textos produzidos pelos alu-

nos como unidades de comunicação e de análise. d) Abordar a análise dos textos a partir do

modo como se organizam, a partir das regras dapragmática que regulam a sua utilização e dasregras da semântica (p. 239).

Assim, passei a valorizar e a narrar, no diá-rio profissional, algumas situações de trabalhoem colectivo, que penso terem constituído re-ferências para os alunos e momentos gratifi-cantes para ambas as partes, por se evidenciaruma co-construção do pensamento matemá-tico, através de momentos de comunicaçãomuito ricos de intersubjectividade:

Uma das hipóteses de escrita é a invenção de pro-blemas e a escrita das conclusões a partir de váriasformas de resolução. Um dia o Francisco trouxe o se-guinte problema que foi proposto à turma para resol-ver (não sei se o foi buscar a algum lado mas ele as-segurou que não).

Problema inventado pelo Francisco

O avô do João vai fazer uma bicicletapara os seus netos. Foi à sucata e trouxe10 pedais, 12 rodas e 5 guiadores.Quantas bicicletas consegue fazer?

Pensando eu que seria muito fácil de resolver, foium verdadeiro descalabro. Apenas dois ou três o con-

seguiram, os outros utilizaram os dados para fazercálculos perfeitamente ao lado. Na apresentação, pro-pus-lhes que analisássemos as várias formas, paraexplicarem as razões daquela confusão e registámos.

Vimos que muitos meninos não conseguiram re-solver porque:

– não sabiam o que eram guiadores;– pensavam que tinham de fazer uma conta com

os números;– não perceberam bem a pergunta do problema. Então fomos ver as contas que eles fizeram e pen-

sámos nas perguntas que o problema tinha de terpara se resolver daquelas maneiras:

10 + 12 + 5 = 27

Questionei qual seria a pergunta para estaconta. Concluímos (não registei quem disse e te-nho de passar a fazê-lo) que a pergunta tinha deser:

Quantos objectos é que o avô do João foibuscar à sucata?

Pudemos assim elaborar a resposta:R: O avô do João foi buscar 27 objectos

à sucata.

2 + 2 + 1 = 5

rodas pedais guiadores (esta clarificação foi feita depois)

Vimos que para esta conta a pergunta tinhade ser:

Quantos objectos é que ele utilizou parafazer uma bicicleta?

Pudemos assim elaborar a resposta:R: Utilizou 5 objectos para fazer uma

bicicleta

Mas alguém disse que ainda se podiam fazermais perguntas. Peguei logo na ideia e desafiei-osa pensar sobre isso:

Quantos objectos ele utilizou ao todo?

5 + 5 + 5 + 5 + 5 = 25 ou 5 X 5 = 25R: Utilizou 25 objectos ao todo.

Quantos objectos lhe sobraram depoisde fazer as bicicletas:

27 – 2 = 2R: Sobraram-lhe 2 objectos (duas ro-

das)

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Então fizemos uma breve reflexão e registámos asconclusões:

Dá para fazer 5 bicicletas porque se acabar umdos objectos já não dá para fazer mais.

Temos de entender bem as perguntas do pro-blema.

Temos de saber o significado das palavras. Senão soubermos temos de ir ver ao dicionário ou per-guntar a alguém.

Podemos resolver problemas com contagens, comdesenhos, com escrita, com contas e com esquemas

Tudo isto ficou registado no dossiê da matemática.Quando, há dias, o trouxe para casa para o actuali-zar, a Nadine perguntou-me onde é que ele estava, oque me parece ser um bom indicador de que, a poucoe pouco, este instrumento de registo vai fazendo partedo grupo, assim como a escrita para que ele desafia.

Mas também há situações que, tendo sido ricas doponto de vista da interacção, não consegui desafiar osmeninos para as descreverem. No dia de Reis a escolatoda foi cantar as Janeiras pelas ruas, tendo avisadopreviamente a Junta de Freguesia, o Jardim de Infân-cia da Paróquia e a Direcção do Agrupamento, paraestarem preparados para nos ouvirem can-tar. Foi muito interessante. Melhorámos esteaspecto de avisar as entidades porque no anoanterior foi um bocadinho frustrante não ter-mos recebido nada em troca, como reza a tra-dição. Assim, este ano recebemos imensos re-buçados que foram depois distribuídos por cada turmaem função do número de alunos. Por isso, nessa tarde,percebi logo que o nosso plano de trabalho teria de seralterado, já que dois sacos de rebuçados davam panopara mangas para resolvermos o problema da distri-buição. Foi o que fiz quando cheguei à sala:

– Temos aqui dois sacos de rebuçados que nos de-ram. Como é que vamos fazer?

– Damos um a cada um. – disse a Joana– Mas dá mais do que um a cada um. – disse o

Francisco.– Quantos é que acham que dá a cada um? – eu– Dá p’raí 3 a cada. – disse alguém– Então se dermos 3 a cada um quantos rebuça-

dos temos de ter nos sacos?(eram 20 alunos na altura, agora já são 21)Como não arriscaram, perguntei:– Como podemos saber?– Contando de 3 em 3.Foi o que fizemos. Depois tínhamos de contar os

rebuçados para vermos se tínhamos, de facto, 60 re-buçados. Voltei a perguntar:

– Como podemos contar os rebuçados?– Podemos contar de 10 em 10. – disse alguém

que não registei.

Fizemos, então, grupos de dezenas. Um de cadavez vinha contar uma dezena. Só tinha de explicitarcomo o fazia e uns contavam de 2 em 2, outros faziamgrupos de 5, outros de 3 … e, a propósito, lá íamoslembrando os pares e os ímpares, os grupos de 2, de5 e de 3 que eram precisos para fazer o 10… Simul-taneamente íamos contando as dezenas e traduzindoos grupos em unidades de rebuçados. Foi muito im-portante para os meninos para quem os conceitos dedezena e de unidade eram ainda muito abstractos.

Concluímos, no final, que o primeiro saco tinha104 rebuçados. Então punha-se o problema agora aocontrário. Quantos rebuçados dá a cada um? E se fo-rem só 100? Foram atirando estimativas. A Joana,surpreendentemente, disse logo 5. Pedi para explicarporquê mas não soube explicar. Deduzo que intuiu,mas não conseguiu perceber porquê. Mas o Jónatasdisse:

– Eu contei de 5 em 5 até 100 e deu 20. Pedi logo para ele ir representar no quadro. Ficou

um bocadinho atrapalhado, mas eu sugeri que repre-sentasse os números enquanto eu ia desenhando osquadrados.

Logo a seguir o Pedro escreveu no seu caderno, apropósito da maneira de contar do Jónatas:

Mas o Francisco, como não podia deixar de ser,também quis dar o seu contributo e veio escrever aoquadro:

– Contei de 20 em 20 para trás, e deu-me 5 gru-pos. – Francisco

Já estávamos a fazer as subtracções sucessivas dadivisão, o que tentei que os outros percebessem, em-bora não falando em divisão.

A Constança contou pela “casa dos números”:dividiu cada linha de dez números ao meio e re-parou que cada linha tinha 2 vezes 5 números, oque a ajudou a contar mais depressa.

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Ficou claro que dava 5 rebuçados a cada meninoe sobravam 4.

– É um para cada professora. – (eu, a Albertina eas 2 estagiárias) disse alguém.

Depois, ainda havia o outro saco para distribuir.Porque já tínhamos pouco tempo e estavam cansados,pedi à Albertina para ir contando, com a Joana e oJorge, as dezenas dos rebuçados que havia no outrosaco. Contaram 73. Voltei a perguntar quantos davapara distribuir a cada um. Ficaram calados. Lanceiuma pista:

– E se fossem 60?

Alguém se lembrou que dava 3 a cada um. Con-firmámos contando de novo de 3 em 3.

A seguir foi fácil calcular quantos rebuçados davaa cada um e quantos sobravam. Lá representámos:

5 + 3 = 8 (rebuçados que calharam a cada me-nino)

73 – 60 = 13 (rebuçados que sobraram do 2.ºsaco)

13 + 4 = 17 (rebuçados que sobraram ao todo)

Este foi um processo muito gratificante. Por issotentei que o descrevessem posteriormente, já queaquela tarde foi totalmente ocupada com estes racio-cínios orais, em interacção.

Houve dois pares que o tentaram fazer posterior-mente. No entanto pareceram-me muito pobres face àriqueza do processo.

A Nadine e a Joana contaram num texto o que sepassou:

Nós tínhamos 104 rebuçados brancos eno outro saco tínhamos mais rebuçados.Havia 78 rebuçados vermelhos.

Fizemos contas de 2 em 2 para distribuiros rebuçados.

Os meninos pensaram de várias manei-ras. Demos 3 rebuçados vermelhos e 5brancos.

O Pedro e o Jorge contaram de outra forma:

A nossa turma aprendeu uma coisa so-bre rebuçados. Fizemos isto porque erammuitos rebuçados e assim distribuímos re-buçados de 10 em 10 para ser mais de-pressa.

Nós gostámos de fazer o problema dosrebuçados.

Mas como não acabaram, por proposta minha oFábio Gonçalves e o Pedro juntaram-se comigo numTEA, para o tentar completar. Então seguimos o es-quema passado a computador e arquivado no dossiêda matemática. Ficou:

Não podíamos distribuir os rebuçados 1a 1 porque demorava muito tempo e contá-mos de 10 em 10.

Na maneira do Jónatas contámos de 5em 5 para distribuir os rebuçados para cadamenino e deu cinco.

O Pedro fez a conta da multiplicaçãoporque assim demorava menos tempo.

A Constança dividiu a casa dos númerosem duas partes e descobriu que cada linhatinha duas vezes o cinco. Depois contou dedois em dois e deu 20. descobriu que den-tro do cem havia vinte vezes o cinco.

………….Prevalecem, contudo, algumas questões:Será que isto nos leva a algum lado?

Será este o caminho?

Estarei a enfatizar demasiado o lado didáctico?

Estará a escrita dos alunos refém dessa tendênciapor via das minhas expectativas ou mesmo das mi-nhas crenças?

Diário profissional– 16/01/10

Foi por esta altura que, solicitando, na Pla-taforma Moodle, a ajuda de Sérgio Niza, nocontexto deste projecto formador e susten-tado, ele me respondeu sabiamente que estestextos “nasceram colados ao padrão do ‘texto li-vre’” e que era preciso “torná-los em textos funcio-nais de explicitação do trabalho matemático integra-dos na actividade corrente: passar a apropriação da

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matemática, o seu percurso individual e colaborativopara o papel para o tornar comunicante”.

Foi o essencial para tomar consciência deque o fundamental da construção e reconstru-ção da linguagem matemática passava pelo tra-balho com os alunos em TEA, de forma a inte-ragir mais de perto com o seu pensamento, emprocessos mediados pela escrita.

A escrita da matemática durante o TEA

O percurso de aprendizagem dos alunoscontinuava a deixar-me insatisfeita, sobretudono que se refere à agilização do cálculo, ferra-menta fundamental para a progressão dasaprendizagens no domínio da álgebra. Assim,a partir do 2.º período, com as estagiárias, dia-riamente na sala, combinámos negociar comos alunos a intensificação do trabalho da ma-temática durante o TEA em duas vertentes:por um lado no apoio a dificuldades emergen-tes, por outro, na criação de mais uma activi-dade incluída no leque de opções do TEA, de-signada de experimentação matemática. Tinhaesta segunda como objectivo colocar os alunosface a desafios no domínio dos vários blocosda matemática a partir de um guião. No en-tanto, como nesta altura dispúnhamos de con-dições excepcionais do ponto de vista dos re-cursos humanos, decidimos fazê-lo de formaguiada por um adulto, já que, nos pequenosgrupos que se iam inscrevendo, se podia inte-ragir mais de perto com as suas descobertas.Estas partiam da identificação de regularidadese de relações estabelecidas, as quais, depois deescritas, individualmente ou a pares, eram pos-teriormente partilhadas com o grupo num mo-mento de matemática colectiva.

Relativamente ao trabalho a partir das suasdificuldades, a escrita da matemática encon-trou, finalmente, o seu lugar na apropriação dalinguagem e do pensamento matemático,como evidenciam os excertos que se seguem:

Propus-me trabalhar com a Mathilde as opera-ções que ela tinha errado no PIT da semana anteriore convidei o João e o Diogo a juntarem-se ao grupo,

uma vez que também eles têm dificuldade nestas coi-sas.

Começámos a fazer as operações que a Mathildetinha errado e disse-lhes para fazerem como lhesdava mais jeito. Registei a dificuldade em, por umlado, deixar que encontrassem e explicitassem a es-tratégia que lhes dava mais jeito e, por outro lado, anecessidade de lhes dar pistas para avançarem. Àmedida que iam conseguindo realizar as operações,com a minha ajuda convidava-os a escreverem sobreo que tinham feito.

Assim, o João fez, com ajuda:14 + 26 = 10 + 4 + 20 + 6 = 40E escreveu (não tive em conta os erros ortográficos

nas transcrições que faço):

Eu pensei com as unidades e as dezenas– João

A seguir fez:11 + 39 = 10 + 1 + 10 + 10 + 10 + 9 = 50Então escreveu:

Eu contei de 10 em 10 e o 39 vale 3 �10. – João

Conversei com ele sobre o que era aquilo que eletinha feito e que já tínhamos aprendido. Com a ajudados colegas lembrámos que era a decomposição. En-tão escreveu:

Decompus o 39 e contei de 10 em 10.– João

A seguir:55 + 39 = 55 + 10 + 10 + 10 + 9 = 94Então, com a minha ajuda, escreveu o que tinha

feito:

Eu decompus o número 39 em gruposde 10. Fiz 3 grupos de 10. Depois contei dedez em dez a partir do número cinquenta ecinco e assim foi mais fácil. – João

Por influência da conversa com o João, a Mathildefez:

11 + 39 =11 + 10 + 10 + 10 + 9 = 50Escreveu:

Escrita sobre as estratégias

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Eu decompus o 39 em grupos de 10 edeu 3�10 e depois tive de juntar mais 9.– Mathilde

Numa outra:54 + 18 = 54 + 10 + 8 = 72Escreveu:

Eu decompus o 18 em grupos de 10 edeu um grupo de 10 e depois juntei 8 e deu72 – Mathilde

Ao Diogo, que logo percebi que tinha menos difi-culdade, fui apenas tentando que clarificasse o quedecompunha para que não perdesse de vista o valorposicional do número.

Em 14 + 26 fez:10 + 20 = 304 + 6 = 1030 + 10 = 40Explicou:

Eu juntei o 1 (depois acrescentou de-zena, porque o questionei quanto a isso) eo 2 dezenas depois faltou-me juntar o 4com o 6 depois fui até ao resultado. – Diogo

Em 11 + 39 = fez:10 + 30 = 401 + 9 = 1040 + 10 = 50E escreveu:

Eu juntei 1 dezena com 3 dezenas, de-pois juntei o 1 com o 9 e deu o resultado,é cinquenta. – Diogo

Relativamente à operação:55 + 29 =50 + 20 = 705 + 9 = 1470 + 14 = 84 (decompôs ainda: 70 + 10 = 80 e

0 + 4 = 4)Escreveu:

Eu fiz mais contas porque a conta fezum número grande, eu estive a decompornúmeros – Diogo

Por fim:39 + 16 = 5530 + 10 = 40

9 + 6 = 1540 + 15 = 55 porque 40 + 10 = 50 e 5 + 0 = 5.

Então escreveu com a minha ajuda:

Eu decompus os números em dezenas eunidades. Juntei as dezenas primeiro e de-pois juntei as unidades. Mas fiz númerosgrandes e estive a decompor outra vez. –Diogo

Verifiquei duas coisas interessantes:1 – A escrita, que necessariamente era dialogada,

obrigou a uma progressiva clarificação do processo e ànecessidade de dar nomes às coisas.

2 – À medida que iam avançando no trabalho, onível de explicitação ia sendo cada vez maior, o quesimultaneamente lhes ia também facilitando a exe-cução.

Acho que todos ficámos gratificados com este tra-balho. De tal modo que, à tarde, numa sessão colec-tiva de matemática, no trabalho de construção das ta-buadas em grupos de 4 meninos, sem que tal tivessesido pedido pela Mariana (estagiária que estava agerir o grupo), a Mathilde, que tinha no pequenogrupo a função de aceitar inscrições para que não fa-lassem todos ao mesmo tempo, propôs que escreves-sem a forma como tinham pensado para construir atabuada do 10. Recorrentemente escreveram:

Contei de 10 em 10 para saber quantoera.

Mas o Gonçalo escreveu:

As somas ajudaram-me a pensar a mul-tiplicação.

Na apresentação à turma valorizámos muito estaescrita.

Diário profissional– 01/02/10

No dia 2 trabalhei, à hora do TEA, com o Cairo,a Joana e a Alexandra também nas adições. O Cairojá mecanizou a decomposição em árvore e despacha-se muito rapidamente. Pedi-lhe para parar um boca-dinho para pensar como estava a fazer. Então, no seuportuguês do Brasil, escreveu:

Eu pensei como a Mariana falou para eupensar. – Cairo

Insisti para que explicitasse como era. Então es-creveu:

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Eu junto as dezenas com as dezenas etambém faço unidades com unidades. –Cairo

Entretanto, ia ajudando a Alexandra e a Joana,esta com bastante mais dificuldade. A Alexandra per-cebeu bem o mesmo processo do Cairo mas, quandojuntava as dezenas não decompunha o número, man-tendo-o como se fossem unidades, o que lhe alteravao resultado. Então, vendo o texto do Cairo, procureique ele explicasse à Alexandra como fazia e que es-crevesse. Então acrescentou ao seu texto, com a minhaajuda:

Quando junto as dezenas transformo-asem unidades, depois junto os números quesobram. – Cairo

Como a sua escrita estava cheia de erros, aprovei-tei para propôr trabalharmos o texto do Cairo, assimtodos lembrávamos o que tínhamos feito. Ficou:

Nós estivemos a juntar as dezenas comas dezenas e as unidades com as unidades.

Quando juntamos as dezenas transfor-mamo-las em unidades e depois juntamosos números que sobram. Às vezes temosque fazer outra vez a mesma coisa quandoos números das unidades são maiores doque a dezena.

(Texto trabalhado com a Alexandra, Cairo eJoana)

Diário profissional – 02/02/10

No dia 26 de Fevereiro registei no Moodlemais alguns momentos de trabalho do TEA:

Continuo muito preocupada com o cálculo mentale a tentar vencer as resistências dos meninos ao racio-cínio, porque procuram instalar-se em processos me-cânicos que lhes economize pensamento. É normalessa resistência e a necessidade de automatismos paranos facilitar a vida. Mas tento explicar-lhes que valea pena este esforço para perceber porque fazemos ascoisas e que, tendo um cálculo ágil, tudo é mais fácil.Aí sim, é bom treinar. Mas as representações dos paisneste domínio também interferem, apesar de ter fa-lado, em várias reuniões de pais, das razões por queainda não introduzi os algoritmos, como preconizamos novos programas de matemática. Tento explicar-lhes que os algoritmos são mais uma ferramenta de

cálculo e que é importante os meninos exploraremmuitas estratégias, encontrarem as suas próprias,para melhor pensarem sobre os números, para os re-lacionarem e, sobretudo, para lhes darmos tempo e es-paço para irmos, com eles, construindo as regras dalinguagem matemática. Parecem-me sensíveis a estediscurso, quando lhes mostro algumas estratégias dosmeninos e que eles acham interessantes. Mas a ver-dade é que nem todos os adultos que lidam com osmeninos vêm às reuniões e muitos destes meninosaparecem já com os algoritmos. Perante isto, só tentoque eles me expliquem porque fizeram assim, masnão sabem e ficam atrapalhados.

Esta semana estivemos a insistir na subtracção.Os que tentam utilizar o algoritmo, fazem-no facil-mente enquanto são subtracções simples. Quando aordem das unidades do aditivo é menor que a do sub-tractivo é muito mais complicado. Aí resolvem muitofacilmente trocando os algarismos da ordem das uni-dades, de modo a poderem subtrair. Estas dificulda-des foram-me particularmente evidentes quando lhespropus, na segunda-feira, na sessão colectiva de cál-culo mental, três subtracções. Na folha da actividadetinham um espaço para colocar as estratégias de cál-culo e no final outro para descreverem o processo, porescrito. É claro que muito poucos o fizeram.

Na Terça-feira trabalhei com a Tânia e o Cairodurante o TEA, já que eram dois dos casos em que ti-nha verificado essa dificuldade, voltando a desmon-tar-lhes o processo da subtracção com a utilização doMAB. Perceberam enquanto manipulavam o mate-rial. O pior foi representar o que realizaram. Entãoperguntei-lhes se era mais fácil para eles fazendocontagens. Disseram que sim e propus-lhes desenhara recta. Assim fizeram e começaram a contar paratrás de um em um, o que foi possível em operaçõescom o subtractivo pequeno. Mas em 80-43 tal estra-tégia já era mais difícil de manter. Propus que con-tassem de 10 em 10. Percebi que têm de treinar estascontagens e verbalizei isso mesmo. Assim fizeram, atéao 50.

A Tânia, vendo que com menos 10 já ultrapas-sava o número onde queria chegar, propôs tirar 4, de-pois 2 e depois 1. Perceberam que a seguir tinham decontar tudo quanto tinham tirado e foi pacífico. Repe-timos este processo várias vezes. Por fim, pedi quedescrevessem o processo para contar aos outros meni-nos. A Tânia escreveu:

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Contámos para trás de 10 em 10 e de-pois, quando não dá para tirar outra vez 10,podemos tirar 4 ou 3 ou 2. – Tânia

À tarde, quando fomos corrigir os cálculos, foramvárias as estratégias que apareceram, mas todas elasde contagens. O Pedro, por exemplo, nesta operação,fez:

80 -10 -10 -10 -10 + 3.No fim perguntei-lhe como fazia e ele disse que

somava os 10 e depois tirava o 3 e acrescentou:– É como se fosse ao contrário dos sinais: quando

está menos, junto, quando está mais, tiro.Mas como ele não tinha nada escrito na sua folha

pedi que a Tânia lesse o que tinha escrito, não só paravalorizar o seu trabalho, como para partir de umenunciado para melhorar. Assim foi. Estimulando quecolocassem questões para clarificar, adoptámo-locomo uma regra e todos escreveram:

Podemos contar para trás de dezem dez e depois, quando se chegarmais perto do número e não der paratirar outra vez dez podemos tirartrês, ou quatro, ou dois.

A Raquel, uma das meninas que traz os algorit-mos feitos de casa, estava também muito confusa, as-sim como a Mathilde, que está sempre muito confusana matemática. Propus-me trabalhar com elas du-rante o TEA de quarta-feira. Integrou bem o processodas contagens e a seguir propus-lhe que escrevesse,para ficar a saber melhor e para explicar aos outrosmeninos. Começou por escrever:

Eu fiz na recta e contei de 10 em 10, de4 em 4, de 3 em 3, de 1 em 1 e de 2 em 2.

Mostrou-me, valorizei mas questionei:– Mas contaste para a frente ou para trás?– Para trás.– Então tens de acrescentar. Assim fez. Voltou a mostrar-me. Voltei a ques-

tioná-la:– E até onde?

– Até ao número da conta.Então deves acrescentar.Assim fez, voltou a mostrar-me e eu a questionar:– E o que fizeste depois?– Contei os números que tirei.Então podes acrescentar.Ficou um texto feito aos bocados, mas bem mais

explícito, embora com oscilações de concordância, en-

tre a descrição dos procedimentos e a aproximação auma norma:

Eu fiz na recta e contei de 10 em 10, de4 em 4, de 3 em 3, de 1 em 1 e de 2 em 2para trás até ao número que estiver naconta. E conto os números dos saltos quefiz. – Raquel

A Mathilde escreveu de uma só vez sem a minhainterferência e com a pontuação exacta:

Eu fiz saltinhos de 10 em 10. No fim,contei os números que tirei.

Eu aprendi que saltinhos de dez em dezé muito mais fácil para fazer as contas. –Mathilde

Questiono-me ainda se eles não transitam de umamecanização para outra, mas o que importa é quesaibam porque utilizam determinadas estratégias.

Na avaliação do PIT, na parte dos apoios, aMathilde escreveu:

Correu bem, aprendi a fazer saltinhosde dez em dez nas contas de menos.

Na sua autoavaliação do PIT

Trabalhei bem, acho que fiz todo o tra-balho e espero continuar a melhorar namatemática.

A pouco e pouco, esta escrita vai-se instituindo equero-me convencer de que vai sendo apropriada pe-las crianças como necessária.

(Diário profissional– 5/2/10)

Também em relação ao trabalho sobre amultiplicação, a escrita se evidenciou facilita-dora da compreensão. Exemplo disso foi oacompanhamento ao Diogo numa sessão deTEA, a partir de uma dificuldade sua. Assim,para o ajudar a compreender o significado daexpressão 3 X 4 = convidei-o a escrever exac-tamente o que dizia quando a lia. Imediata-mente disse:

– É 4 + 4 + 4.Então convidei-o a escrever como pensava.

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Para fazer contas de vezes temos deolhar primeiro para o primeiro númeropara saber quantas vezes temos de repetiro segundo número. – Diogo

A escrita da matemática nos circuitos de comunicação

Uma das preocupações dominantes aolongo de todo este percurso foi a divulgaçãodos escritos dos alunos sobre a matemática, oque, à partida, favorece o necessário sentidosocial dessa escrita. Disso dou conta em algunsmomentos do diário de aula:

Esta semana, como estive ausente em dois TEApor solicitações do Agrupamento, não consegui avan-çar mais com os meninos neste domínio.

Mas o Francisco, imparável na vontade de desco-brir o mundo, veio dizer-me:

– A metade de três é um e meio, a metade de seteé três e meio, é sempre meio.

– Boa, Francisco! Podes escrever isso no diário damatemática. Foi logo escrever.

Então trouxe o caderninho para casa e vi o que eleescreveu:

a metade dos ímpares é sempre um nú-mero e meio. – Francisco

Também a Alexandra tinha escrito:

Eu aprendi que podemos fazer muitasmaneiras para fazer matemática. – Alexan-dra

Embora este seja um texto da ordem dos textos li-vres, não deixa de ser interessante verificar que se es-tão progressivamente a apropriar mais da escrita damatemática.

Agora há que cuidar da comunicação destes escri-tos. Não sei se deva passar apenas pela apresentaçãode produções. Acho que podíamos editar um livro damatemática, para dar mais sentido a esta escrita.

Diário profissional– 5/2/10

Um destes dias estive com o Fábio T., a Alexan-dra e o Francisco, que queriam introduzir textos damatemática no blogue. Assim que nos juntámos oFrancisco foi logo buscar o Diário da Matemática

onde tinha escrito o texto dos ímpares e leu-o. Os ou-tros não perceberam muito bem e propus que ele ex-plicasse. A Alexandra percebeu e começou a darexemplos. Propus que ela escolhesse um desses exem-plos para explicar melhor a descoberta do Francisco.Depois o Fábio também acrescentou que a metade do1 é zero e meio. Perguntei-lhe porquê, disse-me queera porque antes do zero não havia nenhum número.Hesitei em o questionar mais quanto a isto, contra-pondo com os andares ou com as temperaturas nega-tivas, que nós não temos.

Como os textos que a Alexandra e o Fábio tinhamsobre a matemática eram, mais uma vez, textos deopinião, como eles acabaram por tomar consciênciadepois de eu os questionar, propus-lhes que escreves-sem os exemplos que tinham estado a dizer, para quese percebesse melhor a descoberta do Francisco. Assimfizeram. Depois, como ainda não tínhamos exploradoa questão dos comentários, estivemos a experimentar.Assim, a Alexandra questionou o Francisco sobrecomo é que ele tinha descoberto aquelas coisas e elerespondeu que foi a observar os números ímpares e asmetades (turmainacia.blogspot.com).

Este é um domínio que tenho de explorar muitomais. Embora muitos dos meninos não tenham Inter-net em casa para poderem interagir, tenho de os esti-mular a comunicar por esta via mesmo na escola ecom os correspondentes.

Diário Profissional – 14 /02/10

No dia 10 de Março, uma das propostas daexperimentação na matemática durante o TEAera a construção de simetrias a partir de umafigura desenhada no papel, constituída por trêsfilas de cinco pequenas circunferências, indi-cando-lhes onde deveriam colocar um espelhoe depois outro, tirando conclusões de seguida,e escrevendo-as. Esses escritos foram depoiscolectivizados e discutidos na turma. O textodo Jónatas era particularmente interessante epor isso foi bastante valorizado quando o leu àturma, mas, tendo em conta a sua ainda fracacompetência de escrita, tinha bastantes incon-sistências:

Eu aprendi que os espelhos quando usa-mos um espelho ao lado das bolas aparece2X15 e se usamos mais um espelho ficámoscom 4X15 que é igual a 60 e apareceu 4X daforma que usamos em uma vez da formaque tem deu a conta que vou fazer

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10 + 10 + 10 + 10 + 10 + 10 + 10 = 6030 + 30 = 6040 + 40 - 20 = 60

Jónatas

No TEA de dia 11/03/10, o Jónatas inscre-veu-se para colocar este texto no blogue, e eupropus-me ajudar. Tendo em conta que não es-tive com ele neste trabalho, encontrava-me emsituação privilegiada para o questionar para ex-plicitar o seu pensamento e clarificar o pro-cesso, de forma a poder ser divulgado. Então,fizemos uma revisão do texto com base nasquestões que eu lhe ia colocando acerca do tra-balho que tinha feito no pequeno grupo. A ver-são final foi então divulgada no blogue:

Os espelhosEstivemos a trabalhar com os espelhos.

Na folha havia quinze bolas. Quando puse-mos um espelho apareceu duas vezesquinze bolas e ficou trinta. O trinta é o do-bro de quinze. Depois pusemos outro es-pelho e apareceu quatro vezes quinze bo-las, que é sessenta.

Eu aprendi que os espelhos fazem o re-flexo que são figuras simétricas.

Jónatas – 11/03/10

Esta interacção com o Jónatas foi o motepara desencadear uma correspondência maissistemática com a Júlia Soares, à semelhançado que já foi feito em 2001 com outro grupo demeninos e que tanto nos gratificou e ajudou areflectir. Assim, quando ela lhe respondeu elançou mais desafios procurei agarrar essaoportunidade. Seguiu-se uma série de mensa-gens, que transcrevo:

Olá meninas e meninos da turma daInácia:

Sou uma velha amiga da vossa profes-sora e uma visitante do vosso blog.Gosto muito dos vossos textos, leio commuito prazer as histórias que inventam, asdescrições dos vossos projectos e as desco-bertas que fazem em matemática.

Li com muito interesse o trabalho doFrancisco sobre os números ímpares e a re-

lação que ele estabeleceu entre os númerosímpares e as suas metades. Se quiseres, po-des fazer um trabalho como esse, mas comnúmeros pares e registar as diferenças en-tre o que se passa com números pares ecom números ímpares e escrever isso tudono vosso Livro da Matemática.

Com igual interesse li o relato do traba-lho do Jónatas com os espelhos que ele des-cobriu como multiplicadores e a relaçãoque estabeleceu entre o número de espe-lhos e os números das imagens. Escrevestetambém uma boa página para o Livro.

A partir daquilo que descobriste, resolveagora este problema:

Se para 15 bolas, utilizasses 3 espelhos,quantas bolas apareceriam? A partir daquiloque descobriste, imagina primeiro o númerode bolas que apareceriam e depois verificacom espelhos se acertaste.

Vou continuar a visitar o vosso blog e es-pero encontrar aí mais relatos de desco-bertas. Bom trabalho nesta recta final doano.

Júlia Soares

Com a minha ajuda, o Jónatas respondeu:

Olá Júlia,Estive a ler o teu problema e descobri

que consegui resolver: dá 120 bolas. Fiz emdezenas a partir do 60, para contar mais 60para descobrir o dobro.

BeijinhosJónatas

Amigo JónatasFoste muito rápido a resolver o pro-

blema e contaste muito bem como pen-saste.Verificaste com os espelhos a solu-ção?

Continua a descobrir coisas da matemá-tica. Se tiveres tempo e te apetecer, vai-mecontando o que se passa.

Eu vou também pensar outros proble-mas para te enviar.

Um beijinho. Júlia

Desta vez com a ajuda da Rita, o Jónatasvoltou a responder:

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Olá Julia,Eu já verifiquei com os espelhos e es-

tava certo. Quando punha um espelho apa-reciam 30 Bolas, quando punha dois espe-lhos apareciam 60 bolas e com três espe-lhos apareciam 120 bolas. É sempre odobro: 15+15= 30, 30+30=60; 60+60= 120.Se tivesse quatro espelhos eram 240 bolas.

Fico à espera de mais problemas.Até à próxima

Jónatas

Amigo Jónatas:Estou a gostar muito do teu trabalho e

de trocar e-mails contigo. Vou contar-tecomo eu resolvi o problema:1 espelho 2 vezes 15 bolas 30 bolas2 espelhos 4 vezes 15 bolas 60 bolas3 espelhos 8 vezes 15 bolas 120 bolas4 espelhos 16 vezes 15 bolas 240 bolas

Mais importante ainda é que tu desco-briste a relação que existe entre o nú-mero de espelhos e o número das imagensque eles dão. Escreveste umas boas pági-nas para o livro de Matemática. Continuaa descobrir matemática

Estou a pensar um problema para te en-viar.

Diz ao Francisco que eu também tenhoproblemas sobre os números pares e sobreos números ímpares.

Um beijo da amiga Júlia

Como havia uma referência ao Francisco,ele tratou de responder, apoiado por mim:

Olá Júlia,Levámos muito tempo a responder por-

que só vamos uma vez por semana ao bloge responder aos mails porque só temos umcomputador com internet na sala.

Eu acho que a metade dos pares é sem-pre um número que não é meio. A profes-sora disse que são os inteiros. Inventei umaficha para o ficheiro de números e opera-ções com o teu desafio: É uma tabela comnúmeros ímpares e números pares:

Números ímpares Números paresnúmeros – metades Números – metades

5 - 2,5 4 - 27 - 3,5 6 - 3

8 - 4

Descobri que os números pares são dedois em dois e as metades deles é de um emum.

Continua a fazer mais desafios para to-dos os colegas.

Beijinhos do Francisco

Amigo Jónatas:Envio-te hoje o problema que te prometi

e fico à espera da tua resposta.No ginásio de uma escola, havia um

cesto com bolas pequenas e outro com bo-las grandes. Eram 16 bolas ao todo.

quantas bolas grandes havia?

quantas bolas pequenas havia?

Encontrei num livro inglês coisas muitointeressantes sobre espelhos. Quando mefor possível, fotocopio as páginas e envio-te pelo correio.

Um abraço daJúlia

Olá,Vamos dar este problema para a turma

toda e depois respondemos.Beijinhos

Alexandra e Francisco

Resolvemos, colectivizámos, tirámos con-clusões e enviámos. A Júlia respondeu commais problemas. Esta interacção à distância,para além dos desafios que constituíam, veioreforçar o sentido social da escrita da matemá-tica, já que era preciso explicitar o que foi feitoe as descobertas realizadas.

Também a correspondência interescolarteve aqui um papel importante. Exemplo dissofoi o envolvimento dos meninos na descriçãodas figuras geométricas. Assim, a propostafeita, em sessão gerida pela Mariana, era quecada par descrevesse uma figura geométricaapresentada, sem que os outros vissem qualera, para a poderem identificar pela descrição.

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À partida tinha ficado combinado que este tra-balho também iria para os correspondentes.Os exemplos que se seguem ilustram a escritaque se produziu:

Descrição da figura: (quadrado)

Ele tem quatro lados e é parecido comuma janela.

Se nós dividirmos ao meio ficamoscom dois rectângulos, se fizermos mais umrisco no meio ficamos com uma cruz + e sefizermos mais um risco fica um sinal deneve.

(Tânia e João)

Descrição da figura: (hexágono)

A figura tem 6 lados e seis bicos. Há vários objectos que podem ter esta

forma, é muito usada nos copos.É parecida com um sinal de Stop e se

dividirmos a figura ficamos com 6 triângu-los.

(Fábio Teixeira e Constança)

Descrição da figura: (octógono)

Tem oito lados e tem a forma de umStop.

Os lados são iguais e se dividirmosesta figura e juntarmos os biquinhos comos biquinhos ficam 8 triângulos.

(Pedro e Nadine)

Descrição da figura: (rectângulo)

Tem 4 lados, dois são iguais e os ou-tros dois também.

Tem 4 bicos e os lados são direitos.Se desenharmos lá dentro um x ficam

4 triângulos.(Eleane e Rúben)

Assim, os correspondentes teriam de dese-nhar e de dar o nome a cada uma das figuras.Eles não só o fizeram, como referiram, na cartacolectiva, o quanto o nosso trabalho tinha sidoimportante para eles, que ainda não o tinhamfeito. A propósito da carta gerou-se uma breve

mas interessante discussão. Eles diziam, acerta altura:

A nossa professora disse-nos que tínha-mos que começar a fazer a descrição das fi-guras geométricas com uma linguagem ma-temática mais rigorosa.

Carta colectiva de Trajouce

A Rita, que geria o momento, perguntou-lhes o que achavam que eles queriam dizercom linguagem matemática mais rigorosa. Váriasforam as intervenções no sentido de explicarque se tratava de dizer os nomes das coisasque se faziam e explicar matematicamente amaneira como pensamos. A Mathilde acres-centou que achava que ela estava a ter uma lin-guagem matemática mais rigorosa quando es-crevia.

Na volta do correio, o Gonçalo e o Diogoestiveram a verificar se eles tinham respondidocorrectamente e escreveram.

As figuras geométricas

Vocês erraram em 2 figuras e as outrasestão correctas. As que estão mal são: oc-togonal, era um pentágono e o outro octo-gonal era um octógono.

Mas vocês fizeram um bom trabalho.Parabéns!

Diogo e Gonçalo.

Também mandaram outras descrições paranós descobrirmos, o que fizeram com muitoprazer e reenviaram.

A experimentação matemática realizada aolongo do 2.º período no TEA passou pelos qua-tro blocos do Programa de Matemática (Gran-dezas e Medidas, Números e Operações, Or-ganização e Tratamento de Dados e Geome-tria). Assim, para além das simetrias e dasfiguras geométricas, os meninos tiveram a pos-sibilidade de responder, com a minha ajuda oudas estagiárias, a desafios sobre o euro, medi-das de massa, de capacidade, de comprimentoe de tempo, análise dos registos do mês, cons-

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trução de sólidos geométricos e sua descrição,construção de pentaminós e de hexaminós, oque reenviou para os conceitos de perímetro ede área. Trabalharam ainda com o MAB paramelhor compreensão do sistema decimal denumeração. Estes trabalhos, realizados emgrupo com uma de nós, eram normalmenterealizados primeiro no TEA e, depois de todosterem passado pela experimentação, colectivi-zados e discutidos.

Esta interacção, mediada pela escrita dosalunos, não só permitiu um maior envolvi-mento de todos os alunos na discussão, comoenriqueceu a dinâmica a partir de enunciadosformulados em situação para a sua generaliza-ção, numa construção compartilhada dos con-ceitos.

4 – Reflexões sobre o percurso

Podemos dizer, à distância e com a visão re-flectida do percurso que a escrita permite, quese cumprem, nesta dinâmica, todas as funçõesda escrita, sendo a mais relevante e a que me-nos tem sido estimulada na escola, a funçãoepistémica, embora a um nível muito elemen-tar. No entanto, não é menos importante a fun-ção representativa, já que a escrita desoculta asnossas concepções e a forma como escrevemosevidencia a representação que se tem acerca doque se escreve. Disso é exemplo um texto quea Nadine leu há dias:

Os duplos e os quase duplos

Os números duplos somam-se sempremais dois.

O resultado é o dobro do número. Umexemplo é: 4 + 4 = 8.

Nesta operação de soma o dobro é 8.Os duplos nas operações o resultado é

sempre o dobro dos números.Também há os quase duplos e também

se soma sempre mais dois. O que quer di-zer os quase duplos: é quando são númerosmuito pertinho do outro número.

Nadine

É visível a sua evolução no domínio da lin-guagem matemática e na forma como a utiliza.No entanto, apesar de parecer estar segura doque são os duplos, emerge uma imprecisão queme permitiu ver melhor a confusão ainda exis-tente entre o dobro e mais dois e, dessa forma,interagir com o seu pensamento. Assim, paraalém de ter valorizado muito esta escrita es-pontânea, conversámos sobre o que eram, afi-nal os duplos, e sobre a importância de ter es-crito acerca desta questão para podermos vermelhor o que ela ainda não sabia bem e pen-sava que já sabia.

Mas se dúvidas houvesse sobre a importân-cia da escrita na apropriação da linguagem ma-temática e na construção de um pensamentomais estruturado nesta matéria, elas ter-se-iamdissipado ao ser confrontada com o texto daMathilde. De facto, para a reunião de pais deentrega das avaliações do 2.º Período, propuse-mos aos meninos que escrevessem sobre o quede mais importante tinham aprendido na ma-temática durante o período, para explicar aospais. Podiam, para tal, recorrer ao dossiê damatemática e aos imensos cartazes, organiza-dos pelas estagiárias, que foram sendo afixa-dos na sala, com a descrição dos processos erespectivas conclusões. Assim fizeram e deixa-ram o texto junto de outros trabalhos para ospais verem e darem a sua opinião. O texto daMathilde deixou-me completamente rendida(ver Figura 1).

A Mathilde era uma das crianças que maisbloqueava, no início do ano, perante o traba-lho da matemática, alegando muitas vezes nãoser capaz. Acontecera da mesma forma no anoanterior para a apropriação da escrita. A sua fa-cilidade na explicitação do pensamento atravésda linguagem escrita permitiu-lhe ir bastantelonge e deste modo desenvolver capacidadesmetacognitivas, tão importantes para ela comopara o grupo.

Por outro lado, o Jónatas, transmuta-se esurpreende com a sua notável capacidade depensar matematicamente. No entanto, relati-vamente à escrita, iniciou o ano dizendo de-

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sesperadamente que já não sabia ler nem es-crever, apesar de o fazer já com alguma segu-rança no final do ano lectivo anterior. Chegoumesmo a ser proposto para Plano de Recupera-ção no Natal, tal era a sua resistência à escrita.A partir da matemática e sem que ele própriodesse conta, foi readquirindo o domínio e oprazer da escrita para comunicar o seu racio-cínio.

São dois percursos diversos, como diversassão as formas de pensar e de aprender e, porisso mesmo, paradigmáticos da importância daescrita na aprendizagem.

Olhando os textos que foram escritos paraos pais, verifico que, dos vinte e dois alunosexistentes neste momento na turma, apenasnove só incluem a enumeração de itens apren-didos. Todos os outros (treze) contêm enun-ciados explicativos, alguns deles utilizandorigorosa e adequadamente as designações dalinguagem matemática, o que evidencia a evo-lução que fizeram nesta matéria.

Este é apenas o início de um caminho feitode aproximações sucessivas, minhas e dascrianças, em interacção com outras vozes, dedentro e de fora do grupo. As experimentaçõesmatemáticas, ricas e diversas, vividas pelosalunos e reflectidas através da escrita, permiti-ram que as “aprendizagens distribuídas”,organizadas em discurso, fossem ganhandoforma e coerência, de modo a serem progressi-vamente apropriadas pelo grupo. Assim, com-partilhando descobertas fixadas pela escrita,em que cada um dos enunciados ia enrique-cendo o património de todos, fomos co-cons-truindo uma comunidade de linguagem nodomínio da matemática, enquanto as criançasconquistavam uma crescente competência me-tacognitiva.

Um caminho desta natureza permite-nos,não só ir interagindo com as concepções dosalunos, como identificar e intervir nas nossaspróprias crenças acerca do ensino da matemá-tica, sobretudo quando nos apercebemos decomo a linguagem escrita faz emergir repre-sentações, estrutura procedimentos, ajuda a

compreender o próprio pensamento e constróia argumentação e o raciocínio lógico.

A compreensão de como a escrita facilita aapropriação, pelos alunos, do sistema de lin-guagem que constitui a linguagem matemáticae de como, simultaneamente, as nossas cren-ças podem condicionar ou fazer avançar o de-senvolvimento desse processo, ajuda certa-mente a desconstruir algumas ideias feitas quese generalizaram nesta área, tanto nos alunoscomo nos professores e nos pais.

Mas neste domínio, há ainda um longo ca-minho a percorrer.

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