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A pica mitolgica de Quinto de Esmirna: continuidade, transformao
e reescrita
Autor(es): Pinheiro, Joaquim
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/40829
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-1718_68_9
Accessed : 3-Jan-2017 10:23:12
digitalis.uc.pt
Humanitas 68 (2016) 191-203
https://doi.org/10.14195/2183-1718_68_9
A pica mitolgica de Quinto de Esmirna: continuidade, transformao
e reescrita1
The mythological epic of Quintus Smyrnaeus: continuity,
transformation and rewriting
Joaquim Pinheiro Universidade da Madeira
Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de
[email protected]
Artigo recebido a 08-04-2016 e aprovado a 03-10-2016
Resumo O modelo homrico est muito presente no poema pico
Posthomerica
de Quinto de Esmirna, e, por isso mesmo, o poeta, durante o
Renascimento, foi considerado homerikotatos. No entanto, a par da
aemulatio, h vrios elementos que denotam a inteno de transformar e
reescrever alguns episdios mitolgicos, numa construo potica que
deixa transparecer caractersticas prprias da sua poca. Nesse
sentido, propomo-nos identificar e analisar alguns desses traos
inventivos, seleccionando episdios suficientemente representativos
da pica mitolgica de Quinto de Esmirna.
Palavraschave: Posthomerica, Quinto de Esmirna, pica, mitologia
clssica.
AbstractThe homeric model is conspicuously evident in the epic
Posthomerica by
Quintus Smyrnaeus. For this reason, Quintus was considered as a
homerikotatos in Renaissance. Nevertheless, alongside aemulatio,
there are a series of topics that
1 Com vrias alteraes, este estudo tem por base o texto
apresentado no Congresso Internacional Comemorativo dos 25 anos da
APLC, em Dezembro de 2012, na Universidade de Aveiro.
192 Joaquim Pinheiro
denote the intention of transforming and rewriting some
mythological episodes, in a poetic construction that reveals some
characteristics of Quintus times. As such it is the aim of this
research to identify and analyse some of those inventive features
by selecting some of the most representative episodes of Quintus
poem.
Keywords: Posthomerica, Quintus Smyrnaeus, epic, classical
mythology.
Ao longo de cerca de 8800 versos, divididos por catorze livros
(usa o termo logos e no rapsodia), Quinto de Esmirna legou-nos um
poema pico, cujo ttulo deixa transparecer, partida, que o tema
estar relacionado com os acontecimentos depois de Homero. De facto,
Quinto recupera a temtica de alguns poemas perdidos do Ciclo pico e
completa a histria entre a Ilada e a Odisseia, ou seja, entre os
episdios que preparam a tomada de Tria e o retorno dos Aqueus. O
incio in medias res e sem promio permite perceber que a narrao se
ocupa do momento post mortem de Heitor.
A intertextualidade da Posthomerica com os Poemas Homricos, um
dos nossos objectivos de anlise, bastante intensa, de tal forma que
trs dos manuscritos que sobreviveram do poema de Quinto se
encontravam entre a Ilada e a Odisseia, facto que pode ser um sinal
de que o poema merecia figurar entre essas picas maiores.
O prprio poeta, no Livro XIV, resume os principais
acontecimentos pr-homricos (a reunio do exrcito aqueu em ulide
antes de partir para Tria; as conquistas de Aquiles; a vitria do
Pelida sobre Tlefo, Ecion e Cino), os episdios da Ilada (o
sofrimento dos Aqueus durante a ausncia de Aquiles; a morte de
Heitor e os maus-tratos a que o seu cadver sujeito) e os feitos que
se seguiram e que no constam da Ilada (o combate vitorioso de
Aquiles contra Pentesileia e Mmnon, a morte de Glauco, os sucessos
de Neoptlemo e de Filoctetes, o ardil do cavalo de Tria e a tomada
da cidade de Pramo), ou seja, o contedo essencial do poema.
Para alguns estudiosos, atendendo ao metro (hexmetro dactlico),
s frmulas, linguagem ou ao estilo, a Posthomerica no passa de uma
mera aemulatio de Homero. O estudo de Appel2 sobre a presena do
hapax legomenon homrico no poema de Quinto, argumenta a favor dessa
profunda influncia3. No h, provavelmente, nenhum poema pico que
reproduza, como o faz a Posthmerica, a linguagem e o estilo dos
Poemas Homricos.
2 Appel 1994.3 Cf. Br 2007: 63.
Humanitas 68 (2016) 191-203
193A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:
continuidade, transformao e reescrita
Basta lembrar que 720 adjectivos da Posthomerica se encontram
nos Poemas Homricos e apenas 220 que no4. Sobretudo aps os estudos
de F. Vian, a abordagem do poema tem vindo a ser alterada. J no se
considera Homero o nico modelo, mas constata-se a influncia das
picas de Hesodo ou de Apolnio de Rodes e do drama trgico, como o
jax e o Filoctetes de Sfocles, e as Troianas e Hcuba de Eurpides.
Alm destas obras, Quinto ter sido influenciado por vrias obras do
perodo helenstico, como a Alexandra de Lcofron, os Theriaka de
Nicandro, os Phaenomena de Arato, ou a Halieutika de Opiano. A
estas e outras obras da literatura grega, h a juntar as fontes
latinas, muito defendidas por estudos mais recentes, como so o caso
da pica vergiliana, as Metamorfoses de Ovdio ou as Troianas de
Sneca. Quanto s possveis fontes que Quinto ter usado, preciso ter
em conta que desconhecemos, em larga medida, a evoluo do gnero pico
entre Apolnio de Rodes e a Posthomerica, facto que nos obriga a
vrias cautelas. Bem como o facto de pouco sabermos, por exemplo,
sobre a pica, do sculo III, de Pisandro de Laranda (Teogamias
hericas, em 60 livros).
bvio que compor uma pica aps os Poemas Homricos inscrev-la no
passado e declarar uma natural dvida a um gnero com um modelo
pr-determinado. Por ter plena conscincia dessa ligao ao passado,
Goldhill5 considerou o seguinte: To write epic is to write within a
genre wich cannot escape the past. De facto, causa alguma
estranheza ler um poema, no perodo imperial, com evidentes marcas
da composio oral. Durante a Idade Mdia, por exemplo, o poema de
Quinto sobreviveu mais como guia para se saber o que aconteceu aps
a Ilada, do que pelas suas qualidades literrias. Para Maciver6, a
negativa recepo do poema no foi por causa de imitar a poesia
homrica, mas por causa da monotonia e de ser um poema de extremos.
A monotonia resulta, sobretudo, do uso de tcnicas de composio oral,
como o caso do smile, pois, muito embora a diferena do nmero de
total de versos entre a Ilada e a Posthomerica, Quinto usa 226
smiles longos, enquanto no poema homrico esto identificados 197.
Quanto ao facto de ser um poema de extremos, Maciver7 considera que
h uma tendncia em Quinto para o recurso a um vocabulrio
hiperbolizante e junta ainda um
4 Para estes dados, vide Vian 1959: 182-192; Br 2007: 58 lista
os vocbulos favoritos (Lieblingswrter) de Quinto. De uma forma
geral, os estudos editados por Baumbach e Br 2007 foram muito
importantes para a nossa reflexo.
5 Goldhill 1991: 285-286.6 Maciver 2012: 13-14.7 Maciver 2012:
13-14.
194 Joaquim Pinheiro
outro argumento: na Posthomerica temos duas ekphraseis de
escudos, o de Aquiles (Livro V) e o de Eurpilo (Livro VI), enquanto
na Ilada s se encontra a do escudo de Aquiles (XVIII). Apesar
destas interpretaes, no devemos esquecer que a Posthomerica no um
poema clssico, no seu verdadeiro sentido, mas do perodo Imperial.
Quinto, como poeta criativo, no estava obrigado a seguir a verso
tradicional, como j, alis, Eurpides havia feito, podendo manipular
os mitos de acordo com o propsito do seu poema. Veja-se, por
exemplo, o protagonismo que Neoptlemo, filho de Aquiles, assume na
parte central do poema.
Alm de ter ocorrido uma alterao na identificao das fontes do
poema de Quinto, tem havido, tambm, um cuidado diferente na anlise
dos processos poticos, da prpria tcnica retrica e caracterizao das
personagens, luz das correntes filosficas que se foram
desenvolvendo na cultura antiga, como o Estoicismo. Por
conseguinte, o poema em estudo no tem apenas interesse mitogrfico,
mas tambm literrio e cultural, muito embora no seja Quinto um poeta
erudito do nvel de Calmaco ou Apolnio de Rodes.
Na poca de Quinto, como refere G. W. Bowersock8, a reviso da
temtica homrica (homeric revisionism) uma das bases da produo
ficcional. Na verdade, em algumas obras da Segunda Sofstica, como a
Verae historiae de Luciano, o Troikos de Don Crisstomo ou o
Heroikos de Filstrato, gera-se um confronto com Homero,
caracterizando-se este como mentiroso. Apesar disso, esses autores
e o prprio Quinto, ao recuperarem os Poemas Homricos, reconhecem o
seu valor cultural e identitrio para os Gregos. Ainda assim, o
momento histrico em que vivem exige uma reviso, adaptao ou
reformulao, de modo a que a leitura suscite o interesse dos Gregos,
cidados do Imprio Romano. Alm disso, tornar a Guerra de Tria o tema
central de um poema pico do sculo III corresponde, de alguma forma,
vontade dos ouvintes ou leitores, na medida em que um sucesso
militar deste nvel estimularia o sentido identitrio e reforaria a
memria de um passado grandioso. H mesmo quem entenda que a Guerra
de Tria, em particular a tomada de Tria, poderia ser entendida como
uma aluso mitolgica s Guerras Medo-Persas.
Quando se aborda a relao de Quinto com a sua poca, surge,
inevitavelmente a problemtica do enquadramento de um poema com as
caractersticas da Posthomerica na Segunda Sofstica, perodo
entendido como um fenmeno cultural e poltico, marcado pela
revitalizao de normas
8 Bowersock 1994: 21.
Humanitas 68 (2016) 191-203
195A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:
continuidade, transformao e reescrita
e valores do perodo clssico, num contexto em que os Gregos vivem
sob o domnio Romano. Nesse sentido, ganha especial dimenso o binmio
erudio e poder, enfatizando-se o valor da paideia, em particular da
paideia retrica, e do pepaideumenos9. Para Whitmarsh10, h pelo
menos quatro elementos fundamentais na Segunda Sofstica: linguagem,
retrica, recepo de temas clssicos e ligao ao poder poltico.
Note-se, ainda, que para este estudioso a Segunda Sofistica um
fenmeno literrio marcado pela escrita em prosa, predominantemente
em dialecto tico. Ora, Quinto no escreve em prosa, mas em poesia, e
em dialecto homrico e no em tico. Talvez por isso, o poema de
Quinto seja muitas vezes ignorado quando se discutem as
caractersticas da Segunda Sofstica. Ainda assim, estudos mais
recentes tendem a redefinir a relao da Posthomerica com a sua poca
e com os poemas picos que a precedem.
O processo de reformulao ou transformao bem notrio a partir de
uma anlise estrutura sumria da Posthomerica. Seno vejamos11:
Livro I Pentesileia: chegada, aco e morte Livros I a IV:
chegadas e mortes.
Livro II Mmnon: chegada, aco e morteMorte de Antloco
Livro III Morte de AquilesLivro IV Jogos fnebres em honra de
AquilesLivro V Julgamento das armas
Ekphrasis do escudo de AquilesLivros V a VI: os escudos; jax
Telamnio que tinha tido sucesso nos Jogos (IV), perde na luta
pelas armas de Aquiles e suicida-se (V)Livro VI
Chegada e aco de Eurpilo Ekphrasis do escudo de Eurpilo
Livro VII Chegada e aco de Neoptlemo Livros VII a X (estrutura
ABAB): o maior combate do poema Neoptlemo-Eurpilo (Aquiles-Heitor),
antecede a tomada de Tria; o resultado da embaixada a morte de
Eurpilo e de Pris.
Livro VIII Combate entre Neoptlemo e Eurpilo
Morte de Eurpilo
Livro IXFiloctetes volta a aco junto dos
Aqueus
Livro XMorte de PrisMorte de Enone12
9 Cf. Withmarsh 2001: 17-20.10 Whitmarsh 2005.11 Para uma
estrutura temtica mais pormenorizada de cada livro, vide James
2004:
239-265. Na Brills New Pauly, s.u. Quintus, apresenta-se uma
estrutura tripartida: 5 (Livros I, II, III, IV, V) +4 (VI, VII,
VIII, IX) +5 (X, XI, XII, XIII, XIV).
12 Ninfa que se recusa a curar Pris, apesar de ter o dom de
conhecer plantas medicinais, mas como foi trocada por Helena,
resolve vingar-se.
196 Joaquim Pinheiro
Livro XI Combate em redor de Tria Livros XI a XIV: volta-se ao
tema central, a tomada de Tria, que se concretiza por meio de dois
estra-tagemas: o cavalo e o sacrifcio a Polxena, essencial para o
nostos. Os sucessivos relatos de nostoi no final do poema
estabelecem um contraponto com a descrio da chegada de aliados dos
Troianos no incio do poema.
Livro XII O ardil do cavalo Snon, Laocoonte e Cassandra;
invocao Musa e catlogo dos heris
Livro XIII Tomada de TriaMorte de Pramo; captura de Helena
Livro XIV O nostos dos Aqueus Helena e os Aqueus; jax e a
sua
hybris
De acordo com esta estrutura, verifica-se que os temas surgem
por ordem cronolgica, sem que isso signifique que Quinto no recorra
a tcnicas como a analepse e a prolepse, to prprias do estilo pico,
desde os Poemas Homricos. O nico episdio que foge ordem seguida
pela tradio o da chegada de Neoptlemo anteceder a de Filoctetes e a
morte de Pris. Embora no seja tema do nosso trabalho, gostaramos de
registar que, neste caso, as diferenas em relao tragdia Filoctetes
de Sfocles so vrias. Alm disso, cada livro do poema tem um tema
central, com o qual se enlaam outros temas menores. Ainda sobre a
alterao cronolgica associada a Neoptlemo, verifica-se que os Livros
VI a VIII so dominados pela rivalidade entre o filho de Aquiles e
Eurpilo, sucessor, entre os Troianos, de Heitor. Quanto a
Neoptlemo, assume maior relevo aps a morte do seu pai (Livro III) e
o suicdio de jax (Livro V), o que faz dele o maior heri13 da pica
de Quinto.
De facto, ao longo dos catorze livros, Quinto recupera grande
parte das cenas tpicas da poesia pica: a viagem; o momento da
chegada e da partida; os heris reunidos em Assembleia; a embaixada;
o combate; a disputa das armas ou luta em redor do cadver; a
tempestade; a morte e a reaco de dor que ela inspira aos
companheiros enlutados; os jogos fnebres, entre outros. No se trata
sempre de uma simples aemulatio, mas denota o texto de Quinto o
entrecruzar de vrias tradies e concepes filosficas, o que obriga o
leitor a empreender um viagem intertextual na busca de uma fonte ou
de uma verso mitolgica mais rebuscada.
Quinto no se esquece de abordar no seu poema os motivos da
Guerra de Tria, um topos de longa tradio. Para Menelau, Helena e
ele prprio so os maiores culpados de tamanho sofrimento entre os
Aqueus14.
13 Sobre o conceito de heri em Quinto de Esmirna, vide Pinheiro
2012: 191-8.14 cf. 6. 22-6:
Humanitas 68 (2016) 191-203
197A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:
continuidade, transformao e reescrita
Ainda assim, acaba por desculpar Helena, por ter sido vtima da
aco do Destino15. A prpria Helena, alega em sua defesa, que, na
ausncia de Menelau, Pris e os seus companheiros troianos a
raptaram16. Note-se que no momento do reencontro de Menelau e
Helena, no Livro XIII, apesar da vontade de se vingar e de matar
Helena, o irmo de Agammnon, v o seu nimo apaziguar-se, por aco de
Afrodite, aps contemplar a radiante beleza ( 17) de Helena. Nesse
episdio, Agammnon acalma a clera de Menelau, lembrando-lhe que, aps
tantos sofrimentos que os Aqueus padeceram, no pode eliminar a sua
legtima esposa ( 18), at porque ela no culpada, mas sim Pris19.
Um episdio paradigmtico do trabalho de transformao e de
reescrita de Quinto o da justificao da presena de Pentesileia em
Tria, no incio do Livro I. Segundo Helnico (FGrHist Ia,4, fr. 149),
Pentesileia vai guerra em busca de glria (). Para Diodoro Sculo20,
porm, a rainha das Amazonas vai a Tria purificar-se da morte
involuntria da sua irm Hiplita. Justifica-se, assim, a presena de
Pentesileia como aliada dos Troianos, j que em princpio as Amazonas
seriam suas inimigas, pois, na Ilada21, Pramo recorda ter combatido
contra elas na juventude. Quinto, conhecedor da tradio, no exclui
nenhuma das razes e apresenta-as, num processo de contaminatio,
para justificar a presena de Pentesileia e das suas doze
companheiras. Por vezes, o poeta usa diferentes episdios dos Poemas
Homricos que adapta ao seu texto. Isso sucede na narrao
, , , . ()Tendo aqueles sucumbido [jax e Aquiles], no acredito
que ns escapemos runa, mas seremos vencidos pelos terrveis
troianospor causa de mim e de Helena, olhos de cadela, que agora no
me preocupa tanto como vs, quando vos vejo a sucumbirno combate.
()15 cf. 10. 396.16 cf. 14.155 ss.; ver o discurso de defesa de
Helena nas Troianas 919-965, de Eurpides.17 13. 394.18 13. 410.19
Na Ilada 3. 173-5 e na Odisseia 23. 218-221, Helena deu o
consentimento e fugiu
como amante de Pris.20 Cf. 2. 45. 5.21 Cf. 3. 188 ss.
198 Joaquim Pinheiro
das honras fnebres de Aquiles, em que o poeta se inspira no
ltimo canto da Odisseia22, mas tambm recorre a elementos dos jogos
em honra de Ptroclo23. Algo semelhante sucede quando Briseida chora
junto ao corpo de Aquiles24, episdio que nos remete para a
despedida de Heitor e Andrmaca25 e para o pranto da prpria Briseida
junto ao corpo de Ptroclo26. Ou quando descreve o combate em volta
do cadver de Aquiles27, num exerccio de reescrita, apoiado nas
descries deste gnero da Ilada, de combates volta do corpo, por
exemplo, de Sarpdon28 e de Ptroclo29. Da mesma forma, Quinto
aproveita o conhecido episdio dos cavalos que choram a morte de
Ptroclo, na Ilada30, mas agora coloca-os a chorar a morte de
Aquiles31 e junta a essa tradio o facto de esses animais passarem a
ser pertena de Neoptlemo. Em outros casos, Quinto sintetiza o
essencial do episdio, como ocorre na morte de Sarpdon32, da qual
resulta a lio de que o prprio Zeus, pai dos deuses, ao ver o seu
filho beira da morte, nada pode contra o desgnio superior do
destino.
No livro III, para a descrio da morte do Pelida, Quinto tem uma
longa tradio. Como entende que s um deus poderia pr termo vida do
maior heri aqueu33, segue a verso que apresenta Apolo como o nico
responsvel, tal como surge na Ilada34, no Filoctetes35, de Sfocles,
ou na Andrmaca36, de Eurpides. Afasta-se, desta forma, da tradio
que atribui
22 Cf. 24. 43-92.23 Cf. Il. 23.24 Cf. 3. 560.25 Cf. Il.
392-496.26 Cf. Il. 19. 282-300.27 3. 213 ss.28 Il. 16. 532-683.29
Il. 17. 120-425.30 17. 426-455.31 Cf. 3. 742 ss.32 Cf. Il. 16.
419-683 e Posth. 1. 711.33 3. 429-30:(). , . No possvel que o
tivesse ferido algum dos mortaisque habita sobre a terra de amplas
plancies.34 Cf. 21. 227 s.35 Cf. 334.36 Cf. 1108.
Humanitas 68 (2016) 191-203
199A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:
continuidade, transformao e reescrita
a Pris um papel relevante, como sucede na pica vergiliana37 ou
mesmo da verso em que s Pris d a morte a Aquiles (Eurpides, Hcuba38
ou Plutarco, No Banquete39 e Comparao Lisandro-Sula40).
Na Posthomerica, possvel encontrar um tom moralizador, uma marca
distintiva em relao aos Poemas Homricos, que atinge a prpria
caracterizao dos heris. Ao passo que na Ilada se apresenta Pris
como um mulherengo, sem especiais dotes guerreiros, nem uma
valentia que o distinga enquanto filho de Pramo, na Posthomerica o
irmo de Heitor retratado como um heri combativo e que se esfora
para poder suceder ao irmo. Ao contrrio do que sucede no poema
homrico, Quinto descreve um clima de maior concrdia entre os
Aqueus41, embora isso no se fique a dever ao papel de Agammnon,
pois este perde um pouco da sua individualidade enquanto lder.
De uma forma geral, Quinto apresenta uma concepo da condio
humana muito prxima da que exposta nos Poemas Homricos, embora se
note uma maior correlao entre crime e castigo. H a noo de que, por
um lado, a existncia humana efmera (to depressa floresceu, como
murchou42) e, por outro, resta aos mortais aceitar aquilo que os
deuses lhes reservam, seja bom ou mau43. Afirma mesmo que sem se
ver que se conduz a vida dos homens44. O homem, segundo Quinto,
deve viver conforme a natureza, pois acredita na necessidade de uma
ordem csmica, que se manifesta na Posthomerica pelo poder do
Destino (Aisa, Ker ou
37 Cf. 6. 56-8.38 Cf. 387.39 Cf. 742B.40 Cf. 4.3.41 Cf.
1.767-781: querela entre Diomedes e Aquiles rapidamente
resolvida.42 7. 44; cf. Il. 6. 146-9.43 7. 52-5: , .Sei bem que
como todos os homens percorremos o mesmocaminho do Hades, e para
todos chega o funestotermo da morte gemedora. Convm que quem
mortalaceite tudo quanto um deus d, alegrias ou penas.44 cf. 7.
80.
200 Joaquim Pinheiro
Keres, Moira ou Moirai, moros, daimon e ananke)45, facto que
poder significar a adeso de Quinto s ideias esticas.
Apesar de o heri surgir, em geral, mais humanizado, continua a
ser um mortal com capacidades especiais, salvo algumas excepes,
como a de Tersites. Tm, por exemplo, ossos ()46 diferentes, de
tamanho superior, semelhantes aos de um Gigante. Este trao
distintivo dos heris mticos aparece muito na poca imperial,
havendo, por exemplo, em Pausnias47, a descrio da descoberta de
enormes ossos humanos. Em Proprcio48, por sua vez, Briseida aparece
com os enormes restos mortais de Aquiles nas suas pequenas mos.
Ainda em relao s caractersticas fsicas dos heris, um dos passos que
melhor descreve o paradigma herico encontra-se numa das provas dos
jogos fnebres em honra de Aquiles: o lanamento do disco, j presente
na Ilada49. Conta o poeta que, por ser o disco muito pesado, os
Argivos, com excepo de jax, no conseguiam lan-lo. De tal forma que
foram precisos dois homens para trazer o disco para os jogos.
Estabelece, assim, o contraste entre um poderoso e gil heri do
passado e os dbeis homens do presente. No se trata de um topos pico
novo, atendendo ao facto de tal distino j se encontrar nos Poemas
Homricos50 ou na Argonutica de Apolnio de Rodes51.
Da sua relao desconcertante com os deuses, com o destino e a
incerteza, emerge a imagem de um heri bastante conotado com o ideal
homrico. Tambm por isso alguns fillogos ainda olham para a
Posthomerica como um mero exerccio de erudio mitolgica, onde, de
forma pontual, se podem encontrar sinais de uma poca marcada pelo
compromisso entre a cultura grega e o imprio romano52. Dificilmente
se encontrar uma relao inequvoca entre o pepaideumenos, homem culto
que optou pela paideia acessvel ao cidado imperial, e os heris de
Quinto de Esmirna. Nem o episdio da clera de jax e toda a aco que
da decorre nos permite defender que os heris de Quinto exibem uma
mais apurada complexidade
45 Recorde-se as palavras de Pndaro: O destino inato decide
sobre todos/os trabalhos (Nemeia 5, 40-41).
46 cf. 3. 723 (ossos de Aquiles).47 cf. 8. 29.3 e 32. 5.48 cf.
2. 9. 13 s.49 cf. 23. 826-849.50 cf. Il. 5. 303 s., 12. 447-449.51
cf. 3. 1365-1368.52 S. Sad et al. 2004: 453.
Humanitas 68 (2016) 191-203
201A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:
continuidade, transformao e reescrita
psicolgica, pois isso seria esquecer heris homricos como
Aquiles, Heitor, Telmaco ou Ulisses. O que Quinto consegue,
parece-nos, conciliar, com algum engenho, aquilo que a tradio da
tcnica pica, incluindo as marcas da transmisso oral, com uma
estrutura pontuada por algumas etiquetas retricas, como a
ekphrasis, por vezes longas, mas capazes de se tornarem uma sntese
de vrias verses mticas. Por isso, torna-se em relao a algumas
narrativas mitolgicas uma fonte imprescindvel, como a do combate de
Aquiles com a amazona Pentesileia.
Guarda-se, nesse sentido, do retrato do heri a sua excelncia,
audcia, determinao ou entrega constante e esforada a um objectivo
que lhe poder trazer a glria e a fama duradouras. Para atingir esse
fim, o heri na Posthomerica no consegue, em muitas das suas aces,
controlar o impulso () que o faz agir de forma irracional, com
excesso, exibindo o seu carcter indmito. Ao contrrio de outros
autores da poca imperial, Quinto de Esmirna no analisa em
profundidade a physis, nem como ela pode ser moldada. Tudo parece,
assim, estar subordinado vontade do Destino e interveno dos
deuses.
Em concluso, podemos afirmar que Quinto prova com a Posthomerica
ter sido um leitor e profundo conhecedor dos Poemas Homricos, mas
tambm de outros textos clssicos que convocou para o seu exerccio
potico, resultando um poema de vocao intertextual e estruturalmente
exigente, em que a sequncia da narrativa mitolgica selecciona,
combina, sintetiza ou transforma verses anteriores, indagando, por
isso, o leitor, que se v obrigado a uma viso prismtica ou a uma
viagem intertextual. Mesmo ao nvel das personagens, a pica de
Quinto consegue enquadr-las e dar-lhe uma nova dimenso no conjunto
da histria, como sucede com Neoptlemo, Eurpilo, Enone, Snon ou
Laocoonte. A Posthomerica conjuga, assim, tradio e inovao, num
estilo diversificado e que, tambm por isso, foge a qualquer
tentativa de definio mais rgida.
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