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MARIAD
AGRA
AJACIN
THOSETTON
MARIAD
AGRA
A
JACINTHOS
ETTON
professo
radeSociologia
daFaculda
dedeEdu
cao
daUSP.
Aeducao
popular
noBrasil:
acultura
demassa
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INTRODUOTendo j completado mais de cin-
qenta anos, polmica e controver-
tida, a TV tem sensibilizado, ao
longo de sua histria, um nmero
significativo de estudiosos. sem
dvida o veculo miditico maiscriticado entre os analistas, mas
tambm a mdia que parece alcan-
ar o pblico mais expressivo no
que toca sua diversificao. Cri-
ticada pela sua programao de
baixa qualidade e altamente mer-
cadolgica, reflexes que muitasvezes no dissociam o meio de seu
contedo (Khel, 1995, 2000; Bucci,
Nopr
ocedeex
aminarseve
rdadeira
oufalsa
ainsus-
tentvel
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telectualprod
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reciao
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aclasseo
perria
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mparaa
preend-
la(Bourdieu,
1979).
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2000-01), a TV, no meu entender, carece
de um melhor entendimento. No entanto,
felizmente, possvel identificar, recente-
mente, uma srie de trabalhos que pensam
a TV e as outras mdias a partir de outros
critrios. Ou seja, fugindo das generaliza-
es que uniformizam a proposta de entre-
tenimento televisivo, chamam ateno para
a riqueza de suas produes, na tentativa
de avanar na sua compreenso (Machado,
2000; Martn-Barbero, 1997). Mais do que
pensar exclusivamente nos contedos e no
carter muitas vezes ideolgico dessas pro-
dues, grande parte das reflexes procura
compreender o uso dessa programao pelo
pblico. Ao invs de refletir sobre a forma
como os contedos influenciam as pessoas,dedica-se a pensar o que as pessoas fazem
com esses contedos. Esta a minha pro-
posta. Compreender os usos variados que
grande parte da populao faz ou pode fa-
zer das mensagens televisivas e demais
produes miditicas.
Este artigo objetiva pois trazer uma dis-
cusso sobre a transformao que o campo
da educao vem sofrendo com a emergn-
cia do fenmeno mundial da TV e da cul-
tura de massa em geral. Tem inteno de
refletir sobre a perda do monoplio da fa-
mlia, da escola e demais instituies
educativas tradicionais, reconhecidas pela
transmisso e produo de um saber e de
uma cultura formal.
Para isso, primeiramente, preciso cha-
mar ateno para o fato de que se a) as
formas de aprender e b) tomar conheci-
mento sobre o mundo, se c) os mecanis-
mos de transmisso do saber, d) os agen-
tes da transmisso, e) as ocasies e f) os
espaos educativos j no so mais os
mesmos, certo considerar que o proces-
so educativo e o resultado desse aprendi-
zado o educando, suas prticas e a formacomo fazem uso delas sofreram profun-
das alteraes. Isto , se as formas de aqui-
sio do saber mudaram pertinente pen-
sar que o produto dessa configurao pe-
daggica o estudante moderno e o con-
tedo do aprendizado e suas prticas
tambm assumiu outras feies.
Se, grosso modo, convencionalmente,
a educao exigia disciplina, silncio, des-
treza em um nico tipo de linguagem, asaber, a leitura e a escrita; se, tradicional-
mente, somente os adultos na figura dos
pais e dos professores detinham o conheci-
mento; se apenas os livros, as bibliotecas,
museus e conservatrios de artes assegura-
vam o caminho da cultura e da educao,
hoje a informao e o saber (1) esto pulve-
rizados em vrias linguagens e dissemina-
dos em vrios veculos e instituies pro-
dutores de bens simblicos. Desde a dca-
da de 20, o rdio, o cinema, as revistas, e
mais recentemente, os outdoors, a Internet
e sobretudo a TV so veculos transmisso-
res de informao, saber e cultura caracte-
rsticos da moderna tradio brasileira
(Ortiz, 1988).
justo imaginar que o estudante moder-
no no age e no se estimula com os mesmos
processos didticos e educativos tradicio-
nais, bem como no usa essa informao,
esse saber e cultura da mesma forma.Posto isso, para encaminhar esta dis-
cusso tenho como inteno fazer uma an-
lise sobre as noes de cultura, cultura
1 Citando Monteil (1985), segun-do a leitura de Charlot (2000,p. 61), entendo informao
como um dado exterior ao su-jeito, que pode ser armazena-do, sob a primazia da objetivi-dade; entendo conhecimentocomo o resultado de uma expe-rincia pessoal ligada ativi-dade de um sujeito provido dequalidades afetivo-cognitivas eque est sob a primazia dasubjetividade, neste sentido uma informao de que o sujei-to se apropria; o saber, noentanto, produzido pelo sujeitoconfrontado a outros sujeitos,podendo ser enquadrado naordem da objetividade.
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popular e cultura de elite. Estou
convencida de que, a partir deste encami-
nhamento, conseguirei montar um argu-
mento que explicita um conflito entre duas
concepes de cultura que fundamenta as
dificuldades que alguns tm em compre-
ender o significado e o uso diferenciado
que os distintos segmentos sociais fazem
dos produtos da TV e demais bens da cul-
tura de massa.
minha inteno problematizar, des-
construindo sociologicamente, o julgamen-
to elitista que a academia e ns, professo-
res, temos em relao a uma variedade de
produtos da mdia. A literatura que se torna
best-seller, os fascculos e livros didticos
que tomam lugar dos clssicos, a banca dejornal que aos poucos torna-se a referncia
de leitura em detrimento das livrarias, a
msica erudita que sequer consegue ter a
audincia da msica sertaneja, a velha rixa
entre os programas educativos e os progra-
mas de variedade na TV, a preferncia pela
comdia em detrimento do drama psicol-
gico. Estes so alguns exemplos das oposi-
es e classificaes que fazemos automa-
ticamente quando nos dispomos a julgaralgumas prticas e disposies educativas
relativas ao consumo de massa ou ao con-
sumo popular (2).
Para fazer estas reflexes o argumento
ser construdo da seguinte forma. Irei ini-
cialmente caracterizar brevemente o que
entendo sobre cultura de massa. Retomarei
alguns determinantes socioestruturais res-
ponsveis pela emergncia desta configu-
rao cultural no Brasil. Destacarei a evo-
luo do crescimento da produo de bens
simblicos no territrio nacional, seus usos,
desde meados do sculo passado at os
nossos dias. Em seguida, irei trabalhar os
conceitoscultura, cultura popular e cultu-
ra de elite e observar que todos so concei-
tos que expressam um conflito, uma tenso
de ordem poltica no interior do campo
intelectual. So conceitos construdos so-
cialmente que expressam uma tomada de
posio de alguns segmentos em relao aum saber que valorizam ou desprestigiam.
Creio que ao esclarecer que os concei-
tospopular, cultura popular e cultura de
massa esto carregados de juzos de valor
possvel problematiz-los e compreender
os usos variados que os segmentos popula-
res fazem ou podem fazer da cultura de
massa.
A CULTURA DE MASSA
A TV e os demais produtos da cultura de
massa so fenmenos, sem dvida, contro-
versos e complexos. Ora manipulam, ora
servem como resistncia frente a uma cultu-
ra do status quo. Ora educam, segundo uma
lgica hedonista, ora educam para a eman-
cipao (Kellner, 2001; Thompson, 1995;Martn-Barbero, 2003). minha inteno
demonstrar que os usos das mensagens des-
ses veculos so heterogneos e circunstan-
ciados. Esto estreitamente influenciados
pela trajetria e apropriao de um capital
cultural oriundo da famlia e das instituies
educativas pelas quais quase todos experi-
mentam ao longo de suas vidas (Bourdieu,
2003, 1998, 1979; Morin, 1984).
Assim, a nfase do argumento desteartigo foge dos maniquesmos e das gene-
ralizaes to comuns neste debate (Setton,
2002, 2000) (3). A discusso aqui proposta
sobre a cultura de massa privilegia o aspec-
to criativo do processo de produo/recep-
o cultural das mensagens. Ressalta no-
vas possibilidades de interao a partir da
difuso e troca de signos, valores e saberes
sociais. Concordando com as colocaes
de Edgar Morin, apio a idia de que a cul-
tura de massa pode ser considerada uma
terceiracultura, ou seja, uma cultura que
se alimenta a partir de uma relao de
interdependncia com outras culturas, seja
esta escolar, nacional ou religiosa.
Creio que, para que se possa analisar a
cultura de massa (4) ou, em uma verso
mais moderna, para se analisar a cultura
das mdias (Kellner, 2001), necessrio
empreender uma anlise interdisciplinar.
Creio que dessa forma posso compreendero processo comunicativo proposto pela TV
e demais mdias como um processo de in-
terao, um dilogo contnuo entre criao
2 Por popular, estou me atendoao sentido de gente comum,maioria, annimo e tambm aosentido de pobre, simples, seminstruo (Dicionrio Houaissda Lngua Portuguesa, So Pau-lo, Objetiva, 2001, pp. 2261).
3 sabido que desde os estudosda teoria crtica da cultura, ela-borada por T. Adorno e M.Horkheimer (1996), uma sriede trabalhos, at aproximada-mente a dcada de 70, tra-balhava, fundamentalmentecomo referencial terico, umaperspectiva crtica e negativasobre o fenmeno da culturade massa. Privilegiando os as-pectos relativos produo easpectos relativos ao conte-do manipulador das mensa-gens, essa perspectiva, aindahoje, acolhe importantes tra-balhos. No obstante, a partirdos anos 70, uma outra abor-dagem, sobre o mesmo fen-meno, surge na Europa. Os es-tudos culturais da Escola deBirmighan so os precursoresdas anlises que enfatizam oprocesso de recepo dasmensagens miditicas e os usosdiferenciados que o pblico fazde cada uma delas.
4 O conceito cultura de massatem uma longa histria nas ci-ncias humanas. No entanto,para os objetivos deste artigo, importante salientar que, para
alguns autores, ele ultrapas-sado, pois no mais explicita ocomportamento do mercadoconsumidor, hoje altamentesegmentado. A este respeito ler:Ortiz, s/d.
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(produtor) e consumo (receptor). Diferen-
te de grande parte das leituras que se faz
sobre o fenmeno, acredito que o receptor
da mensagem miditica, televisiva ou no,
no passivo, no apreende as mensagens
tal como foram propostas. A recepo no
o estgio final do processo comunicativo.
Ao contrrio, a recepo uma fase que d
incio a etapas criativas de apropriao e
novas produes de sentido (Martn-
Barbero, 2003, 2000; Certeau, 2002;
Ginzburg, 1987). Saliento que existe uma
margem de liberdade no processo de apre-
enso dos contedos por parte dos indiv-
duos. A etapa da interiorizao essencial-
mente particular e singular, derivada so-
bretudo da trajetria anterior de cada um.Dessa forma, preciso explicitar que no
considero os produtos e/ou contedos das
mdias em sua totalidade como ideolgi-
cos. Apoiando-me em Thompson (1995),
creio que so ideolgicas apenas as mensa-
gens que reforam relaes de dominao.
Ou seja, toda explicitao de sentido que
sustenta hierarquias e relaes de poder.
DETERMINANTES
SOCIOESTRUTURAIS: A CULTURA
DE MASSA NO BRASIL
Em meados do sculo passado, e prin-
cipalmente com os governos militares, a
sociedade brasileira v-se submetida a uma
nova ordem social e econmica. Desde
Getlio Vargas, nas dcadas de 30 e 40,
seguido de Juscelino Kubitschek, nos anos
50, e culminando nas polticas ps-64, as-
sistimos a um alto volume de investimento
na infra-estrutura da informao e do lazer.
Perodo de grande efervescncia poltica,
inverses financeiras na consolidao de
um projeto poltico integrador possibilita-
ram a criao de um mercado de cultura e
bens de consumo at ento desconhecidopor ns. Apoio institucional em polticas
educativas utilizando o rdio e o cinema
(Espinheira, 1934; Franco, 2000), tecno-
logias avanadas para a difuso de ima-
gens via satlites, apoio estatal nos em-
preendimentos culturais, com a criao da
Funart, Embrafilme, ou mesmo nos subs-
dios importao do papel para a inds-
tria editorial, promoveram, em poucos
anos, as bases para a consolidao, sem
precedentes, de uma cultura miditica em
territrio nacional (Ortiz, 1988).
Neste artigo, chamo ateno para o fato
de que possvel constatar a especificida-
de de uma nova ordem sociocultural, no
Brasil, diferente da vivida pelos pases
como Estados Unidos e demais naes
europias. Em 1950, quando as emisses
de rdio estavam praticamente generaliza-
das em territrio nacional, o cinema levavamultides s salas de projeo e a difuso
televisiva dava seus primeiros mas decisi-
vos passos, metade da populao brasileira
era ainda analfabeta. O Brasil, juntamente
com outros pases latino-americanos, cons-
tri, respectivamente, uma histria cultu-
ral a partir de outras influncias. Antes que
a escola se universalizasse, antes que o saber
formal se tornasse referncia educativa para
grande parte de nossa populao, antes quea lngua escrita estivesse generalizada em
todo o territrio nacional, o rdio, a TV e o
cinema j eram velhos conhecidos da po-
pulao. possvel pois considerar que o
imaginrio ficcional das mdias h muito
mais tempo vem colonizando os nossos
espritos. possvel considerar que esse
imaginrio est mais presente e mais fa-
miliar no cotidiano dos segmentos sociais
brasileiros, sobretudo os segmentos com
baixa escolaridade, do que propriamente a
cultura escolar (5).
No obstante estas observaes, for-
oso constatar um certo silncio e desinte-
resse, entre os educadores, sobre a predo-
minncia da cultura de massa em relao
cultura escolar. Em recente levantamento
entre as principais revistas especializadas
em educao, nos ltimos vinte anos, foi
possvel constatar a ausncia de reflexes
sobre a particularidade da configuraocultural e educativa do Brasil, e as implica-
es da decorrentes para a formao esco-
lar de nosso estudantado. Na realidade,
5 importante registrar que no fi-nal do sculo XIX Estados Uni-
dos e Frana contavam comapenas 14% e 18% de analfa-betos, respectivamente. Ao con-trrio, o Brasil apresentava umpercentual de 84% na condiode analfabetos (Hallewell,1985; Mira, 1995). Ainda hoje,segundo o Instituto Nacional deEstudos e Pesquisas Educacio-nais (Inep), a regio rural brasi-leira ainda conta com 29,8%de adultos analfabetos e a re-gio urbana, 15%. A escolari-dade mdia do morador dazona rural na faixa dos 15 anosou mais de 3,4 anos, enquan-to a urbana de 7 anos. Emrelao infra-estrutura, s 5,2%delas possuem bibliotecas e0,5% possui laboratrio de in-formtica, enquanto na zonaurbana os ndices so 58,6% e27,9%, respectivamente.
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sobre o tema dos meios de comunicao,
parte dos pesquisadores est mais interes-
sada nos aspectos didticos e metodolgicos
dos usos das mdias do que propriamente
nas determinaes socioculturais do fen-
meno (6).
A MATERIALIDADE DO FENMENO
Reforando o argumento deste artigo,
alguns nmeros podem nos ajudar a justi-
ficar a importncia da questo.
Atualmente, segundo dados do Censo
Demogrfico 2000, 53% da populao bra-
sileira freqentou menos de 7 anos a esco-la, ou seja, no ultrapassou o ensino funda-
mental, e 27,7% ocuparam apenas 3 anos
os bancos escolares. Apenas 47% estuda-
ram de 8 ou mais de 15 anos. De acordo
com esta mesma fonte, de um total de qua-
se 45 milhes de domiclios brasileiros
pesquisados, 93% tm acesso a energia
eltrica, 87,7% possuem televiso, 87,4%
possuem rdio e 35,3% possuem video-
cassete em suas residncias (7). Nesse sen-tido, importante ressaltar que a heteroge-
neidade de acesso aos meios educativos
um fato, e suas implicaes so bastante
complexas para o campo da educao for-
mal e informal.
Em relao mdia televisiva seria im-
portante registrar a configurao do setor.
As 65 emissoras nacionais, suas 349 gera-
doras e afiliadas, bem como suas 1.818
retransmissoras, do conta de atingir quase
a totalidade dos domiclios brasileiros
(Lima, 2001). Ou seja, dos quase 90% dos
domiclios que possuem televisores, a ao
pedaggico-informativa das novelas, seria-
dos, shows de variedades e filmes parece
estar mais presente do que a ao escolar.
Fazendo uma breve pesquisa sobre a
programao oferecida pela TV aberta,
pude observar a oferta crescente de progra-
mas de natureza informativa e prescritiva
(8). Classificando as ofertas das emissoras,foi possvel verificar que os contedos da
programao transcendem ao aspecto pe-
daggico explcito da transmisso dos do-
cumentrios Globo Reprter,Reprter
Eco, Planeta Terra (1.840 horas) (9), ou
das programaes propriamente educativas
Telecursos, Vestibulando Digital, Gran-
des Cursos Cultura (2.405 horas). Notici-
rios televisivos (10.430 horas) ou esporti-
vos (3.225 horas) tambm cumprem uma
funo pedaggica. Com audincias signi-
ficativas, expressam uma disposio do
pblico em inteirar-se das questes econ-
micas e polticas da ordem do dia (10).
sabido que a fico televisiva, h muito, na
forma de seriados (1.510 horas), novelas
(3.435 horas), filmes (780 horas), desenhos
animados e/ou programao infantil (6.260
horas) e humor (350 horas), preenche o ima-
ginrio de crianas e adultos, disponibili-zando ou prescrevendo comportamentos na
diversidade de sua produo (Pereira Junior,
2002). Possibilitando o acesso a comporta-
mentos e modelos de conduta a partir de
celebridades, ficcionais ou no, essa pro-
gramao, ao mesmo tempo que integra
todos em um ideal de civilizao (capita-
lista, hedonista e consumista), possibilita a
uma multido o acesso a um cdigo de
conduta que at pouco tempo era restritoaos segmentos privilegiados. Em uma an-
lise simplista, poderia identificar uma po-
larizao entre manipulao ou integrao
a partir dos contedos propostos pela pro-
gramao televisiva. possvel. Entretan-
to, creio que seria mais prudente e menos
tendencioso investigar as formas de articu-
lao e apropriao dessas mensagens pe-
los diferentes pblicos.
Mais do que isso, preciso comentar
ainda a crescente promoo de programas
religiosos e de variedade que subliminar-
mente (Ferrs, 1988) se propem educa-
tivos. As emisses religiosas (5.365 horas),
as emisses que investem nas entrevistas
(2.790 horas), ou as emisses de entreteni-
mento variado que provocativamente de-
nominoparadidticas Note e Anote, Bom
Dia Mulher, Melhor da Tarde, Vinho e
Mesa, Neurnios, Mochilo, Fica Comi-
go, Vida e Sade, Mestre Cura, Chek In,Turismo na TV(14.200 horas), grande par-
te destinada ao pblico jovem e feminino,
especificamente, podem revelar uma iden-
6 Fazendo um levantamento nasprincipais revistas especializa-
das em educao, entre elas,Revista Brasileira de Educao,Educao e Realidade, Educa-o e Sociedade, Cadernos dePesquisa e Educaoe Pesqui-sa, pude observar que poucosso os artigos que discutem arelao dos meios de comuni-cao de massa e a educao.A maior parte deles (Kenski,1998; Preto, 1999; Oliveira,2001; Mazzoti, 1991; Valen-te, 1988; DAlmeida, 1988;Oliveira, 1980; Castro & Fran-co, 1980) trabalha as novastecnologias como instrumentosou recursos de trabalho do pro-
fessor. Raros so aqueles queprocuram investigar as novastecnologias como promotorasde um conhecimento informal,formadores de uma nova subje-tividade (Costa, 2002; Fischer,2002; Preto, 2002).
7 Exclusivamente 10,6% possuemcomputador e 8% usufruem delinhas telefnicas.
8 Essa classificao foi feita apartir da programao ofereci-da pelo jornal Folha de S. Pau-lo, em 11 das 12 emissoras decanal aberto (exceto a emisso-
ra 21), na ltima semana doms de outubro de 2003. Ascategorias criadas para a clas-sificao so: 1) educativas (do-cumentrios, educativas, entre-vistas); 2) fico (novelas, de-senhos, seriados, filmes, hu-mor); 3) informativos (telejor-nais); 4) religiosos; 5) paradi-dticos (Fica Comigo, Note eAnote, etc.).
9 As horas registradas entre pa-rnteses referem-se ao total dehoras desse gnero de progra-mao calculado por semana.
10 A ttulo de curiosidade, a audi-ncia do Jornal Nacional daRede Globo de Televiso alcan-a a mdia de 35 pontos, sen-do que cada ponto refere-se aum total de 48,5 mil domicliosna Grande So Paulo.
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tificao do pblico com uma sede de sabe-
res e informaes que a sociedade lhes
cobra. Em um dilogo crescente entre a
necessidade de informar-se, de estar por
dentro das dicas do bem-viver, de uma cer-
ta arte de viver valorizada socialmente, a
grande maioria da clientela televisiva en-
grossa os ndices de audincia de uma pro-
gramao que oferece a preos mdicos e
sem cobrana uma educao que se ven-
de a partir da emoo e da diverso. Pro-
gramas religiosos promovendo a vida
asctica, regrada e disciplinada, e progra-
mas paradidticos que prescrevem, esti-
mulando, a conduta correta para mulhe-
res e jovens expressam a meu ver uma de-
manda que h muito a escola e demais agen-tes tradicionais da educao deixaram de
promover (Dubet, 1996).
Trabalhando de maneira interdepen-
dente com a TV e demais mdias (Santaella,
2000), temos o rdio, que tambm apresen-
ta a caracterstica de oferecer a seu pblico
muito mais que um simples entretenimen-
to musical e informativo. Uma srie de vi-
nhetas que disponibilizam informaes e
saberes especializados est a todo tempoatingindo um pblico diversificado. No
raro ouvirmos dicas sobre sade, cultura,
turismo, meio ambiente e lazer, entre os
noticirios nacional, internacional e espor-
tivo, nas emissoras FM e AM, oferecidos
no meio da programao musical. O mais
antigo e mais acessvel veculo popular de
acesso informao e entretenimento, no
Brasil, ainda hoje, no incio dos anos 2000,
disponibilizava 2.013 emissoras (11). Sa-
bendo da capacidade de atingir amplas
extenses, com baixos custos, as rdios per-
mitem a comunicao e a integrao pol-
tico-informativa, universalizando seu aces-
so, e como todos sabem criando uma tradi-
o como veculos de educao a distncia.
Em relao ao cinema, em 2000, segun-
do o Censo Demogrfico, apenas 14% da
populao brasileira declarou freqentar as
salas de projeo, mas importante lem-
brar que 35,3% possuem videocassete emsuas residncias. No entanto, a renda das
bilheterias nacionais, em trinta anos, au-
mentou oito vezes R$ 529,5 milhes con-
tra R$ 70,1 milhes. A aparente contradi-
o, no obstante, explicita apenas a mu-
dana de hbito do brasileiro em relao a
esse item do lazer. Dando preferncia s
salas em shoppings e concentrando em um
nico segmento seus consumidores, o ci-
nema parece ser um fiel entretenimento dos
segmentos mais abastados. Por outro lado,
o crescimento das locaes e lanamentos
de vdeos expressa que o consumo cinema-
togrfico s ampliou o uso domstico da
TV, conquistando, aos poucos, outros seg-
mentos menos privilegiados (12). Atual-
mente, segundo o SAJ Assessoria Em-
presarial Ltda., temos 5.867 locadoras no
Brasil. O volume de vendas em fitas VHS,
em 2002, foi de 2.833.961 e o nmero deDVDs alcanou o registro de 4.988.008
(13). A ttulo de curiosidade, seria interes-
sante registrar que, segundo o Anurio
Estatstico de 1990, 52% do pblico prefe-
re o gnero aventura e 49%, comdia. Para
os objetivos deste artigo, o importante
salientar, no entanto, que o DVD foi lana-
do no Brasil em 1998, ou seja, h menos de
dez anos. Naquela ocasio, a indstria ven-
deu 20 mil aparelhos e 105 mil CDs, segun-do dados da UBV. Desde ento, o preo
dos leitores de DVDs caiu quase 50%, au-
mentando a possibilidade de uma parcela
cada vez maior ter acesso a mais um ele-
trodomstico miditico.
Em relao ao mercado fonogrfico
vemos semelhante expanso com forte
apelo popular. Segundo pesquisas, desde o
Plano Real, ou seja, meados da dcada de
90, nunca se vendeu tanto e nunca tantas
pessoas de renda mais baixa tiveram a
oportunidade de comprar um aparelho de
som. Cerca de 5 milhes a 8 milhes de
pessoas que antes nunca tinham tido um
aparelho de som compraram um, depois do
Plano Real. De acordo com essa mesma
fonte, a popularizao dos aparelhos de som
foi to rpida que num curto espao de tem-
po 1995 e 1996 foram vendidos 10,7
milhes de sistemas de som, nmero supe-
rior populao de Portugal. A venda deCDs, em 1997, chegou a 104 milhes (Su-
plemento Mais!, Folha de S. Paulo, 1998)
(14).Atualmente, em funo da pirataria, o
11 Anurio Estatstico de Mdia 2003.
12 Estima-se que somente oito mi-lhes de pessoas freqentem ci-nema e somente 9% dos muni-cpios possuam salas de proje-o. As cidades do Rio de Ja-neiro e So Paulo destacam-seentre as capitais que possuemmais salas em uso, 212 e 556,respectivamente. O Brasil, em1972, tinha 2.648, em 1990,1.550, e, em 2002, 1.650. Avenda anual de ingressos, em2000, girou em torno de 80milhes. Em 1972, foram 191milhes (Folha de S. Paulo, se-tembro de 1995 e Filme B).
13 De acordo com levantamentosdo setor, o DVD vem superan-do as vendas de fitas VHS h10 meses consecutivos no Bra-sil, e em 2005 pode represen-tar cerca de 90% do setor. Se-gundo o presidente da UnioBrasileira de Vdeo (UBV), nosprimeiros sete meses do ano de2003, o mercado de VHS caiu6,1% e o de DVD cresceu 60,2%em unidades vendidas em rela-o ao mesmo perodo do anopassado. No ano passado onmero de aparelhos vendidosficou em 1 milho e este anodeve chegar a 2,2 milhes,segundo o diretor geral da pro-dutora e distribuidora Colum-biaTriStar Films, no Brasil. Elepreviu que em 2005 sero ven-didos no pas 12 milhes deaparelhos. A expanso do DVD,que est sendo mais rpida quea de CD no pas, segundo essediretor, reflete-se tambm na di-ferena de ttulos lanados. Atjulho deste ano foram lanados569 filmes em DVD contra 286
em VHS.14 Em 1979, foram vendidos um
total de 66 milhes de unida-des, entre LPs, compactos sim-ples, compactos duplos e fitascassete (Ortiz, 1988).
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volume da ordem de 79,6 milhes, 20%
menor que em 2001; 76% do total das ven-
das foi de produtos de artistas brasileiros.
Os lbuns mais vendidos, em 2002, so
Xuxa,Xuxa s para os Baixinhos 3, Rouge,
Popstar, Roberto Carlos,Roberto Carlos
2002, Vrios, O Clone Internacional, to-
dos de forte apelo popular (15). Seria inte-
ressante ressaltar tambm a premiao or-
ganizada pelo setor. Em 2003, o Disco de
Ouro, relativo venda de 100 mil unida-
des, foi entregue para Amado Batista, o
Disco de Platina, correspondente a 250 mil
cpias, foi dado para Jorge Verclio e a dupla
Sandy e Junior, e o Disco de Platina Duplo,
totalizando 500 mil unidades, foi entregue
ao CD da novelaMulheres Apaixonadas.
Um total de mais de um milho de cpias
vendidas oficialmente para um pblico que
facilmente poderia ser classificado como
popular. Para o desenvolvimento do argu-mento deste artigo, importante registrar
tambm que grande parte dos consumido-
res do mercado fonogrfico de estudantes
(23%), ainda em idade escolar, ou seja, entre
15 e 23 anos. Boa parcela, 46%, tem nvel
de escolaridade distintiva, isto , nvel
mdio e superior, entretanto, 54% dos con-
sumidores estudaram apenas at oito anos
(Unio Brasileira dos Produtores de Dis-
cos UBPD, 2001-02).
Para completar a anlise da expanso
do consumo de bens da cultura de massa no
Brasil, enfatizando seu apelo informativo e
prescritivo, e muitas vezes popular, seria
importante considerar o mercado de im-
pressos e o pblico deste setor.
No que se refere ao acesso leitura,
recente pesquisa sobre alfabetismo/
letramento (16) aponta que 67% da popu-
lao brasileira encontra-se na situao deanalfabetismo funcional. Isto , encontra-
se nos nveis 1 e 2 caracterizados por baixa
habilidade e compreenso da leitura (17).
Em Os Nmeros da Cultura, Abreu
(2003) revela que, segundo o Indicador Na-
cional de Alfabetismo Funcional (Inaf)
2000, 67% dos entrevistados gostam de ler:
32% gostam muito e 35% gostam um pou-
co. Comentando outra pesquisa,Retrato da
Leitura no Brasil (18),
a autora aponta que98% dos entrevistados possuem em suas
casas material escrito, entre eles, livros
didticos, enciclopdias, dicionrios, livros
infantis, bblias, livros sagrados e religio-
sos, livros tcnicos e especficos, livros de
literatura e romances, agendas de telefones
e endereos, calendrios e folhinhas, livros
de receitas de cozinha, lbum de famlia,
guias e catlogos.
No entanto, notem, essa pesquisa no
menciona a produo do mercado de peri-
dicos, fascculos e revistas em circulao.
Se, por um lado, a autora chama a ateno
para a necessidade de ampliar o entendi-
mento sobre a leitura no universo brasilei-
ro, integrando entre as prticas de leitura
lbuns de famlia, cadernetas de endereo,
etc., as pesquisas que comenta ignoram
dados sobre uma grande fonte de prazer e
leitura que so as bancas de jornal.
No obstante, foroso salientar queneste item, em 2001, segundo o Instituto
Verificador de Informaes, 14.132.700
revistas circularam em territrio nacional.
15 Os gneros mais escolhidos, se-
gundo a UBV, so pop (21%),rock (15%), religioso (14%),pagode e samba (12%) e serta-nejo (11%).
16 O conceito letramentoprocuracompreender a leitura e a escri-ta como prticas sociais com-plexas, desvendando sua diver-sidade, suas dimenses polti-cas e implicaes ideolgicas(Ribeiro, 2003).
17 Nvel 1 corresponde capa-cidade de localizar informa-es explcitas em textos cur-tos, cuja configurao auxiliao reconhecimento do contedosolicitado. Nvel 2 correspon-de quelas pessoas que conse-guem localizar informaes emtextos curtos, de extenso m-dia, mesmo que a informaono aparea na mesma formaliteral em que mencionada napergunta. Nvel 3 capacida-de de ler textos mais longos,podendo orientar-se por subt-tulos, localizar mais de uma in-formao, relacionar partes dotexto, comparar dois textos,realizar inferncias e snteses(Ribeiro, 2003).
18 Pesquisa encomendada pelaAssociao Brasileira de Celu-lose e Papel, Sindicato Nacio-nal dos Editores de Livros, C-mara Brasileira do Livro e Asso-ciao Brasileira de Editores deLivros, em 2000-01.
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Entre elas, as revistas relativas ao universo
cultural feminino (feminina, adolescente,
sade, puericultura, trabalhos manuais,
moda, horscopo 1.750.041), revistas re-
lativas ao mundo dos games e infanto-ju-
venis (1.317.050), juntamente com as re-
vistas destinadas ao segmento de interes-
sados em televiso e sociedade (1.288.232),
destacam-se como as campes em venda.
Nesse sentido, esse mercado, embora tmi-
do em relao a outros pases, na maioria
desenvolvidos, parece ser tambm um
exemplo significativo que expressa o cres-
cimento de uma cultura de massa letrada
no Brasil.
J na dcada de 70, Ecla Bosi, em seu
clssico Cultura de Massa e Cultura Popu-
lar, apontava que as revistas faziam parte
do universo de leitura das operrias. Te-
mas sentimentais, horscopo, religio e
moda eram os mais presentes. Seria impor-
tante ressaltar aqui que a prtica entre elas
estava associada compra e constante
troca e circulao dos exemplares. Nesse
sentido, possvel inferir um efeito multi-
plicador desses nmeros (19).
Em 2000, segundo oAnurio Estatsti-co de Mdia, comercializaram-se 931 ttu-
los de revistas, sendo os que mais se desta-
cam, como foi visto anteriormente, os refe-
rentes a um segmento feminino e adoles-
cente. No entanto, expressivo o nmero
de 370 ttulos relativos a revistas que pode-
riam ser qualificadas tambm comopara-
didticas. Ou seja, revistas de vulgariza-
o de saberes e competncias, conselhos,
dicas de estilos de vida variados, compe-
tindo com as orientaes que podem e de-
vem ser adquiridas nas escolas. Tal como
verificado com a mdia televisiva e radio-
fnica, a produo de entretenimento im-
presso, via revistas especializadas, amplia
o acesso informao para um pblico
diversificado e jovem
Os ttulos mais relevantes, em termos
numricos, se encontram na rea da arqui-
tetura, decorao e paisagismo (49), infor-
mtica/games (33), construo e engenha-ria (29), arte, cultura e educao (20), entre
outros (20). Assim, seria interessante cha-
mar ateno para o fato de que todas elas
disponibilizam, nas bancas de jornal, pe-
ridica e sistematicamente, um conjunto
de preceitos ou princpios de conduta que
ajudam a orientar os comportamentos de
seus leitores. como se essas revistas ofe-
recessem informaes e conhecimentos
para um pblico heterogneo, conheci-
mento este antes restrito a um universo de
peritos. Poderia afirmar, nas categorias
de Anthony Giddens (1991), que elas esta-
riam servindo para publicizar, com a TV
e demais produtos miditicos, uma educa-
o fora dos eixos tradicionais, possibili-
tando um aprendizado, e uma circulao
do saber, fora da escola.
MEIOS DE COMUNICAO DE
MASSA: UMA ABORDAGEM
EDUCATIVA
A TV, ainda que tenha uma histria mais
recente, e com vocao educativa menos
explcita, com o passar dos anos, sem queo perseguisse, acabou por ser uma til fer-
ramenta na educao de nosso imaginrio
social. As produes seriadas, as novelas,
programas de entrevistas ou showsde varie-
dades, conseguiram conquistar a audincia
de milhares de brasileiros, e como cultura
de massa, acabou por servir como espao
de produo de um conhecimento e de uma
leitura sobre o Brasil e seu povo.
Segundo pesquisas (Ortiz, Borelli, Ortiz
Ramos, 1989), a TV e sua programao
eram vistas como um empreedimento de
grande valor pedaggico. Logo no seu in-
cio, na dcada de 50, herdeira de uma est-
tica literria do teatro e do cinema, muitas
vezes engajada e comprometida com um
ideal de cultura das elites, a TV conta com
uma produo forte de teleteatros e com a
colaborao de uma srie de dramaturgos
de renome (21). Ainda pouco comercia-
lizvel, pois s alcanava um pblico res-trito, tinha espao para produes de car-
ter mais experimental (Ortiz, Borelli, Ortiz
Ramos, 1989) (22).
19 Atualmente, em relao leitu-ra de jornais, h muito reconhe-cida como leitura legtima, deum pouco mais de 1.000 ttu-los em circulao, em todo oterritrio nacional, em mdia42% tm como hbito l-los, ouseja, praticamente a mesma por-centagem de indivduos com 8ou mais anos de escolaridade.
No entanto, importante colo-car as diferenas dessa prticaentre as grandes capitais. Se-gundo o Ibope, os cariocas(69,8%), os recifenses (65,1%),seguidos dos moradores de Por-to Alegre (64,4), so os quemais tm o gosto pela leitura dejornais. Fortaleza destaca-secom um ndice de apenas25,7% de leitores.
20 Interesse geral/atual (66), eco-nomia/negcios (49), arquite-tura/decorao/paisagismo(48), medicina/odontologia(44), informtica/games (33),
agropecuria (36), alimenta-o/bebidas/gastronomia(29), auto/moto (29), constru-o/engenharia (29), market-ing/propaganda (29).
21 Victor Hugo, Alexandre Dumas,A. J. Cronin, Charles Dickens,entre outros.
22 Vale ressaltar que na dcadade 50 o Brasil contava apenascom 2.000 aparelhos de TV eem 1955, 170 mil; vinte anosdepois, ou seja, 1975, com 10milhes.
23 Segundo pesquisa da Marplan,
entre pessoas de 15 a 64 anos,o gosto pelos programas deauditrio vem sofrendo quedas.Entre as classes A e B, em1994, 64% diziam ter interes-se por programas de auditrio.Agora, esse percentual caiu
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No entanto, a partir de 1960, a telenove-
la, devedora dos folhetins melodramticos
de origem europia e das radionovelas la-
tinas, faz carreira sob o estigma de ter apelo
popular e baixa qualidade. sabido que
nos governos militares o Estado autoritrio
passa a se preocupar com assuntos de cul-
tura, procurando realizar diretrizes que fa-
voream o desenvolvimento de uma cultu-
ra brasileira, de uma identidade nacional
compatvel com suas premissas coerciti-
vas. Na ocasio, o ministro da Educao
Jarbas Passarinho sublinhava que seria ideal
existir entre ns uma cultura que se fundas-
se na crena da nacionalidade e no uma
cultura importada, uma forma de colonia-
lismo cultural. Em protocolo assinado pelaRede Globo e pelas Emissoras Associadas,
nos idos de 1975, o documento evidenciava
a ao conjunta do Estado e das emissoras
para abafar o que Muniz Sodr (1989) qua-
lificou de esttica do grotesco. Protocolo
que visava a uma profilaxia cultural, inter-
vindo sobre programas que chocavam o
bom gosto de camadas mais educadas
(Ortiz, Borelli, Ortiz Ramos, 1989). Relacio-
nava ainda uma srie de proibies comoapresentar em qualquer programa pessoas
portadoras de deformaes fsicas, mentais
e morais; quadros, fatos ou pessoas que sir-
vam para explorar a crendice ou incitar a
superstio, bem como falsos mdicos, cu-
randeiros ou quaisquer tipos de charla-
tanismo; comentar de forma sensacionalis-
ta, ou depreciativa, problemas, fatos, suces-
sos de foro ntimo ou da vida particular de
qualquer pessoa (Miceli, 1973) (23).
Nas dcadas de 50 e 60, no entanto, e
anos seguintes, um conjunto de iniciativas,
como o programa infantil Vila Ssamo e as
novelasJernimo, o Heri do Serto eMeu
Pedacinho de Cho, destacou-se com na-
tureza de utilidade pblica (Ortiz, Borelli,
Ortiz Ramos, 1989). Mais recentemente,
as novelasRei do Gado, O Clone e Espe-
rana, trabalhando com temticas polmi-
cas, entre elas, MST, drogas, inseminao
artificial, imigrao, sindicalismo, entreoutros, reinauguram as disposies edu-
cativas da TV em um dos seus gneros
menos prestigiados, a novela.
No que se refere programao contro-
vertida dos programasde auditrio, shows
que muitas vezes associam espetculos de
msica e dana, games-shows entre cele-
bridades ou pblico em geral e/ou curiosi-
dades fantsticas, desde seu surgimento, fo-
ram criticados como sensacionalistas e gro-
tescos (Sodr, 1985; Bucci, 2002). Desde
meados da dcada de 50 na TV, sofrendo
alguns reveses mas sempre voltando
telinha, essa programao recorrentemen-
te alvo de crtica ainda que campe de
audincia (Mira, s/d). No entanto, tentando
compreender esta to criticada verso do
entretenimento, deveramos buscar um
pouco de sua histria. possvel conside-
rar que, fugindo do modelo de uma diver-so legtima, sria e elevada, a programa-
o popular sempre foi mal interpretada
pelos crticos. No obstante, temos algu-
mas excees. Mikhail Bakhtin (2003) e
Peter Burke (1983), recuperando a histria
da cultura popular na Europa, como tam-
bm Renato Ortiz (1992) e Maria Celeste
Mira (s/d), recuperando a verso da cultura
popular nas manifestaes da cultura de
massa, no Brasil, salientam que houve umaincompreenso e/ou desconhecimento das
elites intelectuais em relao ao lazer dos
segmentos populares. Afastando-se do
universo e do cotidiano popular e ignoran-
do as matrizes dessa tradio, grande parte
das crticas acabou entendendo o grotesco
popular como mau gosto. Ignorando o
sentido divulgado por Bakhtin sobre o gro-
tesco, essa forma pardica de interpretar o
mundo em sua ambigidade acaba-se por
reduzir e simplificar o gosto popular como
baixo, vulgar, enfim, grotesco. Para uns a
chamada programao sensacionalista sig-
nifica falta de cultura, para outros significa
explorao da misria social (Mira, s/d).
Como explorarei no prximo item, esque-
cem que, ao assim classificar a programa-
o, esto construindo barreiras entre duas
formas de conceber a cultura. A cultura
hegemnica, burguesa e letrada e a cultura
popular de massa (24).Cabe relatar neste item tambm a evo-
luo dos usos do rdio e do cinema como
veculos educativos. Se historicamente
para 57%. Entre as classes C,D e E, o interesse manteve-seestvel ou aumentou, 76% e77%, respectivamente (Suple-mento Mais!, Folha de S. Pau-lo, 1998).
24 Mas pode-se falar ainda deuma outra faceta da TV, ou seja,sua extraordinria tradio emTelecursos. Uma pesquisa maisaprofundada sobre o tema ain-da est por ser feita.
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surgem no Brasil como um privilgio daselites, tal como os livros e a TV, aos pou-
cos, em funo do potencial educativo e de
entretenimento, conquistam o pblico e
sucessivos governos, passando a ser vistos
como instrumentos de integrao cultural
e poltica (Espinheira, 1934;Revista USP,
2002-03). interessante observar que na
dcada de 20 at os anos 90, desde oMani-
festo dos Educadores, com as polticas
nacionalistas do perodo, bem como at
hoje, governos e intelectuais debatem os
meios de comunicao como estratgicos
no projeto de construo de um ideal de
Brasil (Franco, 2000; Ortiz, Borelli, Ortiz
Ramos, 1989).
Historicamente, importante lembrar,
no obstante, que, no que se refere ao rdio,
desde a primeira emisso, em 1924, no Rio
de Janeiro, ele j despertava, entre seus
incentivadores, sua vocao educativa. A
histria do rdio e seu talento para uni-versalizar informaes e promover uma
cultura local parecem se confundir a todo
tempo. Com Edgar Roquete-Pinto e seu
brao direito na rea da Rdio Difuso Edu-
cativa, Ariosto Espinheira, at os dias atu-
ais, com uma diversidade grande de pro-
postas educativas, o rdio cumpre sua fun-
o de favorecer o acesso de uma popula-
o marginalizada do processo escolar.
Alguns exemplos recentes expressam essa
realidade. Em 1998, o Programa Serto
Semi-rido, promovido pela Sudene e rea-
lizado pela Escola do Futuro (USP), com a
proposta de divulgar conhecimentos sobre
plantio na regio, bem como informaes
teis para se evitar doenas comuns na rea;
Educomunicao nas Ondas do Rdio,
iniciativa do Ncleo de Educao e Comu-
nicao da ECA-USP, com o projeto de
integrar a comunidade e a escola a partir daproduo e emisso de programas radiof-
nicos, est em andamento em vrias esco-
las pblicas da cidade de So Paulo, e Sin-
tonia Sesc-Senac, programa de difuso
aberta, desde os anos 70, hoje contando com
a colaborao de aproximadamente 400
emissoras pelo Brasil, com o objetivo de
divulgar conhecimentos gerais e de utili-
dade pblica, entre outras.
Da mesma forma, o cinema, emboraconstituindo-se de uma mdia de alto custo
e portadora de tecnologia moderna, cons-
truiu sua maneira uma interface com a
educao. Juntamente com o rdio, o cine-
ma sofreu investimentos com a inteno de
modernizar o modelo educativo brasileiro.
Com o movimento escolanovista e com o
apoio dos governos populistas, o cinema
surge como um veculo promotor de cultu-
ra e lazer. Com a criao do Instituto Na-
cional de Cinema Educativo (Ince), em
1937, at seu fechamento em 1966, esse
organismo promoveu uma mdia de 30 fil-
mes realizados por ano, com a durao de
10 minutos. Quase em torno de 1,5 longa-
metragem por ano. Com ttulos variados,
mas sem um eixo pedaggico explcito, o
Incefoi mais um instrumento pouco efici-
ente, entretanto extremamente moderno
para a poca, que os governos tentaram usar
para controlar e impor uma educao dese-jada (Franco, 2000; Saliba, 2003).
Atualmente, a produo cinematogr-
fica e seu potencial pedaggico ainda so
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pouco utilizados. Servindo mais como fon-
te de entretenimento e menos como vecu-
lo formador, o cinema, como j foi visto,
no se encontra entre os hbitos de lazer de
preferncia do brasileiro mdio. No entan-
to, pode-se encontrar importantes iniciati-
vas localizadas. A parceria entre a Funda-
o Abrinq e a Natura desenvolve o Projeto
Cinema e Vdeo Brasileiro na Sala de Aula.
Com o objetivo de capacitar professores e
organizar um acervo, alunos da rede pbli-
ca podero aprender a linguagem do vdeo
e produzir seus prprios documentrios.
Paralelo a isso, o Espao Unibanco de Ci-
nema j h algum tempo vem disponibili-
zando para grupos de estudantes e seus pro-
fessores o acesso a obras em cartaz ou queconstem do seu arquivo. J h mais tempo
a Fundao para o Desenvolvimento da
Educao (FDE), com um acervo variado e
voltado muitas vezes para obras de carter
mais pedaggico, oferece a todos os inte-
ressados o acesso a um material cinemato-
grfico de qualidade (25).
Embora cultivado e consagrado pelos
setores mais escolarizados, o livro , sem
dvida, um produto da cultura de massa eh muito tempo tenta se popularizar, no
Brasil, a partir de polticas pblicas da rea
da educao. possvel observar que o li-
vro didtico e paradidtico esteve presen-
te, entre ns, desde a dcada de 20 com o
empenho do editor Francisco Alves. Nessa
mesma poca assistimos a outros investi-
mentos no setor, com a criao da Compa-
nhia Editora Nacional. interessante res-
saltar que, na ocasio, livros didticos divi-
diam espao com ttulos que prescreviam
hbitos de higiene e informaes sobre
cuidados com o lar e a infncia. Preocupa-
dos em difundir o hbito da leitura para
amplos segmentos da populao, inverte-
ram ainda recursos nas colees Paratodos,
Biblioteca das Moas, com 176 ttulos, e a
coleo Terramarear, alimentando assim
um tipo de leitura de entretenimento diver-
sificado para os jovens leitores brasileiros.
preciso lembrar tambm que na dcadade 50 verifica-se um aumento de 143% no
setor grfico brasileiro, com um volume de
66 milhes de exemplares, para uma popu-
lao de 50% de analfabetos. Mais de 25
anos depois, em 1985, o Brasil contava com
400 editoras, responsveis pela produo
de 160 milhes de exemplares, em um pas
que ainda resistia com quase 29% de anal-
fabetos. H 10 anos, em 1993, o Brasil pro-
duzia 300 milhes de livros (Hallewell,
1985; Mira, 1995).
Em 2002, o volume de vendas chegou a
quase 339 milhes e aproximadamente 40
mil ttulos. Com 530 editoras ativas e com
cerca de cinco mil pontos-de-venda (en-
globando papelarias, bazares, supermerca-
dos, lojas de convenincia), dos quais 1.700
so livrarias na acepo clssica do termo,
o brasileiro tem acesso a apenas 1,8 livro
por ano (26). Com um mercado mais seg-mentado, segundo o relatrio da Cmara
Brasileira do Livro, a produo de livros
didticos, quase 50% da produo nacio-
nal, vendeu 161 milhes de livros, com
12.800 ttulos. No item obras gerais, a
venda chegou a quase 110 milhes de exem-
plares, com 10.750 ttulos. No setor de li-
vros religiosos, a circulao alcanou apro-
ximadamente 30 milhes de unidades, com
5 mil ttulos. Por ltimo, o setor de livroscientficos, tcnicos e profissionais che-
gou expressiva venda de 21 milhes de
unidades, com 11 mil ttulos. Para o argu-
mento deste artigo seria interessante cha-
mar ateno para o crescente volume de
livros de caracterstica prescritiva e de
auto-ajuda presentes sob a rubrica dos t-
tulos religiosos.
Para nosso estudo seria interessante ain-
da ressaltar que a busca do leitor fora dos
templos tradicionais de venda, as livrarias,
tem tambm sua histria no Brasil. A edito-
ra paulista LER, na dcada de 30, e a Editora
Martins Fontes, o Clube do Livro e a Editora
Saraiva, nos anos 40, foram pioneiros na
venda em domiclio de enciclopdias, livros
clssicos da literatura brasileira e interna-
cional (Hallewell, 1985; Mira, 1995). Hoje,
a herana parece permanecer pois os espa-
os para compras mantm-se bastante di-
versificados. Livrarias, bancas de jornais,farmcias, metrs e pequenas lojas de con-
venincia expandem o acesso a este bem de
consumo de massa (27).
25 No cabe neste artigo relatartodas as iniciativas educativasconhecidas do rdio e do cine-ma. No entanto, vale a penaum esforo sistemtico a fim deanalisar essas propostas.
26Inglaterra (4,9); EUA (5,1);Frana (7); Itlia (5).
27 Em recente pesquisa, foi poss-vel identificar que o mais novoponto-de-venda de livros seencontra em algumas estaesdo metr. Trata-se de um em-preendimento exploratrio que, maneira das mquinas quevendem refrigerantes e salga-dinhos, vende, por sua vez, li-vros de bolso, nos valores detrs, cinco e nove reais. Os ttu-los mais vendidos so relativosa sade, a informtica e a cons-tituio brasileira.
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A titulo de curiosidade, considero im-
portante registrar ainda que a primeira edi-
tora brasileira, nos idos de 1862, ostentava
ttulos de grande apelo popular como:Di-
cionrio de Medicina Domstica, Sucintos
Conselhos s Jovens Mes para o Trata-
mento Racional de seus Filhos, Coleo
Completa de Mximas, Pensamentos e
Reflexes (Hallewell, 1985; Mira, 1995).
Nesse sentido, o Brasil parece ter uma lon-
ga tradio em leituras e entretenimentos
que poderiam ser classificados como para-
didticos ou populares. Uma literatura f-
cil, de alto carter educativo e comporta-
mental, que parece conquistar mais espao
em nosso pblico do que o conhecimento e
o gosto pela literatura clssica e eruditapromovidos pela escola. Um outro exem-
plo interessante da circulao de livros
menos nobres no Brasil refere-se Li-
vraria do Povo. Fundada em 1879, no Rio
de Janeiro, comercializava livros usados e
era freqentada por estudantes e escritores
desconhecidos (Hallewell, 1985; Mira,
1995). Em seu clssico Cultura Popular
na Idade Moderna (1989), Peter Burke vai
salientar que a alfabetizao crescente vi-vida na ocasio do Renascimento, na Euro-
pa, no tivera as conseqncias que os re-
ligiosos supunham. Os camponeses liam
livros pequenos de no mximo 30 pginas,
almanaques, folhetos de notcias. Leitura
simples, vocabulrio relativamente peque-
no e construes no elaboradas. Nesse
sentido, conclui Burke, a imprensa ampliou
ao invs de destruir a cultura popular tradi-
cional. Ainda que no se possa fazer uma
analogia direta com a realidade atual no
Brasil, seria interessante colocar que a ex-
panso de um pblico leitor cultivado
resultado de sculos de educao. Por ora,
o que se tem, e j no pouco, expresso
de uma significativa demanda de informa-
es e saberes especializados.
No obstante, para finalizar este item,
caberia registrar que o aspecto formador e/
ou educativo de um imaginrio ficcional
das mdias no prerrogativa da culturabrasileira. Martn-Barbero (1995) salien-
tava, nos anos 80, que a cultura de pases
como Mxico (cinema), Argentina (rdio),
Chile (jornal) e Brasil (msica) se consti-
tuiu a partir de uma configurao cultural
bastante semelhante. Isto , os meios de
comunicao de massa se fazem presentes
na nossa histria, construindo uma cultura
hbrida em que se mesclam referncias da
cultura erudita, da cultura popular e da
cultura de massa. Este amlgama entre as
culturas seria ento constitutivo nas confi-
guraes latino-americanas.
OS SENTIDOS DA CULTURA
Para o desenvolvimento do argumento
deste artigo seria interessante ainda fazeruma breve digresso sobre a noo de cultu-
ra, e, nesse sentido, creio que Thompson
(1995) oferece algumas pistas importantes.
Fazendo um breve apanhado da hist-
ria desse conceito, Thompson registra que
uma das primeiras utilizaes da noo
remetia idia de cultivo ou cuidado de
algum elemento, tal como gros e animais
(at 1500), e, mais recentemente, o cultivo
da mente humana (1500 em diante). A dis-tino entre cultura (bens espirituais) e ci-
vilizao (bens materiais), to bem funda-
mentada por Norbert Elias (1990), docu-
mentou ainda os sentidos variados da no-
o de cultura em pases europeus, como
Inglaterra, Frana e Alemanha (Thompson,
1995, p. 167; Elias, 1990, pp. 21-5).
Para nosso interesse, vale ressaltar, no
obstante, que a noo de cultura sempre
carregou um forte vis evolucionista e
etnocntrico. Ou seja, grande parte dos pres-
supostos desta noo so forjados dentro
de uma tradio iluminista que favoreceu o
sentido elitista e restrito do conceito (Mar-
tn-Barbero, 2003; Bollme, 1988; Bour-
dieu, 1979, Cuche, 2002). Para essa tradi-
o a cultura expressa a idia de desenvol-
vimento, enriquecimento, evoluo, um
salto em relao a outros estgios anterio-
res de civilizao. At hoje no difcil
encontrar fortes vestgios dessas represen-taes entre ns. S muito recentemente a
noo de cultura assumiu o sentido de um
processo ou produto de um esforo materi-
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al e espiritual de indivduos ou de grupos
(Thompson, 1995; Canclini, 1983). Nesse
sentido, para dar continuidade a essa ques-
to o autor concebe quatro tipos bsicos de
concepo do conceito de cultura (28).
Vale salientar, no entanto, que esse autor
constri uma particular concepo, que
denomina concepo estrutural de cultu-
ra. Ou seja, para ele, preciso dar nfase
ao carter simblico dos fenmenos cultu-
rais bem como ainda relacion-los a con-
textos e processos histrica e socialmente
estruturados.
Assim, a concepo estrutural de cultu-
ra de Thompson d nfase ao carter sim-
blico dos fenmenos culturais mas os
considera inseridos em contextos estrutu-rais especficos. Ou seja, entende a anlise
cultural como o estudo das formas simb-
licas aes, objetos, expresses signifi-
cativas diversas em relao a contextos e
processos historicamente especficos e so-
cialmente estruturados, em que as formas
simblicas so produzidas, difundidas e
consumidas. Enfatiza que os contextos s-
cio-histricos so muito variados, poden-
do estar estruturados de vrias maneiras.Segundo ele, por exemplo, estruturados
pelas relaes de poder, acesso diferencia-
do a recursos e oportunidades sociais, etc.
Dessa maneira, o que interessa salientar
que, ao conceber a anlise dos fenmenos
culturais da modernidade, contextualizando
um momento histrico e social especfico,
Thompson concebe a cultura sendo produ-
zida em uma sociedade hierarquizada, mar-
cada por profundas diferenas sociais, com
uma injusta distribuio de poder e privil-
gio. A concepo estrutural de cultura pro-
pe ento uma anlise em que as relaes de
poder estejam presentes. Para essa viso, os
fenmenos culturais expressam sobretudo
um terreno de disputa social. Compreender
a cultura de nosso tempo uma pista para
compreender a sociedade em que vivemos,
seus conflitos, lutas internas, jogos de inte-
resses, medos e fantasias. Essa viso conce-
be toda expresso cultural das sociedadescontemporneas com a capacidade de fazer
um diagnstico da histria de uma poca e
de uma sociedade.
Nestor Canclini (1983), emAs Culturas
Populares no Capitalismo, contribui tam-
bm para pensarmos o conceito de cultura
nas sociedades globalizadas e hierarqui-
zadas. Colocando-se o desafio de compre-
ender a especificidade das culturas latino-
americanas, Canclini alerta para a necessi-
dade de refletirmos sobre elas a partir de um
pressuposto poltico, ou seja, a cultura como
um campo de tenso, um campo de luta sim-
blica, onde diferentes interesses de classes
ou de fraes de classes so expressos de
maneira velada pelo conflito entre represen-
taes sobre o mundo social (29).
Canclini desenvolve uma noo de cul-
tura que corrobora a anterior de Thompson.
Cultura para ele no pode ser sinnimo deformao social, isto , forma de sociedade
unificada a partir dos valores dominantes.
A noo de cultura no pode se reduzir s
manifestaes das instituies e modelos
de comportamento de uma formao so-
cial. Para ele, necessrio criar um defini-
o mais eficaz, uma definio que enten-
da a cultura enquanto processo. Cultura
como sendo resultado de todas as prticas
e instituies dedicadas administrao,renovao e reestruturao de sentidos.
Posto isso, a produo simblica, a pro-
duo dos sentidos, a produo das cate-
gorias do pensamento e do julgamento re-
meteriam s estruturas materiais de exis-
tncia dos indivduos, suas condies de
trabalho, de estudo, de lazer, de origem fa-
miliar, etc. A cultura no representaria
apenas em smbolos e imagens uma socie-
dade. A cultura seria ento espao de pro-
duo de sentidos e valores que ajudariam
na reproduo das relaes entre os gru-
pos, ajudariam na transformao e na cria-
o de novos e outros sentidos e valores.
Dessa forma, a cultura enquanto pro-
cesso vista no s nos atos deproduo,
mas nos atos que envolvem a divulgao e
promoo da criao, bem como nos atos
de recepo. A cultura no se reduziria
objetos, smbolos ou bens materiais de uma
sociedade, mas se apresentaria tambmcomo resultado das diferenas de sentido
ou diferenas de significados e usos entre
os diferentes indivduos que a consomem.
28 primeira concepo d o nomede clssica. Remetendo ao quej foi dito anteriormente, a ex-pressocultura revela um proces-so de desenvolvimento e eno-brecimento das faculdades hu-manas, um processo facilitadopela assimilao de trabalhosacadmicos e artsticos e ligado
ao carter progressista da eramoderna. A segunda concep-o, segundo Thompson, aque-la referente a uma viso antropo-lgica (1800-1900) subdivididainternamente entre concepodescritiva e concepo simbli-ca. Para ele, a concepo des-critiva entende a noo de cultu-ra como o conjunto inter-relacio-nado de crenas, costumes, for-mas de conhecimento, instrumen-tos materiais, arte, etc., que soadquiridos pelos indivduos en-quanto membros de uma socie-dade particular e que podem serestudados cientificamente. Preo-
cupa-se com a anlise, a classi-ficao e a comparao dos ele-mentos constitutivos das diferen-tes culturas para traar o desen-volvimento da espcie humana.Seus expoentes maiores seriamTylor e Malinowski (1930-40).A concepo simblica da no-o de cultura, baseada sobre-tudo nas contribuies de CliffordGeertz, considera que o homem um animal suspenso em teiasde significados. Cultura a teiade significados produzidos pe-los homens e sua anlise cons-titui uma cincia interpretativaem busca de significados. Se-
gundo Thompson, o intrprete,o pesquisador, tenta entendero que dito e vivido, explicaro significado das aes e pr-ticas culturais. A anlise cultu-ral seria ento a elucidaodestes padres de significado.Embora Thompson apie-se nascontribuies de Geertz, apontaalgumas limitaes. Ou seja,aponta para uma certa impreci-so nos conceitos, a limitaode uma interpretao fechadanos prprios textos ou smbolos esobretudo chama ateno sobrea falta de uma contextualizaoscio-histrica dos eventos cultu-rais. Geertz, segundo Thompson,no se preocupa com os signifi-cados divergentes e conflitantesque as expresses simblicaspodem assumir. No d desta-que s relaes de poder, aosconflitos internos relativos pro-duo de cultura, produode significados.
29 Canclini um mexicano que in-troduziu a noo de culturas h-bridas no debate cultural. Em seulivro homnimo, faz uma discus-so sobre a especificidade dasculturas latino-americanas que seforjaram a partir do sincretismode vrias matrizes culturais, eu-ropia, nas suas verses eruditae popular, tnicas, negra e ndiae, mais recentemente, a culturade massa, globalizada e inter-nacionalizada.
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CULTURA POPULAR E CULTURA
DE ELITE
Por ltimo, para pensar a cultura en-
quanto processo de reproduo, transfor-
mao e criao cultural, bem como espa-
o de uma luta simblica, o que mais nos
interessa nesta reflexo atentar para o fato
de que os sistemas sociais no se reprodu-
zem espontaneamente submetidos apenas
a constantes estratgias de dominao de
ordem material e de ordem fsica. Para
Canclini, seria necessrio ainda investir no
controle simblico das prticas culturais
(Canclini, 1983; Bourdieu, 1979). Ou seja, necessrio investir em estratgias de im-
posio de normas e padres culturais que
ajudam a legitimar a ordem social vigente
a partir de mecanismos que legitimem e
reifiquem consensos. No obstante, quais
seriam as prticas que possibilitariam a
naturalizao de uma ordem cultural?
Tentando desenvolver este argumento,
valeria a pena recuperar um pouco da his-
tria dos conceitos cultura popular e cultu-ra de elite. Em O Povo por Escrito (1988),
Gennevive Bollme denuncia a ambigi-
dade do conceitopopular. A autora identi-
fica a impreciso, a grande variabilidade
nas formas de se conceber a noo de po-
pular. Para nosso objetivo aqui importan-
te colocar que Bollme apresenta uma hi-
ptese bastante interessante. Para ela, cul-
tura popular deve ser apreendida como uma
relao. Ou seja, a cultura popular explicita
uma forma de interpretar aquilo que rela-
tivo ao povo, ao popular. Mais do que isso,
a palavrapopular faz mais do que simples-
mente designar uma relao, ela acusa. Para
a autora, a palavra popular expressa um
julgamento, uma tomada de posio, que
retira elementos do conjunto de uma cultu-
ra e os classifica segundo alguns padres.
Uniformidade, homogeneizao, pouca ela-
borao, simplicidade, adjetivos que po-
dem desclassificar estes elementos segun-do julgamentos exteriores a ele. como
que se a palavrapopular fosse um reativo,
ou seja, como se cultura popular se opu-
sesse ao sentido da palavra cultura na sua
acepo iluminista, aquela concebida sob
o registro da cultura culta. Tornar-se-ia
popular ento a cultura que sofre uma ava-
liao segundo seus usos, sua identifica-
o, sua apreenso pelas classes populares.
Nesse sentido, tudo pode ser popular (cul-
tura, literatura, msica, a cultura de massa)
desde que seja apropriada pelo grupo que
denominamos popular (30).
Mais importante que isso, a noo de
popular, segundo Bollme (1988) e Martn-
Barbero (2003), grande parte herdeira da
viso dos romnticos, deriva da idia de
comunidade orgnica, pura, autntica, uni-
da por laos naturais e telricos. Nesse sen-
tido, ao mesmo tempo que os autores doromantismo recuperam positivamente o
conceito, pois o concebem como uma ma-
nifestao pura e imaculada, o conceito
popular reduzido a uma autenticidade ou
ausncia de contaminao/hibridizao
com a cultura hegemnica e/ou dominante.
E, ao reforar essa autonomia, ao negar a
circulao cultural das manifestaes po-
pulares, o que realmente se nega o pro-
cesso histrico de formao do popular, ocarter de sua hibridizao. Nesse sentido,
preciso chamar ateno para o fato de que
se a cultura popular for concebida longe da
dinmica histrica, ao se recusar o sentido
processual e relacional das expresses, o
que se resgata uma cultura que no pode
olhar seno para o passado, uma cultura-
patrimnio, ou seja, folclore de arquivo ou
de museu nos quais conserva a pureza ori-
ginal de um povo primitivo (Bollme, 1988;
Martn-Barbero, 2003).
Vemos assim que a qualidade, o em-
prego ou o modo pelo qual somos levados
a entender ou a apreciar uma cultura como
popular no dependem absolutamente do
que ela em si mesma, mas da essencial
relao que temos com ela. Dizer que
popular uma cultura explicitar uma rela-
o que expressa uma diviso nos padres
culturais que conhecemos. Declarar po-
pular uma cultura ou um objeto afirmaruma relao, engajar-se assim em um
discurso classificador que, por um lado,
estabelece fronteiras entre a cultura letra-
30 Assim, chamar de popular umacultura, por mais volumosa edisparatada que seja, reduzi-la uniformidade de um julga-mento mas tambm glorific-la pois popular tambm aqui-lo que agrada a todos. Daresulta ser a palavra popularuma faca de dois gumes, quepode explicitar ao mesmo tem-po sucesso mas tambm simpli-cidade e superficialidade.Nada mais fugaz, com efeito,do que a popularidade.
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da, culta, a cultura dita emancipadora,
valorizada pelas instituies legitimadoras
e, por outro, a cultura estigmatizada, a
cultura dos outros, a cultura daqueles
que precisam colonizar seus espritos, ou
seja, os incultos.
Bourdieu (1979, 1998), de uma certa
forma, nos anos 60, j denunciava as bar-
reiras e hierarquias culturais existentes nas
sociedades capitalistas ocidentais ao criar
o conceito capital cultural. Em Os Trs
Estados do Capital Cultural (1998), na in-
teno de definir e apreender as represen-
taes que temos em relao cultura legi-
timada, aquela adquirida em anos de esco-
laridade, acaba por instituir as trs dimen-
ses do capital cultural, ou seja, capital
cultural incorporado, capital cultural
objetivado e capital cultural institucio-
nalizado (31). Creio que a forma como
Bourdieu define esse novo tipo de moeda
social, a saber, a cultura derivada de um
esforo educativo, ajuda a compreender o
carter classificador e elitista, mgico e
portanto arbitrrio que fazemos de seus
portadores.
Dando continuidade a reflexes crti-cas sobre o papel da escola (Althusser,
1988), mas imprimindo um carter mais
original nas discusses, Bourdieu, na maio-
ria de seus textos sobre a questo educaci-
onal, pe em xeque a iluso meritocrtica
da escola, relacionando poder cultural/es-
colar com poder social e simblico. Ou seja,
denunciou que a escola, contribuindo para
a reproduo das diferenas sociais, tam-
bm contribui para a manuteno das hie-
rarquias de poder e privilgios das socieda-
des capitalistas.
Nesse sentido, para se compreender a
fora do conceito capital cultural na obra
de Bourdieu seria interessante reafirmar que
ele o compreende como uma traduo ou
desdobramento do capital econmico. Ou
seja, mesmo no sendo irredutvel a este,
capital cultural constitui-se em um novo
capital, em uma nova forma de poder e
recurso social de distino. Em uma socie-dade onde a herana e os privilgios no se
realizam apenas nas propriedades e/ou nos
ttulos de nobreza, surgem outras formas
de hierarquizar os indivduos. A saber, a
cultura e a educao em seu sentido ilumi-
nista. como se o entendimento dessa
noo de cultura fosse um produto histri-
co de um consenso, produto coletivo da
aceitao do mito de uma cultura univer-
sal, dominante, no entanto uma cultura res-
trita e prerrogativa de uma classe. O prop-
sito de uma razo universal, hegemnica,
constitutiva do imaginrio produzido pela
burguesia e suas instituies de manuten-
o do poder, capaz de converter este
mundo restrito em um mundo universal e
sua cultura na cultura de todos.
Assim, possvel afirmar que Bourdieu
considera o capital cultural to importante
quanto o capital econmico, ambos recur-sos ou fontes de poder e privilgio de uma
classe. Para ele, o campo da cultura um
espao de luta e competio tal como o cam-
po econmico; a posse dos bens simblicos
como a posse dos bens materiais, smbolos
de distino, signos de diferenciao, ele-
mentos que hierarquizam e criam barreiras
entre os indivduos de diferentes grupos
sociais, possuidores de diferentes recursos.
Posto isso, a cultura, no sentido espec-fico utilizado por Bourdieu, ou seja, fonte
de um saber legitimado e institucionalizado,
no apenas um sistema que oferece sig-
nos e um cdigo de comunicao ou cate-
gorias do entendimento (Durkheim, 1995).
No apenas um sistema que integra e aju-
da a compreender o mundo. Ela tambm
tem o poder de separar, de hierarquizar,
serve como instrumento ideolgico de do-
minao (Bourdieu, 1999).
Nesse sentido, a cultura escolar institu-
cionalizada e o acesso diferenciado a ela
expressam uma dimenso poltica na me-
dida em que assumem o poder de criar hie-
rarquias, fronteiras e barreiras sociais en-
tre os grupos, a dizer, aqueles que a detm
os escolarizados e os outros, os
iletrados. Por serem bens raros, a educao
e seu desdobramento, a cultura escolar, so
fontes de privilgio. Portanto, o conceito
de capital cultural de Bourdieu bastantepreciso. Refere-se a um conjunto de sm-
bolos e prticas promovido pelas instn-
cias culturais legitimadas, famlia, escola,
31 Capital cultural incorporado,sob a forma de disposies du-
rveis do organismo; capitalcultural objetivado, sob a for-ma de bens culturais materiais;e capital cultural instituciona-lizado, sob a forma de diplo-mas e titulao.
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museu, universidade, enfim, instituies a
que poucos tm acesso, mas que congre-
gam um alto valor no mercado. a cultura
burguesa, aristocrtica, aquela que no Bra-
sil os que a possuem so considerados pri-
vilegiados (32).
Vale ressaltar que Bourdieu no se refe-
re ao conceitoculturaempregado pelas an-
lises antropolgicas, ou seja, um sistema
integrado de smbolos que todos, indepen-
dente da origem social, detm. Mas sim a
cultura que valorizada no mercado escolar
e profissional. Uma cultura escolar institu-
cionalizada e legtima, um capital que tem
valor de troca e pode ser convertido em outras
formas de poder, ou seja, capital econmi-
co, posio e prestgio sociais, etc. (33).
OS USOS DA CULTURA
Nesse sentido, Bourdieu ajuda-nos a
pensar a funo da escola e seus divul-
gadores no processo de construo das re-
presentaes classificadoras sobre o saber
escolar. Com uma misso colonizadora,desde o sculo XV, a escola prope-se a
expandir seu imprio cultural para as mas-
sas incultas, ignorantes, supersticiosas e
irracionais. Assumindo a educao esco-
lar como reguladora do comportamento dos
segmentos populares e iletrados, morali-
zando espritos e formando quadros para o
mercado de trabalho, as instituies for-
mais do ensino sempre agiram disciplinan-
do, chamando ordem civilizada amplos
contigentes populacionais (Nvoa,1998;
Durkheim, 1995; Burke, 1989).
Para desenvolver o argumento deste
artigo, lembro que, para desempenhar a con-
tento essas funes, a escola utiliza-se de
vrias estratgias de consagrao coletiva.
Entre elas destaco a desclassificao e a
desvalorizao dos modos populares e
iletrados do saber e do estilo de vida popu-
lar. A literatura registra fartamente que,
pouco a pouco, um processo lento masdecisivo de inferiorizao da cultura/edu-
cao dos segmentos pouco escolarizados
foi promovido pelas instncias educativas.
Mais do que isso, possvel registrar tam-
bm um menosprezo em relao a essa
educao que evoluir rapidamente para um
sentido negativo, ou seja, o sentido de uma
cultura atrasada e vulgar. Ou seja, um pas-
so para a legitimidade de uma viso
etnocentrista segundo a qual qualquer di-
ferena cultural em relao cultura he-
gemnica seria expresso de um atraso
(Burke, 1989).
A noo de cultura escolar vai permitir
a seus divulgadores cindir a histria e as
prticas sociais dos grupos a partir de pares
de conceitos opostos: moderno/atrasado,
nobre/vulgar, culto/inculto. Nesse sentido,
fcil popularizar uma s cultura para to-
dos. Uma compreenso que excluir asmatrizes culturais desviantes da verso
dominante. Um passo para as representa-
es excludentes e maniquestas em relao
cultura popular e seus desdobramentos, a
cultura de massa. Terreno propcio para po-
larizar as expresses culturais julgando cri-
ticamente a variedade da produo miditica
e as escolhas populares dessa produo.
CONSIDERAES FINAIS
O populismo no outra coisa que a in-
verso do etnocentrismo [] (Bourdieu,
1979).
O objetivo deste artigo foi refletir sobre
a cultura de massa no contexto das preocu-
paes educativas do mundo contempor-
neo. Chamei ateno para uma nova confi-
gurao cultural e, portanto, educacional, a
que a sociedade brasileira teve acesso ao
longo de sua histria. Apresentando dados
sobre o crescimento da oferta de produtos
da cultura de massa e a paralela demanda
de informaes e entretenimento do pbli-
co pude observar que a produo miditica
complementa h muito a cultura e o saber
escolar. Foi minha inteno desconstruir
sociologicamente um certo julgamentoelitista que se tem sobre uma variedade de
produtos da mdia. Nesse sentido, busquei
as razes da tradio cultural brasileira e
32Lembro que apenas 45% tmmais de 8 anos de escolari-dade.
33 Posto isso, a famlia e a escola,para Bourdieu, so dois subes-paos sociais fundamentais noprocesso de aquisio desse re-curso. Famlia e escola podemser classificadas tanto como
instncias produtoras de bensculturais como mercados de cir-culao desses bens. Para ele,a competncia cultural adquiri-da nesses espaos definidapelas condies de aquisio.Ou seja, de um lado, o apren-dizado precoce e insensvel,efetuado desde a primeira in-fncia, no seio da famlia, eprolongado adquirido fora doambiente familiar, nas institui-es de ensino ou na esfera dotrabalho. A distino entre es-ses dois tipos de aprendizadorefere-se a uma certa maneirade adquirir bens culturais e sim-blicos e com eles se familiari-zar, por um aprendizado esco-lar que o pressupe e o com-pleta. De outro, o aprendizadotardio, complementar quele,metdico e acelerado.
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registrei a forte presena dos produtos cul-
turais miditicos na nossa formao, suas
caractersticas paradidticas, fortemente
articuladas a um gosto popular pouco
escolarizado. Foi possvel ver que antes
que a escola se universalizasse, antes que
o saber formal se tornasse referncia edu-
cativa para grande parte de nossa popula-
o, antes que a lngua escrita estivesse
generalizada em todo o territrio nacio-
nal, o rdio, a TV e o cinema j eram ve-
lhos conhecidos da populao brasileira.
Nesse sentido, considerei que o imagin-
rio ficcional das mdias h muito mais
tempo vem colonizando os nossos espri-
tos. Mais do que isso, esse imaginrio est
mais presente no cotidiano dos segmentossociais brasileiros, sobretudo os segmen-
tos com baixa escolaridade, do que pro-
priamente a cultura escolar.
No entanto, no se trata de uma defesa
deste imaginrio miditico. Trata-se de uma
constatao. Esta discusso justifica-se
enquanto um alerta para ns educadores.
Formados segundo uma tradio iluminis-
ta, racional e cientificista, valorizamos a
escola naquilo que ela tem de aristocrticoe diferenciador. Ou seja, sua capacidade de
emancipar segundo um modelo civilizador
(Elias, 1989). cultura de massa dispensa-
mos ateno apenas como consumidores
ou na grande parte das vezes como crticos
(Martn-Barbero, 2003). Raras so as oca-
sies em que ponderamos sobre o uso va-
riado que os diversos segmentos sociais
fazem ou podem fazer dos produtos da cul-
tura de massa. Acreditando na universali-
dade das categorias do julgamento propi-
ciado pela escola, acredita-se que todos se
apropriam e usam os contedos miditicos
de maneira homognea. Avaliando sob
uma tica acadmica, douta e privilegia-
da, prpria daqueles que ocuparam por
longo tempo os bancos escolares, desen-
volvemos uma certa arrogncia ao anali-
sar a cultura miditica. Classificada como
ilegtima, sensacionalista, grotesca, sim-
ples, pobre e superficial, esta outra matrizcultural, no entanto, pode ser de grande
valia para os segmentos pouco escolari-
zados. Pode servir como complemento ou
ampliao de um saber e uma cultura a
que tradicionalmente poucos no Brasil ti-
veram acesso.
comum escutarmos avaliaes de que
os segmentos sociais menos escolarizados
so os que mais tm acesso produo
miditica e so sobretudo os que tm as
menores chances de criticar os contedos
propostos. Na realidade, como os dados
acima demonstraram, possvel afirmar que
o consumo bastante variado. No entanto,
acreditar que as camadas menos instrudas
esto mais sujeitas manipulao e s ideo-
logias no mnimo polmico. como afir-
mar que os segmentos populares e pouco
escolarizados sejam desprovidos de uma
cultura, de uma tica e/ou de uma moral,incapazes de escolher o que lhes convm.
Neste artigo, considero a possibilidade
de pensar a educao popular no Brasil
como um bloco de cultura hbrido, profun-
damente marcado pelas influncias da cul-
tura escolar e miditica. Servindo-me da
idia de cultura enquanto processo afirmo
que a cultura popular ou cultura de massa
em muitos momentos se confundem, pois
ambas, juntamente com a cultura dos seg-mentos escolarizados, formam um bloco
maior. Nenhuma delas deve ser julgada sem
que se esclarea as barreiras construdas
entre elas. No se trata de uma relativiza-
o, como diria Canclini (1988). H muito
o relativismo no d conta das hierarquias,
do jogo de poder entre as diversas formas
de expresso e prticas culturais. Neste
artigo, chamo ateno para o fato de que
para se falar de educao popular no Brasil
seria necessrio analisar a educao pro-
movida pela cultura de massa. E, para falar
deste fenmeno, seria necessrio descons-
truir sociologicamente nossas resistncias
sobre ele.
A questo complexa. No tenho a pre-
tenso de resolv-la. Tentei apenas apontar
alguns elementos para a discusso. Na for-
ma de um ensaio sociolgico, estas refle-
xes propem-se como um prefcio, um
prenncio de avaliaes mais profundassobre a variabilidade e a complexidade do
fenmeno da cultura de massa para o cam-
po de pesquisa na rea da educao.
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