Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 4, 2018, p. 2267-2292. Vinícius Casalino DOI: 10.1590/2179-8966/2018/29868| ISSN: 2179-8966 2267 A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito Karl Marx's dialectics and the marxist criticism of law Vinícius Casalino 1 1 Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0003-3315. Artigo recebido em 3/08/2017 e aceito em 16/01/2018. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito · 7 A primeira edição de Teoria geral do direito e marxismo foi publicada em 1924. 8 No contexto do debate marxista,
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ViníciusCasalino11Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0003-0003-3315.Artigorecebidoem3/08/2017eaceitoem16/01/2018.
de direito, elemento central para a teoria geral do direito, descobrindo sua origem
1 Cerroni compara aobradePachukanis à de Stutchkanos seguintes termos: “Masdois elementos, pelomenos, diferenciam profundamente a sua perspectiva da de Stutchka. O primeiro refere-se a umamaisnítida acentuação do caráter objetivo (extraconsciencial) de toda a problemática jurídica (...) O segundoelemento diz respeito a umamaior agudeza metodológica, que se insere numa cultura filosófica maisprofunda e numa meditação muito penetrante sobre o método de O capital. Não é por acaso quePachukanisétalvezoprimeiroestudiosomarxistaquetrabalhanabasedaIntroduçãode1857,umtextodeMarxquepormuito tempo ficoude ladona tradiçãodaexegesemarxista” (CERRONI,1976,p.65, grifosmeus).2Noprefácioà2ªedição,Pachukanisanota:“OcamaradaP.I.Stutchkadefiniucombastantepropriedademinhaabordagemda teoriageraldodireitocomo ‘umatentativadeaproximaçãoda formadodireitodaformadamercadoria’.Nemedidaemquepossojulgarpeloscomentários,essaideia,nãoobstanteressalvaspontuais, foi reconhecida em seus fundamentos como acertada e frutífera” (PACHUKANIS, 2017, p. 60;2003,p.36).3Como faz,porexemplo,Reisner.Cerroniexplica: “Em1912,Reisnerdáestadefiniçãododireito:éumaideologia que ‘se apoia, dentro da nossa consciência, principalmente no conceito de verdade, justiça eigualdadenadistribuiçãoenaigualizaçãodoshomensedascoisas”(CERRONI,1976,p.51).4TalqualStutchka:“Quandonosvimosforçados,em1919,a formular,noComissariadodaJustiça,nossaconcepçãodeDireito, lapidamosaseguintesentença,queadquiriu,alémdisso,caráteroficial, tendosidoacolhida,emrusso,nospreceitosfundamentaisdoDireitoCriminal (videCompilaçãodasLeisde1919,nº66,art.590):‘ODireitoéumsistema(ouumaordem)derelaçõessociais,quecorrespondeaosinteressesdaclassedominanteeque,porisso,éasseguradopeloseupoderorganizado(oEstado)’”(STUTCHKA,2001,p.76).
5Capítulo01deTeoriageraldodireitoemarxismo(PACHUKANIS,2017,pp.81-86;2003,pp.63-70).6Pachukanisassinala:“Apenasnessecasoconceberemosodireitonãocomoacessóriodeumasociedadehumanaabstrata,mascomocategoriahistóricaquecorrespondeaumambientesocialdefinido,construídopelacontradiçãodeinteressesprivados”(PACHUKANIS,2017,p.86;2003,p.70).7AprimeiraediçãodeTeoriageraldodireitoemarxismofoipublicadaem1924.8 No contexto do debatemarxista, evidentemente. Quando comparada à teoria tradicional do direito, acríticamarxistadespontanavanguardadetodasasanálisesemvoga.
Esse “novo horizonte” deu ensejo a um enfrentamento mais direto dos
problemas relativos aométodo dialético queMarx “aplicou” às questões econômicas.
HelmutReichelt, umdosexpoentesdesta “nova leitura”, captoudemodoperspicaz a
problemática:
Entrementes o interesse foi se voltando cada vezmais para a obratardiadeMarx,masparecequenãosechegounemumpassomaisperto da esperada aclaração dos problemas metodológicos. Ocomentário redigido por Rosdolsky tampouco mudou muita coisanesse tocante. Embora ele diga que exatamente o Rascunho nosmostraoquantoa“estruturaçãodeOcapitaldeMarxédialéticadocomeço ao fim”, no final das contas, isso não passa de umaasseveração. Uma das debilidades do seu livro consisteespecialmenteno fatode apenas chamar a atençãoparaousodascategorias hegelianas e, no mesmo fôlego, reproduzir quase semcomentários passagens inteiras que se distinguem por suasformulações de cunho altamente especulativo e, por isso mesmo,extremamente carentes de interpretação. Isso suscita ao natural apergunta se Rosdolsky não teria incorrido igualmente nasuperficialidadeporelecensurada;se–apesardeafirmar isso–elechegoumesmoaabandonaraposiçãoquevênadialéticapresenteem O capital apenas um ingrediente estilístico que permaneceexterioraoassuntotratado(REICHELT,2013,p.24).
Segundo esta “nova leitura”, a compreensão mais precisa dos elementos
Essa concepçãoé sugeridaexatamentepeloRascunho deOcapital.AopassoquedeOcapital, casonecessário,aindasepodemextrairteoremasisoladosediscuti-losnohorizontedaciênciaespecializadasemlogoserpegoemflagranteviolaçãodatotalidadedaconcepção,nos Grundrisse da crítica da economia política, no Rascunho de Ocapital, isso não é mais possível. Neles aparece muito maisclaramente do que em O capital que o “modo hegeliano deexpressar,difícildecompreender”,écomponente integraldacríticamarxiana. Neles, o entrelaçamento de temas que tradicionalmentesão atribuídos à ciência econômica com uma forma de exposiçãodesses temas orientada na lógica hegeliana é tão estreito que setornainviávelabordaracoisaseparadamente(REICHELT,2013,p.25).
Mas o paradoxo que se apresenta é justamente este: não seria um aspecto
essencial da dialética marxiana a ocultação dos traços relativos às regras
metodológicas? O escondimento do “modo hegeliano de expressar, difícil de
compreender”, que se verifica em O capital, não seria um elemento específico da
Duranteapreparaçãodestainvestigaçãosobreaestruturalógicadoconceito de capital emMarx, apresentada na forma de dissertaçãocomo primeira tentativa de reconstrução do método dialético deMarxemOcapital,nãomedeicontadeumaindicaçãocentral:logodepoisdapublicaçãodoescritoParaa críticadaeconomiapolítica,
noanode1859,MarxescreveuaEngels,dizendoqueacontinuaçãoserá“muitomaispopulareométodomaisbemescondidodoquenaParte I” (III.3/49). Ou seja,Marx não facilitou a coisa para os seusleitores:porumlado,eleapresentaumaobracomumnívelelevadode exigência científica; por outro lado, ele “esconde” justamente ométodo pelo qual se define sua cientificidade. Gerd Göhler jáconstatouqueadialéticasofreu“redução”emOcapital,edefatoépossível provar que, já na segunda edição de O capital, Marxsimplesmente riscou passagens metodológicas essenciais para acompreensãodoseuprocedimento.Razões,amplitudeesignificadodessa“redução”aindanãoforamesclarecidos.Porém,sequisermosinvestigá-laereconstruirométodo,evidentementeéprecisoater-seaos escritos em que ele se apresenta, por assim dizer, “nãoescondido”,asaber,nostrabalhosdiretamentepreparatóriosparaOcapital,ouseja,sobretudonoassimchamadoRascunhodeOcapitale no Texto original do escrito Para a crítica da economia política(REICHELT,2013,p.11).
Pois então, a construção do sentido da dialética marxiana não passa,
justamente, por pressupor como elemento essencial de seu método justamente a
exigência de que ele permaneça “escondido”? Ou será que, como assinala Reichelt,
Marx “riscaria” trechos inteiros com referências metodológicas importantes
simplesmente por “descuido”? Difícil acreditar. Não seria urgente, então, iniciar o
enfrentamento das questões relativas às “razões, amplitude e significado dessa
fazendo com que as determinaçõesmetodológicas “brotem” da própria exposição do
conteúdo, sem se ocupar com uma apresentação explícita desta ou daquela regra
metodológica.13
12Apropósitodesta“ocultação”,confira-setambém:(REICHELT,2011).13 Vale lembrar que parte essencial da dialética de Marx consiste numa apresentação circunstancial deelementosmetodológicos,emmomentosestratégicos,como,porexemplo,oclássicoparágrafoqueencerraocapítulo17doLivroIdeOcapital:“Deresto,comaformademanifestação‘valorepreçodotrabalho’ou‘salário’,emcontrastecomarelaçãoessencialquesemanifesta,istoé,comovaloreopreçodeforçadetrabalho,ocorreomesmoquecomtodasas formasdemanifestaçãoe seu fundooculto.Asprimeiras sereproduzem de modo imediatamente espontâneo, como formas comuns e correntes de pensamento; osegundo tem de ser primeiramente descoberto pela ciência. A economia política clássica chega muitopróximoàverdadeirarelaçãodascoisas,porémsemformulá-lasconscientemente.Elanãopoderafazê-loenquantoestivercobertacomsuapeleburguesa”(MARX,2013,p.612;1962,p.564,grifomeu).
são duas dialéticas distintas, opostas, com pressupostos próprios e características
particulares:
Deacordocomestetextoconhecidoe,semdúvida,crucial,nãoéocasodeapenasdepuraradimensão“racional”dadialéticahegelianapara obter aquilo que dela semantém emMarx. Trata-se de duasdialéticasdistintas.Maisainda,“nãosódiversas”,comodiretamente“opostas”. Com isso, o procedimento de obtenção do “caroçoracional” passa a se definir como uma “inversão”, pela qual o que“está de cabeça para baixo” assume sua posição verdadeira(GRESPAN,2002,p.30,grifomeu).
Namedidaemqueomais-valordequesecompõeocapitaladicionaln. 1 resultou da compra da força de trabalho por uma parte docapitaloriginal,compraqueobedeceuàsleisdatrocademercadoriase que, do ponto de vista jurídico, pressupõe apenas, da parte dotrabalhador,alivredisposiçãosobresuasprópriascapacidades,edapartedopossuidordedinheirooudemercadorias,alivredisposiçãosobre os valores que lhes pertencem; namedida em que o capitaladicionaln.2etc.nãoémaisdoqueoresultadodocapitaladicionaln.1e,portanto,aconsequênciadaquelaprimeirarelação;namedidaemquecadatransaçãoisoladaobedececontinuamenteàleidatrocademercadorias,segundoaqualocapitalistasemprecompraaforçadetrabalhoeotrabalhadorsempreavende–e,supomosaqui,porseu valor real –, é evidente que a lei de apropriação ou lei dapropriedade privada, fundada na produção e circulação demercadorias, transforma-se, obedecendo à sua dialética própria,interna e inevitável, em seu direto oposto.A troca de equivalentes,queapareciacomoaoperaçãooriginal,torceu-se(gedreht)aopontode que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, emprimeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força detrabalhonãoémaisdoqueumapartedoprodutodotrabalhoalheio,apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, otrabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com umnovoexcedente.Arelaçãodetrocaentretrabalhadorecapitalistaseconverte, assim, em mera aparência pertencente ao processo decirculação, numamera forma, estranha ao próprio conteúdo e queapenasomistifica.Acontínuacompraevendadaforçadetrabalhoéa forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista trocacontinuamenteumapartedo trabalhoalheio jáobjetivado,doqualelenãocessadeseapropriarsemequivalente,porumaquantidademaior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito depropriedadeapareceudiantedenósfundadonoprópriotrabalho.Nomínimo esse suposto tinha que ser admitido, porquanto apenaspossuidoresdemercadoriascomiguaisdireitosseconfrontavamunscomosoutros,masomeiodeapropriaçãodamercadoriaalheiaeraapenas a alienação de sua mercadoria própria, e esta só se podiaproduzir mediante trabalho. Agora, ao contrário, a propriedadeaparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se detrabalhoalheionãopagooudeseuproduto;doladodotrabalhador,comoimpossibilidadedeapropriar-sedeseupróprioproduto.Acisãoentre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária deuma leique,aparentemente, tinhaorigemna identidadedeambos.Portanto, por mais que o modo capitalista de apropriação pareça
violar as leis gerais daproduçãodemercadorias, elenão seoriginaem absoluto da violação,mas, ao contrário, da observância dessasleis(MARX,2013,p.658-659;1962,p.609-610,grifomeu)14.
A reprodução do capital não significa senão a repetição do processo de
14 Em nota de rodapé a esta passagem,Marx anota: “A propriedade do capitalista sobre o produto dotrabalho alheio ‘é a consequência rigorosa da lei de apropriação, cujo princípio fundamental era, pelocontrário,otítulodepropriedadeexclusivodecadatrabalhadorsobreoprodutodeseuprópriotrabalho’,Cherbuliez, Richesse ou pauvreté, cit, p. 58, em que, no entanto, essa conversão dialética (dialektischeUmschlag)nãoécorretamentedesenvolvida”(MARX,2013,p.659,notanº23;1962,p.610,notanº23,grifomeu).Naedição francesaocomentáriodeMarxapareceassim:“L’autersent lecontre-coupedialectique,maisl’expliquefaussement”(MARX,1971,p.27,notanº01,grifomeu).
interversão, apoiando-se, portanto, no primeiro dos pontos de vistas acima
mencionados.RuyFausto,apropósito,assinala:
Essa mudança de perspectiva, que representa na realidade umamudança de sentido, objetiva, do processo, constitui o que Marxchama de interversão da lei da apropriação ou da propriedade,interversão cujos dois momentos poderiam ser resumidos daseguinte maneira: uma volta do capital ou cada volta do capitalobedece à lei de apropriação ou de propriedade das economiasmercantis,leisegundoaqualaapropriaçãodosprodutossefazpelatroca de equivalentes e depende, em última instância, do trabalhopróprio. Mas a repetição das voltas do capital – e portanto ocumprimento reiterado da lei de apropriação pelo trabalho e pelatroca de equivalentes – interverte esta lei na lei de apropriação
15EisopontodepartidaparaarespostaàquestãoformuladaporEdelman:“Vendoascoisasdeperto,nãosabemosmuitobemcomoe sobque formas jurídicas precisas seopera a extraçãodemais-valor. E essasemi-ignorâncianoscegaparaaprópriaforçadessasformas,dessastécnicas,paraasuaeficáciaconcretaeideológica. Por exemplo, sabemos verdadeiramente que o contrato de trabalho está ligado ao capital ecomoodireitodepropriedadeestá ligadoaocontratodetrabalho?Nãosabemosnadaverdadeiramente,aforaasbanalidadescomquenoscumulam:ocontratodetrabalhointroduzuma‘falsa’igualdadeentreaspartes,avontadedooperárioéuma‘ficção’...trivialidadescomquenoscontentamospreguiçosamenteporfaltadeirvernapráticacomoascoisassepassamdefato”(EDELMAN,2016,p.27).
A extensão da jornada de trabalho além do ponto em que otrabalhador teriaproduzidoapenasumequivalentedovalorde suaforçadetrabalho,acompanhadadaapropriaçãodessemais-trabalhopelocapital–nissoconsisteaproduçãodomaisvalorabsoluto.Elaforma a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida daproduçãodomais-valorrelativo.Nestaúltima,ajornadadetrabalhoestá desde o início dividida em duas partes: trabalho necessário emais-trabalho.Paraprolongaromais-trabalho,otrabalhonecessárioéreduzidopormeiodemétodosquepermitemproduziremmenostempooequivalentedo salário.Aproduçãodomais-valor absolutogiraapenasemtornodaduraçãodajornadadetrabalho;aproduçãodomais-valorrelativorevolucionainteiramenteosprocessostécnicosdotrabalhoeosagrupamentossociais(MARX,2013,p.578;1960,p.532/533,grifomeu).
E,noiníciodaSeçãoVII,oautorexplica:
16“Consuma-seentãoanegaçãodaleideapropriaçãodacirculaçãosimples,edeseufundamento,atrocadeequivalentes.Aleidaapropriaçãopelotrabalhopróprioeointercâmbiodeequivalentessetransformana lei de apropriação sem trocado trabalhodeoutrem.ÉoqueMarxdenomina ‘interversãodas leis dapropriedadedaproduçãodemercadoriasem leisdaapropriaçãocapitalista’ (W.23,K. I,p.605.Oeuvres.Économie I. Op. cit., p. 1081). E o que há de importante nessa interversão – e é por isso que hárigorosamente interversão–équea inversãose fazpelaprópriaaplicaçãodas leisdecirculaçãosimples”(FAUSTO,2015,p.276,grifomeu).17“Ora,secompararmosoprocessodeformaçãodevalorcomoprocessodevalorização,veremosqueesteúltimonãoémaisdoqueumprocessodeformaçãodevalorqueseestendeparaalémdecertoponto.Setalprocessonãoultrapassaopontoemqueovalordaforçadetrabalhopagopelocapitalésubstituídoporumnovoequivalente,eleésimplesmenteumprocessodeformaçãodevalor.Seultrapassaesseponto,elesetornaprocessodevalorização”(MARX,2013,p.271;1960,p.209).
Atransformaçãodeumaquantiadedinheiroemmeiosdeproduçãoeforçadetrabalhoéoprimeiromovimentorealizadopelaquantiadevalorquedevefuncionarcomocapital.Elaagenomercado,naesferada circulação. A segunda fase do movimento, o processo deprodução, é concluída assim que os meios de produção estãoconvertidosemmercadoriascujovalorsuperaovalordesuaspartesconstitutivas e, portanto, contémo capital originalmente adiantadoacrescidodeummais-valor.Emseguida,essasmercadoriastêm,porsua vez, de ser lançadas novamente na esfera da circulação. Oobjetivo é vendê-las, realizar seu valor emdinheiro, converter essedinheiro novamente em capital, e assim consecutivamente. Esseciclo, percorrendo sempre as mesmas fases sucessivas, constitui acirculaçãodocapital(MARX,2013,p.639;1960,p.589,grifomeu).
uma modificação essencial do processo, porém, antes, como conversão em sentido
materialista, vale dizer, modificação pela qual o fenômeno projetado pela esfera da
circulação, ou seja, a relação de equivalência entre capitalista e trabalhador, é18Aindaqueestaquantiadedinheiroapareçasimplesmentecomodinheiroenãocomocapital.
Asmercadoriasnãopodemirporsimesmasaomercadoetrocar-seumas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seusguardiões,ospossuidoresdemercadorias.Elassãocoisase,porisso,não podem impor resistência ao homem. Se não se mostramsolícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, podetomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outrascomomercadorias,seusguardiõestêmqueestabelecerrelaçõesunscomosoutroscomopessoascujavontaderesidenessascoisaseagirde modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia ealienarasuaprópriamercadoriaemconcordânciacomavontadedooutro, portanto, pormeio de um ato de vontade comuma ambos.Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente comoproprietáriosprivados.Essarelaçãojurídica,cujaformaéocontrato,sejaela legalmentedesenvolvidaounão,éuma relaçãovolitiva,naqual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação
19AanálisesegueadeGrespan:“AproposiçãodosprincípiosformaisdacirculaçãosimplesnãoimplicaparaMarx, portanto, que de fato exista, tenha existido ou venha a existir uma sociedade estabelecidaunicamente sobreeles.Ao contrário, odesenvolvimentode suasdeterminações levanecessariamenteàscondições em que, no intercâmbio entre capital e força de trabalho, estes princípios são ‘torcidos’ einvertidos.Assim,aconservaçãodelesnaesferadacirculaçãoesuanegaçãopelavalorizaçãosãomomentosdistintose igualmenteválidosnareconstituiçãomarxianadaproduçãocapitalista.Estaprodução, tomadaemseuconjunto,envolvetantoasdeterminaçõesdacirculaçãodemercadoriascomoasquea invertem”(GRESPAN,1999,p.117).20Percebe-se,pois,quearespostaàpertinenteindagaçãodeEdelmanestáparaalémdesimplesmente“irvernapráticacomoascoisassepassamdefato”.Ela inclui, inexoravelmente,um“mergulho”rigorosonaanálise crítico-teórica e uma incorporação absolutamente necessária das “questões de método” queconformamaobramarxiana.21Apropósito,confira-se:(CASALINO,2016).
é o pioneiro na demonstração da condicionante material-econômica daquela figura
jurídica:
Dessa maneira, o vínculo social entre as pessoas no processo deprodução,reificadonosprodutosdotrabalhoequeassumeaformade princípio elementar, requer para sua realização uma relaçãoparticular entre as pessoas enquanto indivíduos que dispõem deprodutos,comosujeitos“cujavontaderesidenessascoisas”(...)Porisso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquirepropriedade de mercadoria e se torna portador de um valor, ohomemadquireumvalordesujeitodedireitoesetornaportadordedireitos(PACHUKANIS,2017,p.120;2003,p.112).22
Não obstante, ainda que existam divergências no campo das pesquisas
marxistas23, pode-se afirmar, com alguma segurança, que a concepção de direito em
22Oautorobserva:“DepoisdeMarxatesefundamental,asaber,dequeosujeito jurídicodasteoriasdodireitoseencontranumarelaçãomuitoíntimacomoproprietáriodasmercadorias,nãoprecisavaumavezmaisserdemonstrada”(PACHUKANIS,1988,p.08;2003,p.36).23 ParaMárcio Naves, por exemplo, haveria uma homologia entre a análise de Pachukanis e a deMarx:“Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às reflexões que Marxdesenvolve,sobretudonosGrundrisseeemOcapital,apropósitodolugarcentralqueocupaaanálisedaformaparacompreenderasrelaçõessociaiscapitalistas”(NAVES,2000,p.48).
A propriedade capitalista é, em sua essência, a liberdade detransformar o capital de uma forma em outra e de transferi-lo deumaesferaparaoutracomoobjetivodeobteromáximolucrofácil.Estaliberdadededispordapropriedadecapitalistaéimpensávelsema presença de indivíduos desprovidos de propriedade, ou seja, deproletários. A forma jurídica da propriedade não está de modonenhumemcontradição comaexpropriaçãodeumgrandenúmerodecidadãos.Issoporqueacapacidadedesersujeitodedireitoéumacapacidade puramente formal. Ela qualifica todas as pessoas comoigualmente“dignas”deserproprietárias,maspornenhummeiofazdelas proprietárias. A dialética da propriedade capitalista estárepresentadademodomagníficoemOcapital,deMarx,sejanaquiloemqueelaassumeaforma“imutável”dodireito,sejaquandoabrecaminho através da violência (período da acumulação primitiva)(PACHUKANIS,2017,pp.132-133;2003,p.127,grifomeu).
24Aessênciadapropriedadecapitalistanãoconsiste,simplesmente,na“liberdadedetransformarocapitalde uma forma em outra e de transferi-lo de uma esfera para outra”. Esta “liberdade” é caraterísticaessencialdaformadapropriedademercantil.Apropriedadecapitalistaconservaestaliberdadeesomaaela
como indicam as observações deMarx. À acusação de “circulacionismo”, entretanto,
a extração demais-valor, isto é, a relação de exploração (Aufhebung,mas no sentidomaterialista). Ora,ondeháliberdadenãoháexploraçãoeondeháexploraçãonãoháliberdade,anãoserqueaexpropriaçãonão apenas conviva, como também seja constituída por aquela liberdade.Daí a riqueza da apresentaçãomarxianadaconversãodialética,quepermitecaptar,aumsótempo,tantoaaparência,comoaessênciadapropriedadecapitalista.
Pachukanis que se funda no paradigma althusseriano de crítica ferrenha à “herança
hegeliana” supostamente presente na dialética de Marx. A propósito, Márcio Naves
sustenta:
“É verdade que há, para Pachukanis, uma relação de determinaçãoimediata entre forma jurídica e forma damercadoria, como vimos,mas a determinação em Pachukanis é, a rigor, umasobredeterminação. A esfera da circulação, que determinadiretamente as formas do direito, é por sua vez determinada pelaesfera da produção, no sentido preciso de que só o específicoprocessodeorganizaçãocapitalistadotrabalhopermiteaproduçãodemercadoriascomotais,istoé,comoresultadodeumtrabalhoquese limitaaserpurodispêndiodeenergia laborativa indeferenciada”(NAVES,2000,p.72).25
Embora a resposta pareça convincente, está marcada, no entanto, por um
Essasobredeterminaçãotorna-seinevitávelepensável,desdequesereconheçaaexistênciareal,emgrandeparteespecíficaeautônoma,irredutívelpoisaumpurofenômeno,dasformasdasuperestruturaedaconjunturanacionaleinternacional.Éprecisoentãoiratéofim,edizer que essa sobredeterminação não se atém às situaçõesaparentementesingularesouaberrantesdahistória(porexemplo,aAlemanha),masqueelaéuniversal,quejamaisadialéticaeconômicaageemestadopuro,quejamaisnahistóriasevêessasinstânciasquesão as superestruturas etc., afastarem-se respeitosamente quandoelas realizaram a sua obra ou dissiparem-se como seu purofenômeno para deixar avançar no caminho real da dialética SuaMajestadea Economiaporqueos Tempos teriamchegado.Nemnoprimeiro, nem no último instante, a hora solitária da “últimainstância”jamaissoa(ALTHUSSER,1979,p.99).26
25Emnotaoautorexplicaaorigemdoconceitodesobredeterminação,alheioaomarxismo:“Esseconceito,deorigemfreudiana,foiutilizadoporLouisAlthusseremPourMarx,Paris,Maspero,1977”(Id.,ibid.,nota39).Note-sequeaabeturaparaum“estruturalismoenvergonhado”énítida.26À frente, observa: “(...) é preciso antesdizer que a teoria da eficácia específica das supesrestruturas eoutras‘circunstâncias’permanece,emgrandeparte,porelaborar;eantesdateoriadesuaeficácia,ouaomesmotempo(porqueépelaconstataçãodasuaeficáciaquesepodeatingirasuaessência)ateoriadaessênciaprópriadoselementosespecíficosdasuperestrutura”(ALTHUSSER,1979,pp.99/100).
enfrentar a leitura que vê na obra de Pachukanis a presença da dita
“sobredeterminação”:
Comefeito,Balibarnãoapresentaarelaçãoentreosdoismomentos(o momento de uma volta isolada e o da reprodução) como umarelação de contradição, ou, se se quiser, ele não apresenta apassagememtermosdeumainterversão.Buscar-se-áinutilmenteemseutexto–oqueseexplica–aapresentaçãodainterversãodasleisde apropriação em termos de contradição. O conceito quepressupõemasanálisesdeBalibarnãoéodecontradição,masoderupturaou corte (...) Quemdiz contradição (dialética) diz “tensão”,separação,mastambémuniãoentredoistermos.Quemdizruptura,corte,diz“separação”:cadatermos“fora”dooutro.Comefeito,searelação entre os dois momentos é uma ruptura, não pode haverposiçãodapassagem–umcorteumarupturaéumvazio–equenãohaja posição da passagem significa que o primeiro momento estáfora do segundo, o segundo só pode aparecer como resultado (emsentidoabstrato),que substitui oprimeiro (...)Ora,é somente seo
27AsituaçãoétalqueFrançoisDossenãoexitaemsituarAlthussernocontextodoestruturalismofrancês:“Althusser substitui a vulgatamecanicista da teoria do reflexo por uma totalidade estruturada na qual osentidoéfunçãodaposiçãodecadaumadasinstânciasdomododeprodução.Assim,Althusserreconheceuma eficácia própria da superestrutura, a qual pode encontrar-se, em certos casos, em posição dedominância e, em todos os casos, figurar numa relação de autonomia relativa em comparação com ainfraestrutura”(DOSSE,2007,p.394-395,grifomeu).28 O trecho visado por Fausto é este: “Essas análises são, pois, aquelas nas quais Marx nos mostra omovimento de transição (mas essa transição é uma ruptura, uma inovação radical) de um conceito daprodução como ato, objetivação de um ou vários sujeitos, a um conceito de produção sem sujeito, quedeterminaemrecíprocacertasclassescomosuasfunçõespróprias”(BALIBAR,1989,p.230).
segundomomento,aindaquecontradizendooprimeiro,oconservacomomomentonegado(ou,sesequiser,ésomenteseacontradiçãofor pensada em termos deAufhebung) que se poderia dizer que aclasse operária perde seu produto. Se for rompida toda acontinuidade entre os dois momentos, mesmo a continuidade nadescontinuidade que caracteriza a Aufhebung, só se apreenderá aapropriação intervertida e não a interversão da apropriação. ÉfinalmenteoúnicoresultadoaquechegaBalibar.Erroinversoàqueleque incorre a leitura antropologista da interversão, que faz doprimeiromomentoofundamentodosegundo–oqueabsolutamentenãosesupõeaqui–edainterversãonãoumanegação(tambémnosentido lógico), mas uma simples inversão real (em sentido fraco,semimplicarumanegaçãológica)domovimentofundador(FAUSTO,2013,p.77/78,passim).
PossoagoracompreenderotomcuriosamenteembaraçadodacríticadeHerrDüring.Eleédeordinárioumindivíduomuitopresunçosoeimpudente, que se apresenta como revolucionário na economiapolítica.Elefezduascoisas.Publicouinicialmente(partindodeCarey)umFundamentoCríticodaEconomiaPolítica(cercade500páginas)edepois uma nova Dialética da Natureza (contra a hegeliana). Meulivroqueimou-oporambosos lados.EledeunotíciadissoporcausadesuaaversãoporRoscheretc.Deresto,emparteintencionalmentee em parte por falta de perspicácia, ele comete equívocos. Sabemuito bem que meu método de desenvolvimento não é hegeliano,umavezquesoumaterialistaeHegeléidealista.AdialéticadeHegeléaformabásicadetodaadialética,massomentedepoisqueelafoiextirpadadesuaformamística,eistoéprecisamenteoquedistinguemeumétodo(MARX,2002,p.228-229,grifomeu).
Pachukanis elevou a crítica marxista do direito a outro patamar quando
direito e da propriedade privada como elementos constituídos e constitutivos do
movimento de produção, circulação e acumulação do capital, não se deve estranhar,
absolutamente, a relevante contribuição que a crítica marxista do direito tem a
oferecer. Deve-se reconhecer que a tarefa é árdua; é também, no entanto,
absolutamentenecessária.
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