Canêdo, Letícia Bicalho A descolonização da Ásia e da África Bate-papo com a autora Letícia Bicalho Canêdo, mineira de Muriaé é a quarta de uma família de oito irmãos (descendentes de políticos tradicionais do interior do Estado), viu transcorrer sua adolescência entre um teclado de piano e um escritório eleitoral (do PSD). A pacata vida de interior, somada à perspectiva de ter que adequar suas aspirações aos limites de uma família, deixavam aflita a moça que lia muito, adorava cinema e sonhava em ser regente de orquestra. Chegou a fazer um curso de regência de coral em Belo Horizonte, mas, a solução para sair definitivamente de Muriaé, Letícia encontrou-a na inscri- ção para o vestibular. Por que História? "Porque eu não sabia matemática, física ou química, além de ter forte ligação com a literatura — cresci lendo Stendhal, Tolstoi, Thomas Mann, Machado de Assis". "Como naquele tempo não havia cruzinhas para marcar nas provas e sim dissertações, con- segui a aprovação para apresentar como um fato consumado à minha fa-
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Canêdo, Letícia Bicalho
A descolonização da Ásia e da África
Bate-papo com a autora
Letícia Bicalho Canêdo, mineira de Muriaé é a quarta de uma família
de oito irmãos (descendentes de políticos tradicionais do interior do Estado),
viu transcorrer sua adolescência entre um teclado de piano e um escritório
eleitoral (do PSD). A pacata vida de interior, somada à perspectiva de ter
que adequar suas aspirações aos limites de uma família, deixavam aflita a
moça que lia muito, adorava cinema e sonhava em ser regente de orquestra.
Chegou a fazer um curso de regência de coral em Belo Horizonte, mas, a
solução para sair definitivamente de Muriaé, Letícia encontrou-a na inscri-
ção para o vestibular. Por que História? "Porque eu não sabia matemática,
física ou química, além de ter forte ligação com a literatura — cresci lendo
Stendhal, Tolstoi, Thomas Mann, Machado de Assis". "Como naquele
tempo não havia cruzinhas para marcar nas provas e sim dissertações, con-
segui a aprovação para apresentar como um fato consumado à minha fa-
mília."
Mesmo assim, o coração balançou durante muito tempo entre a Mú-
sica e a História. Trabalhou como professora na Escolinha de Arte do Brasil
e em outras escolas, mas "por necessidade de sobrevivência, fiquei mesmo
com a História, que aprendi a sentir e viver melhor dentro da ação política
estudantil".
Formada, logo interessou-se, como pesquisadora, por estruturas orga-
nizacionais que procurassem introduzir modificações na sociedade e seu pri-
meiro tema foram os movimentos sindicais brasileiros. Tem vários trabalhos
publicados, entre eles "O Sindicalismo Bancário em São Paulo", pela Edi-
tora Símbolo, e "O Ensino da História", in Informativo do Conselho de
Pais, Centro Educacional de Niterói.
Letícia é formada em História pela Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro, é Mestre em História pela USP e Doutora em Ciência Política tam-
bém pela USP.
A seguir, Letícia responde a quatro questões:
P. A descolonização, de que trata este livro, foi um fenômeno típico da Ásia
e da África, continentes distantes do nosso milhares de quilômetros. Que
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tem esse assunto a ver com a realidade brasileira?
R. Procurei mostrar, neste livro, como a formidável expansão do capita-
lismo, ao criar um mercado mundial, acabou por acarretar a dominação,
direta ou indireta, da Ásia e da África por algumas nações industrializadas.
Também a América Latina, onde se situa o Brasil, viveu esta situação
de dominação. Só que, enquanto a Ásia e a África precisaram ser conquis-
tadas com violência para se abrirem à orientação externa, as estruturas eco-
nômicas e sociais da América Latina, desde muito, já haviam se constituído
em função das necessidades externas.
Existem duas situações que precisam ser distinguidas para se perceber
o que a descolonização, descrita neste livro, tem a ver com a realidade brasi-
leira. Uma é a situação colonial clássica, contra a qual os países africanos e
asiáticos lutaram para se libertar. A outra é o neocolonialismo vivido pelas
ex-colônias e apresentado como sobrevivência do sistema colonial, a despeito
da independência formal. Uma situação sustentada por uma elite interna que
ocupa, no poder, o lugar do antigo colonizador, favorecendo a continuidade
da dominação externa. Foi o processo de descolonização da Ásia e da África
que colocou, com muita clareza, esta distinção para todos os países subde-
senvolvidos, apesar da especificidade de cada um. E um problema comum:
a necessidade de uma independência real, baseada num desenvolvimento
autônomo.
Sofremos, tanto quanto qualquer país recém-saído da colonização di-
reta, os efeitos de um progresso, isto é, de um pseudodesenvolvimento reali-
zado através da "ajuda'' econômica de países alicerçados no poder científico
e tecnológico. Através dessa "ajuda", que nações "superiores" devem às
"inferiores", continuamos a ser explorados, pois somos obrigados a obe-
decer às ordens do capital investido.
P. A descolonização foi um processo de libertação nacional ou de simples
troca de colonizadores?
R. Considero importante fazer uma distinção entre luta de libertação na-
cional contra um elemento estrangeiro e luta de libertação nacional com
preocupação social, além da anticolonialista.
Para o primeiro caso, talvez coubesse a substituição da expressão
"simples troca de colonizadores" por uma outra: mudança de cor e de
nacionalidade da elite dirigente dos novos Estados emergentes.
Já nos países onde houve preocupação social, ocorreu muito mais do
que simples troca de colonizadores ou de dirigentes oficiais. Os exemplos
maiores são os da China e do Vietnã, que deram um enorme salto para a
verdadeira independência. No caso do Vietnã, isto ficou evidente no vigor
com que a população repeliu as imposições de um país considerado cientí-
fica, técnica e materialmente o mais forte e importante do mundo.
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P. A miséria, a fragilidade e a dependência dos pequenos Estados africanos
não os tornam presa fácil de ditadores cujo exemplo mais evidente terá sido
ldi Amin Dadá? Em caso afirmativo, não teria sido melhor continuarem
essas pequenas nações vinculadas a Estados europeus poderosos?
R. A miséria, a fragilidade e a dependência tornam qualquer Estado presa
fácil de ditadores. Os exemplos existem também na América Latina e na
Ásia. Quem nunca ouviu falar de Ferdinando Marcos, de Somoza, de
Strossner, só para citar os mais famosos? São tão excêntricos e ferozes
quanto os africanos. Só que não são negros e seus comportamentos não cho-
cam tanto os padrões ocidentais.
Qualquer regime só pode partir da sociedade de que surgiu. Os regi-
mes ditatoriais africanos saíram de sociedades sem formação nacional e pro-
fundamente destruídas pelos colonizadores europeus. Qual o sentido de per-
manecerem vinculadas à que as destruiu?
A grande tragédia da descolonização foi ela ter se realizado sem o
rompimento com o passado colonial. Se houve algum rompimento foi com o
passado real que a maioria dos dirigentes, de forma autoritária e violenta,
procura manter desconhecido. Isso ocorre, talvez, pelo fato de o passado
estar cheio de exemplos de solidariedade e provas de capacidade de uma vi-
vência autônoma dentro da comunidade das nações.
P. Quais são as perspectivas das pequenas nações africanas e asiáticas num
mundo em que os pequenos Estados se tornam inviáveis mesmo na Europa
desenvolvida?
R. O movimento lançado em Bandung em 1955 iniciou uma primeira mobi-
lização dos países africanos e asiáticos para a resolução dos seus problemas
comuns. E revelou a possibilidade de esses muitos mundos, que compõem
estas pequenas nações, combinarem suas forças em ações políticas comuns.
A partir de Bandung, muitas reuniões se realizaram, embora, até o
momento, as soluções das questões apresentadas tenham ficado muito mais
nas palavras do que nas ações. Entretanto, os imperativos da sobrevivência
econômica e o fato de a unidade se haver tornado um mito impulsionador
para as categorias sociais mais dinâmicas, levam a crer na possibilidade de
uma solução política e econômica unitária para o conjunto desses países. Em
outras palavras: ultrapassar a etapa do nacionalismo europeu do século XIX,
para desembocar nas coletividades multinacionais, como já o fizeram as na-
ções capitalistas desenvolvidas.
Há ainda várias forças a serem consideradas, além .das dos políticos
profissionais, dos tecnocratas e dos chefes tribais, quando se pensa num mo-
vimento de solidariedade e resistência. Existem as forças das organizações
dos trabalhadores e de outros setores da sociedade civil, capazes de inventar
uma nova orientação para a compreensão internacional.
1. a descolonização
numa foto em negativo
Não sei se existe ainda, em Boma, antiga capital do Reino do Zaire,
uma árvore gigante, um baobá. Até pouco tempo, os botânicos estimavam
ter ela 4.000 anos de vida. Um especialista em questões culturais afro-asiá-
ticas — Van Praag — escreveu certa vez que as pessoas, ao passar pelo
baobá, costumavam gravar seus nomes no casco da velha árvore. Entre elas,
Stanley, aquele viajante inglês que no século passado conseguiu atravessar o
continente africano de leste a oeste. A inscrição de Stanley data de 1875.
Numa árvore de 4.000 anos chega a parecer uma inscrição de ontem.
Foi, portanto, numa África carregada de história que os europeus che-
garam como colonizadores, como dominadores. Uma história construída ao
longo de milênios, de que resultaram modos de vida e mentalidades bem
complexas, dentro de uma diversidade étnica e cultural que os colonizadores
não respeitaram. Da mesma forma que não respeitaram os milênios de his-
tória da Ásia, forjada através de lutas, de grandes movimentos demográficos
e de explosões místicas de povos que construíram e derrubaram impérios,
e nos legaram os princípios básicos de nossa civilização, os progressos funda-
mentais da humanidade: domesticação dos animais, agricultura, cerâmica,
metalurgia, papel, pólvora, bem como as instituições básicas da nossa vida
social (cidade, Estado organizado, moeda e escrita). Os invasores europeus
passaram por cima de tudo isto, por cima de toda a sabedoria oriental, fun-
dada no domínio do saber metafísico e da beleza, na experiência afetiva e
emocional do homem: mudaram os velhos padrões da sociedade, impuseram
o trabalho forçado e o racismo, isto é, a exploração do homem pelo homem,
base das estruturas coloniais.
Mas se os inventores europeus não respeitaram, os colonizados não
puseram uma pedra sobre o passado de suas terras. E a atitude dos europeus
contribuiu para transformar a dominação colonial européia na Ásia e na
África, entre meados do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, num dos
fenômenos históricos de maior efeito traumático, principalmente no campo
psicocultural. Um impacto particularmente violento nas regiões de civiliza-
ção mais antiga, como a China, o Egito e o Vietnã. Tão traumático, que o
processo de revolta contra as metrópoles pode ser considerado uma das revi-
ravoltas mais rápidas que a história já registrou.
A corrida dos burgueses europeus — ingleses, franceses, holandeses e
belgas — para adquirir colônias e formar grandes império coloniais teve
início ao longo do século XLK. Na véspera da Primeira Grande Guerra
(1914), o mundo estava, em sua quase totalidade, dominado, animado e
organizado pela Europa. No entanto, 30 anos depois, no fim da Segunda
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Guerra, já se podia escutar o sopro ardente dos continentes colonizados var-
rendo os dominadores e forçando a entrada no palco das relações interna-
cionais daqueles que antes, como colônias, só figuravam no cenário como
objetos. No final da década de 60, centenas de milhões de seres humanos,
como resultado de uma ação coletiva e determinada de mudar o sistema de
dominação, já haviam se tornado atores no processo de decisão de poder. E a
história das relações internacionais passou a ser influenciada pela emanci-
pação dos povos colonizados. O que existe de estupendo é o caráter mundial
dessa emergência. A ONU (Organização das Nações Unidas) conta hoje
com mais de 130 Estados, ao passo que sua antecessora, a Sociedade das
Nações, criada logo após a I Guerra Mundial, nunca reuniu mais de 50. Um
mundo novo que se abriu para a história, bem diferente daquele centralizado
pela Europa do século XLX.
É a esse processo histórico, que levou à liquidação dos impérios colo-
niais europeus e ao surgimento ou ressurgimento de povos que se consti-
tuíram em Nações e Estados, que se costuma dar o nome de descolonização.
Mas a colonização deixou marcas tão profundas que, ao se falar em
descolonização, não se fala em contrário de colonização. Separar colonização
da descolonização, numa linha de sucessão linear, é uma tarefa impossível.
Seria como separar água do vinho, depois de misturados.
Foi, com efeito, em contato com os colonizadores que os povos da
Ásia e da África se descobriram diferentes e tomaram consciência de tudo o
que os diferenciava dos europeus: diferença nas condições materiais de vida,
diferença de cultura, enfim, diferença nas experiências históricas. A desco-
lonização não deixa, pois, de ser o choque de valores do Ocidente na Ásia e
na África — valores que atribuíam preeminência à técnica e aos bens mate-
riais — e a revolta da Ásia e da África contra o Ocidente que tentava arran-
car-lhes a identidade cultural, as riquezas e a autonomia. Uma expressão do
ódio e da humilhação pacientemente acumulados, do desejo de recuperar a
dignidade definida no plano internacional.
A revolta, entretanto, não desafiou os valores do Ocidente capitalista,
pois as armas foram buscadas em modelos europeus e não em suas próprias
tradições. Para se libertarem da dominação européia, estes povos recorreram
à principal ideologia da Europa do século XIX: o nacionalismo.
Assim, a luta pela independência libertou os povos da Ásia e da África
da dominação política européia, mas deixou surgir um novo sujeito histórico
sobre a cena política: o Estado Nacional. Resposta radical à colonização,
forma para se atingir a identidade nacional (que é o conceito comum da tra-
dição, da religião e da cultura), o Estado Nacional hoje se tornou uma ques-
tão. Uma descolonizada tunisiana, Hélé Béji, traduziu esta questão como a
passagem de uma sociedade dominada a uma sociedade não menos dominada
onde o dirigismo do Estado, parlamentar ou totalitário, encontrou possibili-
dades de aplicações inéditas.
No plano interno, conquistada a independência política, retiradas as 6
tropas estrangeiras, nacionalizado o aparelho administrativo, os serviços pú-
blicos, os bancos, as empresas agrícolas, as poucas indústrias existentes, a
característica fundamental da descolonização é o controle do aparelho de
Estado por valentes burocratas, erguidos ao topo das magníficas máquinas
estatais que comandam a vida dos ex-colonizados. Uma camada social que
pensa em gerir sozinha, e em função dos seus interesses, uma sociedade
desmobilizada por promessas não mantidas. Uma sociedade onde o trabalho
humano continua instrumento da propriedade (privada ou do Estado).
Por outro lado, o Ocidente hoje é organizado pelos Estados Unidos e
as sociedades multinacionais, todas fundamentalmente norte-americanas,
que contam, como último recurso, com o poderio militar norte-americano
para garantir seus interesses e sua segurança. E este "primeiro mundo"
luta para que o "terceiro mundo" não adquira uma independência real,
baseada num desenvolvimento autônomo.
Quando o embargo estrangeiro se soma a um Estado Nacional que não
se adapta com rapidez suficiente aos problemas acumulados há séculos no seu
interior, as explosões repicam. São estas as explosões que aparecem nas
manchetes de jornais e no noticiário da televisão, revelando assassinatos de
chefes de Estado, guerras confusas, seqüestras e violências.
Este pequeno texto pretende ir um pouco além das manchetes dos
noticiários, na esperança de ajudar o leitor a perceber melhor este novo
mundo que surge, dinâmico e revolucionário, mas que só pode ser com-
preendido com uma dedicação maior ao trabalho de compreensão das ten-
dências históricas mais profundas, de significado mais duradouro.
Assim, existem dois propósitos na elaboração deste texto: 1) relatar,
em linhas gerais, o nascimento deste mundo novo, ainda prenhe de mudan-
ças, verificando a natureza dos movimentos de descolonização, seus obje-
tivos, seus fracassos e sucessos, bem como suas bases de classe e os traços
culturais com que foram talhados; 2) procurar entender até que ponto o fim
do velho colonialismo representou a libertação dos povos dominados e clas-
ses oprimidas.
Não se pretende, de forma alguma, esgotar um tema que envolve cen-
tenas de milhões de seres humanos espalhados por toda superfície da Terra.
O texto é somente uma introdução ao problema da descolonização. O obje-
tivo é chamar a atenção do leitor sobre alguns pontos que ele poderá apro-
fundar de acordo com seu interesse. Um desses pontos abre o texto: o colo-
nialismo, de cujas bases surgiu a independência nacional, cristalizada em
torno da ideologia do nacionalismo enquanto valor supremo.
2. colonização e descolonização:
água e vinho misturados
O primeiro momento de expansão transoceânica da história ocidental
ocorreu no século XVI, com o descobrimento dos caminhos marítimos para
o controle do comércio oriental. Foi desta primeira expansão européia que
surgiu a colonização da América e a formação dos impérios mercantilistas.
A revolta dos colonos ingleses da América do Norte, dos colonos espanhóis
e portugueses da América Central e Meridional assinalou o início da pri-
meira "descolonização", do desaparecimento dos impérios mercantilistas
europeus, entre os anos que vão de 1775 a 1825.
Mas existem diferenças entre os movimentos de emancipação do final
do século XVIII e os do século XX. Uma dessas diferenças situa-se na iden-
tidade dos insurgentes. Os movimentos americanos foram realizados por
populações de origem européia, de raça branca, vindas da metrópole. Já os
movimentos do século XIX foram gerados por populações autóctones, ali
fixadas há milênios, diferentes dos europeus tanto no gênero de vida, nas
crenças e instituições como na cor da pele. Mas é inútil citar as demais dife-
renças se não se compreende a base delas. Esta base está assentada no caráter
capitalista da segunda onda expansionista européia, fruto da revolução in-
dustrial e do impacto do progresso científico e tecnológico na sociedade,
quer nacional, quer internacional.
A Expansão Capitalista e o Colonialismo
No século XIX, "os burgueses conquistadores", como os denomi-
nou o historiador Charles Morazé, senhores do capital, da ciência e da tec-
nologia, saíram pelo mundo e se apropriaram direta e indiretamente das
terras e mares do globo terrestre. A questão não era mais, como na época
mercantilista, somente a troca de manufaturas européias pelos produtos
tradicionais do Oriente e dos trópicos. No final do século XLX, a questão
principal não estava colocada nem mesmo na necessidade de fornecer escoa-
mento para as crescentes indústrias de ferro e aço, mediante a construção de
estradas de ferro, pontes e outras obras semelhantes. Além de saídas mais
seguras e mais lucrativas para o capital financeiro, os burgueses saíram pelo
mundo em busca de materiais básicos, sem os quais o capitalismo indus-
trial não podia continuar se desenvolvendo (cobre, estanho, manganês, bor-
racha, etc). Acabaram criando um mercado mundial, governado por preços
mundiais, interligando o mundo. E os problemas técnicos e econômicos, de
interesse dos países industrializados, passaram a ser regulamentados pelo
método dos acordos internacionais. Mas entre estes países industrializados e
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os "outros", os termos de troca resultaram em produto de uma relação de
forças.
Na esteira dessa força de expansão capitalista surgiu o colonialismo:
sistema de dominação política, de exploração econômica e de sujeição cul-
tural.
O colonialismo foi implantado pelas potências industriais, que dispu-
tavam mercados, matérias-primas, ocupação territorial, prestígio nacional e
solução para os efeitos do crescimento demográfico europeu. Todas as na-
ções industrializadas, incluindo os Estados Unidos e o Japão, participaram
da corrida colonial. Num clima de grande tensão, cheio de rivalidades e
desavenças, todas as potências industriais se consideravam com direito a
"um lugar ao sol", ou melhor, com direito a mais territórios que as demais,
a mais riquezas que as demais, a mais poder. Este direito elas pensavam ter
adquirido com suas forças industriais em expansão.
Era assim também que estas nações capitalistas em expansão justifi-
cavam o estabelecimento de dispositivo militar nos territórios invadidos,
representando o poderio incontestável da metrópole.
O leitor talvez se recorde de ter assistido algum filme na televisão
sobre a Legião Estrangeira. Talvez tenha até lido um livro intitulado Beau
Cartaz do filme "Beau Geste", sobre a Legião Estrangeira.
Geste de autoria de P. C. Wren. Este romance de aventuras se passa na
Legião Estrangeira, organizada para esmagar toda e qualquer rebelião dos
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povos das regiões africanas, colonizadas pela França. Ela era composta de
marginais que queriam se livrar da perseguição da justiça francesa. Eram
perdoados desde que se alistassem na famigerada Legião e fossem lutar na
África, contra os africanos. Pois bem, foram dispositivos como a Legião
Estrangeira e outros semelhantes que sustentaram a presença de delegados
metropolitanos encarregados de administrar a exploração em grande escala
nas regiões colonizadas, e de transformar os povos asiáticos e africanos em
"simples instrumento criador de riqueza'', aos quais cabia apenas uma par-
cela dos rendimentos.
Esta máquina administrativa de domínio e exploração colocou a mão-
-de-obra colonial a serviço da nação colonizadora, construindo pontes, ferro-
vias, estradas, canais e portos, a fim de favorecer o escoamento dos minérios
e dos produtos das plantações até os locais do embarque, sem nenhum cui-
dado com as necessidades da população local. Esta máquina, da mesma
forma, facilitou às grandes Companhias européias a comercialização dos pro-
dutos, com a rede orientada para a metrópole que impunha às colônias a
monocultura (borracha na Indonésia, vinho na Argélia, etc). Ao longo do
período colonial, este sistema impediu às colônias toda e qualquer possibili-
dade de acumulação interna. Não é preciso insistir em dizer que este sistema
acarretou a subalimentação da população local e a erosão do solo.
Por estas razões houve necessidade de justificar este tipo de exploração
perante a opinião pública européia, revoltada com as atrocidades que esta-
vam sendo cometidas nas colônias. Para justificar e, ao mesmo tempo, con-
solidar a dominação, os europeus introduziram critérios étnicos na máquina
social.
Os critérios étnicos introduzidos criaram distinções entre dominadores
(brancos) e dominados (de outra cor). Para tanto, uma série de pretextos
foram invocados: superioridade da raça branca, incapacidade dos "nativos"
dirigirem ou explorarem por conta própria seus recursos naturais, e até
mesmo a grande missão de levar aos povos "de cor'' ignorantes as "vanta-
gens" da cultura intelectual, social, científica, industrial e artística das raças
brancas superiores. É o famoso tema do "fardo do homem branco", para
quem a superioridade cria obrigações.
Em conseqüência, surgiu uma quantidade imensa de literatura e teo-
rias cantando as glórias e o fardo do homem branco, procurando demonstrar
como ele se desincumbia de suas obrigações, levando a civilização para os
povos fracos, feios e pouco inteligentes. Um desses escritores, talvez o mais
famoso, foi Rudyard Kipling, que o leitor já deve conhecer. Um outro, foi
um religioso, o cardeal Mercier, para quem a colonização devia ser consi-
derada como "um ato coletivo de caridade que, num determinado mo-
mento, uma nação superior deve às raças deserdadas''!
As Armas dos Colonizadores nas Mãos dos Colonizados
Por ironia, indiretamente, estas foram as armas que os próprios colo-
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nizadores colocaram nas mãos dos colonizados para contestar a dominação.
Veja só: costumes, pensamentos e instituições ocidentais foram espalhados e
impostos através dos imigrantes, dos missionários e dos escritores. Estes,
em nome do Cristianismo e da democracia, diziam que todos eram iguais
perante Deus e perante a Lei, fornecendo as noções de liberdade vigentes na
sociedade liberal ocidental. Ensinaram também que a pobreza não era resul-
tado da vontade divina, mas da deficiência técnica. Criaram universidades e
através delas difundiram um ensino que acabou revelando a grandeza e a
glória do passado das colônias. Até a um ponto em que a minoria de privi-
legiados, filhos das camadas dirigentes tradicionais, assim instruídos, come-
çou a se interrogar sobre a ausência de liberdade, a falta de oportunidade de
acesso à saúde, à educação, à cultura, ao conforto e à humanização para a
maioria da população colonizada. Mais do que tudo, interrogou-se sobre a
ausência de oportunidades para os instruídos assumirem as funções adminis-
trativas a que julgavam ter direito. Quando estas contradições vieram à
tona, ficaram declarados o inconformismo e a luta pela afirmação do colo-
nizado.
Em traços sintéticos, foi assim que a burguesia capitalista levou a ex-
pansão da Europa até os confins da Terra. Foi assim também que ela, com
suas próprias armas, suscitou a oposição e a revolta entre os povos colocados
sob seu domínio.
Tudo muda, diz um célebre poema de Bertolt Brecht. E muda mesmo,
pois a História é feita pelos homens, mas, como acrescenta o poeta: "o que
acontece, porém, fica acontecido: a água que pões no vinho, não podes mais
separar".
E o que será tratado a seguir: procura-se relatar o que aconteceu
quando o capitalismo, na sua "etapa superior" — o imperialismo — atra-
vessou os oceanos; e qual a reação dos colonizados diante das transforma-
ções, irreversíveis, ocorridas em suas sociedades.
3. processo de conquista
e ocupação colonial
, A ocupação colonial pelas nações européias foi um ato de conquista
como foi visto acima. Mas os métodos de penetração variaram, pois depen-
deram das possibilidades do colonizador e das próprias condições locais. Em
outras palavras, estes métodos refletiram as condições geográficas, políticas,
econômicas e culturais das sociedades pré-coloniais, conjugadas com os inte-
resses imperialistas. Por isso, considera-se importante, para a compreensão
do fenômeno da formação das novas sociedades, verificar: a) o processo de
conquista e de ocupação colonial; b) a forma como se deu o contato dos eu-
ropeus com as populações locais; c) a organização dessas sociedades pré-co-
loniais; d) os recursos de que dispunham estas sociedades.
Na história do capitalismo, esses processos de conquista e ocupação
colonial receberam o nome de partilha da África e da Ásia.
Partilha da Ásia
Foi no ano de 1886 que Lord Salisbury, um grande senhor, culto,
muito elogiado por sua vida parlamentar e por sua atuação na diplomacia
britânica, disse com orgulho: "Há lugar na Ásia para todos nós". Dita por
tal pessoa, a frase define a extensão do domínio ocidental na Ásia no século
XIX e a rapidez das conquistas.
No início do século XIX, dos antigos impérios mercantilistas da Ásia,
somente a Grã-Bretanha permanecia a grande potência marítima, aliás con-
siderada a "dona da índia". Os portugueses já haviam sido eliminados do
Oceano Índico e do Pacífico, só lhes restando estabelecimentos em Goa,
Macau e Timor. Os holandeses controlavam o comércio da península malaia
e, através das índias neerlandesas (Indonésia) mantinham relações comer-
ciais com a China e o Japão. A França possuía entrepostos e pequenas feito-
rias na índia. Nenhuma dessas nações possuía grande influência política nes-
sas regiões, mesmo porque o objetivo mercantilista era a troca comercial.
A situação se modificou em meados do século XIX, em decorrência da
expansão da economia capitalista. Foi quando as potências resolveram usar
de violência maior para atingir a completa dominação. O processo foi ini-
ciado pela Inglaterra, que conquistou a índia entre 1845-1848. Mas só após a
primeira crise de superprodução do sistema industrial (década de 70), que
tomou corpo o movimento imperialista inglês. Neste período, a Rainha Vi-
tória chegou até a ser coroada Imperatriz da índia.
Após a conquista da índia, a Inglaterra anexou a Birmânia (1886) e a
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Malásia, numa tentativa de limitar a influência francesa na região. Isso por-
que a França havia ocupado a Indochina, hoje Vietnã, Laos e Cambodja.
Nesta região, a França instaurou o regime de protetorado, que é uma forma
mais atenuada de colonização, ou melhor, o Estado, apesar de dependente,
era reconhecido juridicamente.
Fortalecidas com estas conquistas, estas nações voltaram-se, com vio-
lência, contra a China.
A China, desde a "guerra do ópio" (1835-1842), já havia sido obri-
gada, diante do potencial de fogo dos ingleses, a assinar tratados desiguais,
isto é, tratados nos quais ela concedia vantagens à Europa sem contrapar-
tida. Para conseguir um desses tratados, o de 1860, tropas francesas e britâ-
nicas chegaram até mesmo a destruir o Palácio de Verão de Pekin, um
dos tesouros artísticos insubstituíveis da humanidade. Conta-se que este fato
impressionou tanto aos chineses que, logo após a Revolução Chinesa de
1949, o governo da República Popular da China chegou a dizer que mais dia
menos dia ainda acertaria esta "conta" com os europeus. E parece que só
não conseguiu "acertar a conta" porque uma indenização dessas não tem
preço. O certo é que após o saque de Pekin, um inglês foi indicado para
"assistir" a administração de toda a receita da alfândega chinesa. Vários
portos foram abertos, mercadores estrangeiros receberam liberdade de movi-
mento e imunidades diante da lei chinesa.
Este método de penetração tão violento adveio do fato de a China,
diferindo da índia, possuir uma unidade política, com um imperador fazendo
sentir sua autoridade sobre as províncias mais distantes. Basta dizer que, até
antes da chegada dos europeus, ela recebia tributos da Coréia, do Vietnã e de
outras monarquias da região: Sião, Laos, Birmânia e Nepal. Na verdade, era
o império mais elaborado e mais antigo de todos os Estados monárquicos da
Ásia Oriental. Por essas razões, a China sempre se recusara a admitir rela-
ções com o resto do mundo em posição de desigualdade. E manteve-se fe-
chada a qualquer tipo de comércio com o Ocidente. Foi a "guerra do ópio''
que marcou o início da preponderância ocidental na China.
Mas o desmembramento da China aconteceu mesmo quando o Im-
pério, enfraquecido com os tratados desiguais, teve que enfrentar uma guerra
com o Japão (1895). Foi "salvo'' do desastre pela intervenção das potências
européias. Como reconhecimento do serviço prestado, as nações européias
receberam concessões econômicas e territoriais. A partir daí, a China passou
a ser um território dividido em áreas de influência das potências ocidentais.
Não só a França e a Inglaterra penetraram no território chinês, como tam-
bém a Rússia, a Alemanha e até os Estados Unidos.
A penetração econômica se precipitou rapidamente com a construção
de linhas de estradas de ferro, concessão de minas, estabelecimentos indus-
triais e bancos. E a soberania chinesa transformou-se numa ficção. 13
O Caso do Japão
Diferente foi o caso do Japão. Preocupado com a derrota da China, ele
resolveu compreender os segredos do poderio do capitalismo ocidental. Um
intelectual japonês, do século XIX, de nome Sakuna, ilustrou bem o acon-
tecido. Consternado com a decadência chinesa frente aos europeus, ele per-
guntou: "Como é possível que as nações européias tenham sido capazes, por
seu amor à ciência, de alimentar suas forças a ponto de poderem vencer até
mesmo o país de Confúcio?'' E ele mesmo respondeu: "É que sua ciência é
racional e a ciência chinesa não o é". E então passou a ser dever patriótico
japonês inspirar-se no Ocidente, com missões de informações técnicas sendo
constantemente enviadas à Europa.
O singular da experiência japonesa situou-se no fato de que a moderni-
zação do Japão, operada com a chamada Revolução Meiji (1868), isto é,
revolução das luzes, não foi operada com o rompimento com o passado. A
imitação do Ocidente impôs-se mesmo foi na área científica e técnica, com a
sabedoria de preservar sua civilização.
Ao tomar a iniciativa da reforma, o Japão pode ser considerado o único
país da Ásia que conseguiu preservar sua independência: no início do século
XX, a independência chinesa era fictícia, a Índia era uma colônia da Coroa
da Inglaterra, a Indochina era um protetorado francês e as índias neerlan-
desas estavam nas mãos da Holanda, que conservou a herança do velho im-
pério mercantilista.
Partilha da África
Até o século XIX, o interesse europeu na África estava orientado para
a exportação de escravos, fato que transformou este continente, durante três
séculos e meio, na fonte mais sacrificada de acumulação primitiva do capita-
lismo europeu e americano. Por esta razão, o interior do continente só tinha
alguma ligação com as zonas costeiras, através do comércio de escravos.
Como disse o próprio Lord Lugard, um dos construtores do Império Britâ-
nico, foi a necessidade de matérias-primas que levou as potências à corrida à
África no final do século XIX: "A partilha da África deve-se essencial-
mente, estamos todos de acordo quanto a isso, à necessidade econômica de
aumentar o fornecimento de matérias-primas e de víveres para saciar as ne-
cessidades das nações insatisfeitas da Europa". Para tanto, houve necessi-
dade de conhecê-la melhor.
Na África Negra este desconhecimento tem uma justificativa na geo-
14
grafia: uma região muito pouco favorável ao homem. O acesso é difícil com
um litoral pouco hospitaleiro, sobretudo do lado do Atlântico: rios muito
rápidos e de penetração complicada, uma floresta densa, dificultando o per-
curso humano. O deslocamento do homem na região só era facilitado através
das savanas e das estepes. Mas, para atingi-las, o europeu do século XIX
precisava conhecer o curso dos rios de penetração. Daí a preocupação dos
europeus com o conhecimento do curso do Niger, do Congo e do Nilo,
considerados as vias naturais de penetração para o continente. Daí também a
atenção com que uma seleta assistência, reunida no Royal Geographical So-
ciety de Londres, em 1857, ouviu uma exposição de David Livingstone sobre
sua exploração da África Central.
Missionários e Exploradores
Na verdade, a violenta invasão dos europeus sobre a África foi prece-
dida, sintomaticamente, não só pelos interesses científicos como também
pelos religiosos, consubstanciados em numerosas viagens de missionários e
exploradores que se embrenharam em regiões completamente desconhecidas
pelos europeus. David Livingstone foi um desses missionários. Ele explorou
uma vasta região situada entre o Rio Zambeze e as nascentes do Nilo, e aca-
bou, depois de uma terceira viagem, desaparecendo sem deixar rastros. Stan-
ley foi outro explorador. Ele atravessou o continente de leste a oeste, explo-
rou o curso do rio Congo e recebeu a missão do rei Leopoldo II, da Bélgica, de
estabelecer uma ligação entre o curso superior do Congo e o Oceano Atlân-
tico. De posse dessa ligação, em 1876, este rei belga fundou a Associação In-
ternacional Africana, promovendo um dos mais cruéis e devastadores em-
preendimentos da colonização: entregou o Congo a Companhias internacio-
nais. Dez anos depois, este rei era soberano absoluto do Congo, que deixou
como herança aos belgas.
O marco da corrida colonial foi a famosa conferência de Berlim, reu-
nida por Bismark, o chanceler da Alemanha. O ato principal desta Confe-
rência (26/02/1885) foi a carta de partilha amigável da África entre as na-
ções européias. A carta regulou a navegação e o comércio nas bacias do
Congo e do Niger, decidindo que as prioridades seriam dadas aos estabeleci-
mentos costeiros. Determinou ainda que toda nova extensão territorial de-
veria ser notificada às outras potências e que nenhuma anexação seria reco-
nhecida se ela não se traduzisse em ocupação efetiva. A partir de então, a
África deixou definitivamente de ser fornecedora de escravos. E o africano
ganhou o privilégio de ser explorado na sua própria terra. As resistências
15
Caricatura alemã, onde aparece Leopoldo II cercado de crânios e dinheiro, atestando uma das
faces mais terríveis da colonização belga no Congo,
africanas foram tratadas com violência e as indústrias européias progrediram
com o cacau, o amendoim, a bauxita, o manganês, o ouro e demais matérias-
primas retiradas da África.
Assim, no início do século XX, a Inglaterra, na África Oriental,
já havia se apoderado do Quênia e de Uganda, ocupado o Egito, o Sudão,
o Chipre e a Somália. Na África Ocidental, instalou-se na Costa do Ouro e
na Nigéria; na África do Sul anexou o interior da Colônia do Cabo. Em
1902, conquistou Transvaal e Orange.
A França dominou a África do Norte, ou melhor, o bloco formado
pelo Maghreb (Marrocos, Argélia e Tunísia), povoado por árabes e berbe-
res. A Argélia tornou-se a colônia mais trabalhosa para a França. Tunísia e
Marrocos foram transformados em protetorados. Do Saara até o golfo da
Guiné, ela dividiu a região, para fins administrativos, em duas federações:
África Ocidental Francesa e África Equatorial Francesa. Anexou também
Madagascar, no Oceano Índico.
Em menos de 50 anos, um quinto da área terrestre do globo encon-
trou-se reunido nos domínios imperiais das potências européias. A maior
área, perto de 20 vezes a superfície da França, estava dominada pelos fran-
16
17
ceses. A menor área coube à Alemanha, mas, mesmo assim, seus territórios
totalizavam dois milhões e oitocentos mil metros quadrados, com uma popu-
lação de 13 milhões de pessoas. A Holanda era a a mais orgulhosa da sua
18
obra colonial, considerada o modelo de organização na hoje ainda sofrida
Indonésia. Portugal era a mais pobre nação imperialista: conservou Angola,
Moçambique, o arquipélago do Cabo Verde e a Guiné.
O mais rico e poderoso era o Império Britânico que dominava a pro-
dução mundial de arroz, cacau, chá, cobre, ferro e, ainda, o petróleo do
Oriente Médio. No entanto, um perigo de ordem demográfica ameaçava
este império: 85% dos seus habitantes eram constituídos por populações
"indígenas".
A Política Colonial
A colonização se revestiu de formas variadas de dominação direta e
indireta, em função do nível de desenvolvimento histórico das populações
sobre as quais se exerceram as políticas do Ocidente capitalista.
As potências coloniais apoiavam príncipes e chefes dispostos a colaborar com seus inte-
resses. Na foto, Lorde Curzon, representante do governo britânico na Índia e o marajá
de Patíala.
Na indireta (britânica), a administração era exercida pelas autoridades
coloniais, através de governos autóctones. No sistema direto (francês), os
autóctones só ocupavam funções subalternas. De qualquer forma, esta dife- 19
rença não elimina o fato de os aliados do sistema colonial, nos dois casos,
terem sido procurados entre as mesmas camadas de dirigentes tradicionais.
De uma maneira geral, embora houvesse variantes locais, a política das po-
tências coloniais, para conservar sua supremacia, se baseou no apoio a prín-
cipes e chefes que estivessem dispostos, em seus próprios interesses, a cola-
borar com as potências ocupantes. A fórmula, como preconizou Lyautey, o
general francês, seria: "Associar a classe dirigente aos nossos interesses".
As Formas de Administração nas Colônias
Estes dois sistemas existiram nas chamadas colônias de exploração,
que se destinavam a explorar produtos exóticos e matérias-primas (Índia, por
exemplo) para a Europa. Em outras palavras, eles existiam nos Estados ricos
que deveriam "auxiliar'' a Europa em suas dificuldades econômicas. A pre-
sença européia nestas colônias praticamente se reduzia aos quadros adminis-
trativos, militares, técnicos e comerciais.
Havia, ainda, as colônias de povoamento, ligadas ao problema do cres-
cimento demográfico europeu que dobrou em sessenta anos. Estas colônias
deveriam resolver o problema da incapacidade da Europa em alimentar mais
bocas e não poder oferecer trabalho a um contingente grande de pessoas que
a revolução industrial e a técnica agrícola estavam dispensando. A saída foi a
emigração. Naturalmente, estas colônias não existiram na Ásia, superpo-
voada. Na África, elas deram origem a situações e conflitos particularmente
agudos (Argélia, Rodésia, África do Sul, Angola, Moçambique e Quênia).
Isto porque os colonizadores aí expropriaram as terras dos camponeses.
Além disso, neste tipo de colônia, as minorias européias ocupavam posições
sociais e econômicas dominantes e afastavam os autóctones até mesmo das
funções administrativas mais subalternas. Os funcionários subalternos eram
brancos, e todos os brancos, fossem empregados ou operários, recebiam sa-
lários mais elevados do que os trabalhadores negros.
O outro tipo de dominação é aquele onde a penetração não atentou,
aparentemente, contra a independência política, isto é, as ambições ociden-
tais não eram propriamente políticas, apenas se propunham objetivos eco-
nômicos, comerciais, industriais e financeiros. Os casos da China e do Egito
são exemplos típicos. O Egito, por exemplo, um principado virtualmente
independente, foi vítima de sua riqueza agrária e da sua situação estratégica
(situado entre o Oriente Médio e a África Negra). A sua riqueza agrária in-
tegrou-o na economia européia como fornecedor de produtos agrícolas. A
vasta expansão do comércio egípcio atraiu levas de homens de negócios e
-aventureiros prontos a conceder créditos ao governo, que pensava em trans-
formar o Egito num poder moderno. Mas os homens de negócios extorqui-
ram o povo egípcio e, quando os egípcios não puderam mais pagar os juros 20
dos empréstimos, a gestão das finanças públicas passou para o estrangeiro,
com a desculpa de o governo egípcio estar comprometido com enormes des-
pesas e incapacitado de pagá-las. Como não havia FMI na época, foi insti-
tuído um condomínio franco-inglês. Nominalmente, como na China, a inde-
pendência política subsistia, mas gradativamente os funcionários britânicos
passaram a administrar a polícia, as finanças, as comunicações, as alfândegas
eos portos.
O Significado da Administração Colonial
Seja como for, qualquer desses tipos de administração, na prática, sig-
nificava mera dominação. E isto os grupos colonizados, familiarizados com a
língua e a técnica do colonizador, não podiam deixar de perceber. Se, no
governo indireto, o objetivo da Inglaterra era atenuar o impacto do colonia-
lismo, colocando na administração chefes ou príncipes, o efeito mais ime-
diato foi isolar estes administradores, como agentes da autoridade colonial,
de seus súditos. Se, como no caso da China e do Egito, tentava-se manter a
dinastia tradicional, apoiando-a nas lutas contra rebeldes ou invasores, o
resultado era o descrédito delas e uma atuação da população contra o gover-
nante tradicional. Se, como agia a França, a tática era formar elites educadas
no Ocidente, para obter delas a colaboração, acabava-se por enfraquecer as
únicas forças que poderiam ter interesse na permanência do domínio colo-
nial. Chegou-se a um ponto em que estes ocidentalizados se revoltaram
contra o fato de terem de continuar subordinados aos funcionários da potên-
cia ocupante. É isto que explica o papel dos funcionários de segundo escalão
na África Tropical de fala francesa na luta pela independência.
4. as sociedades colonizadas
É difícil um critério para classificar as sociedades colonizadas. Elas
sempre estiveram longe de serem homogêneas. Existiam e existem ainda
várias Ásias e várias Áfricas, com estágios históricos bastante diferenciados
dentro até de uma mesma zona geográfica.
Pensando na África Negra, por exemplo, fica-se preso num emara-
nhado complexo de etnias com limites de difícil definição. Veja: só no pla-
nalto de Camarões, onde muitas correntes de origens diversas interferiram
no povoamento, podem-se observar, na cidade de Mora, com 2.000 habi-
tantes, sete grupos étnicos diferentes. A estrutura da maior parte dessas
sociedades, famílias reagrupadas em clãs e tribos, acentua esta impressão de
pulverização. E a diversidade lingüística ajuda a confusão: avalia-se em 6.000
o número de línguas e dialetos "negro-africanos", repartidos em três con-
juntos principais: bantos, sudaneses e nilóticos. Algumas dessas línguas
chegam a ser faladas por mais de um milhão de pessoas; outras por poucas
pessoas, o que leva a uma situação interessante: dada esta floresta lingüís-
tica, até hoje existem tribos que, no mesmo território, para se comunicarem,
necessitam de intérpretes.
Mas existem traços que dão unidade a estas sociedades. Entre eles, a
agricultura. Eram todas sociedades rurais, da África à Ásia. É uma herança
que ainda permanece viva no meio desses povos bruscamente colocados em
presença do mundo técnico europeu.
Estas sociedades rurais estavam fundadas na apropriação coletiva das
terras, que pertenciam ao grupo social dominante: família, clã, tribo ou Es-
tado. E a coesão grupai estava assegurada pela solidariedade imposta pelo
trabalho agrícola em comum e pelo culto dos ancestrais.
E aí cessam as semelhanças. Enquanto nas regiões de população densa
(Mandchúria, China do Norte, Deltas Indochineses, Egito, etc.) o trabalho
consagrado à terra era extraordinário, com técnicas de grande engenhosi-
dade, nas regiões de fraca densidade de povoamento (Malásia, África Negra,
etc.) os camponeses até hoje ainda vivem de cultura itinerante.
Nas regiões de população densa, a irrigação do solo sempre foi preocu-
pação essencial, mesmo porque ela è indispensável nas zonas que conhecem
uma alternância regular, invariável, entre a estação das chuvas e a estação
das secas. Este tipo de clima, prevalecente nestas regiões densamente povoa-
das, leva à necessidade de repartir a água ao longo do ano e prever as reservas
para a estação seca. Isto supõe um esforço coletivo incessante para a cons-
tração dos diques e canais. Por isso, nestas regiões, o Estado exerce um
papel relevante, como senhor absoluto das terras e responsável pela conser-
vação dos diques e canais. E é o que explica também por que uma burocracia
22
de letrados reinava soberana nesses Estados: cabia a ela o planejamento das
funções ligadas à irrigação.
Um critério classificatório
O critério classificatório utilizado para essas sociedades colonizadas
costuma basear-se nas características culturas e demográficas pelas razões
expostas acima. Embora este não seja o critério mais perfeito, ele permite a
compreensão dos diversos caminhos tomados pelos movimentos de descolo-
nização.
Neste sentido, podem-se dividir as áreas colonizadas em:
1) densamente povoadas ou de fraca densidade de povoamento.
2) dominadas pela influência do Islã ou por influência hindu ou por influên-
cia chinesa.
As regiões densamente povoadas mantiveram contatos mais ou menos
diretos e intermitentes com países e povos da Europa ocidental desde muitos
séculos. Possuíam uma estrutura social complexa e constituíam Estados or-
ganizados, dotados de uma forte burocracia, surgida da necessidade técnica
de coordenação e supervisão da produção. Situam-se nesta classificação
grande parte dos Estados da Ásia, do Oriente Próximo e do Norte da África.
As regiões de fraca densidade de povoamento possuíam muitos níveis
distintos de evolução histórica e de civilização. Situa-se nesta classificação,
predominantemente, a região da África Negra, aquela situada ao sul do
Saara. Aí, a organização social predominante era o tribalismo, também bas-
tante diferenciado. A autoridade nas tribos encontrava-se em mãos dos mais
idosos, mas limitada por assembléias compostas de chefes de família e chefes
de aldeia, isto é, não havia um poder despótico.
Eram sociedades rurais. A terra era objeto de apropriação coletiva e
pertencia ao grupo social dominante, família, clã ou tribo. Vários clãs liga-
dos, em geral, pela comunidade de línguas constituíam uma etnia. A solida-
riedade era o traço fundamental, assentada na família, que era a comunidade
de sangue e de trabalho. Da família ao clã, do clã à tribo, o círculo se alar-
gava, mas os princípios eram os mesmos: comunidade de sangue, de língua e
mitos originais.
A economia era de subsistência, com métodos de cultivo muito elabo-
rados em matéria de seleção de sementes. Mas as técnicas eram rudimenta-
res e não se comparavam com a agricultura de várias regiões da Ásia, e
mesmo com a de alguns pontos da África do Norte, onde foram implantadas
técnicas asiáticas de cultura intensiva. Mas também é preciso levar em conta
23
Nas regiões densamente populosas da África e Ásia, a necessidade da irrigação legou ao
Estado um papel relevante, como senhor absoluto das terras e responsável pela conser-
vação dos diques e canais.
que, nas regiões de flprestas, o renascimento rápido da vegetação e a pobreza
do solo forçavam os povos à migração. Somente nas estepes e savanas os
24 povos se fixavam.
Embora este fosse o sistema de numerosas sociedades da África Negra,
mesmo nesta região havia também formas de organização política e econô-
mica mais vastas e evoluídas. Estas formas de organização existiram no Su-
dão, onde recursos minerais alimentavam um comércio voltado para o ex-
terior do continente: forneciam ouro, metais e pedras preciosas ao mundo
muçulmano e, através dele, à Europa Medieval. Era um circuito comercial
complexo e inteiramente organizado no próprio local, pelos autóctones. O
que nos leva a crer, ao contrário dos estereótipos do "fardo do homem
branco'', que a África estava bem madura para servir de interlocutora válida
aos parceiros internacionais. Sobre as grandes rotas comerciais, que permi-
tiram acumulação de excedentes e a manutenção de categorias sociais espe-
cializadas em certas tarefas, constituíram-se as sociedades estatais. Gana (sé-
culo VI-XI), Mali (século XII-XVI) e Goa (século XVIII-XVI) foram os
reinos mais famosos de que se tem notícia. Na região de Tanganica, de Quê-
nia e da Somália subsistem ainda importantes vestígios de cidades mortas,
que foram no passado centros animados do comércio do ouro e de escravos.
Mas estes reinos foram desagregados, após profundas crises, alguns
antes da chegada dos europeus. Outros desapareceram com o progresso da
conquista colonial (reino Yoruba e o reino Daomé, por exemplo). E houve
até os que se constituíram em pleno período colonial, procurando virar o
curso da história. Você já deve ter ouvido falar do famoso reino zulu, cujo
rei, o herói Chaka, chegou a criar um grande conjunto político supratribal.
Este conjunto serviu até para cunhar a África como ''terra dos guerreiros'',
dado o famoso exército ali organizado por Chaka. Este reino foi destruído
pelos europeus, naturalmente.
Embora os Estados tenham desaparecido, a estrutura familiar, de clã
ou tribal, subsistiu e os europeus até se esforçaram para aprofundar as rivali-
dades tribais. Os colonizadores sobrepuseram à antiga subordinação das et-
nias simplesmente o trabalho compulsório, os impostos, a obrigatoriedade
de se inscrever perante a autoridade branca e as leis dos homens brancos. É a
velha máxima: ' 'Dividir para melhor dominar''.
As Tradições Culturais
De uma maneira geral, pode-se também destacar uma zona dominada
pelo Islã, que se estende do Marrocos à Ásia Central. Em seguida, a Ásia do
Sudeste, com países de influência hindu, chinesa ou islâmica, que se estende
da Birmânia ao Vietnã.
Quando se fala em influência chinesa, está se referindo às concepções
do filósofo Confúcio que, no século VI, propôs um ideal de sabedoria aos
25
chineses. O fato fundamental para esta filosofia é a relação entre os homens,
não enquanto indivíduos, mas enquanto partes integrantes dos grupos so-
ciais. A abertura para o social, para este filósofo, era importante por ser
considerado o melhor caminho para se escapar das desilusões da existência.
Diferente, portanto, do pensamento hindu e islâmico, mais especulativo e
religiosos, o pensamento chinês, influenciado pelo confucionismo, era mais
prático, mais social e mais político. Os estudiosos da descolonização costu-
mam dizer que a transição, sem choques, dos chineses ao marxismo deve-se
ao confucionismo, com sua elaboração de uma moral do Estado e a negação
da especulação sobre o Além. Segundo eles, a dialética marxista encontrou
nos povos sob a influência chinesa um terreno preparado. Existia neles o
mesmo gosto pelas explicações globais, a mesma recusa ao transcendente, o
mesmo deleite no terra-a-terra.
"0 marxismo não confundia o espírito dos confucionistas, ao centrar
a reflexão do homem nos problemas políticos e sociais: a escola confucionista
não fazia outra coisa. Ao definir o homem pela totalidade das suas relações
sociais, o marxismo pouco chorava os letrados, que consideravam que o
objeto do homem é assumir concretamente suas obrigações sociais (...). Os
militantes marxistas por sua vez retomam de boa vontade por sua conta o
moralismo político dos confucionistas. A idéia de que os responsáveis devam
dar mostras de uma moralidade exemplar está profundamente arraigada nos
países confucionistas e os militantes marxistas dos nossos países continuam
a tradição dos letrados célebres dos tempos antigos, dando-lhe uma signifi-
cação diferente."
Nguyen Khac Vien — ''Confuncionisme et Marxisme ". In: Expé-
riences vietnamiennes — Éditeurs français réunis, Paris, 1970.
Esta facilidade o marxismo não encontrou nas terras islâmicas.
O Islã, diferentemente, é tanto fé religiosa como regra de vida. Na
verdade, designa um tipo de comunidade civil, guiada pelas leis do Corão. O
Corão é o livro sagrado que contém as revelações feitas por Deus (Alá) e
transmitidas a seu profeta Maomé (Muhammed), em 611. Escrito em árabe,
a verdadeira língua religiosa do Islã, ele contém regras de vida definitivas
para os homens. A melhor tradução da palavra Islã seria submissão, ou
melhor ainda, entrega a Deus. Assim, a submissão do crente à vontade de
Deus é total, sem apreciação nem discussão, semelhante àquela de Abraão no
momento de sacrificar Isaac. Por isso, diferente do chinês, pouco religioso, é
muito difícil para um muçulmano fazer a divisão entre a fé e a organização
social. No mundo islamizado, questões profanas e problemas religiosos estão
estreitamente ligados através do Livro Santo, que é também a fonte de toda a
organização política. Em outras palavras, não existem distinções precisas
entre os domínios do espiritual e do temporal.
Em princípio, e não na prática, todos os crentes são iguais. E é este
igualitarismo, unido ao principio do Estado Teocrático, que é o aspecto im-
26 portante para a avaliação do papel político e ideológico desempenhado pelo
26
Islã na África e nas regiões de influência hindu.
No sistema hindu, a ordem social está fundada na desigualdade social,
isto é, o sistema de castas criou uma série de camadas sociais, desde a mais
alta até a mais baixa, composta de pessoas que haviam recebido a mesma
situação de seus pais. As hierarquias no sistema hindu se definem, portanto,
em função da geração e não do indivíduo. Assim, as castas impediam toda e
qualquer ascensão social. Embora independentes da religião, as castas devem
a ela a sua rigidez. Daí as pessoas de baixas castas rapidamente se conver-
terem ao Islã. Elas trocavam o hinduísmo pelo islamismo a fim de fugirem da
pior miséria social.
E este aspecto também levou a expansão do Islã pela África Negra. O
Islã dava respostas, por sua simplicidade e pela firmeza da fé, às necessidades
espirituais de indivíduos bruscamente desenraizados e desorientados e ao
desejo de reintegração numa comunidade. A flexibilidade da religião permi-
tia que as confrarias muçulmanas reunissem as tradições negras. O que o
cristianismo, implantado pelos europeus, não conseguia, por exemplo. Mas
a força maior do Islã, na África, residia no fato de ela não ser oriunda do
Ocidente e, portanto, poder aparecer como uma expressão de resistência ao
branco.
O outro aspecto importante do Islã, de interesse para o fenômeno da
descolonização, é o sonho de realizar um Superestado, que compreenderia
todos os crentes. Assim, por mais diversos que sejam os grupos que formam
uma comunidade, como religião, o Islã pretende reuni-los numa imensa fa-
mília. Ora, esta união só pode ser realizada por um movimento político. É
por isso que o sonho dos dirigentes políticos das regiões islamizadas nunca se
baseou na realidade dos grupos étnicos ou lingüísticos, mas no Estado, capaz
de proclamar o Islã como religião oficial.
Foi nessa direção que, a partir de 1933, os muçulmanos indianos pen-
saram em construir um Estado independente. Chegaram até a imaginar o
nome para o Estado: Paquistão, que significa país dos puros. Naturalmente,
a Inglaterra instigou a rivalidade entre hindus e muçulmanos, procurando
dividir o movimento de independência. Assim, a Índia acabou por se partir
em duas, em 1947: o Paquistão e a União Indiana.
Na África independente, a influência do Islã — que elimina de sua
ação a existência das etnias — em conjunto com a persistência das rivali-
dades étnicas incentivadas no período colonial vem contribuindo para pro-
blemas sérios na formação dos Estados Nacionais, mesmo considerando que
estes Estados têm na frente do governo jovens intelectuais instruídos à moda
européia.
27
Na foto, o Santuário da Caaba, em Meca, centro religioso do Islã. A foto atesta o alcance
da mensagem e da civilização islâmica.
Dominique Desanti, uma jornalista francesa, reencontrou na África
um jovem africano islamizado que ela havia conhecido estudante em Paris.
Conta ela que, em Paris, este jovem estudava física. Ele pertencia a grupos
anticolonialistas e sonhava com a independência do seu país e com a funda-
ção, nele, de um laboratório de pesquisas nucleares. Acreditava que este
laboratório suscitaria a criação de outros centros através de todo continente
libertado: "Após a independência, dizia ele, eu demonstrarei, nós demons-
traremos, à Europa que o ' 'negro'' não é desprovido de espirito científico,
de dons matemáticos, de espírito de geometria''.
Quando a jornalista reencontrou Gao, o físico, em seu país indepen-
dente, ele ocupava a função de deputado. E ela se espantou: um físico, único
daquele nível em todo seu país, abandonar a ciência para um posto político!
A explicação do amigo demonstrou a dificuldade de ser, na África, um
' 'indivíduo'' à européia: Mediem Gao havia cedido ao poder de seu grupo
de origem. Ele justificava o fato de ser deputado porque sua família precisava
representar sua etnia no governo, sob pena de perder a influência, ou me-
lhor,\o poder, para outras etnias. ' 'Um 'burocrata' na família e todo mundo
se acredita poderoso '' — disse o amigo.
(Adaptado do texto de Dominique Desanti ' 'Quand l 'Africain revient
28
d'Europe" — In: Le dossier Afrique, Verviers, Marabout Üniversité,
1962.)
Cidade de Tichitt, no Saara mauritânio, testemunho de uma civilização outrora próspera,
situada no cruzamento das grandes rotas de caravanas que ligavam Magreb ao Sael.
5. transformações sociais
nas sociedades colonizadas
M
A introdução do capitalismo através da colonização trouxe profundas
transformações para as sociedades da Ásia e da África, determinando parti-
cularmente o surgimento de novas camadas sociais.
A desarticulação da agricultura tradicional, a apropriação privada da
terra (desconhecida na maioria das regiões), o aparecimento do trabalho as-
salariado e sobretudo a urbanização criaram condições para nova estratifi-
caçâo social: pequena burguesia de comerciantes e intermediários, agentes
políticos e econômicos do poder colonial, plantadores ricos, elites letradas de
tipo moderno, funcionários subalternos e proletariado agrícola ou industrial.
A migração para a cidade, decorrente da deterioração da vida no
campo, exerceu poderoso efeito destruidor no sistema social tradicional: a
disciplina rígida da família e o poder dos anciões foram quebrados pelos jo-
vens trabalhadores assalariados; e os quadros subalternos das administrações
cortaram os laços com os chefes tradicionais. Embora a oferta limitada de
emprego na cidade ainda obrigue, na maioria das vezes, o trabalhador a
manter laços com sua aldeia de origem, esta situação é irreversível, mesmo
porque a cidade tornou-se o laboratório dessas novas sociedades em gesta-
ção. Na África, por exemplo, uma pessoa ao percorrer 50 km de sua aldeia
A migração para a cidade exerceu efeito destruidor no sistema social tradicional. A criança
negra vive o mesmo destino de pária de seus pais.
até a cidade mais próxima, atravessa, de fato, séculos de evolução técnica.
Ela abandona um mundo de lazer e de tempo visto sem pressa, dividido por
estações de chuva ou seca, de colheita ou plantio, por outro tempo dividido,
30
dissecado e explorado como uma matéria-prima. Desta pessoa vão exigir um
trabalho contabilizado em horas, com a observação seguida do: "Sabe que
horas são?".
Dentro do que interessa ao tema de descolonização, podem-se levan-
tar, portanto, dois fatos mais significativos no quadro das transformações
sociais: a introdução da propriedade privada da terra e a criação de uma nova
elite, que o colonialismo fortaleceu em ampla medida.
Estas novas elites, inicialmente formadas de filhos de chefes tradicio-
nais, foram educadas segundo os padrões europeus. A elas se juntaram, cada
vez mais numerosos, os comerciantes e funcionários administrativos. Bas-
tante heterogêneos em suas rendas, eram elementos estáveis da população
urbana; seu comportamento traduzia a vontade de ascender ao nível de vida
dos europeus. Mais do que tudo, pretendiam ter acesso a funções políticas
que consideravam serem-lhes destinadas de direito.
Foram estas elites urbanas que se tornaram o centro da oposição à do-
minação colonial.
Isto porque, a nível da população, o campesinato, na luta pela preser-
vação da sua economia de subsistência e de seus valores tradicionais, fechou -
-se aos colonizadores e a seus agentes. Na cidade, onde as contradições eram
mais evidentes, dada a convivência forçada de colonizadores e colonizados,
a população estava separada por barreiras tacitamente aceitas e bairros exclu-
sivos de europeus e de "indígenas". O proletariado, especialmente, aí pas-
sou a se reagrupar por etnias, ou por famílias, uma vez que se necessitava
sustentar numerosos membros da família, em idade produtiva, desempre-
gados ou semi-empregados, trazidos pelo êxodo rural.
Assim, foi o colonizado urbano de certo nível social e cultural que
mais se ressentiu com os efeitos do traumatismo colonial, pois tinha condi-
ções de perceber, com consciência, o fenômeno colonial, os métodos de
dominação do colonizador. Estas minorias urbanas europeizadas haviam se
submetido aos valores do colonizado, adotando suas normas e suas lingua-
gens, mesmo dominados pelo sentimento de vergonha, de inferioridade e de
humilhação. Mas foi inútil; a cor da pele sempre os denunciava. E tiveram
que reconhecer que seus traços físicos os identificavam com seus conter-
râneos. Apesar da tentativa de dissimular o desprezo que sentiam pelos seus,
não conseguiam evitar a agitação do "sangue cúmplice'' em suas veias. Daí
a atração e o ódio pelo mundo branco. Daí, mesmo, usando as normas e a
linguagem do colonizador, terem assumido a liderança na transformação do
ressentimento existente contra o estrangeiro e sua superioridade através de
movimentos nacionalistas, organizados em escala maciça. A ideologia revo-
lucionária nasceu, portanto, em contato com os europeus.
6. luta contra
a dominação colonial
As primeiras resistências à colonização foram processadas com dificul-
dades maiores ou menores, de acordo com o nível de organização política das
diversas regiões. Por exemplo, elas foram fracas na África Negra, onde os
europeus não encontraram Estados fortes constituídos. Já na África do
Norte, na Indochina, na índia, na China e na Indonésia, as reações chega-
ram a preocupar os europeus, mesmo não estando organizadas em movi-
mentos efetivos e coerentes.
A reação inicial dessas sociedades com tradição estatal foi a de se refu-
giar na tradição, convertida em ideologia da resistência. As elites letradas e
principalmente o clero, guardião das tradições, exaltaram o passado e prega-
ram a certeza de tempos melhores. Com a derrota frente à ocupação colo-
nial, a ideologia da resistência consistiu em procurar manter inviolados os
valores tradicionais. Foi essa, por exemplo, a reação das velhas classes diri-
gentes da Índia para expulsar os ingleses (revolta dos Cipaios); a dos rajhás
da Indonésia que se "suicidavam" ao se lançarem diante das belas holande-
sas; e mesmo a reação, em 1900, dos ''bóxers'' na China.
A Elite Colonial e as Tradições Locais
Porém logo este conteúdo ideológico se transformou, com os europeus
veiculando, através de uma burguesia ocidentalizada, um novo elemento
para o mundo colonizado: o nacionalismo. Na esteira do nacionalismo veio a
reivindicação, a exemplo da Europa, de formas parlamentares ou republi-
canas de governo e a constituição de partidos políticos à moda ocidental.
Esta fachada democrática, evidentemente, só atingiu as camadas urbanas
que conviviam com os colonizadores, comerciavam com as grandes Compa-
nhias Ocidentais e foram educadas segundo os padrões do Ocidente. Esteve
distanciada do proletariado urbano e rural que constituía a maioria da popu-
lação. Isto não deve surpreender, pois o ideário dos colonizadores (liberdade,