A crítica feuerbachiana da filosofia especulativa · J. Chasin (1937-1998), em Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica retoma o debate sobre o pensamento feuerbachiano,
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Volume 4, Número 4, Ano 4, Julho 2011 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia
ISSN 1983-3946
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A crítica feuerbachiana da filosofia especulativa*
Lúcia Aparecida Valadares Sartório†
Resumo:
Este artigo trata da crítica de Feuerbach à filosofia especulativa destacando os seus
fundamentos, bem como os esclarecimentos sobre os fatores que contribuem para o seu
aparecimento na tentativa dos homens compreenderem a relação entre objeto e pensamento e
assinala a importância dessa reflexão para a retomada de uma posição ontológica, questão que
foi levada às últimas conseqüências por Karl Marx.
Na circunstância história em que vivemos faz-se uma filosofia que recusa qualquer
forma de teoria clamando com força apenas o que é pragmático e utilitário, e a partir de uma
visa empirista mecanicista, nivela no mesmo patamar toda produção teórica numa única
definição superficial de filosofia continental. Por recusarem a realidade empírica como apenas
uma parte aparente do fenômeno social em sua complexidade histórica, são incapazes de
perceber as múltiplas determinações que recortam a unidade no diverso. Apenas para suscitar
a reflexão sobre essas questões adormecidas, apresento esse artigo com o objetivo de
* As questões desenvolvidas nesse artigo foram extraídas da dissertação de mestrado A antropologia de Feuerbach e alguns delineamentos acerca de uma possível influência no pensamento de Marx, sob orientação do Prof. Antonio José Romera Valverde. † É socióloga, mestre em filosofia e doutora em Educação, integrante do Núcleo de Estudos em História: Trabalho, Ideologia e Poder – NETHIPO – PUC-SP e do Grupo de Pesquisa: Economia Política da Educação e Formação Humana – GEPEFH – UFSCar e co-editora da Verinotio – Revista Online de Educação e Ciências Humanas.
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explicitar a crítica a filosofia especulativa iniciada por Feuerbach, que posteriormente foi
levada às últimas conseqüências por Marx, desnudando todas as formas de mascaramento e de
estranhamento das relações sociais. Por ora, evidenciaremos neste artigo a originalidade do
pensamento de Feuerbach e sua atenção à determinação ontológica do ser, questão primordial
para Marx, como evidenciou J. Chasin.
A crítica de Feuerbach à filosofia especulativa, ainda que tenha permanecido no
campo da crítica à religião, pôs em questão o resgate da objetividade como referência para o
pensamento, e atenção à determinação histórica do ser. Pelo fato de as posições
feuerbachianas terem clamado pelo resgate da ontologia como premissa necessária ao
pensamento que trazemos neste artigo alguns aspectos da crítica de Feuerbach à filosofia
especulativa, justamente numa circunstância em que a especulação alcança pleno vigor nas
diferentes tendências filosóficas. Desse modo, para melhor expor nossos argumentos
organizamos as questões tratadas aqui nos itens: 1. Reflexões Preliminares; 2. A relação da
filosofia especulativa com a religião; 3. A relação entre pensamento e natureza no pensamento
feuerbachiano; 4. Assinalamentos ontológicos; 5. A contraposição entre ser determinado e a
lógica da filosofia especulativa; 6. Considerações finais, como veremos a seguir.
1. Reflexões preliminares:
Ludwig Feuerbach (1804-1872) nasceu na cidade de Stuttgart-Bad Cannstatt, na
Alemanha. Segundo Weischedel Wilhelm‡, Feuerbach era filho de famoso advogado e foi
aluno exemplar. Dedicado aos estudos e de excelente educação, organizado e de caráter
íntegro, não foi difícil adquirir respeito intelectual no meio acadêmico. Estudou teologia, mas,
ao se ver diante da oposição existente entre liberdade e dependência, razão e fé, transferiu-se
para o curso de filosofia. Em Berlim recebeu influência de Hegel. Doutorou-se em 1828 com
a tese De ratione, una, universali, infinita, contudo afastou-se gradativamente de suas
posturas iniciais para seguir nova orientação teórica e efetivar seu rompimento com Hegel.
Weischedel Wilhelm também faz menção a Gottfied Keller, filósofo alemão do século XIX,
por ter ressaltado a importância de Feuerbach para o seu tempo não só pela sua crítica à
filosofia especulativa, mas também porque esse embate consistiu na busca de uma geração
‡ - WILHELM, Weischedel – “Feuerbach: Oder Mensch Als Schöpfer Gottes”. In: Die Philosophische Hintertreppe – 34 Grobe Philosophen in Altag Und Denken. Münche, Deutscher Taschenbuch Verlag. 1989, pp. 238/246. 2 – Idem., p. 241.
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melhor, liberta da religião, pois foi o primeiro filósofo a fazer do homem o assunto principal
da filosofia, em sua realidade e totalidade, motivo pelo qual foi denominado filósofo
antropológico§.
Herbert Marcuse (1898-1979) situou o pensamento feuerbachiano no contexto da
filosofia alemã, em seu clássico Razão e Revolução, partindo do princípio de que Feuerbach
permanece no âmbito da reflexão hegeliana, pois ao propor A Filosofia do Futuro, tal como
Hegel, concebe que a humanidade alcançou a maturidade para efetivar sua emancipação. Por
isso, diz que a filosofia de Feuerbach busca a efetivação lógica e histórica da filosofia de
Hegel: “A nova filosofia é a realização da filosofia hegeliana, e mais, de toda a filosofia
anterior”**. Nesse caso, Hegel transformou a teologia em lógica e Feuerbach transformou a
lógica em antropologia. Desse modo, Marcuse não reconhece no pensamento feuerbachiano
nenhuma autenticidade, senão a continuidade da filosofia hegeliana.
J. Chasin (1937-1998), em Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica
retoma o debate sobre o pensamento feuerbachiano, evidenciando sua posição crítica nas
Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia frente o pensamento hegeliano: “Quem não
abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana, segundo a
qual a natureza, a realidade, é posta pela idéia, só é a expressão racional da doutrina teológica,
segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é,
abstrato” (CHASIN, 1995, p. 348). Chasin explicita várias passagens das obras
feuerbachianas, ressaltando como este,
mais uma vez em termos positivos, assinala o que vem a ser em seu posicionamento o verdadeiro campo da ontologia: “O real, em sua realidade ou enquanto real, é o real enquanto objeto (Objekt) dos sentidos, é o sensível. Verdade, realidade e sensibilidade são idênticas. Só um ser (Wesen) sensível é um ser verdadeiro, um ser real. Só mediante os sentidos se dá um objeto (Gegenstand) em sentido verdadeiro – e não mediante o pensar por si mesmo. O objeto dado pelo pensar ou idêntico a ele é apenas pensamento”. Por isso, “A nova filosofia observa e considera o ser tal como é para nós, enquanto seres não só pensantes, mas também realmente existentes – por conseguinte, o ser enquanto objeto do ser – como objeto de si mesmo” (...) Contundentes na crítica antiespeculativa, bem como na viragem ontológica, as proposituras feuerbachianas são radicais quer pela “coragem de ser absolutamente negativo” em relação ao passado filosófico imediato, síntese de longo percurso idealista, quer afirmativamente, pelo “imperativo de realizar o novo”, porque nele “reside a verdadeira necessidade”, identificada esta “à necessidade da época, da humanidade”. É nessa dupla condição de radicalidade, tanto na ruptura, como na vigorosa
** - MARCUSE, H. – Razão e Revolução, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 247.
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impulsão a um universo ontológico qualitativamente novo, que as proposições feuerbachianas não podem ser ignoradas, tal como o foram – o que é decisivo por Marx” 9CHASIN, 1995, pp. 349-350).
J. Chasin em seus estudos sobre a trajetória do pensamento marxiano procurou
identifica com maior precisão as circunstâncias e o próprio processo interno de reflexão que
impulsionaram Marx a realizar uma ruptura na história da filosofia e assumir uma nova
postura na sua relação com o mundo. O pensamento que se desenvolve a partir daí não
estabelece como centro da reflexão a constituição de um novo sistema filosófico, ao contrário,
põe como princípio a reflexão e a explicação do mundo como ele é, como ressalta Marx nas
teses Sobre Feuerbach: “As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem
dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As
nossas premissas são os homens reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência”
(MARX, 1974, p. 18). Essas observações constituem, certamente, pontos que aproximam os
dois pensadores e se manifestam como referência analítica sobre o mundo em que vivemos. A
partir das inflexões apontadas por Chasin podemos perceber que o pensamento de Marx, a
partir de uma discussão travada com Feuerbach, institui um procedimento filosófico
completamente novo na história da filosofia, permeado pela objetividade em seus diversos
graus de conexão. A partir dessas referências apresentaremos a seguir, a crítica de Feuerbach
à filosofia especulativa.
2. A relação da filosofia especulativa com a religião
Em sua crítica a Hegel, Feuerbach compara a base teórica da filosofia especulativa à
religião, pois a filosofia especulativa é formulada utilizando-se dos mesmos procedimentos da
religião, por isso, torna-se também, uma forma de religião. Feuerbach não deixa de apontar as
diferenças existentes entre elas, mas esclarece que cometem os mesmos equívocos ao
justificarem a origem da matéria a partir do pensamento, e conseqüentemente discorrerem
acerca da oposição entre finito e infinito. Em verdade, querem justificar o seu pensamento
negando a origem do ser na própria matéria, procurando o seu fundamento na comprovação
do infinito.
Todavia, a teologia, ao tentar provar a existência do infinito através do finito,
termina por abrir um precedente pautado pelo reconhecimento da necessidade da
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Deduzir o finito do infinito é determinar e negar o infinito e o indeterminado; é admitir que, sem determinação, isto é, sem finidade, o infinito nada é, é pois confessar que o finito se põe como a realidade do infinito (...) O finito é a negação do infinito e, por seu turno, o infinito é a negação do finito. A filosofia do absoluto é uma contradição (FEUERBACH, 1988b, p. 24).
Feuerbach procura comprovar que a filosofia absoluta faz uma inversão, pois, é a
partir do finito que se põe o infinito, isto é, o infinito tem sua origem no finito. Contudo, a
tarefa da filosofia não é refletir sobre o infinito, mas sobre o finito -“transpor o infinito para
o finito” – não é discursar sobre o absoluto abstrato, a idéia, mas refletir o real, o existente, o
determinado.
Por isso, no confronto com a filosofia especulativa, Feuerbach põe a pergunta:
“Podes tu pensar, definir a qualidade, sem pensar numa qualidade determinada? Por
conseguinte, o primeiro não é o indeterminado, mas o determinado, pois a qualidade
determinada nada mais é do que a qualidade real; a qualidade real precede a qualidade
pensada” (FEUERBACH, 1988b, p. 24). Feuerbach aponta para a impossibilidade de a idéia
gerar a matéria, pois primeiro vem a qualidade real, depois vem a qualidade pensada. Todo o
movimento subjetivo provém do movimento objetivo. O conhecimento provém do sentido.
O infinito tem sua essência no finito. A verdadeira filosofia é aquela que consegue perceber o
universo empírico. O infinito da religião sempre foi o finito, o determinado, porém
apresentado de forma mistificada, como indeterminado. E a filosofia trilha pelo mesmo
caminho, transfere para o infinito determinações e predicados que são próprios do finito.
A dificuldade em compreender a determinação do ser leva a filosofia a ficar perdida
no emaranhado religioso, a acreditar que da idéia pode originar a natureza. Assim como as
qualidades não estão fora do objeto, os conceitos genéricos não estão separados das coisas da
qual nós o abstraímos –
O sujeito, isto é, o ser existente é sempre o indivíduo, a espécie é apenas o predicado ou a qualidade. Mas exatamente o predicado, a qualidade do indivíduo é que o pensamento puro, a abstração separa desse indivíduo, transformando-o num objeto em si mesmo, concebendo-o nessa sua abstração como a essência dos indivíduos e determinando as diferenças dos indivíduos entre si apenas como individuais, isto é, aqui casuais, indiferentes, insignificantes, de forma que, para o pensamento, para o espírito, todos os indivíduos são na verdade apenas um indivíduo, ou antes, um conceito, pois o pensamento só retira o cerne e só deixa a casca para a contemplação sensorial que nos revela os indivíduos enquanto indivíduos, isto é, em sua multiplicidade, diversidade e individualidade, de forma que o pensamento transforma o que na realidade é o sujeito, a essência, num predicado, numa qualidade, num mero modo ou maneira do conceito
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genérico e, ao contrário, transforma o que na realidade é apenas uma qualidade, um predicado, numa essência (FEUERBACH, 1989, p. 106).
Esse equívoco acontece porque o pensamento extrai a qualidade do ser e a
autonomiza, transformando-a num conceito genérico, suprimindo as diferenças individuais,
assim, o pensamento passa a girar em torno do conceito descolado do ser que o originou.
Feuerbach expõe a contraposição que normalmente ocorre entre pensamento e ser,
ou entre qualidade e ser, gerando a impressão de que o ser é simples extensão do pensamento,
por isso, apresenta a diferença entre a qualidade e o ser que tem a qualidade:
Não nego, para utilizar aqui novamente os exemplos anteriores, a sabedoria a bondade, a beleza; nego apenas que possuam essência como conceitos genéricos, como deuses ou atributos de Deuses, ou ainda como idéias platônicas, ou conceitos hegelianos que estabeleceram a si mesmos; apenas afirmo que só existem em indivíduos sábios, bons e belos, que são então, como foi dito, somente qualidades de seres individuais, que não são nenhuma essência em si mas atributos ou qualidades da individualidade, que estes conceitos gerais pressupõe na individualidade e não vice-versa (FEUERBACH, 1989, p. 108).
Assim, Feuerbach resgata a polêmica acerca da relação entre ser e pensamento
despontada na Antiguidade para marcar a posição ontológica, cujo ponto de partida está
relacionado à natureza, referência que perpassa as obras feuerbachianas, mantendo-o no
universo sensitivo e naturalista, como poderemos acompanhar no próximo item.
3. A relação entre pensamento e natureza no pensamento feuerbachiano
Para justificar suas críticas à filosofia especulativa Feuerbach apresenta seus
argumentos sobre os meios de constituição do pensamento. Assim, Feuerbach busca
comprovar que os conceitos representados em nossa mente são, antes de tudo, resultados da
apreensão que fazemos da realidade. Por isso diz que ter consciência é ter razão, mas a razão
não se faz por si só, ela se faz a partir do mundo existente, a partir da relação com a natureza:
o homem deve iniciar sua vida e seu pensamento com a natureza, que a natureza não é o efeito de um ser diverso dela mas sim, como dizem os filósofos, é a causa da mesma, que ela não é uma criação, fabricada ou tirada do nada mas sim autônoma, compreensível por si mesma, só derivável de si mesma, que o surgimento do próprio sol, se o pensarmos como surgido, sempre foi um processo natural, que nós, para compreendermos o surgimento de tais coisas, não devemos partir do homem, do artista, do artífice, do pensador que constrói o mundo baseado em suas idéias, mas sim da natureza (FEUERBACH, 1989, p. 148).
Para o filósofo, só pode existir no pensamento o que existe na natureza, o que
acontece no mundo, pois é da natureza que deriva o homem e suas idéias. Em contraposição
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ao pensamento de seu tempo, Feuerbach procurou afirmar categoricamente que a consciência
advém da natureza. É ela que constitui a base dos sentidos e a fonte da razão. A compreensão
que o homem tem do mundo é resultado da sua relação com o mundo, a partir da apreensão da
objetividade da coisa como ela é. Dessa forma, é imprescindível ao ser as suas qualidades.
Só pode existir o ser que possui qualidades, que exerce sobre nós algum efeito. O ser só pode
possuir objetividade se possuir qualidades. Portanto, Deus como um ser determinado não
existe, a não ser como representação das qualidades humanas:
Existir é para o homem o princípio, a essência fundamental da sua imaginação, a condição dos predicados (...) Tu és essência apenas como essência humana; a certeza e a realidade da tua existência estão apenas na certeza e na realidade de tuas qualidades humanas. O que é sujeito está apenas no predicado; o predicado é a verdade do sujeito; o sujeito é apenas o predicado personificado, existente. Sujeito e predicado distinguem-se apenas como existência e essência (FEUERBACH, 1988d, p. 61).
Se na ausência de predicados o ser não existe, Feuerbach argumenta que Deus só
pode ser o resultado da própria atividade do pensamento do homem para explicar a sua
existência. Somente na natureza podemos encontrar a razão da nossa existência, que por sua
vez tem origem na carência que moveu o universo. Da natureza emana toda energia necessária
ao homem, pois
Natureza é luz, é eletricidade, é magnetismo, é ar, é água, é fogo, é terra, é animal, é planta, é homem enquanto ser que age espontânea e inconscientemente – nada mais, nada místico, nada nebuloso, nada teológico compreendo na palavra natureza. Com essa palavra faço um apelo aos sentidos. Júpiter é tudo o que tu vês, disse um antigo; natureza, digo eu, é tudo o que tu vês e que não se origina das mãos e dos pensamentos humanos. Ou, se quisermos penetrar na anatomia da natureza, ela é o cerne ou a essência dos seres e das coisas cujos fenômenos, exteriorizações ou efeitos (nos quais exatamente sua essência e existência se revelam e dos quais constam) não têm seu fundamento em pensamentos, intenções e decisões mas em forças ou causas astronômicas, cósmicas, mecânicas, químicas, físicas, fisiológicas ou orgânicas (FEUERBACH, 1989, p. 81).
A natureza tem sua explicação por si mesma, não por atribuições do pensamento,
como queriam a teologia e a filosofia especulativa. Contrário disso é viver no mundo da
imaginação, realizando especulações infundadas, tentando construir a natureza a partir de um
espírito.
A natureza é o ser do qual o homem surgiu originariamente até se transformar em
homem na forma como conhecemos. Podemos explicar a existência humana pela origem dos
seus antepassados, através das gerações que se sucederam uma a uma até chegar a nós. Mas as
gerações não se confundem. Cada qual é determinada pelo seu tempo, suas características e
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psicologia relacionada somente com os objetos nos quais se manifesta a psyché do homem em
sua totalidade, portanto, somente em suas manifestações objetivas, em suas ações”
(FEUEERBACH, 1989, p. 288).
Se o conceito advém do ser, por que, então, a filosofia especulativa mantém a
mesma linha de pensamento que a teologia acerca dos conceitos, considerando-os criadores
do ser? Feuerbach levanta essa questão para compreender porque tanto a filosofia como a
teologia invertem e atribuem a um outro ser a nossa existência. A necessidade de encontrar
uma causa para a existência a partir da formulação dos conceitos levou o homem a encontrar
em Deus a essência abstraída do universo, como forma de sintetizar todas as diferenças entre
seres e objetos. Em Deus o homem pode abstrair todas as diferenças providas das diversas
coisas sensoriais existentes no mundo:
por ser apenas um conceito genérico, colocamos sempre sob esse conceito geral de imagens das coisas sensoriais, representando assim a essência de Deus ora como a essência da natureza em seu todo, ora como a da luz, a do fogo, do homem, isto é, daquele homem velho e digno, da mesma forma que em todo conceito genérico paira diante de nós a imagem dos indivíduos dos quais abstraímos esse conceito (...) A existência tal como é atribuída a Deus é a existência em geral, é o conceito genérico da existência, a existência abstraída de todas as qualidades e atributos especiais e individuais (FEUERBACH, 19889, p. 101).
Assim, Feuerbach ressalta que teólogos e filósofos atribuem uma existência
espiritual a Deus, mas a concepção da essência divina é extraída da essência sensorial. A
natureza fornece os elementos sensoriais para a formulação da filosofia e da teologia,
entretanto, permanece a recusa em ver o que é objetivo e sensível. Porém, não existe saída
para esse pensamento, a não ser o reconhecimento de que o conceito tem sua origem na
matéria:
Se então, como vimos até aqui, todas as qualidades, essências ou realidades que reunidas formam a essência de Deus são abstraídas da natureza, se então a essência, a existência, as características da natureza são o original segundo o qual o homem esboçou a imagem de Deus, ou se, indo mais fundo, Deus e mundo ou natureza só se distinguem como o conceito genérico se distingue dos indivíduos, de forma que a natureza, tal como ela é objeto para a percepção sensorial, é a própria natureza, a natureza ao ser distinguida da sensorialidade na abstração de sua imaterialidade e corporalidade é objeto para o espírito, o pensamento, é Deus; assim se esclarece por si mesmo, assim está demonstrado que a natureza não surgiu de Deus, que o ser real não surgiu do abstrato, que o ser material não surgiu do espiritual (FEUERBACH, 1989, p. 102).
Entretanto, o segredo da teologia se baseia nessa inversão, justamente pelo fato de
buscar a causa primeira da sua existência, limitado a sua própria essência. Não percebe que o
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abstrato se desenvolve a partir do concreto e que o conceito genérico se forma a partir das
espécies e indivíduos. Assim, o conceito genérico é uma abstração, ele representa o objeto,
mas não é o objeto.
Ao contrário do que é dito pela teologia e filosofia especulativa, o homem através da
história demonstra como desenvolve o seu pensamento a partir da atividade com a natureza,
através das coisas reais o homem formula conceitos gerais –
O homem abstrai da natureza, da realidade, por meio da faculdade da abstração, o que é semelhante, parecido, comum, separa-o das coisas que se assemelham e que são de igual essência e em seguida o transforma num ser autônomo, numa essência diversa das coisas. Assim, por exemplo, o homem abstrai das coisas sensoriais espaço e tempo como conceitos gerais ou formas nas quais todas as coisas se combinam por serem todas extensas e mutáveis, todas separadas uma das outras e seguidas uma das outras (FEUEERBACH, 1989, p. 103).
A partir dessa premissa, Feuerbach se coloca contrariamente às posições de Kant,
quando este afirma que os homens criaram o conceito de tempo, pois o tempo não se encontra
nas coisas existentes, mas na mente dos homens, isto é, “o tempo é a condição subjetiva da
intuição das coisas, já que não posso justapor as coisas a menos que tenha a idéia de
justaposição. ‘Se a condição particular de nossa sensibilidade for suprimida, desaparece
também o conceito de tempo, que não adere aos próprios objeto mas apenas ao sujeito que o
institui’” (GIANFALDONI & MICHELETTO, 1999, p. 388).
Para Feuerbach, ao contrário, os homens retiraram o conceito de tempo do próprio
movimento da matéria. O filósofo ressalta que essa é uma das questões mais difíceis da
filosofia. O homem abstrai espaço e tempo das coisas espaciais e temporais, das coisas que
possuem extensão e movimento, o tempo é abstraído do corpo que se move. Porém o homem
põe a atividade da abstração no início do processo. Assim, os conceitos de tempo e espaço
tornam-se os primeiros fundamentos e condições de existência das coisas.
Por isso imagina ele o universo, isto é, o cerne das coisas reais, a matéria, o conteúdo do mundo como surgido em espaço e tempo. O próprio Hegel só permite que a matéria surja não só em mas a partir de espaço e tempo. Exatamente pelo fato de o homem pressupor espaço e tempo das coisas reais e estabelecer os conceitos gerais abstraídos das coisas particulares na filosofia como entidades universais, na religião politeisticamente como deuses, monoteisticamente como qualidades de Deus, exatamente por isso fez também de espaço e tempo um deus ou identificou-os com Deus (FEUERBACH, 1989, p. 103).
O homem põe a atividade da abstração em primeiro plano, mas em verdade ela é
conseqüência. Ele só pode estabelecer conceitos, nomear, abstrair, a partir das coisas
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sensíveis. É das coisas reais, sensíveis que o homem formula conceitos gerais. É nessa direção
que o filósofo busca referências na história da filosofia para resgatar posicionamentos
ontológicos.
4. Assinalamentos ontológicos
Feuerbach chama a atenção para o fato de que existe uma tendência muito forte em
se fazer um uso arbitrário das palavras, mas também porque o idioma em seu uso corriqueiro
tende a generalizar, a universalizar as particularidades. Por isso é importante contemplar o ser.
A universalidade não existe apenas na língua, na imaginação do homem. O universal pertence
à existência, independente do pensar humano, o que não impede o homem apreendê-lo,
transformá-lo em pensamento. O homem pode realizar esse empreendimento porque “possui
o número exato de sentidos que é suficiente para que ele apreenda o mundo em sua
totalidade”. É através dos sentidos que o homem pode apreender as coisas existentes.
Entretanto, os homens de modo geral, ao tentar definir os conceitos, se perdem e acabam por
inverter as situações. Em verdade,
é inerente à natureza do pensamento, do idioma, até mesmo à própria necessidade da vida o fato de usarmos sempre abreviaturas, de substituirmos sempre a impressão real por um conceito, o objeto por um símbolo, uma palavra, de substituirmos o concreto pelo abstrato, o múltiplo pelo uno e, conseqüentemente, múltiplos e diversos indivíduos por um indivíduo ou representante dos outros (...) Mas não se deve salientar apenas essa necessidade em si e isolada, abstraída de outros fenômenos, idéias e representações que se fundam nessa mesma necessidade que, por sua vez, reconhecemos como subjetiva, isto é, como fundada na natureza específica do imaginar, pensar e falar, pelo que não lhe atribuímos uma validade e uma existência objetiva, exterior a nós (FEUERBACH, 1989, p.86).
Porque o idioma às vezes confunde? Ele é universal e não particular, por isso pode
iludir. Muitos homens ocupados com o cotidiano da vida não conseguem observar o ser real
como ele é. Tampouco conseguem perceber que a palavra é uma abstração, porém, retirada
dos objetos sensíveis:
A palavra, o nome, é um produto da imaginação (que atua naturalmente com a razão e após a impressão dos sentidos), a imagem de um objeto. No idioma, o homem imita a natureza; o som, o tom, o barulho que o objeto provoca é por isso o primeiro que o homem capta da natureza, que ele transforma em característica através da qual ele imagina o objeto, com a qual ele nomeia (FEUERBACH, 1989, p. 158).
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A palavra constitui, assim, um elemento da abstração, é a representação abstrata do
que existe na objetividade. Por isso, Feuerbach diz anteriormente que a natureza fornece para
o homem os elementos para sua reflexão, porque ela é apreendida pelos homens através dos
sentidos associados à razão, e como resultado temos a formação das palavras que os homens
aprimoram sempre mais para explicar o mundo existente.
Essa questão, entretanto, transformou-se num labirinto, tomando como refém a
filosofia. Feuerbach, em A História da Filosofia Moderna, apresenta as várias circunstâncias
em que a filosofia se debruçou diante da aparente oposição entre ser e pensamento. A Idade
Moderna, por exemplo, contraditoriamente, tornou-se subordinada à teologia (vinculando-se
aí, à lógica das palavras). Enquanto no campo experimental se desenvolviam pesquisas
extraordinárias, no campo mais complexo da abstração, na busca da causa primeira, apoiava-
se na justificativa religiosa. Tais suposições não se encontram nem nas obras de Aristóteles
nem de Platão. Eles sabiam discernir muito bem entre o que era pensamento e o que era
objetividade. Mesmo a Escolástica, subordinada aos princípios da Igreja, exerceu o papel de
quebrar a parcialidade limitada e opressora de suas leis, para demonstrar e defender um
espírito livre e científico. Fez dos objetos da fé objetos do pensamento. Ela tira o homem da
esfera da fé condicional e o leva para a esfera da dúvida, da análise e da sabedoria. A
Escolástica, procurando demonstrar as coisas da simples fé, recorre à utilização de
argumentos para fortificá-la, por isso pôde estabelecer a autoridade da consciência, sem
mesmo ter noção de sua importância. E através disso ela estabelece um outro princípio no
mundo, o princípio do espírito pensador, reflexivo, da consciência; mesmo que por meio de
perguntas absurdas, ela possuía um espírito sedento por ver a luz††. Por isso não podemos
aceitar simplesmente o domínio da idéia sobre o ser sem acompanhar o seu embate na
história. Podemos dizer que essa inversão teve início com os neoplatônicos, e nela se
fundamenta boa parte daqueles que se perdem no campo do pensamento.
Feuerbach reconstitui o processo pelo qual a filosofia especulativa caminha,
resguardando a particularidade de cada filósofo. Na modernidade, o primeiro nome a se referir
à religião foi Bacon, que sempre procurou distinguir as pesquisas realizadas na Física, na
teologia e na fé, isto é, procurou distinguir o campo da ciência, defendendo seu livre
desenvolvimento, da fé, resguardando-a de qualquer interferência. Mas foi Leibniz quem
criou o elo de transição entre a Idade Média e a Moderna e trouxe novamente a filosofia sob
†† - FEUERBACH, L. – “Die Scholastik als Wissenschaft des Mittelaiters”. In: Geschichte der Neueren Philosophie, Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann Verlag Günther Holzboog, 1959, p. 9
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autonomizada ganha aspecto divino – nela se deposita a essência e o sagrado, para se
distinguir da razão do homem. Este é o fundamento da filosofia especulativa.
Para a teologia comum Deus é um objeto e é um sujeito humano que cria coisas fora
de si, relaciona-se consigo e com outros seres existentes fora de si. Para a filosofia
especulativa, Deus aparece não humano, um ser acima dos homens supra-humano, isto é,
uma abstração. A especulação transformou a imagem de um ser ilusório e longínquo para a
representação pré-mundana presente na lógica, na geometria, álgebra etc. Surgiu uma
desavença entre o teísmo e a filosofia especulativa pelas diferenças com que ambas tentavam
falar de Deus. Entretanto, ambas falam das mesmas coisas. Antes de existirem, a
matemática, a fração, o peso e a medida já estavam no entendimento de Deus. A filosofia
especulativa incorpora o ser divino da teologia, transforma a religião em lógica. Retira de
Deus a paixão e introduz a atividade do pensamento. Tanto a teologia como a filosofia
especulativa abstraem o real, porém, na teologia a abstração é uma abstração sensível, e na
filosofia especulativa é uma filosofia (abstração – melhor: um produto do pensamento)
pensada, é uma abstração espiritual, seu significado é apenas científico ou teorético, não
prático.
Feuerbach designa a filosofia cartesiana como mais uma a contribuir para o início da
filosofia especulativa, quando propôs a abstração da sensibilidade da matéria.
Descartes e Leibniz consideravam esta abstração apenas como uma condição subjetiva para conhecer o ser divino imaterial; representavam para si a imaterialidade de Deus como uma propriedade objetiva, independente da abstração e do pensamento; colocavam-se ainda do ponto de vista do teísmo, faziam do ser imaterial apenas o objeto e não sujeito, não o princípio ativo, nem a essência real da própria filosofia (FEUERBACH, 1988c, p. 45)
Deus era considerado apenas como um primeiro motor, um ser externo e abstrato ao
homem, mas que em nada interferia no mundo objetivo. Leibniz e Descartes são idealistas
apenas quando pensam a causa primeira da matéria, mas são integralmente materialistas
quando pensam no desenvolvimento da matéria.
Leibniz também considera que o homem também possua um pouco de idealismo,
pois possui entendimento, além das outras faculdades, como a sensibilidade e a própria
imaginação. O entendimento, para Leibniz, “é um ser imaterial, puro, porque pensante; só
que o entendimento do homem não é perfeitamente puro, não é puro quanto à intensidade e
infinidade como o entendimento ou o ser divino” (FEUEERBACH, 1988c, p. 46); quando
Leibniz afirma que o entendimento é um ser imaterial puro, lembra um pouco a afirmação de
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uma vida subordinada na realidade, por isso “só te libertas realmente quando para ti o
representas”, quando o homem transfere o seu desejo de liberdade para a existência de Deus.
“A propriedade que transferes para Deus é uma propriedade do teu pensamento”. A
propriedade do homem é agir. Mas tanto em Fichte como em Hegel o pensamento aparece
ausente de pressuposto, puro e independente em si mesmo. Hegel, entretanto, vai mais longe.
Transforma o ser divino da antiga teologia em essência atual, ativa e pensante do homem.
Por estar vinculada à teologia, a filosofia especulativa é simultaneamente afirmação
e negação de Deus. É teísmo e ateísmo: enquanto representa Deus como um ser autônomo
distinto do ser e da natureza, se posiciona-se como teísta, quando nega Deus é panteísmo. “O
que separa o teísmo do panteísmo é apenas a imaginação, a representação de Deus como ser
pessoal. Todas as determinações de Deus (...) são determinações da realidade, ou da natureza,
ou do homem, ou dos dois conjuntamente” (FEUERBACH, 1988c, p. 51). Mas o panteísmo
não distingue Deus da natureza, nem dos homens. Deus só se distingue do mundo pela sua
personalidade, nas suas determinações é idêntico ao mundo.
No teísmo existe uma contradição entre aparência e essência, entre representação e
verdade. No panteísmo existe a unidade entre ambos. Assim, o panteísmo é o teísmo
conseqüente. Para o teísmo, Deus é o criador do mundo porque assim o desejou. Mas não
pensou o entendimento, as razões que Deus teve para a criar o mundo e “sem entendimento
não há objeto algum”. Também é dito que todas as coisas que Deus criou já estavam em seu
entendimento, como seres inteligíveis. Mas como pode se fazer exterior o entendimento de
Deus se as coisas estão no seu entendimento?
E se são conseqüências do seu entendimento, porque não hão de ser conseqüências da sua essência? E se, em Deus, a sua essência é imediatamente idêntica com a sua realidade efetiva, se a existência de Deus não se pode separar do conceito de Deus, como haveria então de separar-se o conceito da coisa e a coisa real no conceito que Deus tem das coisas?(FEUERBACH, 1988c, p. 52).
Assim, Feuerbach apresenta a diferença entre o entendimento de Deus e a sua
exteriorização. Se não é possível exteriorizar o seu entendimento, também não é possível
exteriorizar a sua essência. Se Deus é imaterial e está no mundo existente, a matéria é nada,
por conseguinte, é o mesmo que querer justificar o nada. Mas a matéria existe, então fica a
questão: como Deus criou a matéria? “As coisas materiais só podem deduzir-se de Deus se o
próprio Deus se determinar como um ser materialista. Só assim é que Deus, de uma causa
puramente representada e imaginada, se transforma na causa efetiva do mundo”
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No pensamento de Kant, os homens podem através dos sentidos abstrair o
entendimento de um objeto, mas não esgotar a sua essência. O entendimento pode apreender
os fenômenos e reconhecer sua existência (a coisa em si), que está por trás da representação
dos fenômenos. Mas “os objetos dos sentidos, da experiência, são para o entendimento
simples fenômeno e não verdade alguma, portanto não satisfazem o entendimento, isto é, não
correspondem à sua essência” (FEUERBACH, 1988c, p. 65) – dessa forma, o entendimento
está totalmente desvinculado dos sentidos. O que parece ser não é, então, a coisa sensível não
é tomada como fenômeno. Para Feuerbach, a filosofia kantiana é a contradição de sujeito e
objeto, de essência e existência, de pensamento e ser. Há uma separação entre essência e
existência: “A essência incide aqui no entendimento, a existência nos sentidos”
(FEUERBACH, 1988c, p. 65). Porém, a existência sem a essência é um simples fenômeno,
assim como a essência sem a existência é um simples pensamento – os noumena. Existem só
no pensamento, falta-lhes a existência, a objetividade. São coisas em si e não reais. Portanto,
não podem ser conhecidas em suas determinações.
O pensamento de Kant é contraditório porque tenta separar a verdade da realidade.
Para superar a contradição entre a verdade e a realidade, Kant defende uma filosofia da
identidade, na qual a coisa pensada é a coisa real; “onde a essência e a constituição do objeto
do entendimento corresponde à essência e à constituição do entendimento ou do sujeito”
(FEUERBACH, 1988c, p. 65). O sujeito já não se guia mais pela matéria que existe fora dele
e contradiz a sua essência, o sujeito é livre de qualquer limite, não é mais finito, “já não é o
eu, a que se contrapõe o objeto – é o ser absoluto, cuja expressão teológica ou popular é a
palavra Deus” (FEUERBACH, 1988c, p. 65). Feuerbach, mais uma vez, consegue alcançar o
ponto nevrálgico da filosofia especulativa e identifica seu fundo teológico, assim como no
idealismo subjetivo. E o que se revela é o pensamento desvinculado da matéria, que se
autonomiza, realizando assim, uma especulação, pois dá ao pensamento livre curso para
imaginar o que bem entender sobre o mundo existente.
Por isso, Feuerbach também identifica na filosofia especulativa uma forma de
opressão, pois, como a religião,
desapropria e aliena o homem da sua própria essência, da sua própria atividade! Daí a violência, a tortura, que ela inflige ao nosso espírito. O que é nosso devemos pensá-lo como não nosso, devemos abstrair da determinidade em que algo é o que é, devemos pensá-lo sem sentido, devemos tomá-lo no não sentido do absoluto. O não-sentido é o ser supremo da teologia, tanto da comum como da especulativa (FEUERBACH,
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recorrer a um querer. Sua grandeza consiste em trazer a baila a existência do homem sensível,
em contraposição à filosofia especulativa, entretanto, não conseguiu apreender também o
mundo sensível como resultado da construção dos homens em sua interação social. Por isso,
em nossas análises, acabamos por concordar com os apontamentos realizados por J. Chasin,
ao ressaltar as relevantes referências que Feuerbach desenvolveu acerca da ontologia que de
certo modo contribuíram para que Marx realizasse uma virada em seu pensamento, rompendo
definitivamente com a filosofia da autoconsciência e e enveredasse radicalmente para o
desenvolvimento de uma produção ontológica.
Referências Bibliográficas:
CHASIN, J. “Marx – estatuto ontológico e resolução metodológica”. In: TEIXEIRA, Francisco José Soares. Marx – Uma Leitura Crítico-comentada de o capital. São Paulo: Editora Ensaio, 1995.
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MARCUSE, H. – Razão e Revolução, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MARX, K. – “Teses sobre Feuerbach”. In: Textos Filosóficos, Portugal, Brasil: Editorial Presença, Martins Fontes, 1974.