A CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA: ACORDO GLOBAL RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LA CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE: UN ACCORD GLOBAL VERS LE DÉVELOPPEMENT DURABLE Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega ∗ Héctor Leandro Arroyo Pérez ∗∗ RESUMO A espécie humana é a responsável pelo processo extinção que se vive atualmente. Segundo Hans Jonas, a manutenção da vida no planeta está sob o encargo da raça humana, que com a desenvolução da técnica adquiriu a capacidade de descaracterizá-la irreversivelmente. Essa responsabilidade engendrou a idéia do desenvolvimento sustentável. Este é um novo paradigma na atividade produtiva, inserindo a variável ambiental no desenvolvimento. Gérard Monédiaire explica que o desenvolvimento sustentável está dividido em quatro pilares básicos: eficácia econômica, proteção ao meio ambiente, eqüidade social e respeito às culturas. No campo da Biodiversidade a Convenção sobre a Diversidade Biológica é instrumento chave para o desenvolvimento sustentável, na medida em que traz como objetivos principais a conservação, uso sustentável e repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos da exploração dos elementos da biodiversidade. Dado o exposto, este trabalho demonstra como a Convenção sobre a Diversidade Biológica, através dos seus três objetivos principais surge no cenário internacional como um acordo global visando à concretização do desenvolvimento sustentável. PALAVRAS-CHAVE: CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA - DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL ∗ Dra. Em direito e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) ∗∗ Graduando em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG) 1
21
Embed
A CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA: ACORDO …publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/manaus/direit… · A degradação do meio ambiente trouxe para o homem
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
A CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA: ACORDO GLOBAL
RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
LA CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE: UN ACCORD GLOBAL
VERS LE DÉVELOPPEMENT DURABLE
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega∗
Héctor Leandro Arroyo Pérez∗∗
RESUMO
A espécie humana é a responsável pelo processo extinção que se vive atualmente.
Segundo Hans Jonas, a manutenção da vida no planeta está sob o encargo da raça
humana, que com a desenvolução da técnica adquiriu a capacidade de descaracterizá-la
irreversivelmente. Essa responsabilidade engendrou a idéia do desenvolvimento
sustentável. Este é um novo paradigma na atividade produtiva, inserindo a variável
ambiental no desenvolvimento. Gérard Monédiaire explica que o desenvolvimento
sustentável está dividido em quatro pilares básicos: eficácia econômica, proteção ao
meio ambiente, eqüidade social e respeito às culturas. No campo da Biodiversidade a
Convenção sobre a Diversidade Biológica é instrumento chave para o desenvolvimento
sustentável, na medida em que traz como objetivos principais a conservação, uso
sustentável e repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos da exploração dos
elementos da biodiversidade. Dado o exposto, este trabalho demonstra como a
Convenção sobre a Diversidade Biológica, através dos seus três objetivos principais
surge no cenário internacional como um acordo global visando à concretização do
desenvolvimento sustentável.
PALAVRAS-CHAVE: CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA -
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - DIREITO INTERNACIONAL
AMBIENTAL
∗ Dra. Em direito e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) ∗∗ Graduando em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
1
RÉSUMÉ
L'espèce humaine est la responsable par le processus extinction qui se vit actuellement.
Selon Hans Jonas, la manutention de la vie dans la planète est sous la charge de la race
humaine, qui avec l’évolution de la technique a acquis la capacité de la faire perdre le
caractère irréversiblement. Cette responsabilité a produit l'idée du développement
durable. Celui-ci est un nouveau paradigme dans l'activité productive, insérant la
variable environnementale dans le développement. Gérard Monédiaire explique que le
développement durableble est divisé dans quatre piliers basiques: efficacité
économique, protection à l'environnement, équité sociale et respect aux cultures. Dans
le champ de la Biodiversité la Convention sur la Diversité Biologique est un instrument
fondamental pour le développement durable, dans la mesure où apporte comme des
objectifs principaux la conservation, l'utilisation soutenable et la répartition juste et
équitable des bénéfices arrivés de l'exploration des éléments de la biodiversité. Donné
cet exposé, ce travail démontre comme la Convention sur la Diversité Biologique, à
travers de ses trois objectifs principaux, apparaît dans le scénario international comme
un accord global en visant à la concrétisation du développement durable.
MOTS-CLÉ: CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE -
DÉVELOPPEMENT DURABLE - DROIT INTERNATIONAL DE
L’ENVIRONNEMENT
INTRODUÇÃO
No presente trabalho tratar-se-á sobre a biodiversidade e seus valores, das
implicações da atividade econômica na sua manutenção e de como o desenvolvimento
sustentável propõe a conciliação entre conservação dos recursos, desenvolvimento
social e econômico e respeito à diversidade cultural e de como a Convenção sobre a
Diversidade Biológica tem papel crucial na concretização do desenvolvimento
sustentável no que tange à biodiversidade.
2
1 CONCEITO E VALORES DA BIODIVERSIDADE
A extinção de espécies é algo corriqueiro na história, onde uma espécie
dominante dá espaço a uma outra, operando-se a evolução das formas de vida
existentes. Segundo o Earth Policy Institute, o planeta já passou por cinco grandes
processos de extinção, todos eles devidos a causas naturais, como erupções vulcânicas e
mudanças climáticas. A última onda de extinção, a mais famosa, foi há cerca de 65
milhões de anos, quando 75% das espécies foram eliminadas, inclusive os dinossauros.1
No entanto, segundo os cientistas2, vive-se um novo processo, só que, ao contrário dos
anteriores, este não é causado por fatores naturais, e sim pelas atividades desenvolvidas
pela espécie humana.
Em geral, a intervenção do homem na natureza se calca na crença de que todas
as suas conseqüências são limitadas, incapaz de provocar danos ao conjunto da
natureza. Hans Jonas, ao explicar o pensamento antes da “consciência ecológica”,
afirma que “as liberdades que ele (o homem) toma com os habitantes da terra, do mar, e
do ar deixam, entretanto, imutável a natureza global desses ‘reinos’, e não diminuem
suas forças criadoras.” (tradução livre). 3
A degradação dos recursos naturais no decorrer da história teve conseqüências
impressionantes. Estima-se, considerando-se que existem cerca de 10 milhões de
espécies no planeta4, que cerca de 5% são extintas a cada década, o que perfaz cerca de
50 mil espécies extintas por ano! O impacto é ainda maior de acordo com as
características da área em questão. Estudos mostram que quando uma área sofre
diminuição de cerca de 10% do seu tamanho o “número de espécies eventualmente se
reduz à metade, e algumas espécies desaparecem imediatamente, enquanto outras
perduram mais um tempo sem expectativa de continuidade no futuro, e por esta razão
são chamadas de mortas-vivas”.5
1 LARSEN, Janet. The sixth Great Extinction: a Status Report. In http:// www.earth-policy/Updates35_printable.htm . Acessado em 31 de julho de 2006. 2 Cf. LEAKEY, Richard e LEWIN, Roger. La sixième extinction – Évolution et Catastrophes. Paris : Flammarion, 1999. 3 JONAS, Hans. Principe Responsabilité. Paris: Champs Flammarion, 2003. p. 24. 4 As estimativas quanto ao número de espécies existentes variam de 10 milhões até 100 milhões, sendo mais consensual a primeira. 5ALENCAR, Gisela Santos de. Mudança ambiental global e a formação do regime para proteção da biodiversidade. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. p. 105.
3
De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN)6,
são seis as principais causas de extinção das espécies7: a) Fragmentação e deterioração
de habitats; b) Introdução de espécies exóticas; c) Super exploração de espécies de
plantas e animais; d) Poluição do solo, água e atmosfera; d) Mudança climática global;
e) Agricultura e florestamento Industrial.
O artigo 2º da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) define
biodiversidade como: a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas (art. 2º da CDB).
Diversidade em nível genético significa diversidade de genes dentro de uma
espécie, ou seja, pode ser caracterizada com a existência de várias populações dentro de
uma mesma espécie ou pela variação genética existente dentro de uma mesma
população. Diversidade de espécies é a quantidade de espécies em uma área. A
diversidade de ecossistemas relaciona a diversidade de espécies com os seus processos e
interações e a troca da composição de espécies de uma região com a outra. Segundo
Sarla a diversidade dos ecossistemas é avaliada em termos de “distribuição mundial (...)
ou continental (...) grau de participação do ambiente em parques ou mosaicos
biológicos, ou seja, mede a continuidade de habitats diferentes no espaço base de tipos
de ecossistemas definidos segundo suas características gerais”(tradução livre).8
Dentro do conceito de biodiversidade também está inserida a diversidade
cultural humana, a sociobiodiversidade. Ela compreende, o patrimônio cultural de povos
autóctones e de comunidades tradicionais9, incluídos seus conhecimentos, inovações
quanto ao manejo da biodiversidade. A inclusão desses elementos culturais se deve ao
reconhecimento da relação de dependência existente entre os recursos biológicos e o
modo de vida tradicional de comunidades locais e indígenas. Segundo Santilli,
“diversos estudos atestam serem os povos indígenas e as populações tradicionais
6 A UICN (IUCN – International Union for Nature Conservation) é uma associação internacional de natureza híbrida, pois está composta de tanto de Estados como de ONGs e até mesmo de entidades privadas, sendo a maior organização internacional para a proteção do meio natural existente, da qual o Brasil é membro. 7 IUCN – UNEP – WRI. Global Biodiversity Strategy: Guidelines for action to safe study end use Earth’s biotic wealth Sustainably and Equitably. Gland, Switzerland, p. 7. 8 SARLA, Rosalía Ibarra. La explotación petrolera mexicana. Ciudad de México: UNAM, 2003. p. 14.
4
responsáveis, em grande parte, pela diversidade biológica de nossos ecossistemas,
produto da integração e do manejo da natureza em moldes tradicionais”.10
É a biodiversidade que assegura o equilíbrio ambiental do planeta, quanto maior
for, melhor a capacidade de se reagir às alterações ambientais decorrentes da poluição
ou o aumento demográfico. Segundo Albagli, a biodiversidade oferece condições para
que “a humanidade adapte-se às mudanças operadas em seus meios físico e social e
disponha de recursos que atendam a suas novas demandas e necessidades”.11 Além
disso, a biodiversidade tem valor econômico. Para se ter uma idéia, estima-se que o
mercado mundial da indústria química farmacêutica de derivados da biodiversidade
movimenta cerca de US$ 300 bilhões por ano.12 A possibilidade de valoração
econômica dos recursos da natureza e a sua degradação fazem surgir a necessidade de
sua regulação e a emergência de um novo paradigma econômico, o desenvolvimento
sustentável.
2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A degradação do meio ambiente trouxe para o homem a responsabilidade de
viabilizar a continuidade da vida na Terra. As conseqüências das suas ações podem se
fazer sentir durante gerações, pois alteram as condições da existência da própria vida.
Isso foi constatado no ponto 1 do preâmbulo da Declaração de Estocolmo, que diz que
“graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de
transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o
cerca”.13
Nasce, assim, a idéia de uma eqüidade intergeracional, que se manifesta pela
preocupação com as necessidades das gerações futuras. Esta é pautada na percepção de
que os recursos naturais são essenciais à vida na Terra e, ao mesmo tempo, esgotáveis,
9 Entendidas como comunidades rurais não indígenas que estabeleceram modos de vida próprios, como os seringueiros e castanheiros da Amazônia, quilombolas, babaçueiros do Maranhão etc. 10 SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. In Revista da Fundação da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, Ano 10, vol. 20, jul/dez 2002. p. 53. 11 ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, 1998. p. 60. 12 CERSKI, Paula, AZEVEDO, Cristina e MOREIRA, Teresa. A convenção sobre a diversidade biológica no Brasil. In Revista de Direito Ambiental. Ano 10, n. 37. jan/mar 2005. p. 116.
5
cabendo às gerações presentes cuidar para que estes permaneçam em condições de uso,
possibilitando a existência de vida humana14.
Os marcos do nascimento e desenvolução da idéia de desenvolvimento
sustentável foram a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
reunida em Estocolmo em 1972, o relatório Bruntland (Nosso Futuro Comum) de 1987,
a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992 e,
por fim, a Conferência de Joanesburgo, onde se discutiu uma via comum para sua
implementação.
O Desenvolvimento sustentável está ligado a duas preocupações, o esgotamento
dos recursos naturais e o compromisso com a as necessidades das gerações futuras,
deixando-lhes meios suficientes. O relatório Brundtland resume tal pensamento da
seguinte forma: “o desenvolvimento sustentável pretende satisfazer as necessidades do
presente sem comprometer os recursos equivalentes de que farão uso no futuro outras
gerações”.15 Segundo Gérard Monédiaire, o desenvolvimento sustentável foi “dividido
em ‘pilares’. Inicialmente em número de três (eficácia econômica, proteção ao meio
ambiente, eqüidade social), conta-se com quatro deles a partir de agora, em
conseqüência da recepção cada vez mais corrente do ‘respeito às culturas’”.16
O princípio da eficácia econômica privilegia o aspecto financeiro do
desenvolvimento. Segundo Nusdeo, este é um processo “contínuo pelo qual a
disponibilidade de bens e serviços cresce em proporção superior ao do incremento
demográfico de uma dada sociedade”.17 Implica o desenvolvimento da acumulação de
capital, da tecnologia e a criação de um mercado consumidor. Para isso, envolve
medidas nacionais internacionais. Agenda 21, no que diz respeito à postura dos países
em desenvolvimento, sugere a criação de um ambiente interno favorável a um equilíbrio
ótimo entre produção para o mercado interno e a produção para o mercado de
13 ONU, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Declaração de Estocolmo. In http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/estoc72.htm . Acessado em 7 de agosto de 2006. 14 Cf. princípio 3 da Declaração do Rio de Janeiro. 15 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46. 16 MONEDIAIRE. Gerard. A hipótese de um direito do desenvolvimento sustentável e as mutações jurídicas contemporâneas. In Antídoto. Goiânia, ano 0, número 1, 2006, p. 72. 17 NUSDEO, Fábio, Curso de Economia: introdução ao direito econômico. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 349.
6
exportação.18 No âmbito internacional, exige-se uma “justa distribuição de riquezas
entre os países”.19 Isso porque “a questão da conservação da natureza integra uma
perspectiva mundial, não só pelos efeitos da destruição ambiental que desconhece
fronteiras, mas sobretudo pela sua vinculação à dinâmica do mercado internacional.” 20
O segundo pilar expressa a conciliação da atividade econômica com o meio
ambiente. As atividades econômicas “modificam o meio ambiente, e este ambiente
modificado representa uma restrição externa para o desenvolvimento econômico e
social”21, exigindo um ajuste de modo que a economia se dê dentro de parâmetros de
respeito à natureza. Um caminho a ser tomado é a adoção de alguns princípios que
contribuem para a diminuição do impacto ambiental, como o do “poluidor-pagador”,
segundo o qual “arca o causador da poluição com os custos necessários à diminuição,
eliminação ou neutralização deste dano”22. Princípio da precaução, que veda a
intervenção ao meio ambiente até que se tenha certeza dos efeitos destas sob o mesmo.
Segundo Derani tal postulado implica na “modificação do modo de desenvolvimento da
atividade econômica” 23 pois afasta no tempo e no espaço o perigo e garante a segurança
das gerações futuras.
O desenvolvimento sustentável também é calcado na idéia de eqüidade social e
bem-estar, seu terceiro pilar. O uso sustentável dos recursos naturais auxilia a realização
da equidade social. A título de exemplo, vê-se a poluição dos recursos hídricos devido à
falta de saneamento básico e a degradação dos recursos naturais quando do surgimento
de uma oportunidade relativamente rentável, como venda de madeira. Nesse sentido
Priya Shyamsundar diz que “sob várias circunstâncias, pode ser ótimo para pessoas
pobres minar recursos naturais, como é o caso da degradação do solo em vários países
ao redor do mundo” (tradução livre).24 Segundo Derani, “exige-se uma adequação a
finalidades mais abrangentes, abraçadas pela expressão qualidade de vida e bem-estar,
18 Ver: Agenda 21, capítulo 2. 19 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2º ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 131. 20 Idem, pp. 125 e 126. 21 Idem, p. 142. 22 Idem, p. 162. 23 Idem, p. 170. 24SHYAMSUNDAR, Priya. Poverty – Environment indicators. Washington, The World Bank Environment Departement. 2002, p. 23.
7
produzindo uma mudança social de valores assentada num outro consenso ético sobre os
objetivos da economia”.25
O quarto pilar, o respeito às culturas, foi reconhecido pelo princípio 22 da
Declaração do Rio que diz que “os povos indígenas e suas comunidades, bem como
outras comunidades locais, têm um papel vital no gerenciamento ambiental e no
desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e de suas práticas tradicionais.” O
processo de uniformização das culturas, com o conseqüente desaparecimento de
conhecimentos sobre propriedades medicinais e nutricionais dos componentes da
natureza causa preocupação. Nesse sentido, Luiz Magno compara a morte de um
curandeiro com o incêndio de toda uma biblioteca, lamentando mais ainda o primeiro
incidente, visto que “os conhecimentos que o curandeiro possuía, diferentemente de
uma biblioteca, encontrar-se-ão perdidos, para sempre”.26 Destarte, desenvolvimento
que não respeite o espaço das comunidades indígenas e sociedades tradicionais não
pode ser considerado como sustentável.
3 ASPECTOS GERAIS DA CDB
A CDB é fruto da confluência dos esforços do PNUMA27 e da IUCN. Seu
projeto original visava uma “umbrella convention”28 para racionalizar as atividades
nesse campo. Tal projeto baseava-se em três pilares: a) obrigação dos Estados de
conservar a diversidade biológica; b) princípio da liberdade de acesso aos recursos
genéticos selvagens e; c) distribuição eqüitativa entre as partes dos custos da
conservação. Entretanto, durante os trabalhos decidiu-se que o tratado global para a
conservação da biodiversidade deveria ser feito na forma de uma framework convention,
ou “convenção-quadro”, que inovaria na regulação do tema.
25DERANI, op. cit., p. 147. 26BASTOS JÚNIOR, Luiz Magno Pinto. A Convenção sobre Diversidade Biológica e os instrumentos de controle das atividades ilegais de bioprospecção In. Revista de Direito Ambiental. n. 23. julho-setembro de 2001, p. 208. 27 Programa das Nações Unidas para o meio ambiente – PNUMA, conhecida em inglês como United Nations environment programme – UNEP. Criado em 1972, em Estocolmo, quando da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. 28 Convenção cujo objetivo é consolidar e organizar normas de outras convenções já existentes, não instituindo nada novo.
8
Ao se analisar a origem da CDB, um dos aspectos que mais chamam a atenção é
a transformação do caráter do documento produzido. No início, esperava-se um
documento conservacionista abrangente, encarando a biodiversidade como patrimônio
comum da humanidade, concepção que legitimava o livre acesso ao patrimônio
ambiental dos países. No entanto, em virtude da estratégia dos países ricos em
biodiversidade, sendo todos, na grande maioria, países subdesenvolvidos, foram
inseridos pontos que se relacionam com o desenvolvimento, como o custo das medidas
conservatórias, acesso regulamentado ao patrimônio natural dos países, transferência de
tecnologia e partilha dos benefícios advindos do uso comercial dos recursos naturais.
Graças a estas transformações “a Convenção de Biodiversidade, que nascera uma
convenção conservacionista global (...), a partir de 1991, fo(i) transformada em um
acordo global sobre desenvolvimento sustentável”.29
Convenção-quadro é uma das inovações jurídicas trazida pelo direito ambiental
internacional. Ela tem como pontos principais o fato de anunciar dispositivos de lege
ferenda e demais princípios que funcionam mais como diretivas e menos como
obrigações jurídicas, além de estabelecer um quadro institucional produtor de novas
regras. Alexandre Kiss a define como
um instrumento convencional que enuncia os princípios que devem servir de fundamento à cooperação entre os Estados partes (do tratado) em um domínio específico, deixando-lhes o cuidado de definir, por acordos separados, as modalidades e os detalhes da cooperação, e prevenindo, se for o caso, uma ou várias instituições adequadas para este efeito(...) Trata-se, portanto, de conjuntos, ou melhor, de sistemas convencionais, ao mesmo tempo únicos e múltiplos. (tradução livre).30
Em outras palavras, constitui um acordo que enuncia princípios fundamentais
entre os Estados. A partir daí, por meio de acordos posteriores com arrimo na
convenção, estabelecem-se outras obrigações, dando maior concretude ao pacto inicial.
Sua função é nortear a atividade legislativa interna das partes, os acordos posteriores
realizados dentro de sua dinâmica. Esse tipo de convenção facilita a inserção no direito
internacional de novos princípios ambientais que, com o tempo, podem se tornar
princípios gerais do direito internacional, com vinculação jurídica.
29 ALENCAR, op. cit., p. 121. 30 KISS, Alexandre. Les traités-cadres: une technique juridique caractéristique du droit international de l’environement. In Annuaire Français de droit international XXXIX. Paris : CNRS, 1993, p. 793.
9
4 CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS
A CDB possui três objetivos principais, definidos no Artigo 1º, quais sejam: a
conservação da biodiversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e
a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos
genéticos, mediante acesso adequado aos recursos e a transferência de tecnologias
pertinentes. Destes objetivos, trabalhar-se-á de forma mais direta o terceiro, que
transcende a questão da conservação e se relaciona mais com a temática do
desenvolvimento.
4.1 PRINCÍPIOS GERAIS
O acesso aos recursos naturais dos países membros da CDB devem respeitar três
princípios básicos: soberania dos países sobre seus recursos naturais; repartição justa e
eqüitativa dos benefícios auferidos com o empreendimento e; a participação das
comunidades tradicionais e autóctones.
4.1.1 SOBERANIA DOS PAÍSES SOBRE SEUS RECURSOS BIOLÓGICOS
Antes da CDB o aproveitamento dos recursos biológicos era feito sem que o
Estado de origem recebesse contrapartida. O patrimônio biológico era considerado
patrimônio comum da humanidade, vigorando o livre-acesso. O conceito de herança
comum foi rechaçado, prevalecendo a soberania sobre seus recursos naturais. Destarte,
o que se tornou comum apenas a preocupação quanto à sua preservação e uso
sustentável. É o que diz o terceiro parágrafo do preâmbulo da CDB: “a conservação da
diversidade biológica é uma preocupação comum à humanidade”. O parágrafo quarto
acrescenta “que os estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos
biológicos”, e o artigo 3º que “os Estados (...) têm o direito soberano de explorar seus
próprios recursos” (grifo meu).
Neste ensejo, o artigo 15.1 diz que “em reconhecimento dos direitos soberanos
dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a
recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional”.
Logo, cabe aos governos regular o acesso à biodiversidade.31 Entretanto, isso não
31 Cumpre-se com o princípio 17 da declaração de Estocolmo: “Deve-se confiar às instituições nacionais competentes a tarefa de planejar, administrar ou controlar a utilização dos recursos ambientais dos
10
significa que o este possa dificultá-lo arbitrariamente, afinal, um dos objetivos da
convenção é justamente o acesso adequado aos recursos genéticos. O art. 15.2 diz que
os Estados devem procurar criar condições para que o mesmo ocorra, não criando
restrições aos objetivos da CDB. Acrescenta ainda que o processo deve ser
ambientalmente saudável. Desta feita, uma vedação total dos recursos naturais é
incompatível com a convenção assim como um acesso que não preserve ou utilize de
maneira não sustentável os recursos da diversidade biológica.
O acesso pode se dar de duas maneiras, in situ ou ex situ, dependendo da
situação do recurso. O art. 2º da CDB estabelece que condições in situ são “condições
em que recursos genéticos existem em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de
espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas
propriedades características”. O acesso ex situ ocorre quando o material genético está
fora do seu meio natural. Normalmente é feito através de bancos genéticos e coleções,
que aglutinam uma variedade de material seja para o fim de pesquisa, conservação e até
mesmo para exploração comercial. Tal forma de acesso é secundária na convenção,
primeiro porque esta não retroage aos recursos extraídos antes de sua vigência (art.
15.3), segundo porque as novas descobertas de elementos úteis provavelmente serão
extraídos diretamente do país de origem, e não de bancos e coleções. Os recursos que
foram retirados sob a égide da CDB e são conservados ex situ, têm seu regime definido
nos termos estabelecidos na sua retirada.
4.1.2 REPARTIÇÃO JUSTA E EQÜITATIVA DE BENEFÍCIOS
Outro princípio inovador é a repartição justa e eqüitativa dos benefícios
advindos do uso dos recursos genéticos acessados e a transferência de tecnologia. O art.
15.7 diz que quando houver o acesso as partes devem “compartilhar de forma justa e
eqüitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os
benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte
Contratante provedora desses recursos”.
Os benefícios podem monetários e não monetários, sendo a escolha feita no
momento do acesso e de comum acordo. No entanto, vale lembrar e existência do Guia
Estados, com o fim de melhorar a qualidade do meio ambiente”; e com o princípio 11 da declaração do
11
de Boas Condutas de Bonn, instrumento internacional que atua no sentido de
sugestionar etapas do processo de acesso e formas de benefícios. O guia de traz um rol,
com caráter não exaustivo, com cerca de 17 formas de benefícios não monetários, dos
quais destaca-se a participação nos resultados da investigação; a colaboração e a
cooperação em programas de pesquisa científica. A maioria dos benefícios não
monetários são benefícios de processo32, que independem do resultado final do projeto,
seja ele científico ou comercial. Eles são definidos de acordo com o papel que os atores
locais desempenham em cada etapa e deveriam ser priorizados por “ser muito difícil
levar em consideração o risco e a incerteza que acompanham a previsão da
comercialização futura, na fase da coleta dos recursos genéticos.”33
Dentre estes, destaca-se o acesso e a transferência de tecnologia, prevista
expressamente no artigo 16 da CDB. Estão referidos no seu texto dois tipos de
tecnologias a serem transferidas, as que são pertinentes à conservação e utilização
sustentável da biodiversidade e as que utilizam os recursos genéticos acessados. Caso
incidência de propriedade intelectual, esta deve ser respeitada. Através desse benefício
os países do sul anseiam acesso às tecnologias geradas no norte, enquanto estes,
pressionados pelo setor privado, resistem. Os Estados Unidos, em 1993, chegaram a
condicionar sua adesão à CDB a uma interpretação do artigo 16, no sentido que “a
expressão ‘termos justos e mais favoráveis’ (do artigo 16.2) significa termos
determinados por um mercado livre, sem restrições comerciais ou coerção
governamental” (tradução livre).34
Os benefícios monetários são previstos em menor número na pauta de Bonn, em
torno de 10 tipos, dos quais destacam-se: pagamentos de entrada, pagamentos por
espécime coletado e co-propriedade dos direitos de propriedade intelectuais pertinentes.
Rio: “Os Estados adotarão legislação ambiental eficaz”. 32 Os benefícios auferidos durante o procedimento de acesso e independentes com o resultado final deste, não importando se monetários ou não monetários, são chamados “benefícios de processo”, sendo geralmente estipulados aos atores locais conforme sua contribuição com o projeto implementado. 33 HAYASHI, Kichiro. Esfera de Ação de Elementos de Repartição de Benefícios – Decisões em Casos de Acesso e Repartição de Benefícios e Instrumentos Legais Nacionais e Internacionais. In Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Org. VARELLA, Marcelo Dias. Belo Horizonte:Del Rey, 2004. p. 209. 34 US Interpretative Statement on CBD. In http://www.bioline.org.br/request?nl93022 acesso no dia 2 de setembro de 2006
12
A definição de quais serão auferidos depende do acordo entre as partes envolvidas,
assim como das exigências mínimas da legislação nacional pertinente ao assunto.
4.1.3 O PAPEL DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS E AUTÓCTONES
A CDB dispõe sobre o papel e os direitos das comunidades locais e indígenas na
questão do acesso apenas no art. 8(j), o qual diz que as partes da convenção deverão, em
conformidade com a sua legislação nacional e na medida do possível, fazer com que as
comunidades locais e indígenas participem do processo decisório e o aprovem, fruindo
também da repartição de benefícios. As populações indígenas e comunidades
tradicionais são profundamente conectadas aos recursos biológicos. Para que se tenha
uma idéia dessa, cerca de 40% das áreas de extrema importância biológica e 36% das de
altíssima importância biológica na Amazônia estão inseridas em terras indígenas.35
Além disso, os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade possuem
valor real ou potencial quando utilizados em conjunto com o patrimônio genético.
Como exemplo, Barbosa36 explica que quando a coleta de plantas para a produção de
novos remédios se dá ao acaso, “bioprospecção aleatória”, esta apresenta um percentual
de êxito de apenas 1/10.000, enquanto que a bioprospecção associada aos
conhecimentos tradicionais sobre propriedades medicinais de plantas e ervas,
“etnobioprospecção”, apresenta a possibilidade de êxito por amostra de até 50% ou
75%.
No campo do acesso, as comunidades indígenas têm aproveitado o espaço
concedido pelo artigo 8(j) para lutarem por seus interesses. Segundo Rojas, os principais
direitos reivindicados pelos povos indígenas nesse domínio são: “direitos de
autodeterminação; direito a exercer o direito consuetudinário de acordo com suas
práticas sociais e culturais; direito a ser representado legal e politicamente por meio de
suas próprias instituições; direito a controlar a propriedade do conhecimento
tradicional” (tradução livre).37 Todavia, pode-se dizer que a questão continua em aberto,
pois até hoje não se conseguiu a criação de um sistema de proteção específico que seja
35 SANTILLI, op. cit., p. 52. 36 BARBOSA, op. cit., p. 208. 37 ROJAS, Grethel Aguilar. En Busca de uma Distribución Eqüitativa de los Benefícios de la Biodiversidad y el Conocimiento Indígena. San José – C.R, IUCN/Mesoamerica: 2005. p. 95.
13
reconhecido e adotado globalmente aos CTA, evitando que sejam indevidamente
apropriados por terceiros. Isso sem contar que as questões de participação das
comunidades dependem muito da legislação nacional, havendo uma disparidade
internacional muito grande concernente à regulação do tema.
4.2 INSTRUMENTOS
Os próprios empreendimentos envolvendo signatários da CDB é que fixam, em
maiores detalhes e condições, como este será realizado e os benefícios repartidos. Essa
definição, feita caso a caso, lança mão de três instrumentos previstos na CDB para a
concretização dos seus princípios: medidas legislativas e administrativas nacionais,
consentimento prévio informado, também conhecido por sua sigla em inglês, PIC (prior
informed consent) e a elaboração de contratos.
4.2.1 MEDIDAS LEGISLATIVAS E ADMINISTRATIVAS
As diretrizes de Bonn enumeram diversas responsabilidades das autoridades
nacionais. Estas consistem basicamente em autorizar o acesso segundo suas leis,
assessorar no processo de negociação, definir condições para a obtenção do PIC e do
comum acordo entre as partes envolvidas e avaliar os acordos realizados.
A construção de uma lei sobre o tema foi uma tarefa difícil para os países
interessados. Tinha-se pouca experiência nessa área, o tema era inovador e faltavam
referências doutrinárias. Para dar certo, é necessário que o processo legislativo estime
de maneira realista qual o valor econômico potencial dos recursos do país e que não
torne o empreendimento desinteressante. Nesse sentido, Arcanjo informa que “pela
coleção de questões jurídicas, somos desafiados hoje a construir uma disciplina legal
inovadora, para um campo de direitos até então não positivado, onde contribuições
doutrinárias e fontes comparadas são escassas”.38
Os pontos normativos de uma legislação de acesso devem constituir, no mínimo:
a) objeto; b) princípios; c) definições dos termos utilizados na lei e dos não estipulados
na CDB; d) limitações ao acesso; e) procedimento e requisitos para a concessão do PIC
38 ARCANJO, Francisco Eugênio. Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado 306/95: Soberania, propriedade e acesso aos recursos genéticos. In Revista de Direito Ambiental. Ano 2. nº 7. Jul-Set de 1997, p. 143.
14
e para a celebração do contrato de acesso mediante condições mutuamente acordadas e
respeito a requisitos mínimos; f) autoridade competente para receber e autorizar os
pedidos e celebrar os contratos de acesso; g) meios de fiscalização dos contratos em
vigência; h) os direitos das comunidades indígenas, formas de assessoramento jurídico e
técnico e o modo de como participarão ativamente das negociações; i) possíveis
modalidades de repartição de benefícios e formas de acesso à tecnologia, bem como os
beneficiários dos mesmos; j) direitos dos proprietários de áreas privadas onde se
encontram os recursos visados; l) infrações e sanções, podendo existir, inclusive,
previsão de infrações penais.
Importante dizer que não é razoável que as legislações nacionais restrinjam
muito a liberdade de contratar das partes, dando espaço para sua liberdade de contratar.
4.2.2 CONSENTIMENTO PRÉVIO INFORMADO
O artigo 15.5 da CDB prevê que o acesso deve estar sujeito ao consentimento
prévio fundamentado da parte provedora. Não há definição exata do seu conteúdo,
deixando-o para a lei e para a doutrina. Sua finalidade é que o acesso ao recurso seja
antecipado por uma autorização do país provedor do recurso, sendo que, para isso, a
parte tomadora deve prestar esclarecimentos sobre o empreendimento que deseja
implantar. Bertoldi39 diz que o PIC instaura um mecanismo de facilitação de
informações pelo qual provedores e demais implicados têm o primeiro contato com o
projeto, servindo também de forma de controle da atividade de bioprospecção e do seu
compromisso com a conservação e utilização sustentável da biodiversidade.
Segundo o Guia de Boas Condutas de Bonn, um sistema de concessão do PIC
deve ser claro, fácil e de baixo custo, não indo de encontro aos objetivos da CDB. Deve
incluir as autoridades nacionais e outras partes envolvidas, como comunidades
autóctones e proprietários de áreas privadas. Portanto, é legítimo que a legislação
nacional estabeleça requisitos necessários para analisar o pedido. Quando existem
comunidades tradicionais estas têm direito de serem consultadas e de darem seu
consentimento.
39 BERTOLDI, Márcia Rodrigues. Regulação Internacional do Acesso aos Recursos Genéticos que Integram a Biodiversidade. Revista de Direito Ambiental. ano X. n 39. jul/set. 2005. p. 136.
15
Para que tais fins sejam alcançados, o guia de Bonn prevê, de forma não
taxativa, que o pedido de acesso deve constar: a) pessoa jurídica e filiação do
interessado; b) tipo e quantidade de recursos genéticos utilizados; c) data de início e
duração da atividade; d) zona geográfica de prospecção; e) avaliação de impactos
previsíveis advindos da atividade; f) usos previstos do recurso e do CTA; g) lugar onde
a pesquisa ou desenvolvimento será realizado; h) instituições locais que colaborarão
com o projeto; i) fins do projeto e resultados esperados; j) tipos de benefícios esperados;
k) orçamento; l) tratamento da informação confidencial.
Com o fito de tornar o processo mais democrático e acessível às comunidades
tradicionais e indígenas envolvidas, Firestone40 algumas medidas, como: a) informações
traduzidas ao idioma local; b) incluir toda a comunidade na consulta, respeitando a sua
organização; c) respeito à privacidade, cultura, dignidade e tradições da comunidade; d)
registrar por escrito as consultas realizadas e; e) realizar a consulta com antecedência
adequada, para que a comunidade possa sopesar adequadamente as vantagens do
projeto. Acrescente-se que o governo nacional deve assegurar, assistência técnica e
jurídica à comunidade, seja por ONG ou através de instituição do governo.
Eventual mudança no material acessado, inclusão de terceiro no projeto, ou outra
transformação de aspecto fundamental deve dar ensejo a um novo processo de
consentimento prévio informado. Afinal, muda-se o conteúdo do acordo inicial, não se
admitindo sua alteração unilateral.
4.2.3 O CONTRATO
O artigo 15.4 da CDB erigiu o contrato como instrumento para a concretização
de seus objetivos. Assim como no campo da legislação, essa nova área do direito
também consistiu um desafio aos juristas, que tiveram que enfrentar a tarefa de
desenvolver novas tipologias contratuais a partir de instrumentos já existentes. Desta
maneira, “a maior parte dos contratos de bioprospecção se aproximam de toda uma
40 FIRESTONE, Laurel. Consentimento Prévio Informado: princípios orientadores e modelos concretos. In LIMA, André & BENSUNSAN, Nurit (org). Quem cala consente? : subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. passim.
16
parafernália de contratos clássicos, com os quais os profissionais do direito estão
acostumados e os adaptam às necessidades das partes no que concerne a este assunto”41.
Bellivier42 traz como espécies de contrato o contrato de acesso in situ e o acordo
de transferência de material (ATM). O contrato de acesso in situ pode ser subdividido
em contrato de pesquisa ou então em acordo com fins econômicos, reais ou potenciais.
No primeiro caso, o usuário dos recursos biológicos tem por finalidade a realização de
estudos científicos sem valor econômico. No entanto, se no desenrolar da pesquisa esta
ganha um caráter comercial, um novo contrato deve ser feito. O segundo tipo de
contrato trata de atividade que já tem, previamente, intuito de exploração comercial,
devendo, conter cláusulas de repartição de benefícios, como titularidade de propriedade
intelectual, repartição de royalties e transferência de tecnologia.
Conforme Gollin43, os acordos de transferência de material são uma típica
transação de transferência de material biológico a um receptor contendo restrições sobre
o que este pode fazer com o material recebido. Embora seja instrumento contratual
amplamente difundido em pesquisa científica, nos casos englobados pela CDB são
instrumentos mais complexos por questões de soberania. Podem ser estabelecidas
restrições ao receptor que se relacionam com o tipo de atividade a ser desenvolvida com
o objeto, a finalidade da mesma ou ainda com possibilidade ou não de transferência do
mesmo a terceiros. Essa restrição é legitimada pela soberania do país sobre o produto e
delimitada no âmbito do PIC.
Bellivier alerta para algumas dificuldades técnicas, como a divisão do contrato
em contrato de mera pesquisa e de atividade com potencial econômico. Em tese, não
haveria qualquer problema, pois primeiro pesquisa-se o material para depois, em
havendo, explorá-lo economicamente. No entanto, cada vez mais a pesquisa científica
se aproxima da atividade industrial, sendo que seus resultados têm, em muitos casos,
valor econômico. Dessa forma, para agência governamental responsável, fica difícil
estabelecer critérios para enquadrar os projetos apresentados.
41 BELLIVIER, Florence. Os Contratos sobre os Recursos Genéticos Vegetais: Tipologia e Eficácia. In VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia (org). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.p. 165. 42 Idem, passim. 43 GOLLIN, Michael. Elementos de Acordos Comerciais de Prospecção de Biodiversidade. In Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Org. VARELLA, Marcelo Dias. Belo Horizonte:Del Rey, 2004, p.138.
17
A inserção das comunidades locais e indígenas também constitui uma querela
jurídica. As comunidades podem estar inseridas no empreendimento através de
representantes, mas sem serem parte do acordo; ou ainda serem partes efetivas do
contrato, o que causa preocupação para o empreendedor, pois na maioria dos casos as
populações não têm personalidade jurídica e não se é legítimo, segundo a lei nacional, o
sistema de representação nativo. Outra situação é quando o conhecimento acessado
pertence a mais de uma comunidade, sem que se possam identificar todas, existindo,
desta forma, para o empreendedor, o risco de ser acusado de biopirataria. Ambas
dificuldades devem ser solucionadas pela legislação de cada país.
A terceira dificuldade diz respeito à fiscalização das utilizações do recurso.
Existe a dificuldade de controlar as transferências sucessivas do material a terceiros,
bem como a cadeia de responsabilidade pelo descumprimento do acordado; controlar as
pesquisas desenvolvidas pelo usuário do recurso, de modo a se ter notícia de quais
descobertas foram feitas, quais são as economicamente interessantes e de como isso será
transmitido às instituições locais; e ainda como negociar os benefícios da exploração
comercial sendo que, muitas vezes, a parte tem apenas a patente da invenção,
concedendo licença a outras empresas para que a explorem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento sustentável baseia-se em quatro pilares, a eficácia
econômica, o desenvolvimento social, a preservação do meio ambiente e o respeito às
culturas. Ele é inovador porque insere a variável ambiental na lógica econômica, o que
implica no nascimento de obrigações positivas por parte do Estado e dos agentes
privados. Deve-se trabalhar para que as externalidades negativas advindas do processo
produtivo não sejam suportadas apenas pelo meio ambiente, devendo-se tomar medidas
para a desenvolução rumo a uma produção limpa.
A Convenção sobre a Diversidade Biológica é criada como um acordo rumo ao
desenvolvimento sustentável. Ela contem três objetivos principais: conservação da
biodiversidade; o uso sustentável da mesma; repartição justa e eqüitativa dos benefícios
derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante acesso adequado aos recursos e
a transferência de tecnologias pertinentes. Dentre os três, o último se destaca por inserir
18
valores do desenvolvimento sustentável na exploração econômica da biodiversidade,
tendo reflexos principalmente no sistema de patentes.
Antes da CDB, vigorava o livre-acesso, podendo-se utilizar livremente os
recursos da natureza para a confecção de produtos industrializados sem que os países de
origem nada recebessem. A CDB põe termo a isso ao reconhecer a soberania dos países,
instituindo que eles têm a responsabilidade de regular o seu acesso e o direito de receber
uma parcela dos benefícios auferidos pelo seu uso. Ademais, reconhece a importância
das comunidades tradicionais e autóctones na conservação da biodiversidade, dos seus
conhecimentos tradicionais e do seu direito a também serem recompensados pelo papel
que exercem.
REFERÊNCIAS
ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, 1998.
ALENCAR, Gisela Santos de. Mudança ambiental global e a formação do regime para proteção da biodiversidade. Brasília: Universidade de Brasília, 1995.
ARCANJO, Francisco Eugênio. Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado 306/95: Soberania, propriedade e acesso aos recursos genéticos. Revista de Direito Ambiental. Ano II. nº 7. Jul-Set de 1997.
BASTOS JÚNIOR, Luiz Magno Pinto. A Convenção sobre Diversidade Biológica e os instrumentos de controle das atividades ilegais de bioprospecção. Revista de Direito Ambiental. ano VI, n. 23. julho-setembro de 2001.
BELLIVIER, Florence. Os Contratos sobre os Recursos Genéticos Vegetais: Tipologia e Eficácia. In VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia (org). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
BERTOLDI, Márcia Rodrigues. Regulação Internacional do Acesso aos Recursos Genéticos que Integram a Biodiversidade. Revista de Direito Ambiental. ano X. n 39. jul/set. 2005.
CERSKI, Paula, AZEVEDO, Cristina e MOREIRA, Teresa. A convenção sobre a diversidade biológica no Brasil. Revista de Direito Ambiental. Ano X, n. 37. jan/mar 2005.
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.
19
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2º ed. São Paulo: Max Limonad, 2001.
FIRESTONE, Laurel. Consentimento Prévio Informado: princípios orientadores e modelos concretos. In LIMA, André & BENSUNSAN, Nurit (org). Quem cala consente? : subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003.
HAYASHI, Kichiro. Esfera de Ação de Elementos de Repartição de Benefícios – Decisões em Casos de Acesso e Repartição de Benefícios e Instrumentos Legais Nacionais e Internacionais. In VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia (org). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
IUCN – UNEP – WRI. Global Biodiversity Strategy: Guidelines for action to safe study end use Earth’s biotic wealth Sustainably and Equitably. Gland, Switzerland, 1992.
JONAS, Hans. Principe Responsabilité. Paris: Champs Flammarion, 2003.
KISS, Alexandre. Les traités-cadres: une technique juridique caractéristique du droit international de l’environement. In Annuaire Français de droit international XXXIX. Paris : CNRS, 1993.
LARSEN, Janet. The sixth Great Extinction: a Status Report. In http:// www.earth-policy/Updates35_printable.htm . Acesso no dia 31 de julho de 2006.
MONEDIAIRE. Gerard. A hipótese de um direito do desenvolvimento sustentável e as mutações jurídicas contemporâneas. In Antídoto. Goiânia, ano I, número 1, 2006.
NUSDEO, Fábio, Curso de Economia: introdução ao direito econômico. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
ONU, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Declaração de Estocolmo. Doc. n° A/Conf.48/14/Rev.1. In http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/estoc72.htm . Acesso no dia 7 de agosto de 2006.
ROJAS, Grethel Aguilar. En Busca de uma Distribución Eqüitativa de los Benefícios de la Biodiversidad y el Conocimiento Indígena. San José – C.R, IUCN/Mesoamerica: 2005.
SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. In Revista da Fundação da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, Ano X, vol. 20, jul/dez 2002.
SARLA, Rosalía Ibarra. La explotación petrolera mexicana. Ciudad de México: UNAM, 2003.
20
SHYAMSUNDAR, Priya. Poverty – Environment indicators. Washington, The World Bank Environment Departement. 2002.
United States Government. US Interpretative Statement on CBD. In http://www.bioline.org.br/request?nl93022 . Acesso no dia 2 de setembro de 2006.