A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DOS DIREITOS INTERNACIONAIS INFANTO- JUVENIS E SUA INFLUÊNCIA NO ÂMBITO JURÍDICO- POLÍTICO BRASILEIRO Letícia Maria Maciel de Moraes 1 1. INTRODUÇÃO: OS DIREITOS INFANTO-JUVENIS NUMA ABORDAGEM RETÓRICA Este ensaio consistirá em analisar retoricamente a fundamentação dos direitos da criança e do adolescente na seara internacional e as principais influências desta área no ordenamento jurídico brasileiro, a partir da análise do discurso utilizado pelos Organismos Internacionais sobre a temática relativa aos Direitos Humanos Fundamentais. Destarte, utilizaremos este método proposto pelo mestre João Maurício Adeodato 2 com o intuito de abrir reflexões que repercutam em discussões a sempre renovar tal matéria e atualizá-la conforme as exigências específicas que cada momento exigir. Manusearemos a retórica não no sentido de estabelecer verdades, porém será um instrumento utilizado para nos direcionar ao objeto de estudo e nos ajudar a compreender 1 Estudante de graduação do curso de Direito, Universidade Federal de Pernambuco 2 ADEODATO, João Maurício Leitão. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010 p . 47-83
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A CONSTRUCAO RETORICA DOS DIREITOS INTERNACIONAIS INFANTO JUVENIS E SUA INFLUENCIA NO AMBITO JURIDICO POLITICO BRASILEIRO E BIBLIOGRAF
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A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DOS DIREITOS INTERNACIONAIS INFANTO-
JUVENIS E SUA INFLUÊNCIA NO ÂMBITO JURÍDICO- POLÍTICO
BRASILEIRO
Letícia Maria
Maciel de Moraes1
1. INTRODUÇÃO: OS DIREITOS INFANTO-JUVENIS NUMA ABORDAGEM
RETÓRICA
Este ensaio consistirá em analisar retoricamente a
fundamentação dos direitos da criança e do adolescente na
seara internacional e as principais influências desta área no
ordenamento jurídico brasileiro, a partir da análise do
discurso utilizado pelos Organismos Internacionais sobre a
temática relativa aos Direitos Humanos Fundamentais. Destarte,
utilizaremos este método proposto pelo mestre João Maurício
Adeodato 2 com o intuito de abrir reflexões que repercutam em
discussões a sempre renovar tal matéria e atualizá-la conforme
as exigências específicas que cada momento exigir.
Manusearemos a retórica não no sentido de estabelecer
verdades, porém será um instrumento utilizado para nos
direcionar ao objeto de estudo e nos ajudar a compreender1 Estudante de graduação do curso de Direito, Universidade Federal de Pernambuco2 ADEODATO, João Maurício Leitão. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. SãoPaulo: Saraiva, 2010 p . 47-83
algumas das relações intersubjetivas referentes ao tema em
epígrafe. Neste trabalho, observaremos aquelas das quais
decorreu mais notoriamente a fundamentação da criança e do
adolescente como sujeitos de direito no âmbito internacional,
além de como essa construção positiva veio a influenciar no
direito brasileiro, especialmente com a promulgação da
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990.
A problemática dos Direitos da Criança e do adolescente é
posta no Direito Internacional através de Tratados como a
Declaração dos Direitos da Criança, em 1959 e a Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança, em 1989, estando o Brasil vinculado às
disposições ali contidas, como signatário de tais diplomas. O
debate acerca da tutela jurídica da população infanto-juvenil
surgiu, contudo, do sucessivo desenvolvimento da sociedade
internacional na medida em que ocorriam mudanças nas
estruturas econômicas, sociais e culturais de cada nação.
A adoção de novos paradigmas como a proteção integral, o
melhor interesse e a prioridade absoluta da criança foi, na
realidade, uma consequência de ser o Direito um subsistema que
assimila, operativamente, as informações de seu entorno, isto
é, seu contexto social momentâneo, conforme já assinalou
Niklas Luhmann em sua teoria dos sistemas3. Houve assim, o
acoplamento estrutural – ou seja, a relação do subsistema do
Direito com o seu ambiente social, estando ambos a interagirem
e estimularem-se – entre o Direito e o mundo fenomênico, no
3 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005 p.23-55
qual as crianças e adolescentes gradualmente eram reconhecidos
como sujeitos portadores de direitos subjetivos tanto quanto
possuíam os animais e, posteriormente, como detentores de uma
proteção maior até mesmo do que os adultos.
Numa primeira análise do universo dos direitos infanto-
juvenis, relacionaremos os problemas dos fins aos problemas
dos meios, isto é, levando em conta as questões
imprescindíveis para a realização daqueles direitos, estejam
elas em quaisquer âmbitos: histórico, psicológico, econômico
ou social. A visão retórica deste ensaio está aliada, pois, a
temas de cuja natureza transcende à abordagem meramente
filosófica em seu sentido clássico.
Nessa perspectiva, procuraremos utilizar, assim, pelo
menos duas dimensões da atitude retórica: a material – a qual
corresponde ao conjunto de métodos pelos quais os relatos
intersubjetivos sobre determinados fatos fazem o homem
perceber a realidade que ele próprio vive e a estratégica –
que possui atitude pragmática, finalística e normativa,
procurando influenciar a retórica material a determinada
finalidade argumentativa.
Interessante salientar a vinculação necessária entre
estas dimensões, não sendo possível separar esses níveis
retóricos de forma rígida senão pela dimensão analítica,
porquanto a estratégia argumentativa utiliza análises e
qualquer matéria referente àquela retórica analítica pode vir
a ser objeto de estudo de outra pesquisa, sob outra
perspectiva. 4
2. A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS INTERNACIONAIS INFANTO-
JUVENIS
Embora se trate de uma novidade no âmbito jurídico, o
tratamento da criança e do adolescente como sujeitos de
direito é uma questão advinda primordialmente da construção
histórica de direitos do próprio ser humano. A percepção da
infância como uma particularidade a necessitar de proteção,
contudo, foi desconsiderada por muito tempo. A fim de
ilustramos esse aspecto, podemos fazer referência à prática de
genocídios contra crianças recém-nascidas e em seus primeiros
meses de vida em Roma, na época da Antiguidade. Já no século
XVII, apesar de ser, em tese, um crime severamente punido, era
um crime correntemente praticado e durante este período
institucionalmente nada se fazia para conservá-las ou salvá-
las.5
A Bíblia Sagrada em seu Antigo Testamento já contém
referências a infanticídios, genocídios praticados contra
crianças, a utilização de crianças como oferendas a Deus, além
4 ADEODATO, João Maurício Leitão. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. SãoPaulo: Saraiva, 2010 p .76
5 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, c1981 In Prefácio, XV
de passagens referentes à educação e disciplina da criança. Em
Provérbios 6, está descrito: “Não retires da criança a
disciplina: porque, fustigando-a com a vara, nem por isso
morrerá” e “A vara e a repreensão dão sabedoria”. Já no Novo
Testamento, há alusões de que Jesus, observando que os
discípulos repreendiam as crianças interessadas em tocar o
Mestre, chamou as crianças para perto de si e disse: “Deixai
vir a mim as crianças, e não as impeçais, porque de tais é o
reino de Deus. Em verdade vos digo que, qualquer que não
receber o reino de Deus como criança, de modo algum entrará
nele.” 7. Nota-se uma mudança de paradigma, trazido por Jesus
da importância da criança naquele contexto em que apenas os
detentores de maior poder físico, econômico e/ou político se
faziam vangloriar. Ainda, o comentário de Jesus: “Mas, se
alguém fizer cair em pecado um destes pequenos que creem em
mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço a mó de um moinho
e o lançassem no fundo do mar.” 8
Tais passagens bíblicas são objeto de várias
interpretações religiosas – muitas delas, utilizando-se da
pura literalidade – ou hermenêuticas possíveis – literais,
teleológicas, históricas, semânticas, dentre outras. Assim, se
de uma parte há quem defenda que das passagens acima a de
Jesus conflita com aquela do antigo testamento, sendo
paradoxais entre si, por outro lado há os que preceituam tais
alusões como complementares entre si, quer dizer, os dizeres6 BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Centro Bíblico de São Paulo. Rio de
Janeiro : Ave Maria, 2009. Edição Claretiana p. 8057 Idem. p. 13738 Idem. p. 1307
de Jesus não estariam de encontro com os dizeres encontrados
no antigo testamento, pois se está fazendo um bem à criança ao
fustigá-la com a vara.
A consciência da particularidade infantil, porém, era
praticamente inexistente. Assim, dizia-se criança somente
quando esta fosse muito pequenina, demasiada frágil para se
misturar à vida dos adultos. Logo que esta tinha condições de
viver sem o aparato de sua mãe ou sua ama, ela era incluída na
sociedade dos adultos e não se distinguia mais deles. Eram
tidas como propriedade da família, não possuindo qualquer
proteção de outra instituição.
Para ilustrar tal aspecto, nos parece válido citar um caso
ocorrido em Nova York no ano de 1874, conhecido como o caso
Mary Ellen. Uma assistente social de igreja descobriu uma menina
acorrentada a uma cama e alimentada a pão e água, seriamente
doente devido a severos maus tratos por parte dos pais,
apresentando ela queimaduras e cicatrizes aparentes. Tendo em
vista não haver qualquer base jurídica de proteção à criança,
a solução encontrada foi processar os pais com fundamento na
lei de proteção aos animais, porquanto a criança não era menos
que um cachorro ou um gato. 9
A consciência da infância começa a surgir primeiramente
com a ‘paparicação’ na companhia das crianças pequenas;
posteriormente, com os eclesiásticos e moralistas,
preocupando-se com a disciplina e a racionalidade dos costumes
– a partir do séc. XVI; e a partir da preocupação com a9 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A Criança no Direito Internacional. Renovar. 2003, p. 81
higiene e saúde física, a partir do séc. XVIII.10 É de se
salientar, a nosso ver, que esses tipos de condutas por muitos
anos coexistiram, tendo ficado cada vez mais evidentes a
partir de determinada época.
A partir da modernidade, pode-se afirmar que a ascendência
moral da família como necessidade de intimidade e identidade
com a criança – quando os membros da família unem-se pelo
costume e gênero de vida – foi um fenômeno essencialmente
burguês. A sociedade ficava cada vez mais complexa à medida
que o antigo corpo social – visto como uniforme – englobava a
maior multiplicidade de idades e condições sociais claramente
distinguidas e hierarquizadas quanto mais se aproximavam no
espaço. A alta nobreza e o povo, por outro lado, permaneceram
por muito tempo alheias à pressão exterior. Trata-se, pois, de
uma relação entre a percepção de família e a concepção de
classe. 11
Nesse contexto, aquela mesma burguesia foi quem liderou a
chamada Revolução Francesa em 1789, com o interesse de transformar
a sociedade numa democracia, no sentido de uma soberania dos
cidadãos. A Revolução foi então baseada nos diversos
jusnaturalismos – pois são várias escolas que defendem a
supremacia de uma ordem jurídica acima da positivada pelo
estado, imutável, cada qual auferindo um fundamento absoluto –
e no contratualismo de Rousseau – defendendo a liberdade do
10 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, c1981, p. 105
11 Idem. p 195-196.
ser humano como essencial e pré-existente à vontade de um
soberano individual – de modo a propagar a existência dos
Direitos Humanos, inerentes a todo homem ou mulher.
Ao mesmo tempo, a partir também do século XVIII, ocorreu a
diferenciação entre duas espécies de Direitos: o Direito
Natural e o Direito Positivo, e, posteriormente, a redução de
todo direito ao direito positivo – ideia a qual encontrou seu
maior expoente nos estudos e doutrina trazida por Hans
Kelsen.12 Esta tese prevaleceu durante grande parte do séc.
XX, estando o direito natural excluído da categoria do
direito. Assim, juntamente à crise da fundamentação do Direito
Natural, ocorreu a crise dos Direitos Humanos ou Fundamentais.
O valor da pessoa humana enquanto conquista
histórico-axiológica encontra a sua expressão
jurídica nos direitos fundamentais do homem. É
por essa razão que a análise da ruptura – o hiato
entre o passado e o futuro, produzido pelo
esfacelamento dos padrões da tradição ocidental –
passa por uma análise da crise dos direitos
humanos, que permitiu o “estado totalitário de
natureza”. Este “estado de natureza” não é um
fenômeno externo, mas interno à nossa
civilização, geradora de selvageria, que tornou
homens sem lugar no mundo. 13
12 BOBBIO, NORBERTO. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas Márcio Pogliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. – São Paulo: Ícone,2006 p. 2613 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt . São Paulo: Companhia das Letras, 1988 p.
Foi, no entanto, após a crise dos fundamentos dos direitos
do homem como direitos naturais, a posterior eclosão de duas
grandes guerras e a tomada do poder do Estado a fim de
estabelecer regimes totalitários em vários países do mundo que
a questão dos Direitos Humanos reapareceu como discussão
prioritária. Convencidos das consequências nefastas trazidas
pela base puramente positivista, em seu sentido estrito, a
qual legitimou a tomada do poder de governar por aqueles
regimes totalitários, representantes de vários países se
juntaram na composição da Assembleia Geral das Nações Unidas e
aprovaram, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal
dos Direitos do Homem. Segundo os países componentes desta
Assembleia, a Declaração manifestou a única prova do consenso
geral sobre sua validade – admitido pelos jusnaturalistas como
consensus omnium ou humani generis – representando a possibilidade
da existência de um sistema de valores reconhecido e
humanamente fundado. 14
Por outro lado, vários organismos internacionais trouxeram
a necessidade de aperfeiçoar continuamente a Declaração
Universal dos Direitos do Homem especificando-o, articulando-o
e atualizando-o, de modo a não torná-lo obsoleto. A partir
desse desenvolvimento, assentadas as bases históricas e a fim
de alcançar um gradual amadurecimento, vários outros
documentos interpretativos e complementares surgiram.
118
14 BOBBIO, Norberto Bobbio, A era dos direitos. 8ª ed., Trad. Carlos Nelson. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992 p. 46
A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela
Assembleia Geral em 1959, apresenta, assim, a problemática dos
direitos da criança como uma especificidade daqueles direitos
genéricos descritos na Declaração Universal. A criança é
demonstrada, pois, como detentora de condições especiais,
merecendo uma maior proteção e cuidado por parte da sociedade.15
A proteção da criança no plano internacional foi, então,
consubstanciada como uma manifestação de direito internacional
público – na seara dos Direitos Humanos e do Direito
Humanitário – e também de direito internacional privado – ao
serem aprovadas convenções que versam regras uniformes sobre
competência jurisdicional internacional e na escolha da
legislação aplicável. O primeiro documento internacional a
pregar a importância da proteção à criança como sujeito
especial foi o advindo da Conferência Internacional do
Trabalho de 1919, o qual proibiu a prática do trabalho noturno
para crianças e definiu a idade mínima de catorze anos para o
trabalho na indústria, seguido da Convenção sobre Supressão do
Tráfico de Mulheres e Crianças, pela Liga das Nações em 1921.16
A resolução de 1.386, a denominada Declaração dos Direitos da
Criança de 1959, por outro lado, trouxe uma relevante mudança
de paradigma ao tratar a criança por sujeito de direito, e não
mais como um objeto de proteção. 17 15 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A Criança no Direito Internacional. Renovar. 2003 p. 80-85
16 Idem. 17 MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. A Declaração Universal dos Direitos da Criança e seus sucedáneos internacionais. Coimbra Ed., 2004 p. 104
Paralelamente, pois, podemos afirmar que a infância em seu
sentido amplo passou a ser considerada como um sujeito
coletivo de direitos.18 Trinta anos mais tarde, a Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989 se baseou neste novo
paradigma e ainda acolheu as concepções da “proteção do
desenvolvimento integral da criança” e o da “prioridade
absoluta” a fim de fundamentar mais de quarenta direitos
específicos, segundo a filosofia trazida pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Tratou, igualmente, de
direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos,
além de incluir conceitos novos como aqueles de cuja base o
direito humanitário bem esclarece.
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 destaca-
se pelo mais elevado número de ratificações bem como por um
novo princípio: o da observância dos melhores interesses da
criança, isto é, que em um litígio, o superior interesse da
criança deve ser sempre levado em conta, seja quando for este
primordial – exclusivo, fundamental, devendo prevalecer a
qualquer outro – seja pelo critério mais condizente à
orientação constitucional e infraconstitucional adotada pelo
sistema jurídico brasileiro.19
3. A CONSTRUÇÃO POSITIVA DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
18 ROSSATO, Luciano Alves. LÉPORE, Paulo Eduardo. SANCHES, Rogério. O estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069 : artigo por artigo. 3 ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 6319 PEREIRA, Tânia da Silva – Direito da Criança e do Adolescente: Uma Proposta Interdisciplinar. Rio de Janeiro. Ed Renovar. 1996 p.6
Anteriormente ao ano de 1927, a resposta do Estado aos
delitos cometidos por adolescentes obedeciam aos ditames do
Direito Penal, onde aqueles eram julgados, condenados e
penalizados tal como os adultos. As questões referentes à
criança e ao adolescente no Brasil só foram consideradas
dignas de uma maior regularização por parte do Estado a partir
do denominado Código de Menores, de 1927, baseado na legislação
oriunda de Portugal, da época do Império e igualmente da
República. Nesta legislação, baseada na Doutrina do Direito do Menor,
restou consolidada toda a prática relativa à tutela de órfãos,
de abandonados e dos pais presumidos como ausentes – de quem o
pátrio poder estaria disponibilizado – que eram aplicadas até
então. Por outro lado, as crianças tidas como socialmente
aceitáveis teriam seus direitos protegidos pelo Código Civil
daquele momento. 20
Desta forma, as crianças e adolescentes cujo comportamento
fosse considerado anti-social, a tutela antes designada ao
Código Civil seria passada ao juiz de menores ao mesmo tempo
que dos pais para o juiz de menores.21 Assim, o instituto da
inimputabilidade penal foi utilizado para submeter os
“menores” – segundo a nomenclatura da época – à autoridade dos
Tribunais de Menores, os quais chegavam a impor medidas de
repressão sem respeitar as mínimas garantias processuais e
20 NEPOMUCENO, Valéria. O Mau-trato infantil e o estatuto da criança e do adolescente: os caminhos da prevenção, da proteção e da responsabilização.In Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes. Coordenadora: Lygia Maria Pereira da Silva. Recife: EDUPE, 2002 p 143. 21 Idem. p. 144.
materiais do Sistema Penal, tal como o contraditório ou a
ampla defesa.
O Código de 1927 tinha como objeto legislar sobre
crianças de 0 a 18 anos que estivessem em
situação de abandono, não possuíssem moradia
certa ou os pais fossem falecidos, ignorados,
desaparecidos, declarados incapazes, presos há
mais de dois anos, qualificados como vagabundos,
mendigos, de maus costumes, exercentes de
trabalhos proibidos que fossem prostitutos ou
incapazes de prover economicamente as
necessidades de seus filhos. 22
Interessante notar as nomenclaturas utilizadas pelo Código
de 1927, em que os expostos seriam os menores de sete anos; os
abandonados eram menores de 18 anos; os vadios seriam
equivalentes aos meninos em situação de rua, atualmente;
mendigos eram as crianças que pediam esmola ou vendiam objetos
na rua; os libertinos quem frequentava as casas de prostituição. A
expressão menor delinquente foi positivada e igualmente havia
certa diferenciação no tratamento entre as pessoas com menos
de 14 anos e as maiores até 18 anos, estes devendo ser
separados dos adultos nos estabelecimentos prisionais. 23
Já a Doutrina da Situação Irregular foi consubstanciada a
partir de 1979, em cuja formulação atribuída pelo jurista
22 Idem23 Idem.
argentino Ubaldino Calvento e sendo propagado no Brasil pelo
juiz de menores Alyrio Cavalieri abrange todas as denominações
do código anterior. A situação irregular, pois, se
caracterizaria pelo fato de tais indivíduos fugirem do padrão
normal da sociedade saudável em que se pensava viver, de modo
que tanto as vítimas de maus tratos e os menores infratores
seriam enquadrados nesta circunstância. 24
Por último, a doutrina atualmente predominante no Brasil
trata-se da já referida em nosso segundo tópico: a Doutrina da
Proteção Integral, tendo por base a Convenção Internacional
dos Direitos da Criança desenvolvida pela Organização das
Nações Unidas. Esse novo fundamento foi incorporado à
Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto de Criança e
Adolescente, de onde se tirou a nomenclatura “menor”, por se
entender que tal termo faria referência a um indivíduo de
menor direito que os demais, tentando afastar-se da ideia de
Código de Menores, anteriormente predominante.
As crianças são então hodiernamente consideradas sujeitos
de direitos, isto é, cidadãos e cidadãs completos,
equivalentes aos adultos e, ademais, possuindo ainda mais
alguns direitos tendo em vista sua condição de peculiaridade,
conforme assinalado pela UNICEF. Deve-se, desta forma, atentar
às necessidades da criança de forma integral visando a
abranger seus caracteres físicos, culturais, mentais, etc., e
24 PORTO, Paulo César Maia. Evolução dos Direitos Humanos. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999 p. 78.
a responsabilidade da garantia desses direitos deve ser
responsabilidade não só do Estado, como também da própria
sociedade de maneira geral.
Fazendo-se uma comparação entre os dois últimos diplomas
legislativos referentes ao tema, podemos afirmar que no
Estatuto da Criança e do Adolescente promulgado no ano de
1990, a intervenção judicial torna-se menos arbitrária em
relação à família, tendo em vista que anteriormente estava
prevista a destituição ou suspensão do pátrio poder por motivo
de pobreza, enquanto que neste novo período o julgador não tem
mais essa competência. Na medida em que à época de 1979 o
Código de Menores aquele mesmo juiz tinha amplos poderes para
descobrir o crime e punir o criminoso e o processo teria cunho
eminentemente administrativo, a atual Lei 8.069 traz a
garantia da ampla defesa e do contraditório ao adolescente,
que só poderá ser privado de sua liberdade em flagrante ato
infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade
judiciária competente. Com a vigência do Código anterior,
porém, mesmo em caso de suspeição o adolescente poderia ser
preso de maneira cautelar por qualquer autoridade. 25
4. O REFLEXO JURÍDICO-POLÍTICO DOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS
DE PROTEÇÃO INFANTO-JUVENIS NOS MECANISMOS
INFRACONSTITUCIONAIS BRASILEIROS
25 Idem. p. 146
Os novos parâmetros referentes à concepção dos direitos da
criança e do adolescente foram seguidos da adoção de novas
medidas jurídicas, legislativas e políticas que, sob a ótica
de princípios como o do melhor interesse da criança e o da
proteção integral, expressam uma maior preocupação quanto à
efetivação daqueles direitos. Nessa perspectiva, os dizeres do
mestre Adeodato26 :
Há uma progressiva ampliação do âmbito semântico
desses direitos fundamentais positivados para
abranger, além dos clássicos direitos e garantias
individuais, também os direitos coletivos e
difusos, sociais, econômicos e culturais, os
chamados novos direitos em sucessivas gerações e
dimensões. O princípio da dignidade da pessoa
humana permanece em seu lócus tradicional de polo
central dos direitos fundamentais, mas se
irradia, na modernidade, no sentido de uma
especificação dos direitos fundamentais, que vai
das diversas matérias com assento constitucional
até todos os níveis infraconstitucionais.
A fim de exemplificar, podemos citar algumas medidas
referentes a essa mudança de paradigma e tentativa de
26 ADEODATO, João Maurício Leitão. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010 p. 12
concretização dos direitos fundamentais infanto-juvenis na
realidade brasileira, ulteriormente ao Estatuto da Criança e
Adolescente, como explicitado acima: a instituição do SUS, o
Sistema Único de Saúde – Lei 8.808/90; a promulgação da Lei
Orgânica de Assistência Social – Lei 8.742/93; a instituição
de diretrizes básicas da educação nacional – Lei 9.394/96; a
promulgação do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração
infantil pela Lei 9.970/00; a criação do Conselho Nacional de
Defesa da Criança e do Adolescente através da Lei 8.242/91; a
alteração da idade mínima para o trabalho no regime da CLT
ocorreu por intermédio da Lei 10.097/00 e a alteração da idade
mínima para o ingresso no mercado de trabalho pela Emenda
Constitucional 20/98; a promulgação da Convenção 182 da
OIT sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e
Ação Imediata para sua Eliminação através do Decreto 3.597/00;
pelo Governo Brasileiro como o Programa Bolsa Escola, o
Programa Bolsa Alimentação, o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil e o mais novo programa implementado: o
Programa Brasil Carinhoso.
Ao examinarmos os instrumentos jurídicos acima utilizados
e procurando compreender a transformação do significante –
texto – e demais elementos normativos do discurso na norma
jurídica concreta – significado – com o intuito maior de
realizar aqueles direitos pertinentes à criança e ao
adolescente, é possível ressaltar as estratégias relativas ao
controle de conflitos entre os diversos direitos, tornando-se
imprescindível a neutralização dessas antinomias. Esta
neutralização é uma das funções primordiais do direito no
Estado democrático, o qual deve visar primordialmente a
constitucionalização de procedimentos de maneira a propiciar
um exercício efetivo da cidadania e igualmente observar o
papel concretizador das instâncias decisórias e dos cidadãos
em geral. 27
Por outro lado, tais mecanismos, apesar de serem alvos de
inúmeras críticas com fundamento, explicitam de certa forma o
esforço que o Brasil vem empenhando na resolução de
problemáticas referentes aos Direitos Humanos e Distribuição
de renda. Não cabe, no entanto, discorrer sobre tais críticas
neste presente ensaio.
5. ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO BRASILEIROS AOS DIREITOS INFANTO-
JUVENIS
A Política de Atendimento à Criança é uma importante forma
de efetivação dos direitos pertinentes a essa parcela da
população, de maneira que, ao orientar a criação de entidades
e órgãos governamentais e não governamentais, objetiva o
controle da aplicação e das ações para a proteção daqueles
direitos, todas previstas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente.
O que é tido como um grande avanço do Estatuto em relação
ao antigo Código é o fato de terem sido criados mecanismos de
27 Idem.p.12-13
participação da sociedade na formulação e controle das
políticas públicas de atendimento à criança e adolescente.
Igualmente, o atual juiz passou denominado Juiz da Infância e
Juventude e ter competência determinada de maneira rigorosa
pela Lei 8.069. Em relação à defesa dos direitos da infância e
juventude, o Ministério Público passou a ter um relevante
papel, enquanto que a participação da sociedade civil nesse
aspecto também pode se dar por intermédio dos Conselhos de
Direitos e Conselhos Tutelares. 28
Em seu art. 88, inc. II, o Estatuto da Criança e do
Adolescente identifica o Conselho de Direitos das Crianças e
dos Adolescentes como órgão deliberativo e controlador das
políticas públicas de atendimento à infância e juventude em
todos os níveis, assegurada a participação popular paritária
por meio de organizações representativas, conforme a lei.
Diante do exposto, podemos afirmar que, como órgão
parte do poder executivo, ele está responsável pela formulação
e implementação das políticas públicas, sendo autônomo em
relação ao poder Legislativo ou Judiciário, cabendo apenas a
este dirimir conflitos que venham a existir entre o Conselho e
a Administração Pública. As funções deste Conselho de Direitos
são basicamente três: deliberação – porquanto é o próprio
órgão que decide sobre as propostas colocadas; paridade – pois
são compostos por representantes do poder executivo e da28 NEPOMUCENO, Valéria. O Mau-trato infantil e o estatuto da criança e do adolescente: os caminhos da prevenção, da proteção e da responsabilização.In Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes. Coordenadora: Lygia Maria Pereira da Silva. Recife: EDUPE, 2002 p. 157-162
sociedade civil de número igual; controladores – por o
Conselho ter o poder de fiscalizar a execução do que já foi
decidido ou apurar se há desconformidade entre a execução das
ações e as normas do Estatuto. As notícias de desvio devem ser
levadas ao Conselho Tutelar.
De maneira geral, os Conselhos Tutelares estão previstos
no art. 131 da Lei nº 8.069 que diz ser este um “órgão
permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e
do adolescente”. A contar com a ajuda de outros órgãos
públicos, ele possui competência para tomar decisões e medidas
sem interferência direta do Poder Legislativo ou Judiciário,
além de ser permanente por fazer parte do conjunto das
instituições brasileiras de maneira definitiva. Sua finalidade
corresponde a zelar pelos direitos da criança, atendendo-as
conforme suas necessidades, na aplicação de medidas de
proteção, por exemplo. Ademais, possui o intuito de aconselhar
os pais e responsáveis daquelas crianças ou adolescentes, de
modo a garantir a estes o direito à identidade e o devido
acesso à justiça, na circunstância, de ser infringido algum
direito por parte da família ou do próprio adolescente. O
Estatuto preza ainda pela heterogeneidade de seus componentes,
conforme seu art. 140.
6. DISTORÇÕES NA APLICAÇÃO DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO
O aspecto teleológico de cumprir tais preceitos legais –
consoante nossa Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da
Criança e do Adolescente – através elaboração e efetivação de
políticas públicas voltadas à infância e juventude por Parte
do Poder Público juntamente à sociedade civil, no entanto,
encontra grande dissonância com a realidade brasileira
enfrentada.
Observa-se claramente o abismo gnoseológico29 existente,
segundo João Maurício Adeodato afirma, é incompatibilidade
recíproca entre o evento real – constante na realidade social
brasileira; a ideia – em relação aos princípios da prioridade
absoluta, melhor interesse da criança e da proteção integral;
e a expressão lingüística ou simbólica – o texto definido em
diploma legislativo – as quais são, outrossim, constituídas
por uma textura aberta. Esta expressão, segundo Waismann, visa
a transmitir que tanto os nossos conceitos empíricos quanto
termos psicológicos carecem de uma delimitação em todas as
direções possíveis, de forma que sempre haverá espaço para
dúvida sobre o seu significado. 30
Ao relacionarmos ambas as ideias destes dois autores, é
possível concluir que o agente da incompletude – conforme
pregou Waismann – seria a incapacidade do ser humano em
29 ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2008 p. 191-193
30 STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2002 p .50-60
caracterizar uma experiência real como individual, única e
irrepetível, reproduzindo-a de modo geral através de símbolos.
Essas generalizações correspondem à ‘idéia’ ou ‘pensamento’
dos indivíduos. “Há uma novidade radical em tudo o que é real
e, por isso, qualquer regra geral estabelecida pela razão
seleciona alguns aspectos em detrimento de outros”.31 Assim
como a irracionalidade individual, esse ideal é infinito e
ilimitado quanto às qualidades e à quantidade, sendo uma
experiência psíquica real, isto é, “a experiência da ideia é
parte do mundo real”.32
Este abismo está explicitamente identificado, por exemplo,
nas distorções observadas na implantação e no funcionamento
dos Conselhos de Direitos ou nos Conselhos Tutelares, em que
alguns representantes do legislativo aproveitam para se
inserir na composição desses conselhos com o intuito de
aumentar o seu número de votos durante as campanhas
eleitorais, ou, ainda, quando alguns Conselhos Tutelares cujo
horário de funcionamento “ideal” deveria ser de vinte e quatro
horas por dia, são simplesmente fechados pelos conselheiros.
Ademais, no caso do Ministério Público, Judiciário, ou ainda
da própria Defensoria Pública em que alguns membros põem de
lado a questão do melhor interesse do menor – principalmente
em processos relativos a atos infracionais com o mero intuito
de retribuição da conduta praticada – sem levar em conta o
princípio da proteção integral.
31 ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2008 p.191-19332 Idem.p. 184-185
7. CONCLUSÃO: A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS E
COMPLEXIDADE
O fato de a soberania do Estado não ser limitada
por qualquer Direito internacional situado acima
dele é perfeitamente conciliável com o fato de um
Estado, pela circunstância de, por força da sua
soberania, reconhecer o Direito internacional e,
assim, o tornar parte constitutiva da ordem
jurídica estadual, limitar ele próprio a sua
soberania, ou seja, neste caso, a sua liberdade de
ação, assumindo as obrigações estatuídas pelo
Direito internacional geral e pelos tratados por
ele concluídos.33
Do excerto acima advindo do mestre austríaco Hans Kelsen,
podemos concluir pela necessidade de compreender a relação
entre o Direito Internacional com o Direito Estatal conforme
um sistema unitário, de modo que um tenha que ajustar-se ao
outro. Assim, o Direito internacional deverá ser concebido
como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estatal –
sendo esta ordem incorporada no ordenamento jurídico estadual
– ou então “como uma ordem jurídica total que delega nas
33 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. - 8a. ed. - Editora WMF Martins Fontes, 2009 p. 383
ordens jurídicas estaduais, supra-ordenada a estas e
abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais.” 34
Por outro lado, é preciso compreender primeiramente as
próprias relações humanas como comunicação, isto é, não há
sociedade sem comunicação. Ao mesmo tempo, isso significa que
o conhecimento vai depender da intersubjetividade, da
comunicação entre indivíduos de forma tal que a condição
linguística da espécie humana volta-se para si mesma “em um
universo de signos e sentidos”.35 A retórica material encontra-
se presente neste ensaio, pois, a partir da crença que somente
as relações comunicativas – incluindo-se aqui as jurídicas –
são capazes de fazer algo existir. Assim, os relatos trazidos
por novas ideologias cristãs, inicialmente, pela
especialização dos direitos fundamentais do ser humano
expressos pelo movimento Iluminista, e ainda na adoção do novo
paradigma das crianças e adolescentes como sujeitos de direito
repercutirão na retórica utilizada para a proteção, ou não,
desses direitos.
As doutrinas referentes à da situação irregular ou do
direito do menor, nessa perspectiva, igualmente estiveram
vinculadas ao contexto social da época de modo que aquele
complexo de direitos e deveres, apesar de fechado
operacionalmente, encontra-se até hoje aberto cognitivamente,
34 Idem. p. 37035 ADEODATO, João Maurício Leitão. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010 p. 33
ou seja, o subsistema direito sofre irritações provenientes de
vários outros âmbitos da sociedade em geral.
Tendo em vista que o discurso referente ao novo paradigma
da concepção de criança como pessoa utilizado pelos organismos
internacionais foi englobado pelo ordenamento jurídico
brasileiro, cabe a este direito estatal, através da
comunicação, seleção e sistematização, enquadrar as relações
de conduta concernentes àquele grupo particular com o restante
da sociedade conforme as relações jurídicas previstas nesse
conjunto total – nacional e internacional – de normas
vigentes. Tal concepção, em que todo direito subjetivo
historicamente produzido só é válido quando repercute no
direito efetivamente posto, é típica da sociedade moderna,
complexa.
Nessa perspectiva, vemos que a Convenção de 1989
e a Constituição brasileira de 1988, no que tange
à criança e ao adolescente, têm conteúdo
originado nos mesmos instrumentos de proteção
internacionais que lhes foram precursores. São,
com efeito, ambas contemporâneas, surgidas em um
momento histórico da sociedade humana onde a
comunidade internacional, positivamente
influenciada no decorrer dos anos por aqueles
precursores instrumentos gerais de proteção à
criança, passou a defender novo discurso sobre os
direitos e a posição da criança e do adolescente
perante a sociedade nacional e internacional,
assim como novos conceitos de situações que
representariam violação à sua pessoa. 36
Com o advento de novos princípios e conceitos pertinentes
ao trato das crianças e adolescentes, foi possível verificar
igualmente os chamados “conceitos indeterminados” contidos no
texto legal, a exemplo da positivação dos princípios da
prioridade absoluta, melhor interesse da criança ou proteção
integral. Estes muitas vezes tratam-se de topoi vagos e
indefinidos, presentes nas leis e na concepção normativa
estatal ou internacional, com vistas a possibilitar o controle
social pelo Estado e a verificação da eficácia desse controle
por algum organismo internacional ou regional, além de
permitir a existência de uma dogmática jurídica em uma
sociedade complexa. 37
Neste sentido, quando o diploma internacional caracteriza
a criança como pessoa, este termo igualmente será um conceito
jurídico indeterminado a depender da delimitação do sentido e
alcance realizada pelo ordenamento jurídico do país signatário
vinculado àquele documento. Assim, enquanto “pessoa” refere-se
a “todo ser humano nascido com vida” no caso do Direito Civil
Brasileiro, em outros países esse termo poderá abranger
36 RAMIRES, Rosana Laura de Castro Farias. Reflexões sobre a proteção dos direitos humanos das crianças. In PIOVESAN, Paula. Direitos Humanos V. II. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2010 p. 862 37 ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2008 p. 348
grandes primatas, como os chimpanzés.38. A retórica estratégica
neste estudo toma justamente os topoi cujo aparecimento no
discurso é mais frequente e constrói uma pragmática
finalística e normativa da comunicação a partir daquela
retórica material, com o intuito de reconstituí-la.
Este é o caso da nova doutrina da criança e adolescente
como sujeito de direitos, cujo surgimento adveio de uma reação
à antiga doutrina da situação irregular do menor, provando que
nem sempre os novos relatos confirmam as comunicações
anteriores, porquanto essa intersubjetividade pode estabelecer
novos parâmetros e quebra de paradigmas, tomando como base
aquela outra situação comunicativa.
Em último lugar, sobre a da prioridade absoluta dos
direitos infanto-juvenis, torna-se necessário examinar as
estratégias para o controle da colisão entre esse tipo de
direitos e os demais, verificando se realmente este conceito é
autoaplicável ou se há um abismo gnoseológico – grande
divergência entre o ser e dever-se – além da necessidade de
neutralizar os conflitos advindos desta problemática.
38 Para saber mais sobre o assunto: GORDILHO, Heron José deSantana. Darwin e a evolução jurídica: habeas corpuspara chimpanzés. Disponívelem: < http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/darwin.pdf>Acesso em : 22/05/2013. 00:57.