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A COLONIALIDADE DO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: O MITO DO BANDEIRANTE NOS TRIBUNAIS
Wilson Rocha Assis
OS ÍNDIOS NO BRASIL E NA CONSTITUIÇÃO
O Conselho Indigenista Missionário, instituição vinculada à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, enumera 240 povos indígenas no Brasil. São eles:
Uma publicação estrangeira resumiu da seguinte forma a situação dos índios
no Brasil:
“Although the government has committed itself to defend these Indian societies since 1930s, and specifically legitimated their lands in the Constitution of 1988, there is a little question that this Indians have experienced every type of exploitation, as the agricultural frontier has progressively moved into the interior of the country. Exploited in the rubber boom of the pre-1914 period, devasted by the trans-Amazonian road construction projects of the military era, and facing invasions by cattle ranches and gold miners on a constant basis, the national Indian agency FUNAI (Fundação Nacional do Índio) has barely been able to defend the Indian communities. But greater national attention to this issue in the twentieth century, increasing protective legislation, and, more importantly effective delivery of medical services and a serious commitment to the maintenance of Indian societies has finally stopped the decline of the Indian population and led to the slow but steady positive growth of their populations from census to census. This clearly does not mean that constant land conflict does not go on today; far from it, even in territories that have been completely demarcated and surveyed. [...] But the Indian nations have become more able to articulate their demands, and there are increasingly a large number of private groups that have emerged to defend the Indians. [...] But from the 1930s to today, the official political line of recognizing the legitimacy of these societies has been progressively an accepted position and today there is no legal or political challenge to the legitimacy of these societies.” 5
Atualmente, um dos maiores desafios das comunidades indígenas
brasileiras diz respeito a grandes obras públicas de infra-estrutura, em cuja execução não
se respeitam os direitos das comunidades afetadas. Após a tragédia Yanomami -
decorrente da construção da rodovia federal BR-210, na década de 70, quando milhares
de índios foram contaminados e mortos por doenças letais para a comunidade -,
assistimos nos dias de hojea o avanço das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte em
prejuízo dos povos indígenas da região do Xingu, que questionam a obra desde a década
de 1980. A usina hidrelétrica, que será a terceira maior do mundo, afetará a vazão de rios
e o estoque pesqueiro da região, essenciais à vida de diversas comunidades. Diversas
medidas necessárias à proteção das comunidades não foram tomadas pelas autoridades,
que, mesmo assim, tem concedido as licenças ambientais necessárias ao avanço das
obras.
Da mesma forma, o avanço da fronteira agrícola, estimulada pelas obras de
infra-estrutura, gera conflitos entre os “povos da floresta” e a expansão das pastagens e
dos desmatamentos. No sul do estado de Mato Grosso do Sul, a consolidação da lavoura
LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S.. Brazil since 1980. Cambridge: Cambridge University Press, 5
2006, p. 131-132.
canavieira acelera o processo de pauperização e exclusão das comunidades indígenas,
afetando particularmente o povo Guarani Kaiowá. Os choques envolvem crimes de
assassinato, sequestro e violência contra os povos indígenas . Poucas vezes os reclames 6
dos povos indígenas são ouvidos pelas autoridades, que tem feito valer os interesses de
setores econômicos dominantes e o avanço de mega-projetos de desenvolvimento
nacional.
A Constituição republicana de 05 de outubro de 1988 assinalou avanços
importantes no trato da questão indígena. Surgida da derrocada do regime ditatorial
instaurado com o golpe militar de 1964, a Assembleia Nacional Constituinte marcou o 7
abandono do integracionismo que caracterizou a política indigenista brasileira desde o
período colonial. A República brasileira, desde os seus primórdios profundamente
influenciada pelo ideário positivista, concebia a condição de indígena como uma situação
transitória, fadada ao desaparecimento pela gradativa evolução dessas comunidades e
incorporação à sociedade nacional.
O artigo 22, inciso XIV, da Constituição de 1988, ao prever que compete
privativamente à União legislar sobre “populações indígenas”, simboliza, de forma
discreta, um dos mais importantes avanços do novo texto constitucional. As constituições
anteriores, ao definirem a competência da União para legislar sobre a questão indígena,
faziam menção expressa ao propósito de “incorporação dos silvícolas à comunhão
nacional” . Por mais de 400 anos, pelo menos entre 1570 e 1988, legislar sobre a 8
questão indígena no Brasil significava definir os termos legais pelos quais dar-se-ia a
assimilação dos povos autóctones à sociedade majoritária/dominante. A Constituição de
Em 20 de novembro de 2011, o Jornal Correio do Estado, de Mato Grosso do Sul, noticiava: “Até o final da 6
tarde ontem - 24 horas depois do ataque contra os índios Guarani Kaiowá que ocuparam parte da Fazenda Ouro Verde, em Amambai - a Polícia Federal ainda não tinha pistas que pudessem levar aos autores do atentado. Conforme a comunidade indígena, cerca de 40 jagunços fortemente armados invadiram o acampamento na sexta-feira (18), pegando homens, mulheres, idosos e crianças de surpresa. [...] O Ministério Público Federal e o Conselho Indigenista Missionário estão acompanhando as investigações [...]. Conforme o MPF, o cacique Nísio Gomes, de 59 anos, teria sido executado por pistoleiros e o corpo levado da área do conflito. Também estariam desaparecidas outras quatro pessoas, sendo uma mulher e uma criança.”
“A rigor, como já vimos, o que se fez, pela Emenda Constitucional 26, de 27.11.1985, foi convocar 7
instituições constituídas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, inclusive com senadores biônicos (senadores eleitos indiretamente, com candidatura imposta pelo Governo Central) para elaborar a nova Constituição. Não era uma autêntica Assembleia Nacional Constituinte, mas um Congresso Constituinte”. SILVA, 2011, p. 86.
Ver nota 137.8
1988 marca o abandono desse secular paradigma, reconhecendo a condição de indígena
como um marco de diferença cultural duradoura e enriquecedora da sociedade brasileira.
Durante a segunda metade do século XX, especialmente a partir de 1970,
com a obra do antropólogo teuto-americano Franz Boas, tornou-se cada vez mais claro
que “os chamados ‘povos primitivos’ dispunham de culturas completas e funcionais, que
em nada ficam atrás das chamadas ‘culturas dos civilizados’, no que diz respeito ao
desenvolvimento e à perspicácia de seu pensamento” . A teoria do relativismo cultural, 9
fortalecida no Brasil pela ação dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, responsáveis
pela criação do Parque Nacional do Xingu, prevaleceu no seio da Constituinte de 1987/88.
Resultado de um lento e profundo processo de amadurecimento democrático
da sociedade brasileira, a Constituinte foi palco de um inédito embate de forças na história
do Brasil. Grupos de pressão, representando os mais diversos setores da sociedade
brasileira, mobilizaram-se vigorosamente para imprimir na Carta Constitucional suas
reivindicações e interesses. Apesar de não contarem com representantes na Assembléia
Constituinte, “as atividades dos indígenas e das organizações ligadas a eles foram
caracterizadas, nesta fase dos trabalhos das Comissões e da Subcomissão, por uma
estratégia de intervenções diretas na forma de declarações de caciques, principalmente
dos Caiapó e dos Kaingang, assim como de representantes, entre eles, o índio Krenak,
Ailton Krenak, nas sessões públicas” . 10
Uma das questões mais controvertidas da Assembléia Constituinte foi a
questão das terras indígenas e os direitos de exploração de suas riquezas minerais.
Contando com indisfarçado apoio do poder executivo, então nas mãos do senhor José
Sarney, o setor minerador conseguiu impor aos povos indígenas um retrocesso histórico.
Se a Constituição de 1967/69, por seu artigo 186, dispunha que “É assegurada aos
silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao
KAYSER, 2010, p. 210. 9
KAYSER, 2010, p. 193. O autor acrescenta ainda: “É, no entanto, justo observar que o poder popular 10
encontrou na Constituinte um novo e forte concorrente: o poder corporativo. Novamente o procedimento tolheu o princípio popular, que só teve um momento para atuar diretamente, com propostas perante a Comissão de Sistematização, enquanto as organizações corporativas atuaram permanentemente em forma de lobby junto a deputados e senadores constituintes. Foi uma pressão ousada e terrível de associações e organizações de toda espécie, formadas às vezes especialmente para obter vantagens na Constituinte. A verdade é que, enquanto as propostas populares receberam - quando receberam - formulações de eficácia limitada, as corporações conseguiram assegurar seus interesses de maneira concreta”. Idem, p. 87.
usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”; a
Constituição de 1988 determinava, em seu artigo artigo 176, § 1o, que a pesquisa e a
lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica
somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, que
estabelecerá as condições específicas dessas atividades quando se desenvolverem em
terras indígenas.
O retrocesso é evidente. Do exclusivo usufruto indígena das riquezas
naturais de seus territórios, passou-se à possibilidade de sua exploração por não-índios,
sob condições que caberá à União estabelecer. Os bastidores da votação do capítulo
sobre os direitos indígenas na Assembléia Constituinte foram nebulosos, incluindo a
publicação de uma série de reportagens, a partir de 09 de agosto de 1987, no jornal O
Estado de São Paulo, sobre o tema “Os índios na nova Constituição - Conspiração contra
o Brasil”. Ensina Hartmut-Emanuel Kayser que “o conteúdo principal da série era a
acusação de que existia uma conspiração internacional contra o Brasil. Esta utilizava o
pretexto da defesa dos interesses indígenas para realizar a separação do território
nacional e a fundação de um estado independente, ou seja, para realizar uma
internacionalização da Amazônia, possibilitando assim a exploração, por consórcios
financeiros multinacionais, das matérias-primas encontradas nas terras indígenas, [...]” . 11
O episódio contou, inclusive, com a apresentação de documentos falsificados, noticiando
a existência de um “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs” que, efetivamente, não existia.
As reportagens, apesar de objeto de investigação que, à época, já comprovavam a
falsidade das informações veiculadas, foi capaz de influenciar a opinião pública e os
deputados constituintes, imprimindo o retrocesso assinalado.
Apesar dos inegáveis avanços da Constituição de 1988 - frutos muito mais
do avançar dos tempos que do compromisso real da classe política e dos grandes grupos
econômicos com a promoção dos direitos humanos -, pode-se aplicar também à questão
indígena a conclusão pessimista de José Afonso da Silva: “Em suma, a Constituição de
1988 não concluiu a reforma do Estado e deixou intacta a estrutura arcaica de poder, por
meio da qual as elites conservadoras realizaram a contrarreforma” . 12
KAYSER, 2010, p. 197.11
Idem, p. 90.12
Em lugar de estabelecer o pleno domínio dos índios sobre as terras em que
vivem, a Constituição de 1988 estabeleceu, em seu artigo 20, inciso XI, que as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios constituem bens da União. Sem desconsiderar
que diversos autores justificam a opção do constituinte como uma forma de proteção dos
territórios indígenas, particularmente, sustento que a atribuição das propriedade das
terras indígenas à União serve para legitimar medidas como a possibilidade de
exploração das riquezas minerais e potenciais hidrelétricos contidos no interior desses
territórios por não-índios. No ponto, pode-se registrar nítido retrocesso em relação à teoria
do indigenato, sustentada e aceita em nosso ordenamento jurídico, ao menos desde a
publicação da obra de João Mendes Júnior, em 1912. O instituto do indigenato reconhece
e declara em favor das comunidades indígenas poderes amplos e congênitos sobre suas
terras, como reconhecimento de que as violências históricas que marcaram a chegada
dos europeus na América não geram título jurídico de expropriação das comunidades
indígenas. De forma alguma a concepção do indigenato conforma-se ao reconhecimento
do tímido direito de posse das comunidades sobre as terras em que habitam. 13
Doutro lado, em diversos dispositivos, delega-se a órgãos estatais externos
à comunidade a decisão sobre questões que a afetam diretamente. Assim,
complementando o já citado dispositivo do artigo 176, § 1o, da Constituição de 1988, o
artigo 49, inciso XVI, estabelece que é da competência exclusiva do Congresso Nacional
autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a
pesquisa e lavra de riquezas minerais.
O processo e julgamento das disputas sobre direitos indígenas, segundo o
artigo 109, inciso XI, da Constituição, é da competência dos juízes federais. Doutro lado, a
Constituição Federal atribui ao Ministério Público, especialmente ao Ministério Público
Federal, a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das
populações indígenas, conforme o seu artigo 129, inciso V. A atuação do Ministério
Público para a tutela judicial de populações indígenas não tem precedentes nas
Constituições anteriores. Portanto, ao lado da FUNAI, órgão administrativo de proteção
das comunidades indígenas, tem-se a atuação judicial do Ministério Público Federal no
amparo aos direitos mais amplos e gerais das comunidades, inclusive em face da
O constituinte deu solução diversa ao caso das comunidades remanescentes de Quilombos. Sobre os 13
quilombolas, a Constituição Federal estabeleceu no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
recorrente inércia do próprio órgão administrativo encarregado da proteção indígena, a
FUNAI. Segundo Hartmut-Emanuel Kayser, “os artigos 129, V e 232 autorizam o MPF
apenas a reivindicações judiciais e à representação dos interesses indígenas. Para a
representação extrajudicial de interesses, esta competência cabe à Funai, como de
costume, de acordo com o artigo 35, do Estatuto do Índio” . Prossegue o autor afirmando 14
que “mesmo que não seja possível uma avaliação numérica da atividade do MPF, existe
porém unanimidade, entre as organizações indígenas, em relação ao fato de que sua
atividade tenha tido efeito positivo na imposição dos direitos indígenas no Brasil” . 15
Em gesto de autêntica emancipação das comunidades indígenas, a
Constituição de 1988, em seu artigo 232, estabeleceu que “os índios, suas comunidades
e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” O ordenamento
jurídico brasileiro abandonava a tese da incapacidade indígena para os atos da vida civil e
reconhece a plena capacidade jurídica dos índios e de suas comunidades para pleitearem
em juízo seus direitos. A tese da incapacidade indígena estava em vigor desde 27 de
outubro de 1831, quando o Império editou norma considerando os índios órfãos para os
efeitos da lei. Portanto, a Constituição de 1988 não recepcionou o artigo 6º, inciso VI, do
Código Civil de 1916 que dizia serem relativamente incapazes a certos atos ou à maneira
de os exercer os silvícolas . 16
Os direitos culturais das comunidades indígenas obtiveram amplo
reconhecimento na Constituição de 1988. Na educação, assegurou-se, na forma do artigo
209, § 2o, a utilização, no ensino fundamental regular, das línguas maternas indígenas,
bem como o emprego de seus processos próprios de aprendizagem. O artigo 215, § 1o,
estabelece especial proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Já o artigo 216 dispõe que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
KAYSER, 2010, p. 273.14
Idem, p. 274.15
O Parágrafo Único do artigo 6º, do Código Civil de 1916, estabelecia ainda: “Os silvícolas ficarão sujeitos 16
ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país”.
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar,
fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Os direitos culturais das comunidades quilombolas também receberam
atenção especial do Constituinte. O § 5o do artigo 216 estabelece que “Ficam tombados
todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos” . 17
Os povos indígenas gozam ainda de capítulo específico no título relativo à
ordem social. O artigo 231 reconhece “aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Conforme veremos adiante, esse dispositivo constitui uma cláusula de abertura que
integra ao ordenamento jurídico pátrio as instituições e formas de exercício de poder
indígenas. O caput do artigo 231 não é apenas o reconhecimento do valor cultural das
instituições e formas de organização social das comunidades indígenas, já expresso no
artigo 216. O dispositivo expressa a estatura constitucional das instituições indígenas,
bem como a vigência e normatividade jurídica dos atos que emanam das formas de
organização social, dos costumes e das tradições de suas comunidades.
O artigo 231 é o dispositivo fundamental do estatuto constitucional dos
povos indígenas no Brasil. Acolhendo o instituto do indigenato, de amplo reconhecimento
no constitucionalismo brasileiro, declara o direito dos índios às terras que tradicionalmente
ocupam. Segundo importante lição de José Afonso da Silva, “essas considerações, só por
si, mostram que a relação entre o indígena e suas terras não se rege pelas normas do
Direito Civil. Sua posse extrapola da órbita puramente privada, porque não é e nunca foi
uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido
ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o
O tombamento está previsto no Decreto-lei nº 25/37, sendo o ato administrativo pelo qual a Administração 17
reconhece o valor histórico-cultural de um bem, submetendo-o a especial regime jurídico de proteção, com restrições à sua comercialização, conservação, uso e alteração.
desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar
agasalho nas limitações individualistas do direito privado, daí a importância do texto
constitucional em exame, porque nele se consagra a ideia de permanência, essencial à
relação do índio com as terras que habita.” 18
O § 1º do artigo 231 esclarece que ocupação tradicional não diz respeito à
posse imemorial da terra, mas ao estabelecimento de morada permanente e utilização
segundo o modus vivendi da comunidade. A extensão da terra indígena, segundo esse
mesmo dispositivo, deve alcançar todas as áreas necessárias à preservação dos recursos
ambientais imprescindíveis ao bem-estar da comunidade, bem como aquelas necessárias
à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Portanto, “o
tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de
os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao
modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais
estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se
deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes,
tradições” . 19
O usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes
nas terras tradicionalmente ocupadas, previsto no § 2º do artigo 231, não alcança as
riquezas minerais e os potenciais hidrelétricos. Conforme visto alhures, e realçado pelo §
3º do artigo 231, “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas,
ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.” Não
obstante as notícias recorrentes de conflitos decorrentes de exploração mineral em terras
indígenas, até a presente data o legislador ordinário não dignou-se a editar a norma
específica prevista na Constituição, razão pela o Congresso Nacional jamais emitiu a
autorização prevista . 20
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 18
859-860.
Idem, p. 858.19
“No entanto, até o momento, ainda não foi aprovada uma lei pelo Congresso. Autorizações conforme o 20
artigo 231, § 3º, em conexão ao artigo 49, XVI CF não puderam, por isso, ser expedidas pelo Congresso desde a entrada em vigor da Constituição de 1988. A inexistência de tal lei torna ilegal qualquer pesquisa e exploração de recursos minerais realizada por não-índios, configurando-se crime previsto no Código de Mineração”. KAYSER, 2010, p. 254.
O § 4º do artigo 231, ao dispor que as terras indígenas são inalienáveis e
indisponíveis, bem como imprescritíveis os direitos sobre elas, reconhece sua natureza de
bem vocacionado à existência digna, permanente e duradoura das comunidades
indígenas, afastando a natureza de mercadoria que a terra adquire dentro dos sistemas
capitalistas de produção.
A remoção dos grupos indígenas é vedada pelo § 5º, do artigo 231, salvo,
"ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha
em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do
Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse
o risco.
Já o § 6º do artigo 231 - ao estabelecer que são nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a
posse das terras indígenas - estabelece a supremacia do título jurídico congênito
ostentado pelas comunidades indígenas sobre as terras americanas, conforme
preconizado pelo instituto do indigenato. De fato, como título originário e congênito, os
direitos da comunidade índia sobre a terra prevalecem sobre os atos privados ou públicos
que atentem contra eles. Referidos direitos sequer encontram supedâneo na Constituição,
porque são anteriores a ela. A Constituição apenas reconhece o direito primordial e
congênito dos índios às terras que as comunidades necessitam para sua sobrevivência
física e cultural. A ressalva é feita apenas em relação a relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar. A nulidade e a extinção de títulos
emitidos em prejuízo de direitos indígenas não gera direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa fé.
Por fim, o § 7o do artigo 231 estabelece uma proibição constitucional da
atividade de garimpeiros em terras indígenas. Segundo Hartmut-Emanuel Kayser, “o
motivo da proibição constitucional da garimpagem em terra indígena, que não admite
exceções, é a falta de fiscalização pelo Estado. Enquanto as sociedade mineradoras
podem perder suas concessões no caso de prejuízos ambientais ou a pessoas, a
atividade de garimpeiros isolados quase não pode ser fiscalizada” . Apesar da proibição 21
KAYSER, 2010, p. 241. 21
constitucional, registra-se a presença constante e numerosa de garimpeiros em terras
indígenas, com grande dificuldade de os poderes públicos fazerem valer o dispositivo
constitucional. A garimpagem em áreas indígenas representa, além da violação de seus
territórios, grave risco à saúde e à segurança das comunidades.
As Constituições, contudo, são obras inacabas, prenhes de possibilidades
latentes que serão construídas ou desconstruídas no momento de sua aplicação. O
potencial libertador de uma Constituição é entregue à sociedade e aos operadores do
Direito com um apelo por sua concretização. No próximo capítulo, analisaremos, a partir
do emblemático caso da demarcação da Raposa Serra do Sol, o que o Supremo Tribunal
Federal, Corte responsável pela guarda da Constituição no Brasil, tem feito em relação às
possibilidade da Carta de 1988 no que concerne aos povos indígenas.
Antes de passar ao próximo item, apenas uma advertência. A velocidade e o
desembaraço com que o Congresso brasileiro tem lançado mão das faculdades que lhe
são atribuídas como titular do poder constituinte reformador causa receio e espanto. A
edição de 66 Emendas Constitucionais, grande parte delas editadas por pressão de
poderosos grupos econômicos, faz-nos acreditar que a obra do Constituinte de 1988 não
constitui um marco irredutível dos direitos e garantias dos povos indígenas brasileiros . 22
Vale citar a valiosa lição de Emer de Vattel, que nos adverte, em sua obra O Direito das
Gentes: “As revoluções repentinas impressionam a imaginação dos homens: escreve-se a história, sublinham-se os eventos; negligenciam-se, no entanto, as mudanças que ocorrem imperceptivelmente por uma longa seqüência de ações graduais escassamente notadas. Seria um grande serviço prestado às Nações mostrar, pela história, quantos Estados mudaram completamente de natureza e perderam a sua primeira constituição. Despertar-se-ia a atenção dos povos e estes, conscientes da excelência do início, não menos essencial em política que em moral, obsta, não fechariam mais os olhos para inovações, por vezes pouco relevantes em si mesmas, mas que servem de etapas para se chegar a empreendimentos mais substantivos e mais perniciosos”.
O risco de que as sucessivas emendas constitucionais desnaturem o
significado histórico das conquistas de 1988 exigem da sociedade em geral e dos povos
indígenas, em particular, uma vigilância atenta e constante.
Nesse sentido, destaca Hartmut-Emanuel Kayser: “A possibilidade de autorização do uso e da exploração 22
dos recursos localizados em terras indígenas pelo Congresso Nacional, assim como a possibilidade de sanar, por lei complementar, a nulidade dos atos que infrinjam as normas de propriedade e posse, ocultam, apesar de suas altas barreiras, o risco de uma revogação pós-constitucional efetiva dos direitos indígenas. Também falta, na Constituição de 1988, uma “cláusula pétrea” com respeito aos direitos indígenas”. Idem, p. 278.
A PRÁXIS DOS DIREITOS CULTURAIS: O CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E A COLONIALIDADE DO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A concretização dos direitos culturais nos tribunais brasileiros, especialmente
no que concerne aos direitos indígenas, não traz bons augúrios. Não raro, os julgados
deixam entrever preconceitos arraigados e compromissos ideológicos com o
desenvolvimentismo, o nacionalismo e o integracionismo, plêiade de ideias que permeiam
a história dramática do aniquilamento das diferenças culturais e dos povos indígenas na
América Latina. A especificidade da condição indígena, bem como da legislação que a
serve, alcançou pouca compreensão dos operadores do direito no Brasil, reflexo do que
se estuda nas academias de direito, bem como dos preconceitos ainda latentes em nossa
sociedade. Via de regra, os critérios de ponderação e balanceamento pelos quais os
Tribunais tem decidido os conflitos interculturais no Brasil pendem reiteradamente para o
aniquilamento ou duras violações a direitos de minorias étnicas e culturais.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre o direito
indígena à terra, no espinhoso caso da delimitação da terra indígena Raposa Serra do
Sol, no estado de Roraima. Se, ao final, a mais elevada corte brasileira reconheceu o
pleito indígena pela demarcação contínua das terras, as razões de decidir do julgado
causam profunda preocupação . Senão, vejamos. 23
Primeiro, adiantemos que o julgamento do caso foi resultado de meses de
discussão e debates ferozes na Corte brasileira, acompanhada com apreensão pelos
setores sociais envolvidos. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal através de Ação
Popular que questionava a constitucionalidade e legalidade da Portaria nº 534/2005, do
Sobre o assunto, manifestou-se Bartolomé Clavero: “El Supremo Tribunal Federal de Brasil ha hecho 23
finalmente pública en audiencia abierta la sentencia sobre el caso Raposa Serra do Sol. Sus términos son favorables a la reclamación indígena, reintegrándosele el territorio que había sido invadido. La sentencia también se extiende al establecimiento de unas reglas generales sobre los derechos indígenas que resultan contrarias a los mismos. La alta corte hace uso de unos poderes extraordinarios de carácter normativo que le fueran conferidos en 2004 para la defensa de los derechos humanos aprovechando tales facultades para efectuar un ataque en toda regla contra los derechos de los pueblos indígenas, contra estos concretos derechos humanos. Es una operación de política de derecho, pues no de un carácter jurisdiccional, que dicha corte no se hubiera atrevido a plantearse y llevar a cabo respecto a ningún otro sector de la población de Brasil”. Disponível em <http://clavero.derechosindigenas.org/?p=1187>. Acessado em 20 de novembro de 2011.
Ministro da Justiça, e do Decreto Presidencial, de 15 de abril de 2005, que homologaram
a demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde vivem cerca de 20
mil índios, das comunidades indígenas Socó, Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá,
Jacarezinho e Manalai, que compõem parte dos povos Ingaricó, Taurepang, Macuxi, e
Wapichana.
O decreto homologatório publicado em 2005 estabeleceu prazo para a
desocupação da área por não-índios, instalados em grande número na região,
desrespeitando a Portaria nº 820/98, do Ministério da Justiça, que declarou a posse
permanente da terra aos povos indígenas. A Ação Popular foi proposta pelo senador da
República, senhor Augusto Affonso Botelho Neto, e pretendia a nulidade da Portaria e do
Decreto Presidencial que homologaram a demarcação contínua da área de 1.747.464
hectares reconhecida como de ocupação tradicional indígena. Pretendia-se, então, a
demarcação da terra em “bolsões”, “ilhas”, “blocos” ou “clusters”, de modo a assegurar a
permanência das ocupações de não-índios já instalados no interior do território indígena.
O amplo acervo de direitos reconhecido aos índios pela Constituição de
1988 foi invocado em prol da demarcação contínua da área. Como já dito, a sentença do
Supremo Tribunal Federal reconheceu o pleito indígena, todavia, a Corte percorreu um
caminho sinuoso e confuso, valendo-se de conceitos antropologicamente equivocados e
superados, estabelecendo premissas que, uma vez aplicadas, levariam ao aniquilamento
dos mesmos direitos que a sentença cuidou de tutelar. As razões da decisão lembra-nos
os dizeres de Edgardo Lander, quando afirma que “existe una extraordinaria continuidad
entre las diferentes formas en las cuales los saberes eurocéntricos han legitimado la
misión civilizadora/normalizadora a partir de las deficiencias-desviaciones respecto al
patrón normal de lo civilizado de otras sociedades. Los diferentes discursos históricos
(evangelización, civilización, la carga del hombre blanco, modernización, desarrollo,
globalización) tienen todos como sustento la concepción de que hay un patrón civilizatorio
que es simultáneamente superior y normal. Afirmando el carácter universal de los saberes
científicos eurocéntricos se ha abordado el estudio de todas las demás culturas y pueblos
a partir de la experiencia moderna occidental, contribuyendo de esta manera a ocultar,
negar, subordinar o extirpar toda experiencia o expresión cultural que no ha correspondido
con este deber ser que fundamenta a las ciencias sociales.” 24
A sentença dá péssimas lições de antropologia, quando afirma, por exemplo,
que silvícolas são “índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva”. Doutro
modo, a Corte deixa de lado diplomas internacionais firmados pelo Brasil, bem como
experiências do direito comparado, para reduzir a existência dos povos indígenas a uma
realidade sócio-cultural que não deve ter qualquer expressão político-territorial. A corte se
apega aos conceitos clássicos e cada vez mais frágeis de soberania estatal e nação para
reafirmar, em termos nitidamente autoritários, a exclusividade do “Direito nacional” nas
terras indígenas. Dispõe a Corte:
“5. AS TERRAS INDÍGENAS COMO PARTE ESSENCIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 5.1. As terras indígenas versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte do território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou ‘independência nacional’ (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as ‘terras indígenas’ são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles ‘tradicionalmente ocupadas’. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhum terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial”.
Das muitas possibilidades interpretativas oferecidas pela Constituição de
1988, observa-se que a Corte brasileira optou por referendar aquelas que reestabelecem
nos termos mais duros e inflexíveis as clássicas teorias da soberania nacional. Ao afirmar,
por exemplo, a exclusividade de um “Direito nacional” sobre todo o território, a Corte
atribui alcance bastante limitado, quando não ignora solenemente, o disposto no caput do
artigo 231, da Constituição Republicana de 1988, que reconhece aos índios sua
“organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. A necessidade de reafirmar
a soberania brasileira sobre as terras indígenas evoca os fantasmas que rondaram a
LANDER, Edgardo. Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico. En libro: La colonialidad del 24
saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. LANDER, Edgardo (comp.). CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales: Buenos Aires, Julio de 2000. Disponível em <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/lander1.rtf>. Acessado em 17 de agosto de 2011.
Assembléia Constituinte de 1988, com seus boatos de internacionalização da Amazônia e
ameaças à integridade territorial do Brasil.
A Corte também trai o propósito de emancipação das comunidades
indígenas quando afirma o “papel de centralidade institucional desempenhado pela União”
dentro das terras indígenas, que deve ser “coadjuvado pelos próprios índios, suas
comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização pelo
Ministério Público”. No mesmo sentido, o julgado afirma que “A exclusividade de usufruto
das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a [...]
instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de
comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços
públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança
institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades
tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas.
Ora, em um modelo autenticamente democrático e respeitador das
diferenças culturais resguardadas pela Constituição, o protagonismo das ações dentro
dos territórios indígenas deve caber às próprias comunidades. Ademais porque a
centralidade institucional da União na promoção dos povos indígenas tem servido, em
inumeráveis casos, à negação de seus mais primordiais direitos. Ao mencionar ainda o
Ministério Público como órgão tutelar das comunidades, faltou pouco para que a Corte
ressuscitasse o modelo instaurado pela lei imperial de 27 de outubro de 1831, que
considerava os índios órfãos, o que foi definitivamente abolido pela Constituição de 1988.
O Supremo Tribunal Federal também menoscaba as particularidades
culturais e históricas que conformam as comunidades indígenas ao desabonar a utilização
dos vocábulos “povo”, “país”, “território”, “pátria” ou “nação”, para descrever a realidade
indígena. O enunciado da Corte aparta o direito brasileiro de toda a realidade, porque
contraria a narrativa histórica de todo o continente americano, na qual os índios foram
reconhecidos como autênticas nações, aptas inclusive a firmar tratados internacionais,
como foi bastante comum nas áreas de colonização inglesa. Contrariando a história e a
própria realidade, o Supremo Tribunal Federal pretende constituir o índio e suas
territorialidades como um mero dado da paisagem sócio-cultural brasileira, despindo-o de
qualquer significação política. Da forma mais nefasta e espúria, a Corte brasileira se
permite ingressar na luta das representações de modo a garantir que permaneçam
cindidas as representações da realidade e a própria realidade histórica.
Ora, conforme ensina Pierre Bourdieu, as lutas a respeito da identidade
étnica dizem respeito a “propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através
do lugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, [...], são um caso
particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de
dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do
mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos” . Albagli e Maciel, definem 25
que “a noção de territorialidade procura evidenciar a interface entre as dimensões
territorial e sociocultural, referindo-se às relações entre um indivíduo ou grupo social e seu
meio de referência” . 26
Assim, fica evidente a pretensão do Supremo Tribunal Federal ao reprovar a
utilização da expressão território indígena: quer a Corte excluir toda a densa carga de
tensões e significações implicada na afirmação dos direitos territoriais indígenas. Ao
sustentar a pretensa opção do constituinte pela expressão “terras indígenas”, o Tribunal
desconsidera a rede de relações antropolócias, sócio-culturais, históricas e ambientais
que ligam o índio ao seu habitat. Ao definir a “terra indígena” como o espaço de
reprodução física e cultural dos povos indígenas está claro que a Constituição está a
tratar de territórios indígenas e não apenas de espaços territoriais ou terras indígenas. A
própria ementa do julgado afirma que “terra indígena, no imaginário coletivo aborígene,
não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que
resume em si toda ancestralidade, toda coetanidade e posteridade de uma etnia” . Resta
claro que se está a falar de território indígena, não de terra ou simples espaço geográfico.
Trata-se de espaço territorial humanizado e, portanto, território. Não prospera, ou não
deve prosperar, a intenção de afastar do mundo jurídico todas as implicações que os
conceitos, debates e ferramentas teóricas desenvolvidos em outros ramos das ciências
humanas implicam no próprio direito.
Da mesma forma, ao reprovar a utilização dos conceitos “povo” ou “nação”
para designar as comunidades indígenas no Brasil, o Supremo Tribunal, sem que cuide
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 113.25
ALBAGLI, Sarita e MACIEL, Maria Lúcia. Informação e conhecimento na inovação e no desenvolvimento 26
local. Ciência da Informação, v. 33, n. 3, p. 9-16, set/dez, Brasília, 2004.
ao menos de justificar sua legitimidade para tanto, engaja-se novamente nas lutas
simbólicas dos conceitos. E o faz na contramão dos mais recentes diplomas
internacionais subscritos pelo Brasil, entre os quais vale citar a Declaração da ONU sobre
Direitos dos Povos Indígenas, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
2007.
A despeito da utilização de expressões como povo ou nação, resta claro
que, em alguma medida, deve-se assegurar aos povos indígenas direitos de autogoverno,
sob pena de aniquilar a diversidade cultural tutelada constitucionalmente. Reduzir os
índios às mesmas categorias de cidadania que válidas para a sociedade envolvente é o
caminho mais curto e mais certo para a destruição de suas comunidades. Como já
longamente assentado pelo Tribunal Constitucional colombiano, mesmo a supremacia da
Constituição não se estende a todas as suas normas, sendo possível menoscabar
algumas de suas regras ou princípios de modo a assegurar a integridade de
manifestações humanas associadas a contextos interculturais . 27
Noutro ponto, a Corte compreende a demarcação das terras indígenas e o
próprio estatuto básico dos direitos indígenas, insculpido nos artigos 231 e 232 da
Constituição, como capítulo avançado de um constitucionalismo fraternal, voltado para a
“efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em
vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de
desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de
ações afirmativas. [...] Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os
não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade
étnica, mas somatório de mundividências”.
Ora, para qualquer acepção que se procure dar à expressão aculturação,
não me parece que a mesma possa ser empregada ao tratamento constitucional dado à
questão indígena no Brasil desde 1988. Portanto, não há aculturação de que trate a
Constituição. O que existe ali é o reconhecimento duradouro da legitimidade de todas as
formas de expressão cultural, devendo o estado velar pela sua manutenção e integridade,
através de políticas públicas e instituições adequadas à sua promoção.
Vide Caso Embera-chamí. Sentença T-349/96.27
Em seguida, causa espanto que o Tribunal estabeleça um marco temporal
de ocupação tradicional para fins de reconhecimento do território indígena. Dispôs o
julgado que “a Constituição Federal trabalhou com data certa - a data da promulgação
dela própria (5 de outubro de 1988) - como insubstituível referencial para o dado da
ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou
seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam”. Ora, conforme a lição de José Afonso da Silva, já exposta
neste capítulo, o critério da tradicionalidade adotado pela Constituição não diz respeito a
um critério temporal de ocupação, mas à relação com o território segundo os usos,
costumes e tradições de cada comunidade indígena.
A Corte ressalva que a “tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se
perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação não ocorreu
por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das fazendas situadas na
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua
capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo
geográfico ‘Raposa Serra do Sol’”. Ora, em face da realidade empírica vivenciada pelas
comunidades indígenas brasileiras, será muito difícil vislumbrar hipótese que não seja de
violência e usurpação de suas terras. Ora, a própria constituição de uma colônia
portuguesa na América, com partilha territorial feita pelo Sumo Pontífice católico, sobre a
qual se realizou mais tarde a criação de um “estado nacional” independente, constitui um
inegável ato de esbulho, condenável sob a ótica do Direito Internacional, conforme já
exposto alhures.
Mais ainda, se a Constituição de 1988 não outorgou o direito das
comunidades indígenas sobre os seus territórios, mas apenas o declarou ou o
reconheceu, acolhendo o instituto do indigenato, fruto de longa evolução no
constitucionalismo brasileiro, estabelecer a data de outubro de 1988 como o critério
temporal para a aferição deste direito, consiste em recepcioná-lo, ao mesmo tempo que
abolir, para o futuro, a sua validade. Portanto, a considerar os critérios do julgamento
proferido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988, ao mesmo tempo que
acolhe o instituto do indigenato, o extingue, usurpando dos índios o direito ao futuro, por
meio de sua reprodução física e cultural. A tese sustentada pela Suprema Corte brasileira
é ilógica, inconsistente, incoerente em seus próprios termos e absurda
Não há qualquer critério temporal para a validade do direito indígena à terra.
Se o indigenato é anterior à Constituição de 1988, é também posterior a ela. Os índios
brasileiros terão, ad aeternum, o direito aos territórios de que necessitem para sobreviver,
sendo o único requisito para o seu reconhecimento a ocupação da terra segundo seus
usos, costumes e tradições, aferidos também em cada momento histórico. Antever a
forma como cada geração irá resolver isso é tarefa estranha ao exercício da jurisdição,
muito mais quando do julgamento de um caso concreto. Parece-nos que o Supremo
Tribunal Federal, para tranquilizar os setores sociais que hostilizavam a demarcação da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, violou todo o direito e a própria lógica jurídica. O
precedente, no ponto, não há de ser acolhido pela doutrina e pelos tribunais brasileiros.
Em um dos trechos mais infelizes da ementa do acórdão, ao enfrentar o
tema dos direitos territoriais indígenas em face da questão da segurança nacional na faixa
de fronteira, o Tribunal desconsidera o direito de consulta estabelecido pela Convenção nº
169, da Organização Internacional do Trabalho, ao afirmar que as instituições do estado
não precisam de autorização de quem quer que seja para adentrar a terra indígena. A
Corte reaviva ainda o assimilacionismo de cores nacionalistas, abolido pela Constituição
de 1988. O Tribunal assentou:
COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém.
Em lugar de aplicar o direito, assegurando os marcos firmados pela
Assembléia Constituinte de 1988, a Corte parece transacionar com os setores mais
conservadores da sociedade brasileira. As “salvaguardas institucionais” agregadas ao
Acórdão pelo relator, Ministro Ayres Britto, ampliadas pelo Ministro Menezes Direito,
fazem recuar aos menores standards da história brasileira os direitos dos povos
indígenas. Consta do acórdão:
“Declarada, então, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e afirmada a constitucionalidade do procedimento administrativo-demarcatório, sob as seguintes salvaguardas institucionais majoritariamente aprovadas: a) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (§ 2o do art. 231 da CF) não se sobrepõe ao relevante interesse público da União, tal como ressaído da Constituição e na forma de lei complementar (§ 6o do art. 231 da CF); b) o usufruto dos índios não abrange a exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá (tal exploração) de autorização do Congresso Nacional; c) o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; d) o usufruto dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a permissão de lavra garimpeira; e) o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como à Fundação Nacional do Índio (Funai); f) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas, ou à Funai; g) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; h) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; i) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades aborígines, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com a consultoria da Funai, observada a legislação ambiental; j) o trânsito de visitantes e pesquisadores não índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; l) admitem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as condições estabelecidas pela Funai e os fundamentos desta decisão; m) o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios, respeitado o disposto na letra l, não podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; n) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda que não expressamente excluídos da homologação; o) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2o, CF, c/c art. 18, caput, Lei 6.001/1973);p) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativista (art. 231, § 2o, CF, c/c art. 18, § 1o, Lei 6.001/1973); q) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no art. 49, XVI, e art. 231, § 3o, da CR/1988, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei 6.001/1973), gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; r) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; s) os direitos dos índios sobre as suas terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4o, CR/1988); t) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento”.
Causam especial preocupação a vedação à ampliação de terras indígenas já
demarcadas; a afirmação da desnecessidade de consulta prévia à comunidade indígena
para realização de intervenções militares, expansão da malha viária e a exploração de
alternativas energéticas; bem como a sobreposição de unidades de conservação a terras
indígenas, com subordinação do usufruto indígena a regras estabelecidas pelo Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
Segundo a clarividente avaliação de Bartolomé Clavero “En buena práctica
constitucional, las normas sentadas debieran haberse producido por el poder legislativo,
ante el cual hubiera podido ponerse de manifiesto que ni siquiera él mismo cabría que las
adoptase, dado su tenor contrario a la Constitución y a tratados internacionales ratificados
por Brasil. Ante el poder legislativo se podría también haber hecho valer el derecho
indígena a la consulta. Así no sólo resulta que la sentencia constituya la coartada de una
operación de política legislativa sustancialmente anticonstitucional. Es también que los
otros poderes constitucionales, tanto el legislativo como el ejecutivo, se escudan y ocultan
tras el poder judicial para hacer lo que, conforme al derecho constitucional y al derecho
internacional, no pueden en absoluto llevar a cabo” . 28
Disponível em <http://clavero.derechosindigenas.org/?p=1187>. Acessado em 20 de novembro de 2011.28