A COERÊNCIA TEXTUAL E OS TEXTOS NARRATIVOS - RETOMADAS LEXICAIS Cláudia de Faria Barbeta – UTFPR Londrina 1. A lingüística textual e os estudos da coerência Até os anos 60, muitas pesquisas que buscavam descrever o funcionamento da linguagem humana e a estrutura da língua restringiam-se ao estudo da palavra ou da frase. O limite, portanto, era a frase. Essas mesmas pesquisas geralmente focalizavam a língua no campo da fonologia, da morfologia ou da sintaxe. Entretanto, tais descrições não davam conta das características semânticas ou contextuais que surgiam nas diferentes situações de comunicação. Havia lacunas no estudo da gramática de frases, já que se começou a perceber que um texto não era apenas uma seqüência de frases isoladas. Nesse contexto, nasceu no final da década de 60, a Lingüística Textual, que, segundo Fávero e Koch (1994), buscou tomar como unidade básica, ou seja, como objeto particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por ser o texto a forma específica de manifestação da linguagem. A preocupação seria, então, descrever os fenômenos lingüísticos que ocorriam além da frase. Assim, extrapolam-se os limites da frase e assume-se o texto como objeto de estudo.
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A COERÊNCIA TEXTUAL E OS TEXTOS NARRATIVOS - RETOMADAS LEXICAIS
Cláudia de Faria Barbeta – UTFPR Londrina
1. A lingüística textual e os estudos da coerência
Até os anos 60, muitas pesquisas que buscavam descrever o funcionamento
da linguagem humana e a estrutura da língua restringiam-se ao estudo da palavra ou da frase.
O limite, portanto, era a frase. Essas mesmas pesquisas geralmente focalizavam a língua no
campo da fonologia, da morfologia ou da sintaxe.
Entretanto, tais descrições não davam conta das características semânticas
ou contextuais que surgiam nas diferentes situações de comunicação. Havia lacunas no estudo
da gramática de frases, já que se começou a perceber que um texto não era apenas uma
seqüência de frases isoladas. Nesse contexto, nasceu no final da década de 60, a Lingüística
Textual, que, segundo Fávero e Koch (1994), buscou tomar como unidade básica, ou seja,
como objeto particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por ser
o texto a forma específica de manifestação da linguagem. A preocupação seria, então,
descrever os fenômenos lingüísticos que ocorriam além da frase. Assim, extrapolam-se os
limites da frase e assume-se o texto como objeto de estudo.
Segundo Koch (1999), no início, a Lingüística Textual preocupou-se em
descrever fenômenos sintático-semânticos que ocorriam entre enunciados ou seqüências de
enunciados, alguns deles, inclusive, semelhantes aos que já haviam sido estudados no nível da
frase.
Surge o interesse por questões como a correferência, o emprego do artigo, a
correlação entre os tempos verbais, fenômenos que atualmente são considerados elementos de
coesão textual. Embora neste primeiro momento se tenha dado um importante passo para se
superar os limites da frase, ainda não se pode dizer que já tenha chegado a um tratamento
autônomo do texto.
Na década de 70, sob a influência da gramática gerativa, procurou-se
apreender uma gramática de texto. O texto não é visto apenas como uma seqüência de
enunciados, mas um objeto que possui significação em seu todo. Baseado no conceito
chomskyano de que todo falante possui uma competência textual que lhe faculta reconhecer a
produzir textos coerentes, buscou-se construir uma gramática de texto. Costa Val (2000)
explica que essa gramática procura definir o que faz com que um texto seja um texto, e não
uma mera seqüência, mesmo coerente, de enunciados, e descrever os fatores de coerência ou
de textualidade, bem como estabelecer critérios de tipologia textual.
A tarefa da gramática seria descrever e explicar a competência textual,
estabelecendo os princípios constitutivos do texto, explicando os critérios de
sua delimitação e completude, determinando uma tipologia de textos. (Costa
Val, 2000, p.35)
1.1. Charolles e a Coerência Textual
Na época antes citada, enquanto diversas teorias e pesquisas procuram
explicitar os fenômenos lingüísticos mais abrangentes que a frase por meio de uma gramática
de textos, o lingüista francês Charolles (1997) publica o artigo Introduction aux problèmes de
la coherence des textes. A importância desse trabalho, segundo Costa Val (2000), justifica-se
na tentativa do autor em explicitar o sistema implícito de regras de coerência com o qual
operamos na produção.
Preocupado com as estratégias de intervenção que os professores franceses
desenvolviam frente a certos textos escritos julgados como incoerentes, Charolles (1997)
conforme já mencionado, foi buscar contribuições para o estabelecimento de critérios na
avaliação da coerência textual da produção discente.
O autor percebeu que, geralmente, o professor, ao avaliar o texto de seus
alunos, não conseguia ultrapassar o nível de apercepção imediata, denunciando ingenuamente
as malformações textuais que encontra (“mal escrito”, “incompreensível”, “refazer”),
conduzindo, assim, a intervenções freqüentemente pouco eficazes.
Assim, seu trabalho procurou desenvolver um modelo para análise de
textos, enfocando justamente um aspecto a respeito do qual dificilmente o professor pode ser
preciso ao avaliar uma redação – a coerência textual, visto que, em geral, o professor percebia
“falhas” relativas ao encadeamento lógico das idéias do texto, mas não as podia identificar
com objetividade.
O lingüista afirma, então, que uma condição necessária para que um texto
seja coerente é que se possa associar uma seqüência de micro e macroestruturas coerentes. A
coerência microestrutural refere-se ao nível local do texto, em que as relações de coerência se
estabelecem, ou não, entre as frases da seqüência textual. A coerência macroestrutural refere-
se ao nível global, em que as relações se estabelecem entre as seqüências construtivas.
Contrariamente a Koch e Travaglia (1999) e outros autores, Charolles
(1997) questiona a possibilidade de se operar uma partição rigorosa entre as regras de
abrangência textual e as de abrangência discursiva. Indo além, ele se refere à "inutilidade
presente" de uma distinção entre coesão e coerência. Desse modo, o autor em questão não
considera importante separar, na avaliação de um texto, aquilo que é "superfície" e o que é
"lógico-semântico". O resultado disso tudo compõe simplesmente o conceito de coerência,
que subsume o conceito de coesão.
Antes de passarmos à apresentação e ao estudo dos quatro princípios de
coerência textual propostos por Charolles (1997) e que é o ponto de partida desse estudo,
torna-se necessário, pois, esclarecer a problemática criada pela dicotomia coerência/coesão
que se encontra diretamente relacionada à dicotomia coerência macro-estrutural/coerência
micro-estrutural.
Para Koch e Travaglia (1999), por exemplo, a coerência está diretamente
ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, enquanto que a coesão é a
expressão formal, lingüística e lexical da coerência, sua "manifestação superficial". No
entanto, para esses autores, o elemento imprescindível ao estabelecimento da textualidade é a
coerência no plano das idéias. A coesão será um facilitador no cálculo da coerência.
A coerência, tida por esses autores como princípio de interpretabilidade e
compreensão do texto, é resultado das relações subjacentes à superfície textual, tornando-se
responsável pelo sentido do texto. Envolve os aspectos lógicos, semânticos e cognitivos do
texto. Além dos fatores internos do texto, é exigida uma compatibilidade de conhecimento de
mundo entre o produtor e o recebedor. Para os autores, a coerência é algo que se estabelece na
interação, na interlocução, numa situação comunicativa entre dois usuários, algo que se
relaciona com a "boa formação” do texto, ao mesmo tempo semântico e pragmático.
Ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo ser
vista, pois, como um princípio de interpretabilidade do texto. Assim ela pode
ser vista também como ligada à inteligibilidade do texto numa situação de
comunicação e à capacidade que o receptor do texto (que o interpreta para
compreendê-lo) tem para calcular o seu sentido. A coerência seria a
possibilidade de estabelecer, no texto, alguma forma de unidade ou relação.
Essa unidade é sempre apresentada como uma unidade de sentido no texto, o
que caracteriza a coerência como global, isto é, referente ao texto como um
todo. (Koch e Travaglia, 1999, p. 11)
Costa Val (1999) afirma que a coerência envolve não só os aspectos lógicos
e semânticos, mas também cognitivos, na medida em que depende do partilhar de
conhecimentos entre os interlocutores. Segundo a autora, a coerência e a coesão promovem
conjuntamente a "inter-relação semântica entre os elementos do discurso”.
A coerência é, pois, caracterizada como um vínculo subjacente que cada
frase mantém com a anterior ou anteriores para não perdermos o fio do pensamento. De outra
forma, tem-se uma seqüência de frases sem sentido, sucedendo-se umas às outras sem muita
lógica, sem nenhuma coerência. O importante é cada enunciado estabelecer relações estreitas
com os outros, a fim de tornar sólida a estrutura do texto.
Ainda Koch e Travaglia (1999) apontam que coesão contribui para
estabelecer a coerência, mas não garante a sua obtenção:
Paralelamente ao conceito de coerência, formando com ele uma espécie de
par opositivo/distintivo, encontramos nos estudos textuais o conceito de
coesão. Ao contrário da coerência, a coesão é explicitamente revelada
através de marcas lingüísticas, índices formais na estrutura da seqüência
lingüística e superficial do texto. Sendo, portanto, de caráter linear, já que se
manifesta na organização seqüencial do texto. É nitidamente sintática e
gramatical, mas é também semântica, pois, como afirmam Halliday e Hasan,
a coesão é a relação semântica entre um elemento do texto e um outro
elemento que é crucial para sua interpretação. A coesão é, então, a ligação
entre os elementos superficiais do texto, o modo como eles se relacionam, o
modo como frases ou partes delas se combinam para assegurar um
desenvolvimento proposicional. (Koch e Travaglia, 1999, p.13/14)
Fávero (2000) também procura deixar claro que, para ela, coesão e
coerência devem ser analisadas em níveis diferentes:
A coesão, manifestada ao nível microtextual, refere-se aos modos como os
componentes do universo textual, isto é, as palavras que ouvimos ou vemos,
estão ligados entre si dentro de uma seqüência. A coerência, por sua vez,
manifestada em grande parte macrotextualmente, refere-se aos modos como
os componentes do universo textual, isto é, os conceitos e as relações
subjacentes ao texto de superfície, se unem numa configuração, de maneira
reciprocamente acessível. Assim a coerência é o resultado de processos
cognitivos operantes entre os usuários e não mero traço dos textos. (Fávero,
2000, p.10)
Charolles (1997), por outro lado, não está preocupado, nas suas pesquisas,
em distinguir esses dois fatores – a coesão e a coerência. Seu estudo, realizado nos anos 70,
na verdade, vai ao encontro das pesquisas da Lingüística Textual, a partir dos anos 80, quando
surge a preocupação em construir teorias de texto, em que, conforme Fávero e Koch (1994),
assumem relevância primordial o tratamento dos textos no seu contexto pragmático, ou seja,
as preocupações com os fatores de produção, de recepção e de interpretação de textos.
Segundo as autoras, o desenvolvimento das teorias de texto muito deve, por
um lado, à teoria dos atos de fala e à lógica das ações, e, por outro lado, à pragmática
lingüística, que se propõe estudar a linguagem do ponto de vista de seu uso e de seus usuários.
Fundamenta-se a lingüística textual na concepção da linguagem como atuação
sociocomunicativa, inserida numa situação específica de comunicação.
O que ganha relevo é a compreensão de que a significação de um texto não
se encerra nem se resolve nele mesmo, mas se reproduz na relação desse
texto com o contexto em que ele ocorre, nas ações que, por ele, com ele ou
nele, os falantes realizam. (Costa Val, 2000, p. 36)
Nesse sentido, de acordo com Charolles (1997), cabe à coerência o papel de
manifestação de conceitos subjacentes do texto, trabalhados no nível macroestrutural. Ela é
estabelecida na interlocução, numa situação comunicativa específica. Assim, a situação de
interlocução é fator relevante para a avaliação do texto, ao levar-se em conta que sua
ocorrência está no nível da coerência. Mesmo porque, como afirmam Koch e Travaglia
(1999), a coerência estaria no processo que coloca texto e usuários em relação, em uma dada
situação.
Desse modo, Costa Val (2000) ressalta que a proposta de Charolles (1997),
mesmo levada a efeito no final da década de 70, é relevante, pois traz uma tentativa do
lingüista de explicar o sistema implícito de regras de coerência com o qual operamos na
produção, interpretação e avaliação de textos. Para a autora:
As regras, ou ‘metarregras’, como as chama o autor, não são pensadas como
tendo caráter normativo: não se trata, de maneira nenhuma, de prescrições
sobre como deve ser um texto coerente. Pelo contrário, são concebidas como
regras constitutivas da coerência. (Costa Val, 2000, p. 42)
A autora também afirma que a aplicabilidade das propostas de Charolles
(1997) para a compreensão da natureza e do funcionamento dos textos e para o ensino parece
considerável até hoje, porque o conceito de coerência permanecia vago, inatingível, e torna-se
um pouco operacionalizável, a partir da postulação das quatro metarregras do autor.
Ela ainda ressalta que o trabalho do estudioso francês em foco é importante
porque propõe a coerência e o sentido do texto como dependentes da situação: o texto não é
nem deixa de ser coerente em si mesmo, mas é coerente ou não para alguém em determinada
situação.
Minha insistência nessa questão de que a coerência e o sentido não estão no
texto, mas são processados na situação de interlocução, se justifica porque
considero essa idéia fundamental para o ensino, sobretudo para o ensino de
leitura e redação (entendido esse termo como processo de redigir). (Costa
Val, 2000, p.42)
Dessa forma, a autora explica que Charolles (1997), ao desenvolver um
modelo de análise de textos, preocupando-se com o aspecto da coerência textual, procurou
articular elementos da constituição semântica de interlocução.
Em decorrência disso, Costa Val (2000) postula que as metarregras se
mostram úteis em sala de aula, porque explicam como se constitui a coerência, possibilitando
ao professor orientações e avaliações mais objetivas. Ela também enfatiza que o trabalho de
Charolles (1997) não perde de vista que a coerência não é uma questão que se resolva no
âmbito do texto enquanto produto, mas, antes, é um processo que se desenvolve na relação de
interlocução.
1.2. As Metarregras de Coerência
Para avaliar a coerência em textos produzidos por alunos, Charolles (1997)
formulou quatro metarregras de coerência:
a) a metarregra da relação: a coerência textual é atestada pela trama dos
elementos representados no texto. É necessário que eles sejam ligados entre
si.
Para que uma seqüência ou um texto sejam coerentes, é preciso que os fatos
que se denotam no mundo representado estejam relacionados. (Charolles,
1997, p.74)
Para o autor, essa regra tem natureza fundamentalmente pragmática, pois
afirma que, para que uma seqüência seja coerente, é necessário que as ações, os estados ou
eventos que ela denota sejam percebidos como fatos congruentes, ou seja, mantenham relação
entre si.
b) a metarregra da não-contradição: a coerência é garantida se nenhum
elemento semântico que contradiga um conteúdo expresso for
introduzido no texto:
Para que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente
coerente, é preciso que no seu desenvolvimento não se introduza nenhum
elemento semântico que contradiga um conteúdo posto ou pressuposto por
uma ocorrência anterior, ou deduzível desta por inferência. (Charolles, 1997,
p.61)
O texto não pode apresentar contradições nem no âmbito interno nem em
relação ao mundo a que se refere. Quer dizer, se o texto afirmar x não pode, em seguida,
afirmar o contrário de x. A coerência interna exige que não sejam introduzidos elementos que
se contradigam. As idéias contidas em um texto precisam ser conciliáveis com as ocorrências
anteriores, inclusive no que trazem de pressuposto e no que permitem inferir.
Além disso, para haver coerência, as idéias do texto não podem contradizer
o mundo ao qual se referem. Se um texto diz respeito ao mundo real, deve observar certas
leis, maneiras de pensar e pressuposições básicas que trazem implícitas a comunicação
textual. Por exemplo, um texto referencial não pode ignorar que dois corpos não ocupam o
mesmo lugar no espaço, ao mesmo tempo.
a) a metarregra da progressão: a coerência é estabelecida quando no
desenvolvimento do texto são introduzidas novas idéias, novos fatos,
novas informações, que garantam a progressão:
Para que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente
coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento uma contribuição