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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PUCRS
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL FAMECOS
PS-GRADUAO EM COMUNICAO PPGCOM REA DE CONCENTRAO: PRTICAS E
CULTURAS DA COMUNICAO
LINHA DE PESQUISA: PRTICAS CULTURAIS NAS MDIAS, COMPORTAMENTOS E
IMAGINRIOS DA SOCIEDADE DA COMUNICAO
BRENO MACIEL SOUZA REIS
A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA
REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE
Porto Alegre
2013
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BRENO MACIEL SOUZA REIS
A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA
REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE
Porto Alegre
2013
Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de
mestre pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Comunicao Social
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. rea de
concentrao: Prticas e Culturas da Comunicao. Orientador: Prof. Dr.
Eduardo Campos Pellanda
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BRENO MACIEL SOUZA REIS
A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA
REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE
Aprovada em: ____de____________________de_______.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________
Prof. Dr. Cristiano Max Pereira Pinheiro - FEEVALE
_________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Tietzmann - PUCRS
__________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda (orientador) - PUCRS
Porto Alegre
2013
Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de
mestre pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Comunicao Social
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. rea de
concentrao: Prticas e Culturas da Comunicao. Orientador: Prof. Dr.
Eduardo Campos Pellanda
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minha me, Marlia de Souza Reis,
por seu amor e incentivo infinitos.
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AGRADECIMENTOS
CAPES, pela bolsa de estudos, sem a qual seria impossvel a
realizao dessa
pesquisa.
Obrigado Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e
Faculdade dos
Meios de Comunicao Social (FAMECOS) por proporcionar um ambiente
de
estudos de excelncia e corpo docente inspirador.
Ao orientador desse trabalho, Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda,
por acreditar na
minha capacidade e pela parceria no caminho.
Obrigado UBITEC, que, alm de me proporcionar valiosas trocas de
conhecimento,
me acolheu e deu tambm amigos e colegas brilhantes que
certamente contribuiro
muito para o crescimento cientfico no pas.
Ao UbiLab, pelo aprendizado e crescimento nicos. Grande
time!
A toda minha famlia, principalmente minha me, Marlia de Souza
Reis, e minha av
Teresinha de Assis Souza, por serem os melhores exemplos de vida
que algum
pode ter.
Muito obrigado a todos os meus amigos (os de longa data e
recentes) que me
acompanharam nesse caminho, especialmente aqueles que
partilharam os cafs, as
risadas, os choros e as inmeras dvidas: Luciele Copetti, Sandra
Henriques,
Cnthia Barbosa, Poliane Espndola, Pedro Reis, Robson Macedo,
Priscilla
Guimares Oliveira e Aline Bianchini. Vocs so incrveis.
-
No habitamos porque construmos. Ao contrrio. Construmos
e chegamos a construir medida que habitamos, ou seja,
medida que somos como aqueles que habitam
M. Heidegger
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RESUMO
Este trabalho se insere nos estudos do fenmeno do jogo e sua
ocorrncia como
elemento mediador essencial formao e compartilhamento de formas
simblicas
a partir da comunicao humana, e, por consequncia, da prpria
sociedade. A
partir da constatao da presena macia de aparatos tecnolgicos no
cotidiano e
da imbricao existente entre estes, as redes informacionais e o
prprio espao
pblico das cidades, a qual agora passa a ser entendida como
cibercidades
(LEMOS, 2004), estudamos os elementos de gameplay presentes na
rede social
mvel Foursquare como uma das apropriaes possveis da mesma pelos
seus
usurios a partir da sua transformao em um jogo mvel locativo. De
tal maneira,
utilizamos como vis metodolgico a netnografia, primordialmente a
partir de Hine
(2000) e Kozinetz (2010) para insero no objeto; e o conceito de
ludema proposto
por Pinheiro e Branco (2011; 2012) para anlise das mecnicas de
jogo presentes
na rede sob a perspectiva dos game studies, e a identificao dos
mesmos no
Foursquare - alm de ter sido possvel o seu entendimento enquanto
sistema ldico
regido por regras especficas e com base na competio entre os
participantes como
fora-motriz dos elementos presentes. Apresenta ainda, como
anlise
complementar, a observao de perfis de 10 usurios da rede social
em questo,
buscando indcios que pudessem confirmar o uso da mesma como
jogo, como
acmulo de bens simblicos especficos ao sistema, entendidos
como
achievements, e tambm relaes de conflito e competio,
entendendo-as
essencialmente como processos de interao permitidos pela
rede.
Palavras-chave: cibercultura; comunicao; redes digitais mveis;
jogos mveis
locativos; Foursquare.
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ABSTRACT
This work fits in studies of the phenomenon of play and its
occurrence as an
essential mediator of formation and sharing of symbolic forms
from human
communication, and therefore, the society itself. From the
understanding of massive
technological devices in everyday life and the overlapping
between these ones, the
information networks and public space of cities itselves, which
now can be
understood as cybercities (Lemos, 2004), we studied the elements
of gameplay
present in the mobile social network Foursquare, as a possible
appropriation by its
users and its transformation into a locative mobile game. The
netnography was used
as the methodological bias, mostly from Hine (2000) and Kozinetz
(2010), to
approach the object; and the concept of ludema, proposed by
Pinheiro and Branco
(2011, 2012) to the analysis of game mechanics in this social
network from the
perspective of game studies, and the identification of those at
Foursquare - besides
being possible to be understood as a playful system governed by
specific rules and
based on competition among the participants as the driving force
of those elements.
It also presents, as a complement, the observation of 10 users
profiles of the social
network, searching for clues that might confirm the use of it as
a game, as the
accumulation of symbolic goods specific to the system,
understood as achievements,
and also relations of conflict and competition, understanding
the interaction
processes essentially as admitted by the mobile network.
Keywords: cyberculture; communication; mobile digital networks
locative mobile
game; Foursquare.
-
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: classificao dos jogos proposta por Caillois
............................................ 42
Figura 2: Pong, jogo surgido nos anos 60.
................................................................
44
Figura 3: primeiro console de videogame comercial, Magnavox
Odyssey (1972) ..... 45
Figura 4: console domstico Pong (1975), lanado pela Atari.
................................. 46
Figura 5: Auto Race, primeiro console porttil (1976).
.............................................. 47
Figura 6: Microvision (1979).
.....................................................................................
47
Figura 7: joystick lanado pela Atari com o VCS (1977).
.......................................... 49
Figura 8: Pac-Man (1980)
.........................................................................................
50
Figura 9: handheld Game & Watch (1980)
................................................................
51
Figura 10: LCD Solar Power (1982)
..........................................................................
51
Figura 11: Nintendo Enterteinment System (1985)
................................................... 53
Figura 12: Game Boy (1989)
.....................................................................................
54
Figura 13: Playstation (1995)
....................................................................................
55
Figura 14: DynaTAC 8000X (1984).
..........................................................................
57
Figura 15: Game Boy Color (1998).
..........................................................................
58
Figura 16: N-Gage (2003).
........................................................................................
59
Figura 17: iPhone (2007).
..........................................................................................
61
Figura 18: Snake, jogo padro presente em telefones mveis Nokia.
...................... 62
Figura 19: Nintendo DS (2004).
.................................................................................
63
Figura 20: Playstation Portable (2004).
.....................................................................
63
Figura 21: Hbrido de telefone celular e handheld Xperia Play
(2011). ..................... 65
Figura 22: Um dos pees da experincia Big Urban Game.
..................................... 73
Figura 23: pgina do jogo Ingress.
............................................................................
99
Figura 24: interface inicial do aplicativo Ingress
...................................................... 100
Figura 25: exibio do estado de cada faco no Ingress.
..................................... 101
Figura 26: pgina Ingress Intel Map, exibindo a cidade de Porto
Alegre ................ 102
Figura 27: rede social mvel Dodgeball
..................................................................
104
Figura 28: rede social mvel Where
........................................................................
105
Figura 29: rede social mvel Here
...........................................................................
105
Figura 30: rede social mvel Gowalla
.....................................................................
106
Figura 31: interface mvel do Google Latitude
........................................................ 107
-
Figura 32: sistema de ofertas disponveis para ativao por
estabelecimentos
comerciais no Foursquare
.......................................................................................
146
Figura 33: aplicativo Foursquare for Business.
....................................................... 147
Figura 34: medalha Sem Fronteiras, vinculada TIM Brasil .
................................. 148
Figura 35: aplicativo do Foursquare exibindo locais durante
check-in .................... 151
Figura 36: venue da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande
do Sul. ......... 152
Figura 37: campo shout na interface de check-in do aplicativo
Foursquare ............ 153
Figura 38: pgina do Foursquare explicativa sobre as badges
............................... 155
Figura 39: algumas badges disponveis para ativao no Foursquare
................... 156
Figura 40: medalha Its a Boy!.
.............................................................................
157
Figura 41: medalha Bento.
....................................................................................
157
Figura 42: medalha Century Club
.........................................................................
157
Figura 43: bagdes especiais do festival SXSW de 2011
......................................... 158
Figura 44: Diferenas de formato entre medalhas.
................................................. 159
Figura 45: Badges de expertise Pizzaiolo, Hot Temale e Herbivore
....................... 160
Figura 46: Badges de expertise Great Outdoors, Jetsetter e
Traisnpotter .............. 161
Figura 47: Badges de expertise Blue Note, Warhol e Bookworm
............................ 161
Figura 48: Badge Zootrope, especializada para frequentadores de
cinemas ......... 161
Figura 49: Algumas badges de cidades dos Estados Unidos da
Amrica. ............. 162
Figura 50: Badges Carioca e Sampa
......................................................................
162
Figura 51: complemento My4SquareAlibi em pgina do Foursquare.
..................... 166
Figura 52: pgina Foursquareaddict, com atalhos para a obteno de
badges ...... 167
Figura 53: placar semanal do Foursquare com os pontos atribudos
de acordo com a
utilizao frequente do servio.
...............................................................................
168
Figura 54: conquista de ttulo de Mayor, ou Prefeito.
.............................................. 169
Figura 55: interface inicial do Foursquare para smartphones
................................. 170
Figura 56: seo explorar do aplicativo Foursquare para
smartphones .................. 172
Figura 58: mapa explorar do aplicativo Foursquare
................................................ 173
Figura 59: seo Eu do aplicativo Foursquare para dispositivos
mveis ................ 174
Figura 60: subseo Amigos do aplicativo Foursquare para
dispositivos mveis ... 175
Figura 61: subseo Estatsticas para dispositivos mveis
..................................... 176
Figura 62: subseo Badges do aplicativo Foursquare
........................................... 177
Figura 63: subseo Listas do aplicativo Foursquare para
dispositivos mveis ..... 177
Figura 64: interface inicial da verso web do Foursquare
....................................... 178
-
Figura 65: seo explorar da verso web do Foursquare
....................................... 179
Figura 66: pgina de estatstica de uso do Foursquare
.......................................... 181
Figura 67: esquema bsico de um campo de queimada, ou dodgeball
.................. 183
Figura 68: esquema bsico de um campo de foursquare
....................................... 184
Figura 69: badges de expertise com a visualizao do nvel de
experincia ......... 188
Figura 70: Badge de expertise Wino.
......................................................................
196
Figura 71: Badges concedidas a SuperUsurios
.................................................... 200
Figura 72: Badge Player Please
..............................................................................
201
Figura 73: Badges desbloqueadas a partir de check-ins em massa
....................... 201
Figura 74: mensagens em check-in com amigos.
................................................... 203
Figura 75: mensagem com atribuio de pontos por check-in
realizado ................. 203
Figura 76: site do projeto World of Fourcraft
........................................................... 205
Figura 77: pgina do jogo Metropoli
........................................................................
207
Figura 78: aplicativo do jogo Banco Imobilirio
Geolocalizado................................ 208
Figura 79: conta bancria do jogo Banco Imobilirio Geolocalizado
....................... 209
Figura 80: mensagem deixada na pgina de uma venue do TecnoPUC
................ 219
Figura 81: pgina do usurio 2 no
Foursquare........................................................
220
Figura 82: pgina do usurio 3 no
Foursquare........................................................
222
Figura 83: local repetidos na lista de prefeituras do usurio 3.
............................... 222
Figura 84: pgina da venue corresponde cidade de Porto Alegre.
....................... 224
Figura 85: pgina do usurio 9 no
Foursquare........................................................
225
Figura 86: pgina do usurio 10 no
Foursquare......................................................
226
Figura 87: pgina de venue da qual o usurio 10 possui o ttulo de
prefeito .......... 226
Figura 88: Badges padro e de cidades desbloqueadas pelo usurio 2
................. 230
-
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: dados coletados a partir de perfis de usurios do
Foursquare .............. 217
-
SUMRIO
1 INTRODUO
.......................................................................................................
16
2 SENTIDO DO JOGO HUMANO E SUA FUNO NA CULTURA
........................ 23
2.1. O conceito de jogo como fenmeno cultural
...................................................... 24
2.2 Uma breve arqueologia dos jogos eletrnicos e digitais
..................................... 42
2.3 Os game studies e abordagens contemporneas
............................................... 66
2.4 O carter pervasivo do jogo mvel locativo
......................................................... 69
2.5 A questo da virtualidade do jogo em Huizinga e Lvy
....................................... 76
3 MOBILIDADE, REDES SOCIAIS E MDIAS LOCATIVAS
.................................... 81
3.1 A emergncia do ciberespao
.............................................................................
82
3.2 As cibercidades e mdias locativas como prtica comunicacional
....................... 92
3.3 Redes sociais mveis: histrico e cenrio atual
................................................ 103
4 SOCIALIDADE, INTERAO E COMPETIO
................................................. 111
4.1 A competio e o conflito como formas sociais e a interao em
simmel ......... 111
4.2 Interacionismo simblico e a Escola de Chicago
.............................................. 117
4.3 Novos nomadismos e prticas de espao a partir de redes
sociais mveis. ..... 122
5 METODOLOGIA
..................................................................................................
133
5.1 Estratgias metodolgicas para investigao em cibermeios e game
studies .. 133
5.2. A ida a campo e o mapeamento do sistema Foursquare
................................. 138
5.3 Da escolha dos perfis de usurios para anlise
................................................ 141
6 O FOURSQUARE
................................................................................................
143
6.1 Definindo o objeto: observaes sobre a rede social mvel
foursquare ........... 143
6.2 O negcio foursquare e a sua utilizao por empresas e marcas
..................... 145
6.3.1 Compartilhamento em outras redes
...............................................................
150
6.4 O check-in
.........................................................................................................
151
6.4.1 O check-in falso
..............................................................................................
153
-
6.5 As bagdes ou medalhas
....................................................................................
155
6.5.1 Badges do sistema foursquare
.......................................................................
159
6.5.2 Badges de expertise
.......................................................................................
160
6.5.3 Badges de cidades
.........................................................................................
162
6.5.4 Badges de
parceiros.......................................................................................
163
6.5.5 Burlando o sistema: sites dedicados a facilitar a obteno
de medalhas ....... 164
6.6 Pontos e prefeituras, ou mayorships
.................................................................
167
6.7 O aplicativo para dispositivos mveis e a verso web.
..................................... 170
7 A FACE LDICA DO FOURSQUARE: DESVENDANDO AS DINMICAS DE
JOGO NA REDE
.....................................................................................................
182
7.1 Mecnicas de jogo no Foursquare
....................................................................
185
7.1.1 Sistema de regras e competio como foras-motrizes.
................................ 186
7.1.2 O conceito de ludema e sua aplicao nas dinmicas de jogo do
Foursquare
................................................................................................................................
191
7.2 Outros jogos para dispositivos mveis que se utilizam da base
de dados do
Foursquare e o uso de APIs.
...................................................................................
204
7.2.1 - O World of Fourcraft (WoF)
..........................................................................
204
7.2.2 - O caso do Metropoli
.....................................................................................
206
7.2.3 - O Banco Imobilirio Geolocalizado
..............................................................
208
8 OBSERVAES COMPLEMENTARES DE PERFIS E ANLISE DOS DADOS
OBTIDOS
................................................................................................................
211
8.1 Dados quantitativos dos perfis analisados
........................................................ 213
8.2 Anlise qualitativa dos dados obtidos
...............................................................
217
8.2.1 Das prefeituras
...............................................................................................
218
8.2.2 Das badges
....................................................................................................
226
9 CONSIDERAES FINAIS
.................................................................................
235
10 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
..................................................................
241
-
16
1. INTRODUO
O jogo sempre representou um papel fundamental na histria
humana, desde
os primrdios de nossa espcie, para a prpria socializao entre os
sujeitos e a
formao de sociedades, das mais primitivas, como as tribais, at
as mais
complexas, como a contempornea. Tal influncia direta que o ldico
exerce sobre
ns e a sua funo na cultura j foram amplamente estudados, e sua
presena
reconhecida em todos os campos da experincia humana no mundo:
nas artes, na
poltica e nas leis que regem e fundamentam a sociedade, em
modalidades
esportivas, nos encontros amorosos e at mesmo nos rituais
sagrados e religiosos.
Como afirma Teixeira (2005, p. 467), a categoria do jogo
constitutiva da pura
realizao da vida e da cultura [...]. Reside a, portanto, sua
importncia como um
elemento mediador simblico primordial entre os homens e o
mundo.
O desenvolvimento da eletrnica e da ciberntica, principalmente
na segunda
metade do ltimo sculo, propiciaram o surgimento de jogos que, em
princpio, eram
simples, com pouca definio grfica, mas que, com o aperfeioamento
das
capacidades de processamento de dados dos computadores e dos
consoles, foram
tambm se tornando cada vez mais sofisticados e complexos. Hoje,
vemos novas
modalidades de jogo, nas quais as barreiras entre o jogo e o no
jogo se tornam
cada vez mais indistinguveis, a partir da apropriao de redes
informacionais
globais e o carter social que lhes intrnseco, bem como das
tecnologias de
comunicao mveis. Ou seja, enquanto em outros perodos histricos,
sua
ocorrncia podia ser claramente abalizada de outras atividades
embora, caiba
lembrar que, no raro, ele acabava ultrapassando tais limites,
dado o seu papel na
construo e compartilhamento de formas simblicas que permanecem
mesmo
quando o jogo acaba; na contemporaneidade percebemos tais
imbricaes,
residentes no seio da prpria complexidade que lhe caracterstica,
a partir de
camadas ldicas, sociais, informacionais e fsicas que se
amalgamam e trazem
baila a necessidade de estudos primordialmente interessados
nesses fenmenos.
As tecnologias de comunicao e as possibilidades de interao em
rede,
tanto entre usurios, quanto entre estes e informaes as mais
variadas, abarcam
-
17
um espectro difuso e complexo de alteraes na vida humana, e, por
consequncia,
na sociedade, a qual passa a se relacionar com o mundo, nesse
contexto,
eletronicamente mediada por mltiplas possibilidades de contato
com a realidade.
Especialmente, no caso deste trabalho, observamos a ubiquidade
de tecnologias
mveis constantemente conectadas, assumindo tambm formas ldicas
e
vinculadas ao espao fsico das cidades, parecendo alterar no
somente as prticas
individuais e coletivas ocorridas em relao s mesmas, mas tambm
originando
camadas informacionais a partir da caminhada dos sujeitos e da
ressignificao
desses mesmos espaos, ao permitir o compartilhamento em rede das
experincias
individuais neles vivenciadas.
Na presente Dissertao, abordaremos a questo do jogo sob um vis
que
alcana o fenmeno do jogo como essencial e sine qua non nossa
prpria
constituio enquanto humanos; muito embora ele no seja uma
exclusividade
nossa. Como demonstraremos a seguir, claramente perceptvel a sua
ocorrncia
em outros seres, e nesse aspecto as opinies dos autores que aqui
utilizamos
parecem convergir em direo a essa assertiva (HUIZINGA, 2008;
CAILLOIS, 1990;
GADAMER, 1997; BUYTENDIJK, 1977). Entretanto, eles tambm
parecem
concordar que, embora no seja uma ocorrncia somente entre os
homens, o jogo
se diferencia entre ns pelo sentido que damos a ele, e pela sua
capacidade de
significao do mundo atravs do ldico. Longe de constituir uma
atividade
desprovida de seriedade, o jogo justamente se realiza quando se
deixa acontecer
fora de um contexto no qual se pode reconhecer claramente seus
limites e sua
influncia em ns.
Isso posto, tal trabalho justifica-se por trazer a questo do
jogo para o
primeiro plano de tais processos contemporneos, entendendo que a
sua ocorrncia
hoje se caracteriza pela presena cada vez mais pervasiva e
hbrida das dinmicas
fundamentais sua existncia, ultrapassando assim o ambiente
circunscrito do jogo,
como sugere a abordagem tradicional. Cientes da prpria
complexidade inerente
questo e do carter interdisciplinar desta rea do conhecimento,
acreditamos que
se faz necessrio ampliar o espectro dos estudos e do debate
acerca dessa
temtica no pas ainda incipiente, como a pesquisa sobre o estado
da arte para
esse trabalho revelou. Ou seja,
-
18
Ao instalar-se como elemento fundamental da lgica de discurso
contemporneo, tomando o ldico, no apenas como entretenimento e
passatempo, mas como exerccio bem para alm da mera finalidade
recreativa [...] obriga a que olhemos para ele como uma rea
emergente das Cincias da Comunicao e da Cultura [...]. (TEIXEIRA,
2005, p. 468).
Assim, constatado o papel cada vez maior que tais tecnologias e
prticas
sociais originadas a partir da sua apropriao pelos sujeitos
representam na
contemporaneidade, e sua transformao em mediadores fundamentais
das
relaes que estes estabelecem, julgamos necessrio estudar tal
fenmeno,
relacionando tanto as questes relativas aos prprios artefatos
tcnicos e do espao
fsico em sua materialidade, quanto quelas que emergem a partir
do seu intrnseco
carter medial, e que transformam a cidade em espao de fluxo
comunicacional por
meio da imbricao de redes simblicas e a materialidade do mundo.
Ou seja,
[...] necessrio repensar o significado atribudo s nossas relaes
com o ambiente o habitar, em geral, a partir do conjunto de
interaes tecnolgico-miditicas que foram instauradas gradativamente
entre ns e o mundo, dirigindo-se, assim, a perspectivas obviamente
no mais antropomrficas ou instrumentais, mas eco-miditicas (DI
FELICE, 2009, p. 64-65).
Isso posto, objetivamos nesse trabalho, atravs de uma anlise
das
dinmicas de jogo presentes na rede social geolocalizada
Foursquare, situar o
mesmo a partir da imbricao existente na sociedade contempornea
de
hiperconexo, tanto entre dispositivos quanto entre sujeitos e a
prpria materialidade
do espao fsico, e descrev-lo segundo a perspectiva
fenomenolgica.
Entretanto, antes do incio da exposio do referencial terico que
norteia a
construo desta, cremos que se faz necessrio pontuar que temos
conscincia das
aceleradas transformaes tecnosociais atravessadas pela
sociedade
contempornea, principalmente no tocante impermanncia de formas e
fenmenos
sociais, os quais parecem florescer incessantemente em seu seio,
originando novas
prticas, apropriaes e possibilidades de construo da realidade.
Nesse sentido,
entendemos esse trabalho como a busca pela captura, ainda que
parcial, de um
fragmento do modus vivendi contemporneo, o qual imprevisvel e
essencialmente
mutvel, e entendido, como defende Maffesoli (2001), como um
devir.
-
19
Tendo isso em vista, no captulo 2 trataremos das diferentes
abordagens em
relao ao fenmeno do jogo, considerando-o como elemento
essencialmente
socializante e de formao cultural humana. Defenderemos que, como
afirma
McLuhan (2007), os modalidades de jogo exercem uma dupla funo na
sociedade
nas quais eles florescem: ao mesmo tempo em que permitem a
prpria existncia
das mesmas, tambm se apresentam como reflexos dos valores,
hbitos e do modo
como essa se organiza. Nesse sentido, faremos tambm uma breve
incurso
histrica sobre o desenvolvimento dos jogos eletrnicos e
digitais, tanto domsticos,
quanto mveis, traando um paralelo entre a popularizao dos mesmos
e os
desenvolvimentos da informtica e das redes de telefonia mveis.
Finalizaremos o
captulo expondo a formao do campo dos game studies,
multidisciplinar e ainda
recente em comparao outras reas do conhecimento humano, mas que,
apesar
disso, se mostra promissor queles que se dedicam ao seu estudo
na
contemporaneidade e diversidade de facetas que o fenmeno pode
assumir.
J no terceiro captulo, estudaremos a emergncia das redes
mundiais de
computadores conectados entre si, entendendo-as como originrias
do que hoje
conhecemos como a cibercultura ou seja, as relaes existentes
entre a presena
indissocivel de aparatos tecnolgicos na vida humana e a sua
absoro e
apropriao pela sociedade. Entendemos que, a partir disso,
originam-se novas
prticas, tanto individuais quando coletivas, e que alteram desde
a forma como
pensamos ns mesmos enquanto seres que agem conforme princpios
vigentes em
determinado momento histrico, at como interagimos com o outro e
nos inserimos
no mundo.
Assim, traremos tona as consideraes de Lemos (2004) sobre as
imbricaes existentes a partir da transformao da urbe
contempornea em
cibercidades; ou seja, territrios nos quais a materialidade que
lhes caracterstica
comporta tambm outras camadas de sentido, sobretudo
informacionais e
simblicas que, quando sobrepostas e concretizadas em
dispositivos portteis,
permitem a existncia das mdias locativas, e parecem promover
alteraes na
prpria experincia humana em relao s mesmas. Finalizaremos o
captulo 3
recuperando o conceito de redes sociais mveis enquanto produtos
resultantes de
interaes tecnomiditicas e sociais e que parecem, a partir de
tais imbricaes,
-
20
cristalizar os registros cotidianos dos sujeitos inseridos nesse
contexto com a criao
dos georastros (OLIVEIRA, 2012) fragmentos fsicos e
informacionais que
transformam os deslocamentos espaciais em elementos
hipermiditicos e escrituras
mltiplas construdas coletivamente.
J no captulo 4 recuperaremos a ideia da sociedade e da interao
para
Georg Simmel (1983) socilogo fenomenolgico, haja vista que
consideramos o jogo
como um instrumento essencialmente socializante e simblico mesmo
quando
desenvolvido de maneira aparentemente solitria. Levantaremos
tambm, com base
no autor, a noo do conflito e da competio como formas sociais,
as quais
encontram no jogo um catalisador para a sua existncia e validao
enquanto
prtica socialmente aceitvel. Entendendo o jogo de foras
existente nas interaes
entre os indivduos como intrnseco prpria sociabilidade,
utilizaremos tambm
como aporte terico as consideraes da escola Interacionista,
principalmente a
partir de Blumer (1980) e Littlejohn (1988), entendendo a
comunicao como
essencial e o cimento social, que permeia e d coeso aos
processos dessa ordem.
Ainda no captulo 4, mais uma vez nos voltamos s questes de
mobilidade
contemporneas, tanto informacionais quanto de sujeitos,
entendendo tais
fenmenos sob a perspectiva de Michel Maffesoli (2001) da produo
de novos
nomadismos a partir do ressurgimento contemporneo do pensamento
arcaico
nmade, enquanto aspecto fundador de sentido e de circulao de
bens simblicos
e de produo do que o autor entende de territrios flutuantes, ou
seja, a prpria
noo do mundo, dos sujeitos e do lugar das relaes sociais hoje
como
permanente devir, assumindo aspectos ldicos sobre os espaos a
partir da
apropriao dos mesmos pelos sujeitos, como tambm afirma Certeau
(1998).
Tendo os trs captulos de embasamento terico que fundamentam
e
confirmam o paradigma aqui exposto, procederemos no captulo 5
metodologia
utilizada para a observao e construo terica em relao ao objeto a
rede
social mvel Foursquare e, especificamente, as mecnicas de
gameplay presentes
na mesma. Aqui sero especificados a deciso pelo vis
fenomenolgico que norteia
esse trabalho, bem como a escolha da netnografia, ou etnografia
virtual, como a
abordagem que nos pareceu mais adequada para a ida a campo e
mapeamento do
-
21
objeto, diretamente relacionada aos objetivos que pretendemos
alcanar. Alm
disso, explicitaremos tambm nossos critrios em relao s
apropriaes dos game
studies e da identificao de aspectos caractersticos de mecnicas
de jogo na rede
Foursquare.
J o captulo 6 dedicado a uma minuciosa descrio do sistema
Foursquare, suas funes e dinmicas sociais, como as diferentes
verses (web e
mvel), as suas possibilidades de utilizao por empresas e
anunciantes, atravs
das plataformas de negcio. Em seguida, buscamos descrever o
funcionamento da
rede a partir da insero do usurio por meio do check-in a ao
principal de
participao na mesma e mecanismo de obteno de medalhas, pontos
e
prefeituras. Assim, tais processos so expostos, considerando,
como defenderemos,
que eles consistem na base dos aspectos de jogo que o Foursquare
possui. O
aspecto de sociabilidade permeia todas as consideraes, uma vez
que, embora a
rede possa ser utilizada de forma isolada, o enfoque que
pretendemos nesse
trabalho a apropriao do sistema pelos seus usurios e sua
transformao em
jogo, a partir do engajamento dos mesmos em processos de
competio e acmulo
dos bens simblicos, considerados aqui como achievements.
De tal maneira, o captulo 7 consiste no estudo do jogo no
Foursquare,
partindo das noes sobre mecnicas caractersticas de gameplay para
o estudo de
sua face ldica. Primeiramente, buscamos identificar o sistema
como um jogo
estruturado segundo regras especficas, a partir do conceito de
ludus e paidia
proposto por Caillois (1990), bem como seu carter agonstico ou
competitivo,
utilizando mais uma vez a classificao dos tipos de jogos
proposto pelo terico. Em
seguida, introduzimos o conceito de ludema, proposto por
Pinheiro e Branco (2011;
2012), e apresentamos os tipos possveis de acordo com os autores
para, aps,
aplic-los ao Foursquare. Finalizamos o captulo apresentando
exemplos de jogos
que, utilizando a base de dados do sistema em relao ao espao
urbano,
confirmam a existncia do aspecto ldico na rede, ao radicalizar o
conceito e propor
a transformao das cidades em tabuleiros de jogo.
A partir disso, buscamos, no captulo 8, identificar a sua
apropriao pelos
usurios, haja vista que o carter de jogo do objeto no constitui
seu princpio
-
22
fundamental, mas sim, como uma possibilidade; a qual s se
realiza a partir da
iniciativa daqueles que passam a pratic-lo como tal, se
engajando em processos de
conflito e competio, os quais so caractersticos da interao
humana, bem como,
em particular, dos jogos. Para isso, foram selecionados 10
perfis de usurios
assduos da rede conforme critrios expostos no captulo 5, os
quais foram
acompanhados por um perodo determinado, com o propsito de
oferecer uma
anlise complementar das mecnicas de jogo no Foursquare. Atravs
da
observao e da coleta final de dados quantitativos, a anlise
qualitativa
apresentada, focada nas observaes por ns realizadas e
documentadas, sobre as
movimentaes e possveis estratgias utilizadas pelos mesmos em
processos de
competio na obteno, acmulo e manuteno de bens simblicos prprios
do
sistema. Por fim, as consideraes finais sero apresentadas no
captulo 9.
-
23
2. SENTIDO DO JOGO HUMANO E SUA FUNO NA CULTURA
O fenmeno do jogo entre os homens sempre exerceu fascnio nas
mais
diversas culturas e pocas, sendo possvel reconhecer traos de sua
existncia
muito antes da nossa constituio e definio como humanos. Podendo
tal evento
ser percebido de variadas maneiras, desde instrumento de recreao
e diverso, at
fundamentando a existncia do sagrado, sua ocorrncia constitui,
indiscutivelmente,
um fenmeno intrnseco a ns e basal ao nosso desenvolvimento como
espcie. Ele
se faz presente desde a criao e utilizao da linguagem humana,
como defende
Wittgenstein (1989), e bem como nos mais variados mbitos da vida
em sociedade:
nos atos e rituais religiosos, no direito, na poltica, nas
relaes interpessoais, em
manifestaes esportivas, nas artes e espetculos, entre outros.
Isso significa
reconhecer a ubiquidade deste fenmeno, que alguns autores,
inclusive, consideram
como elo entre as prticas sociais e a construo e o
compartilhamento de formas
simblicas, ou seja, como um elemento mediador nas relaes que os
sujeitos
estabelecem entre si, consigo mesmos e com o mundo (HUIZINGA,
2008;
CAILLOIS, 1990; GADAMER, 1997; BUYTENDIJK, 1977).
Com efeito, sob a perspectiva de que o jogo est profundamente
amalgamado
vida humana de tal maneira que ele se torna irreconhecvel em
muitas de suas
facetas, neste captulo procuraremos expor as principais ideias
de alguns
pensadores que se debruaram sobre o objeto, entendendo, assim,
as bases do
recm-formado campo de estudo que hoje chamado de game studies.
Dada a sua
evidente complexidade, o estudo dos jogos sob a perspectiva
contempornea se
constitui como um campo multidisciplinar, podendo ser estudado
luz de diversas
concepes e abordagens, confirmando a inexistncia de um campo
terico
especfico e bem delimitado. Assim, observaremos como a emergncia
das redes
mundiais de comunicao, concretizadas a partir da ubiquidade
tecnolgica em
todas as esferas da vida humana, potencializaram o fenmeno que
hoje chamado
de pervasive games, que aqui chamaremos de jogos pervasivos1 -
ou ainda como
1 Lemos (2010) opta por no utilizar o termo pervasivo, haja
vista que este no consta em dicionrios de Lngua Portuguesa.
Contudo, devido grande ocorrncia da palavra em publicaes da rea
(tanto nacionais quanto internacionais) e sua relevncia terica,
decidimos utiliz-la, na presente Dissertao; pervasivo derivado da
Lngua Inglesa e significa espalhado, difuso, que penetra em toda
parte ou tende a, por meio de diversos canais, tecnologias,
sistemas e dispositivos. Aqui estar
-
24
Lemos (2010) prefere, jogos mveis locativos e como isso se d
na
contemporaneidade a partir da ampliao do crculo mgico do jogo
(HUIZINGA,
2008) e da diluio de suas fronteiras, at ento bem delimitadas -
o que parece,
hoje, perpassar e influenciar diretamente na experincia do
sujeito em relao ao
mundo em sua totalidade.
2.1. O CONCEITO DE JOGO COMO FENMENO CULTURAL
Johan Huizinga, Reitor da Universidade de Leiden, em sua quase
secular
obra Homo Ludens, publicada originalmente em 1933, lanou as
bases para um
estudo dos jogos sob um ponto de vista filosfico que considera a
sua ocorrncia
como elemento fundamental formao das sociedades humanas e,
consequentemente, comunicao e transmisso de formas simblicas por
meio
desta. Sob a perspectiva do autor, as manifestaes ldicas, antes
mesmo de sua
utilizao e organizao formal pelo homem, podem ser observadas em
uma
variedade de seres vivos. Para constatar tal afirmao, segundo o
autor, basta
observar a ocorrncia do jogo entre animais, como cachorros,
gatos, macacos e
mamferos aquticos. facilmente perceptvel que eles desenvolvem,
desde a
infncia, uma relao ldica com o mundo e com os outros de sua
espcie, que se
perpetua por toda a sua existncia. O autor defende em sua tese
que o ldico no
inveno humana, nem que o homem [...] acrescentou caracterstica
essencial
alguma ideia geral de jogo. Ou seja, ele existe a priori de sua
definio humana,
uma vez que sua ocorrncia no est condicionada a nenhum grau de
organizao
social ou normativa, nem a nenhum estado de coisas humano.
Embora o autor defenda em sua obra que o fenmeno do jogo no
uma
exclusividade humana, sua ocorrncia se distingue em ns pela
capacidade de nos
apropriarmos dele, e, assim, desenvolver novas modalidades e
atribuir significado ao
mundo a partir das interaes que estabelecemos, com vistas criao
deliberada
de sentido. Cremos, portanto, que aqui cabe estabelecer uma
breve diferenciao
relacionado, especificamente, a uma caracterstica fundamental
dos jogos mveis locativos, objeto de estudo desse trabalho. Ver
tambm .
-
25
entre os jogos ocorridos entre animais e os homens. Nada sabemos
em relao ao
sentido dos animais quando desenvolvem atividades ldicas;
podemos supor que,
para eles, o jogo represente um mecanismo de aperfeioamento de
suas
capacidades motoras ou, por exemplo, de caa. No tocante sua
capacidade de
perceber tal evento como um meio de treinamento de habilidades
necessrias sua
sobrevivncia, poderamos afirmar que no h um carter simblico ali.
De forma
bem pontual, Heidegger (2011, p. 228) em sua obra Os conceitos
fundamentais da
metafsica, diferencia, em relao capacidade de percepo do mundo e
de
significao das coisas, que a pedra no tem mundo, o animal podre
de mundo e o
homem formador de mundo2. Isso significa afirmar que os animais
no possuem
propriedades cognitivas que lhes permitam criao simblica de
forma deliberada;
tal possibilidade restrita ao homem. O animal encontra-se
capturado
(benommenheit) em seu habitat; ao contrrio do ser humano, que,
como defende o
filsofo, criador de mundo a partir de suas percepes e aes sobre
ele.
Buytendijk (1977) entende o jogo como um elemento mediador entre
o
homem e o mundo, por meio do qual se joga atravs de imagens3 e
da linguagem, o
que acaba por fornecer novas experincias ao sujeito de percepo
das coisas. Para
o autor, o jogo sempre um comportamento, ou seja, uma forma de
insero no
mundo. Ele afirma ainda que possvel encontrar pessoas em situaes
e atitudes
tais que poderiam ser designadas pela palavra jogar, mesmo que
no tenha o
carter de jogo explcito ou no se possa configurar a situao em
questo como
essencialmente um jogo (idem, p. 63). Assim, o carter simblico
que o jogo possui
em ns um dos elementos que permitem diferenciar-nos dos animais
e estabelecer
uma relao humana com o mundo, propriamente dita. Mesmo que a sua
existncia
2 Mundo, para Heidegger, a totalidade de referncias que, desde
sempre, compe a existncia do ser-a (Dasein), ou seja, uma estrutura
prvia de sentido que permite a ns nos situarmos e nos reconhecermos
como homens. Assim, o mundo tem um carter intrinsicamente
ontolgico, ligado possibilidade para qualquer relao de ser que o
ser-a desenvolva no tempo ou seja, o ser enquanto possibilidade
temporal, clareira que ao mesmo tempo o desvela e o encobre. Seria,
de tal maneira, o mundo, a totalidade das referncias ontolgicas e
composto por uma diviso trplice, que ele entende como sendo os
entes disponveis, os existentes, e o ser-a (no caso, ns). Logo,
tudo aquilo que o Dasein constri e se apropria, ou seja, a dimenso
fundamental onde as coisas simplesmente existentes so mundanizadas,
passando ao conhecimento do homem e se transformando em
disponibilidade, atravs da vivncia desse mesmo mundo e sua
transformao em Umwelt (mundo circundante). 3 Vale ressaltar que
para Buytendijk imagem o modo como as coisas se apresentam e os
acontecimentos se do no mbito dos sentidos (1977, p. 68).
-
26
seja diferente da nossa, somos obrigados, tanto no mundo
biolgico quanto na
observao cientfica, a interpretar os movimentos dos animais como
modos de
comportamento e, de vez em quando, como jogo autntico ou, pelo
menos, como
comportamento ldico (ibid., p. 63). Sob tal perspectiva, podemos
considerar o jogo
como uma experincia emancipatria humana, uma vez que ele se
presta como
transformador das relaes que o jogador estabelece consigo mesmo
e com os
outros (idem, p. 79).
Huizinga (2008) acrescenta ainda que, embora o jogo, pelo vis
trabalhado
por ele, tenha sido sine qua non organizao dos homens na forma
de sociedades,
e ao acmulo cultural advindo de tal arranjo, este no se encontra
ligado
diretamente noo de civilizao como hoje conhecemos. De tal
maneira, ele se
d como fenmeno na dimenso do esprito, e Huizinga nos adverte que
[...]
reconhecer o jogo , forosamente, reconhecer o esprito, pois o
jogo, seja qual for
sua essncia, no material (2008, p. 6). Esprito, aqui, parece
significar a
imaterialidade inerente prpria concepo do fenmeno para o autor,
dimenso
esta que anterior existncia humana, mas que em ns se d a partir
de uma
trade ontolgica por ele proposta, a saber: homo sapiens, faber e
ludens.
Para o filsofo, a pr-existncia dessa relao com o jogo foi uma
condio
fundamental para a formao e evoluo das sociedades humanas atravs
dos
sculos, e adiciona o termo Homo ludens para designar esta
propriedade, a qual
considera fundamental e que permeia os modos como os homens
raciocinam e
pensam a realidade (Homo sapiens) e tambm criam, manipulam e
interagem com
objetos e com a natureza (Homo faber). O autor inclusive
considera a construo e a
utilizao da linguagem, primeira tecnologia humana desenvolvida
para se
comunicar com os seus semelhantes, como um tipo de jogo, que d
sentido e
constri a relao entre os sujeitos e destes com o mundo. O autor
realiza uma
extensa e detalhada pesquisa etimolgica sobre tanto o conceito
quanto a prpria
palavra jogo em diversas lnguas e culturas as mais diversas,
buscando assim
chegar ao mago da questo: que, mesmo antes da prpria definio do
fenmeno
por ns, ele j existia per se. Logo, Huizinga conclui que no
seria lcito esperar que
cada uma das diferentes lnguas encontrasse a mesma ideia e a
mesma palavra ao
tentar dar expresso noo de jogo [...], pois h diversos indcios
que mostram
-
27
que a abstrao de um conceito geral de jogo foi, em algumas
culturas, to tardia e
secundria como foi primria e fundamental a funo do jogo (idem,
p. 33-34, grifos
do autor). Assim, ele define o jogo como
[...] uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de
certos e determinados limites de tempo e de espao, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotado de um
fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e de alegria
e uma conscincia de ser diferente da vida cotidiana (ibid., p.
34).
Parece-nos de fundamental importncia destacar alguns aspectos
levantados
pelo autor em sua definio de jogo para que, futuramente,
possamos analisar o
objeto deste trabalho em sua profundidade. Huizinga defende de
forma enftica que
a questo da voluntariedade na participao no jogo primordial para
classificarmos
se algo jogo ou no. Seria, de tal maneira, que, quando imposto e
retirada a
liberdade de escolha da participao, [...] deixa de ser jogo,
podendo no mximo ser
uma imitao forada (2008, p. 34). Qual seria, ento, a motivao do
jogador para
o autor? Ele nos fornece alguns indcios a respeito disso, quando
afirma existir uma
busca de prazer na realizao de tais atividades, o que,
inclusive, fundamenta a sua
ocorrncia na vida adulta dos homens. Para ele, o jogo s se torna
uma
necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado
o transforma
numa necessidade (2008, p.10-11).
Assim, percebemos que a questo do jogo funcionar como uma vlvula
de
escape s presses da vida cotidiana permitindo, muitas vezes, a
liberao de
impulsos normalmente coibidos na vida em sociedade parece-nos
bastante clara a
sua funo como um regulador de prticas sociais, e tambm, correto
afirmar que a
sensao de prazer causada por esta atividade guia-se pelo
princpio que Huizinga
chama o divertimento do jogo, relacionando diretamente a questo
do ldico a uma
[...] fonte de alegria e divertimento (CAILLOIS, 1990, p. 26).
Ou seja, uma [...]
atividade voluntria, que tem uma finalidade autnoma e se realiza
tendo em vista
uma satisfao que consiste na sua prpria realizao (HUIZINGA,
2008, p.12).
Os limites de tempo e espao dos quais fala o autor nos conduzem
a uma
segunda caracterstica fundamental dos jogos: o fato de que,
voluntariamente, ao
se engajar em tais processos, os envolvidos adentram um universo
simblico
-
28
construdo atravs da negociao entre eles, com regras claras e
obrigatrias, cujos
limites permitem situ-lo como diferente da vida cotidiana.
Assim, Huizinga defende
que [...] o jogo no vida corrente nem vida real. Pelo contrrio,
trata-se de uma
evaso da vida real para uma esfera temporria de atividade com
orientao
prpria (idem, p. 11).
Parece-nos pertinente entender que, embora o faz-de-conta do
jogo seja
absolutamente consentido e consciente, e represente um escape
realidade, a
conscincia em relao a isso no impede que os jogadores possam se
encontrar
imersos em um ambiente ldico absolutamente imaginrio, como o
caso, por
exemplo, dos atuais jogos de RPG4, nos quais os jogadores
interpretam papis em
enredos fantsticos, repletos de figuras mticas como magos,
drages, entre outros
inclusive, muitas vezes, chegando ao ponto de se caracterizarem
como os
personagens, com indumentrias, expresses faciais, gestuais e
lingusticas. Caillois
(1990) aqui parece contribuir com uma importante relativizao
desse conceito, uma
vez que argumenta que podem existir alguns jogos que no tenhas
regras explcitas
ou negociveis; entretanto, para ele, eles constituem um
simulacro, uma imitao da
vida, um como se (grifos do autor). Ou seja, [...] apesar do
carcter paradoxal da
afirmao, eu diria que, aqui, a fico, o sentimento do como se
substitui a regra e
desempenha exactamente a mesma funo (idem, p. 28, grifos
nossos).
Isso posto, indiscutvel que o jogo, quando perde seu carter
voluntrio,
transforma-se em qualquer coisa, menos jogo: perde sua
autenticidade, aquilo que,
para Huizinga (2008), caracteriza o fenmeno; o jogador se
entrega
espontaneamente a ele, e pode interromper sua ocorrncia quando
desejar. Caillois
(1990, p. 26), corrobora esta tese, quando afirma que
4 Role Playing Game (RPG), ou jogo de representao de papis, uma
modalidade de jogo no qual
os jogadores assumem, temporariamente, as caractersticas de
personagens fictcios, criando
narrativas colaborativamente enquanto o jogo se desenrola. Via
de regra, parte-se de um enredo
inicial e com regras pr definidas, sendo permitido aos
jogadores, dentro dos limites estabelecidos,
improvisar de forma livre. Como no tem um desfecho prvio, os
jogadores so os que determinam a
direo que o jogo ir tomar. Existem diversas modalidades de RPG,
podendo ser desde presenciais,
at em redes informacionais, em comunidades virtuais dedicadas a
esse tipo de jogo.
-
29
[...] s existe jogo quando os jogadores querem jogar e jogam,
mesmo que seja o jogo mais absorvente ou o mais extenuante, na
clara inteno de se divertirem ou de afugentar as preocupaes, ou
seja, de se afastarem da vida de todos os dias. Acima de tudo, e
sobretudo, urge que tenham a possibilidade de se irem embora quando
lhes aprouver, dizendo: no jogo mais.
Aqui, podemos ento trazer discusso um conceito-chave para o
entendimento da proposio de Huizinga, e que ser utilizada no
decorrer dessa
dissertao, que a ideia de que o jogo, justamente por ser uma
atividade que se
distingue da vida cotidiana dos indivduos e ter regras e leis
especficas a ele as
quais, muitas vezes, podem ser opostas s que eles se submetem em
sua vida
diria cria um espao prprio, simblico e que funcionaria como uma
esfera
temporria onde os participantes de um determinado jogo se
inserem, a fim de
desenvolverem ali suas atividades, isolando-se momentaneamente
do contexto
espao temporal ao qual pertencem. Ou seja, muito embora os jogos
representem
uma forma de evaso do cotidiano, [...] no vida corrente nem vida
real
(HUIZINGA, 2008, p. 12), eles representam atividades com regras
e orientaes
especficas, e a esse universo capaz de absorver totalmente o
jogador para um
campo simblico circunscrito, virtual e reservado da vida
cotidiana, ele chama de
crculo mgico do jogo (idem, p. 13). Ainda sobre esse aspecto,
podemos tambm
nos apoiar nas consideraes de Buytendijk (1977, p.68), que
entende a esfera do
jogo como essencialmente de fantasia e que carrega consigo
possibilidades
frequentemente impraticveis fora dela.
Enquanto fenmeno social (aqui entendido como elemento propulsor
de
socializao e transmisso de formas simblicas entre os sujeitos),
ele se forma a
partir do conjunto de contratos firmados entre os participantes
de um determinado
grupo, atravs de processos de negociao, cooperao e conflito,
onde so
estabelecidas regras, o que lcito ou no dentro do universo de um
jogo qualquer.
A esse respeito, Montola et al (2009, p.10) corroboram a ideia
do crculo mgico do
jogo como um espao contratual, cujas fronteiras separam-no da
vida regular dos
indivduos, uma vez que
-
30
O crculo mgico metafrico () so os limites contratuais e
ritualsticos, os quais so, normalmente, baseados em argumentos
implcitos de algum modo. A realidade do jogo diferente [da vida
corrente] somente se os participantes do jogo e a sociedade fora
desse reconhecem o ambiente ldico como parte das regras do
dia-a-dia5 [traduo nossa].
Huizinga ilustra sua tese citando os inmeros jogos infantis, nos
quais
crianas interpretam personagens, como princesas, bruxas ou
animais. Nestes
casos, percebe-se claramente a ao desse espao simblico do qual
fala o autor:
quando imersos nele, so transportados de tal modo para dentro
deste universo que,
muitas vezes, falam, agem e se movimentam em uma atuao que pode
quase lev-
los a acreditar que realmente so os prprios personagens, sem,
entretanto, perder
de forma total o sentido da realidade que os prende ao aqui e
agora. Da mesma
forma, o autor cita as cerimnias sagradas e ritos tribais em
povos primitivos, os
quais acabam por englobar, em um momento especfico e em torno de
uma espcie
de jogo coletivo, uma consumao alegrica desse universo simblico;
uma vez que,
para Huizinga, a representao sagrada muito mais que a simples
realizao de
uma aparncia, at mais do que uma realizao simblica: uma
realizao
mstica (2008, p.17).
Com efeito, podemos tambm trazer baila as consideraes de
Gadamer
(1997), que, em captulo de sua notvel obra Verdade e Mtodo, expe
a relao
humana com o jogo como um princpio fundamental da existncia da
obra de arte,
mas que, na sua condio de fenmeno cultural, demanda a realizao
de um
estudo do jogo, considerando-o uma condio sine qua non para a
experincia
humana com o mundo, e, particularmente, com o universo simblico
do qual
falamos; um espao de representao e de entrega do jogador, uma
realidade
interna, que coexiste com a externa. Ele parte da definio da
palavra alem spiel,
que pode ser usada tanto para designar o prprio jogo, quanto
para o ato de jogar.
No decorrer da reviso bibliogrfica desse trabalho, encontramos
obras em lngua
inglesa que traduzem o termo alemo tanto como play e game.
5 The metaphoric magic circle [...] is a ritualistic and
contractual boundary, which is most often based on a somewhat
implicit argument. The reality of a game is different only if both
the participants of play and the society outside recognize the
playground as something belonging outside of ordinary rules.
-
31
Huizinga (2008, p. 43), ao propor uma etimologia da palavra
jogo, estuda
essa ocorrncia na lngua germnica, acreditando que, a partir da
duplicao do
termo na traduo anglo-sax, o verbo torna-se tambm substantivo,
ou seja, em
Ingls, diz-se play a game6, para designar a ao de jogar. Essa
dicotomia entre a
ao e o substantivo nos parece interessante, uma vez que indica
duas esferas
distintas. Nesse sentido, Huizinga indaga se no querer isto
dizer que o ato de
jogar possua uma natureza to peculiar e independente que se
exclui das categorias
usuais da ao? (idem, p. 43). Acreditamos que isso se deve ao
duplo sentido de
spiel, conforme originalmente Gadamer utilizou; entretanto, um
aspecto fundamental
que tal vocbulo em alemo designa no somente a palavra jogo, mas
tambm
indica todo tipo de movimento, como o das mars e do vento, das
luzes, entre
outros. Este segundo sentido de primordial importncia para
Gadamer, pois, como
veremos a seguir, as suas reflexes sobre o jogo partem
justamente desse
pressuposto, do jogo como movimento, uma presena imaterial.
Em sua argumentao, Gadamer (1997) corrobora a ideia do jogo como
um
mediador da relao humana com o mundo e com os outros,
especialmente no
tocante obra de arte; para ele, o jogo o fio condutor ontolgico
da explicao dos
fenmenos humanos. Contudo, no que nos interessa em suas
reflexes, ele parece
confirmar algumas ideias j expostas. Ele tambm entende o espao
ldico onde o
jogo se desenvolve como separado da vida cotidiana dos
indivduos, e que tal
experincia se torna transformadora e propicia o surgimento de
novas relaes
simblicas, uma vez que jogar significa, ao mesmo tempo, jogar
com algo e um jogar
consigo, ou seja, um colocar-se em jogo dentro do prprio
jogo.
Esse movimento constitui, segundo a viso gadameriana, o
conceito-chave da
fundamentao de sua hermenutica e da experincia humana enquanto
agente
criador de mundo, compreendendo, assim, elementos essenciais a
tais processos,
como a linguagem, a comunicao, a construo de sentido e de
cultura no mundo.
De tal maneira, ele refuta a noo comum de que uma caracterstica
do jogo a
ausncia de seriedade; ora, se o jogo um dos responsveis pela
construo
cultural humana, parece-nos ser impossvel que ele seja uma
atividade ausente de
6 Jogar um jogo. Traduo nossa.
-
32
comprometimento e participao, pressupondo esse estar-junto, e,
como dissemos,
um jogar e ser-jogado. Esse movimento no tem, assim, um objetivo
claro: a vitria
ou a derrota, quanto existem, no o que profundamente determina o
jogo, pois
elas so condies possveis conhecidas desde o incio do mesmo.
Tambm apoiado nas consideraes de Huizinga e Buytendijk,
Gadamer
considera o jogo sempre como representao, independente do quanto
o jogador
est ciente disso. Ele radicaliza a ideia de Huizinga de que o
jogo um fenmeno
anterior ao homem, e expe que, na verdade, ele autnomo, trazendo
assim o
prprio jogo para o primeiro plano da discusso, ao afirmar que,
na verdade, quando
praticado, o jogo no comandado pelos jogadores, bem ao contrrio;
para
Gadamer (1997), o jogo quem domina o jogador esta , inclusive, a
causa do
fascnio que tais atividades exercem sobre os que dela
participam.
O autor afirma, assim, que na relao jogo jogador h uma dialtica
que
fundamenta a prpria existncia do fenmeno: enquanto o jogo se
assenhora do
jogador, este tem a iluso de que ele quem controla o jogo, e a
partir da, temos
um movimento que, para o filsofo, to indispensvel que, [...] em
ltimo sentido,
faz que de forma alguma haja um jogar-para-si-somente (idem, p.
180). Uma das
razes que o filsofo expe para fundamentar suas afirmaes que,
quando
adentram no universo do jogo, os participantes aceitam se
submeter s regras que
regem a atividade, e esse entregar-se que constitui propriamente
o encanto
exercido sobre os jogadores. Ou seja,
o atrativo do jogo, a fascinao que exerce, reside justamente no
fato de que o jogo se assenhora do jogador. Mesmo quando se trata
de jogos em que se procura preencher tarefas de auto-aposta, o
risco de saber se vai, se d certo e se voltar a dar certo que
exerce o atrativo do jogo. Quem tenta dessa maneira , na verdade, o
tentado. O verdadeiro sujeito do jogo ( o que tornam evidente
justamente essas experincias em que h apenas um nico jogador) no o
jogador, mas o prprio jogo. o jogo que mantm o jogador a caminho,
que o enreda no jogo, e o que o mantm em jogo (GADAMER, 1997, p.
181).
A despeito de uma tendncia comum de se considerar o jogo como
mera
distrao, quase uma anttese da seriedade e, em sentido bem
especfico, em
contraposio ao trabalho e demais atividades socialmente
consideradas srias e
produtivas talvez tenha origem no fato do jogo, como dissemos,
criar uma esfera
-
33
prpria, cujas leis muitas vezes no coincidem com aquelas s quais
os indivduos
se submetem no seu dia-a-dia. Sob a perspectiva de Gadamer, o
jogo uma
atividade cujo sentido de seriedade essencial para a sua
ocorrncia, e, embora
seja facilmente perceptvel, por exemplo, em jogos esportivos
institucionalizados e
em diversos mbitos da vida em sociedade, h outros momentos nos
quais o jogo
est to amalgamado prpria vida humana que se torna uma tarefa
rdua
reconhecer a sua existncia e, mais ainda, a sua seriedade.
Gadamer sustenta que
o ato de jogar possui uma referncia essencial para com esta,
pois, justamente
nesses casos em que o jogo e a sua seriedade no podem ser
confirmadas de
imediato, que os seus efeitos se encontram mais profundamente
enraizados, pois
no a relao que, a partir do jogo, de dentro para fora, aponta
para a seriedade,
mas apenas a seriedade que h no jogo que permite que o jogo seja
inteiramente
um jogo (1997, p. 175).
Parece-nos que a isso equivale dizer que o jogo prescinde que
aqueles que o
praticam atribuam a ele alguma carga de seriedade, em maior ou
em menor grau;
ora, para Gadamer, o jogo, como dissemos, existe a priori dos
jogadores, embora se
realize por meio desses. Ao afirmar que os sujeitos do jogo no
so os jogadores, e
sim o jogo mesmo, ele no permite que quem joga se comporte como
se estivesse
diante de um objeto ou de uma outra situao qualquer, mas, sim,
como um
fenmeno que, por si s, se constitui como mediador das
estabelecidas entre os
jogadores. Esse movimento do jogo possibilita a abertura do
mundo ao homem
atravs do comportamento ldico, e Gadamer considera, no caso
especfico de sua
argumentao, a obra de arte como elemento legtimo dessa
transformao de
revelao da verdade sobre a existncia.
Em relao a isso, Huizinga tambm parece ir ao encontro das
ideias
gadamerianas sobre tal aspecto. Assim, ele confirma que, a
despeito de se
considerar tais atividades como uma ausncia de seriedade, a
ideia de jogo de
forma alguma exclui ou se define como tal, afirmando, inclusive,
que o conceito de
jogo [...] de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a
seriedade
procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem
incluir a seriedade
(idem, p. 51).
-
34
Isso posto, podemos considerar as mais variadas manifestaes
ldicas,
como jogos infantis e adultos, ou mesmo aqueles nos quais os
jogadores
interpretam personagens, como expresses que constituem ampliaes
do homem e
das sociedades nas quais o jogo se desenrola, sendo possvel
reconhecer, nesse
sentido, uma forte influncia da poca histrica, seus valores e
costumes. Podemos
citar como exemplo as Olimpadas, manifestao cultural
originada
aproximadamente no sculo VII a.C., na Grcia Antiga, que tinha
por objetivo
homenagear Zeus e os deuses do Olimpo atravs de disputas
esportivas. McLuhan
(2007, p.264), em Os meios de comunicao como extenses do homem,
afirma,
ao estudar estas manifestaes, que
os jogos so artes populares, reaes coletivas e sociais s
principais tendncias e aes de qualquer cultura. Como as instituies,
os jogos so extenses do homem social e do corpo poltico, como as
tecnologias so extenses do organismo animal. [...] Os jogos so
modelos fiis de uma cultura. Incorporam tanto a ao como a reao de
populaes inteiras numa nica imagem dinmica.
Nas sociedades tribais, o jogo possua, alm da funo recreativa e
de
integrao da tribo, o objetivo de simular situaes de caa, de
enfrentamento com
animais, de guerra entre tribos rivais, entre outros,
objetivando, com isso,
aperfeioar e transmitir simbolicamente tcnicas de combate,
defesa e ataque as
quais eram de extrema importncia para a segurana e manuteno
daquele tipo de
sociedade. Era um meio de treinamento de destrezas tanto fsicas
quanto cognitivas.
Huizinga nos lembra de que, mesmo em momentos em que os caadores
ou
guerreiros destas coletividades tribais utilizavam as tcnicas
aprendidas durante as
atividades ldicas, o carter do jogo persistia, uma vez que mesmo
as atividades
que visam satisfao imediata das necessidades vitais, como por
exemplo, a caa,
tendem a assumir nas sociedades primitivas uma forma ldica
(2008, p. 54).
Assim como nesses ritos tribais, os confrontos sangrentos (e, no
raro,
mortais) nas arenas entre guerreiros na Antiguidade, os jogos de
carta e de tabuleiro
praticados nas cortes da Idade Mdia: todas estas manifestaes
culturais nos
fornecem indicativos de como aquelas sociedades se organizavam,
configurando-se
como um reflexo, atravs do ldico, do modo de vida das mesmas, e
fornecendo
-
35
importantes indcios para a compreenso daquele perodo e de sua
construo
cultural coletiva.
Como instrumento do qual o homem lana mo deliberadamente com
vistas
construo e compartilhamento de formas sociais simblicas,
Huizinga reconhece a
existncia do jogo em diversas esferas da vida humana, organizada
na forma de
sociedade, sendo que, pare ele, o jogo foi fundamental a tal
normatizao. Defende
o estudioso que diversas manifestaes culturais - modalidades
esportivas, o
folclore, a dana, a msica, o teatro e os ritos religiosos, as
leis e todos os demais
mbitos da vida social tiveram, seno em sua origem direta, o jogo
como elemento
de aperfeioamento dos mesmos no decorrer dos sculos, ou seja,
eles possuem
como marca intrnseca a relao com o ldico, em menor ou maior
grau. Isso
significa reconhecer que, de acordo com a concepo do autor, as
manifestaes
culturais surgiram sob a forma de jogo, sendo, desde sempre,
jogadas. Logo, a
argumentao do autor busca derivar do esprito do jogo a maioria
das instituies
s quais, invariavelmente, regulam a vida em sociedade (CAILLOIS,
1990, p. 13).
Podemos citar aqui uma passagem de sua argumentao que resume bem
a viso
sobre esta funo do jogo por ele defendida:
o esprito de competio ldica, enquanto impulso social, mais
antigo que a cultura, e a prpria vida est toda penetrada por ele,
como um verdadeiro fermento. O ritual teve origem no jogo sagrado,
a poesia nasceu do jogo e dele se nutriu, a msica e a dana eram
puro jogo. O saber e a filosofia encontraram expresso em palavras e
formas derivadas das competies religiosas. As regras da guerra e as
convenes da vida aristocrtica eram baseadas em modelos ldicos. Da
se conclui necessariamente que em todas as suas fases primitivas a
cultura um jogo. No quer isto dizer que ela nasa do jogo, como um
recm-nascido que se separa do corpo da me. Ela surge no jogo, e
enquanto jogo, para nunca mais perder este carter (HUIZINGA, 2008,
p. 193, grifos do autor).
Cabe aqui ressaltar novamente a ligao existente entre os jogos
como
elementos fundadores de sentido social, na medida em que atuam
como criadores
de um sentimento de pertencimento entre aqueles que compartilham
das esferas
simblicas inerentes a tais atividades. Como defenderemos em
captulo posterior, de
acordo com Huizinga, os jogos sempre foram utilizados de forma
deliberada como
agregadores sociais, os quais podem adquirir uma infinidade de
matizes, desde as
manifestaes sagradas que derivaram de seu carter ritualstico,
como as
religiosas, quanto como simples instrumento de busca de prazer e
alegria. Embora
-
36
hoje se conhea uma variedade de modalidades passveis de serem
desenvolvidas
de forma solitria e individual, ele sempre esteve ligado
diretamente formao e
fortalecimento de comunidades. Aqui podemos, mais uma vez, nos
apoiar em seu
discurso, quando ele afirma que a funo socializante do jogo se
deve ao fato de
que as comunidades formadas pelos jogadores tendem a tornar-se
permanentes,
mesmo depois de finda a atividade. Entretanto, a ideia coletiva
de [...] partilhar algo
importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas
habituais,
conserva sua magia para alm da durao de cada jogo (idem, p.
15).
Quando Huizinga se props a discutir o fenmeno do jogo e sua funo
na
cultura, quase cem anos atrs, as modalidades que eram
desenvolvidas naquela
poca, (como os esportes, jogos infantis, entre outros) e como se
davam as
interaes sociais sob a perspectiva do jogo como mediador destes
processos, alm
do modo como a sociedade se organizava eram bem diferentes de
como hoje
experimentamos, a partir do surgimento de novas formas de
contato com o universo
simblico ldico, principalmente, e de forma mais recente, com os
jogos eletrnicos.
Embora fique claro na obra do autor em diversos momentos a
existncia de lacunas,
como a ausncia de um estudo sobre os jogos de azar (para ele, o
jogo
desinteressado e, principalmente, desvinculado de interesses
materiais
possivelmente advindos do mesmo), ela foi de fundamental
importncia para o
desenvolvimento de uma teoria que entende o jogo como elemento
produtor de
cultura, ou seja, o autor analisa de forma bastante complexa o
seu papel na histria
do homem, e abre caminhos para o seu estudo e reflexo.
Foi exatamente isso que fez Roger Caillois, socilogo francs que
concentrou
seus estudos em ampliar o debate sobre os jogos, partindo da
obra de Huizinga.
Trinta anos depois da publicao de Homo Ludens, Caillois props no
somente
uma classificao para os jogos de acordo com suas caractersticas
o que era
ausente na obra do primeiro autor mas tambm trouxe importantes
contribuies
para os estudos do campo. Seguindo uma perspectiva semelhante do
seu
antecessor, e acreditando que a obra de Huizinga uma
fundamental
investigao[...] sobre a fecundidade do esprito de jogo no domnio
da cultura, e,
mais precisamente, do esprito que preside a uma determinada
espcie de jogos
os jogos de competio regrada (1990, p.23), Caillois corrobora as
ideias principais
-
37
daquele autor, especialmente no tocante espontaneidade do jogo
como uma
atividade livre e voluntria, na qual os homens se engajam com o
objetivo de obter
alegria alm de ser tambm, para ele, uma forma de evaso da vida
cotidiana. Ele
concorda que uma das caractersticas fundamentais dos jogos o
fato de o jogador
a ele se entregar de forma desinteressada, [...] por livre
vontade e exclusivo prazer,
tendo a cada instante a possibilidade de optar pelo retiro, pelo
silncio, pelo
recolhimento, pela solido ociosa ou por uma actividade mais
fecunda (idem, p. 26).
Aqui parece tambm de fundamental importncia, para o autor, a
pr-
existncia do jogo como elemento catalizador da organizao social
e
desenvolvimento da prpria noo de humanidade. A vocao social dos
jogos um
ponto crucial na argumentao de Caillois, uma vez que, para ele,
a competio
atrelada ao prprio conceito enquanto atividade realizada
coletivamente produz
formas sociais, mesmo quando o indivduo est jogando sozinho. Ele
sugere que at
mesmo o mais individual dos jogos facilmente se transforma em
princpio
institucionalizado, afirmando que dizer-se-ia faltar alguma
coisa actividade do jogo
quando esta se reduz a um simples exerccio solitrio (1990, p.
61).
A existncia de um espao simblico prprio do jogo, o j citado
crculo
mgico, parece aqui tambm ser de fundamental importncia para o
socilogo
francs. Ele tambm entende esse domnio como um universo parte,
protegido,
cujas leis que o regulam no necessariamente coincidem com regras
e costumes da
vida cotidiana. Ou seja, corroborando a ideia de Huizinga, para
Caillois (1990, p. 26),
[...] o jogo essencialmente uma ocupao separada, cuidadosamente
isolada do
resto da existncia, e realizada, em geral dentro de limites
precisos de tempo e de
lugar. H um espao prprio para o jogo. Insistimos nessa
caracterstica porque,
como veremos posteriormente sobre os jogos na contemporaneidade,
tal conceito
parece se diluir medida que percebemos uma difuso desse espao
simblico do
qual falam os autores.
Assim, Caillois (idem, p. 29-30) define que os jogos possuem
seis princpios
fundamentais que nos permitem identificar suas caractersticas.
So eles, a saber:
-
38
a) A questo da liberdade da atividade, ou seja, joga-se
deliberadamente e de
forma espontnea, uma vez que, caso participasse da atividade
como uma
obrigao, ela perderia imediatamente seu carter de jogo;
b) A circunscrio de um espao prprio entre os limites que separam
o jogo
da vida corrente dos jogadores, ou a metfora do crculo mgico da
qual os autores
lanam mo para dar conta desse conceito, como um espao e um
tempo
determinado e previamente conhecido;
c) A imprevisibilidade do jogo, que, para Caillois (1990, p.
27), parece ser de
fundamental importncia. Ele diz que, tanto o desenrolar, quanto
o fim da atividade
no podem ser conhecidos a priori, o que significa dizer que uma
atividade da qual
j se conhece de antemo o desfecho, [...] sem possibilidade de
erro ou de
surpresa, conduzindo claramente a um resultado inelutvel,
incompatvel com a
natureza do jogo;
d) O jogo uma atividade improdutiva, e no gera elementos novos
de
nenhuma espcie, salvo os simblicos. Assim, quando finda a
atividade, a tendncia
o retorno ao estado existente antes de seu incio. As nicas
alteraes que Caillois
considera como possveis de ocorrerem enquanto produtos
resultantes da atividade
ldica so quelas ocorridas no crculo mgico dos jogadores. Porm,
como j
dissemos apoiados em Huizinga (2008), o jogo tende a criar um
sentido de
comunidade entre aqueles que nele se engajam, e que os efeitos
resultantes de tais
atividades ultrapassam os limites de durao das mesmas, ou seja,
o jogo no
termina quando acaba;
e) o jogo cria um novo universo de regras que, no raro,
constituem-se a
partir de pulses muitas vezes considerados como imprprias para a
vida social,
como por exemplo, a violncia. uma atividade regulamentada, que
suspende
temporariamente as normas vigentes fora do crculo do mgico e
que, no decorrer
do mesmo, so aquelas s quais os jogadores devem submeter-se para
possibilitar
a imerso no mundo do jogo. Entretanto, vale aqui ressaltar que
embora represente
um escape da vida cotidiana dos indivduos, eles tem conscincia
de que se trata de
-
39
uma atividade cuja durao somente interrompe por algum tempo a
vigncia das
normas socialmente aceitas;
f) Com base nos pontos expostos acima, Caillois entende que, a
partir do
espao simblico do jogo e da criao de regras especficas ao
seu
desenvolvimento enquanto tal, criada uma realidade fictcia, a
qual no tem
nenhuma necessidade de verossimilhana com a cotidiana.
A partir dessas consideraes, Caillois (1990, p.85), corroborando
a definio
proposta por Huizinga (2008), entende o jogo como [...] uma
actividade paralela,
independente, que se ope aos gestos e s decises da vida corrente
atravs de
caractersticas especficas que lhe so prprias e que fazem com que
seja um jogo.
Neste sentido, ele busca estabelecer uma sistematizao dos jogos
segundo
algumas caractersticas fundamentais, dividindo-os tambm de
acordo com o
envolvimento do sujeito necessrio sua realizao. Quanto aos tipos
de jogos
segundo traos especficos, ele prope quatro divises: agn, alea,
mimicry e ilinx.
Detalhemos estas categorias por ele propostas.
a) Agn: para Caillois, so os jogos de competio, ou seja, aqueles
que
proporcionam ao jogador, quando do incio da atividade, a criao
artificial de uma
igualdade de oportunidades, oferecendo aos jogadores condies
ideais e anulando
quaisquer vantagens prvias em relao uns aos outros. Podem ser
tanto de carter
fsico, como os esportes, quanto de carter intelectual (jogos de
tabuleiro, como
xadrez ou damas). Nesta modalidade, para o autor, o interesse do
jogo , para cada
um dos seus concorrentes, o desejo de ver reconhecida a sua
excelncia num
determinado domnio (1990, p. 35).
b) Alea: so os jogos baseados em sorte, numa evidente oposio ao
agn,
onde se depende quase que exclusivamente de habilidades
individuais para o seu
sucesso. Nesta categoria, podemos perceber tambm a existncia da
igualdade de
oportunidades, haja vista a inexistncia de condio superior de um
jogador em
relao ao outro; enquanto no tipo anterior, esta igualdade
fornecida de forma
artificial, na forma de uma conveno arbitrria aceita como
necessria ao jogo, aqui
ela existe fundamentada na ideia de entregar sorte o seu
desempenho. Para
-
40
Caillois, trata-se aqui mais de vencer o destino do que um
adversrio, e podem ser
citados como tpicos as loterias e jogos de azar. O autor,
inclusive, considera que
estes ltimos apresentam-se como exclusivamente humanos, uma vez
que os
animais desconhecem o conceito de sorte para que pudessem nele
basear atividade
qualquer.
c) Mimicry: estes so os tipos de jogos baseados em simulao, na
aceitao
de um universo imaginrio e fechado, onde os jogadores tanto
podem criar uma
condio espao temporal simblica, distinta daquela em que vivem a
sua vida
cotidiana, quanto representar papis, encarnando personagens
fictcios e adotando
comportamentos especficos a eles. Baseia-se na premissa de que,
para o
desenvolvimento de tais modalidades, necessrio ao jogador [...]
jogar a crer, a
fazer crer a si prprio ou a fazer crer aos outros que outra
pessoa (CAILLOIS,
1990, p. 39). Podemos citar aqui desde brincadeiras infantis,
simulaes onde
fingem ser monstros, cavaleiros e princesas, at outras
socialmente consideradas
como atividades mais srias, como representaes teatrais e
dramticas, e
profisses como atores e atrizes.
d) Ilinx: esta ordem de jogos caracteriza-se como aqueles nos
quais se busca,
deliberadamente, algum tipo de desordem fsica, sensorial ou
cognitiva nos
jogadores. Trata-se da destruio momentnea da estabilidade na
percepo do
jogador, que o autor chama de uma sensao de vertigem. Aqui
podemos enquadrar
os parques de diverses, atividades como pular de paraquedas, ou
mesmo o hbito
comum entre crianas de girar sobre seu prprio eixo com o
objetivo de perder o
equilbrio. curioso observar, tambm, que nesta categoria, o autor
enquadra
atividades cotidianas e naturalizadas socialmente entre adultos,
como o hbito de
ingerir bebidas alcolicas e a dana (idem, p. 46).
Postas as categorias acima, o autor argumenta tambm no
tocante
necessidade de regulamentao dos jogos a partir de dois eixos,
que ele chama de
paidia e ludus7 (idem, p. 32-33). O primeiro tipo caracteriza-se
por atividades nas
7 Faz-se necessrio, aqui, esclarecer que, no decorrer deste
trabalho, ao utilizarmos a expresso ldico, no necessariamente
estamos nos referindo categoria ludus proposta por Caillois,
embora
-
41
quais se busca majoritariamente a diverso despreocupada, em cujo
sentido
encontra-se a alegria e o prazer proporcionados pelas mesmas.
Possibilitam uma
maior flexibilidade em relao s regras, sem que haja uma
estruturao rgida e
formas estabelecidas de jogar, permitindo assim maior
criatividade e improvisao
por parte do jogador. J por ludus, estabelecendo um contraponto
em relao
categoria anterior, ele designa os jogos estruturados segundo
regras especficas e
s quais no se permite nenhum tipo de violao, sob pena de
desfazer-se o crculo
mgico, caso isso ocorra. So jogos mais estandardizados e
burocrticos, como por
exemplo, o xadrez. Neste tipo de jogo especfico, o jogador no
pode movimentar as
peas conforme o seu bel-prazer, e, caso este o faa,
imediatamente cessa-se at
mesmo o sentido encerrado no jogo. No ludus, o prazer
proporcionado por tais
regras existe justamente em vencer o (s) oponente (s) seguindo
as normas de forma
clara. Embora sejam distintos, ludus e paidia podem se
desenvolver dentro do
mesmo jogo, e parecem estar em conflito, dada a sua aparente
contradio;
entretanto, esclarece o autor que
a paidia conjuga-se com o gosto pela dificuldade gratuita, a que
proponho chamar ludus, e desemboca nos variados jogos a que pode
ser atribuda, sem exagero, uma inteno civilizadora. Efectivamente,
eles ilustram os valores morais e intelectuais de uma cultura, bem
como contribuem para os determinar e desenvolver (CAILLOIS, 1990,
p.48).
Isso posto, o autor esquematiza a sua classificao em relao aos
tipos de
jogos, e tambm quanto ao seu sistema de regras da seguinte forma
(figura 1):
o objeto que ser descrito posteriormente nesta Dissertao possua
caractersticas desse tipo por ele designado.
-
42
Figura 1: classificao proposta por Caillois (1990, p. 57)
2.2 UMA BREVE ARQUEOLOGIA DOS JOGOS ELETRNICOS E DIGITAIS
No que tange esse ponto, Caillois (1990) parece corroborar a
tese de que
podemos reconhecer uma sociedade pelos jogos que nela se
desenvolvem,
conforme McLuhan (2007) defende, e j expusemos anteriormente.
Existe, assim,
uma relao simbitica entre estas duas esferas, ou uma
retroalimentao
constante, o que parece, para ns, perfeitamente pertinente
quando consideramos,
por exemplo, a evoluo dos jogos eletrnicos principalmente a
partir da segunda
metade do sculo XX os quais esto diretamente ligados ao fenmeno
da
informatizao e digitalizao da vida em sociedade, ou como
preconiza Negroponte
(1995), a transformao de tomos em bytes nas mais diversas
esferas da vida
humana.
A distino entre jogos eletrnicos e digitais necessria, segundo
Pinheiro
(2007, p. 62), pois reconhecida a existncia de jogos eletrnicos
ainda na primeira
metade do sculo XX, com as mquinas de pinball, mesas nas quais
uma bola era
arremessada (inicialmente, com o auxlio de um taco de madeira,
depois com uma
mola), fazendo com que fosse lanada para a parte superior de uma
estrutura
inclinada contando com uma srie de obstculos dispostos na
superfcie da mesa,
fazendo com que percorresse o caminho de volta e casse em
cavidades esfricas
-
43
na parte inferior. A esse jogo, foi dado o nome Bagatelle, sendo
essencialmente
praticado em bares e pubs; posteriormente, foi aprimorado ao ser
introduzido
circuitos eltricos que, alm de lanar a bola automaticamente na
mesa de jogo,
detectavam os movimentos que ela fazia pela superfcie,
identificando caso o
jogador tentasse trapacear inclinando a mesa, por exemplo. Outro
mecanismo
importante, segundo Pinheiro (2007, p. 65), foi o que retornava
a bola
automaticamente, caso ela casse em um dos buracos dispostos na
superfcie da
mesma. Na dcada de 30 surgiram tambm as primeiras mquinas de
caa-nqueis
e outros jogos de azar nos Estados Unidos da Amrica, sendo
imediatamente
relacionada aos pinballs e proibidas em diversos estados que
possuam leis restritas
para jogos desse tipo.
Uma sada para a legalizao dos pinballs foi a associao deles mais
s
habilidades motoras e cognitivas de seus jogadores, do que ideia
de apostas.
Assim, em 1947 foi produzida a mquina Humpyt Dumpyt, contando
com circuitos
eltricos e tambm dispositivos mecnicos, chamados flipper bumps,
que
relanavam a bola mesa quando teoricamente o jogo deveria ter
terminado, para
que o jogador pudesse marcar mais pontos, e que no Brasil
ficaram conhecidos
como fliperamas.
Nas dcadas seguintes, foram sendo produzidos novos tipos de
jogos
combinando dispositivos eletromecnicos, como o Triple Action
(1948) e tambm as
mquinas de jukebox,