CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3 ed. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002.
CIDADANIA NO BRASIL
Jos Murilo de Carvalho
CIDADANIA NO BRASIL
O longo caminho
3 ed.
Rio de Janeiro
2002
SUMRIO
INTRODUO: MAPA DA VIAGEM, 7
Captulo I: Primeiros passos (1822-1930) 15
O peso do passado (1500-1822) 17
1822: os direitos polticos saem na frente 25
1881: tropeo 38
Direitos civis s na lei 45
Cidados em negativo 64
O sentimento nacional 76
Captulo II: Marcha acelerada (1930-1964) 85
1930: Marco divisrio 89
Os direitos sociais na dianteira (1930-1945) 110
A vez dos direitos polticos (1945-1964) 126
Confronto e fim da democracia 144
Captulo III: Passo atrs, passo adiante (1964-1985) 155
Passo atrs: Nova ditadura (1964-1974) 158
Novamente os direitos sociais 170
Passo adiante: voltam os direitos civis e polticos (1974-1985) 173
Um balano do perodo militar 190
Captulo IV: A cidadania aps a redemocratizao 197
A expanso final dos direitos polticos 200
Direitos sociais sobre ameaa 206
Direitos civis retardatrios 209
Concluso: A cidadania na encruzilhada 219
Sugestes de leitura 231
INTRODUO: MAPA DA VIAGEM
O esforo de reconstruo, melhor dito, de construo da democracia no Brasil ganhou
mpeto aps o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforo a voga
que assumiu a palavra cidadania. Polticos, jornalistas, intelectuais, lderes sindicais,
dirigentes de associaes, simples cidados, todos a adotaram. A cidadania, literalmente,
caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o prprio povo na retrica poltica. No se
diz mais "o povo quer isto ou aquilo", diz-se "a cidadania quer". Cidadania virou gente. No
auge do entusiasmo cvico, chamamos a Constituio de 1988 de Constituio Cidad.
Havia ingenuidade no entusiasmo. Havia a crena de que a democratizao das instituies
traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquistado o
direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presidente da Repblica seria garantia de
liberdade, de participao, de segurana, de desenvolvimento, de emprego, de justia
social. De liberdade, ele foi. A manifestao do pensamento livre, a ao poltica e
sindical livre. De participao tambm. O direito do voto nunca foi to difundido. Mas as
coisas no caminharam to bem em outras reas. Pelo contrrio. j 15 anos passados desde
o fim da ditadura, problemas
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JOS MURILO DE CARVALHO
centrais de nossa sociedade, como a violncia urbana, o desemprego, o analfabetismo, a m
qualidade da educao, a oferta inadequada dos servios de sade e saneamento, e as
grandes desigualdades sociais e econmicas ou continuam sem soluo, ou se agravam, ou,
quando melhoram, em ritmo muito lento. Em conseqncia, os prprios mecanismos e
agentes do sistema democrtico, como as eleies, os partidos, o Congresso, os polticos, se
desgastam e perdem a confiana dos cidados.
No h indcios de que a descrena dos cidados tenha gerado saudosismo em relao ao
governo militar, do qual a nova gerao nem mesmo se recorda. Nem h indicao de
perigo imediato para o sistema democrtico. No entanto, a falta de perspectiva de melhoras
importantes a curto prazo, inclusive por motivos que tm a ver com a crescente
dependncia do pas em relao ordem econmica internacional, fator inquietante, no
apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a mdio prazo, pela
possvel tentao que pode gerar de solues que signifiquem retrocesso em conquistas j
feitas. importante, ento, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado,
sua evoluo histrica e suas perspectivas. Ser exerccio adequado para o momento da
passagem dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses.
Inicio a discusso dizendo que o fenmeno da cidadania complexo e historicamente
definido. A breve introduo acima j indica sua complexidade. O exerccio de certos
direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, no gera automaticamente o gozo de
outros, como a segurana e o emprego. O exerccio do voto no garante a existncia de
governos atentos aos problemas bsicos da populao. Dito de outra maneira: a
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CIDADANIA NO BRASIL
liberdade e a participao no levam autom:uicamente, ou rapidamente, resoluo de
problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui vrias dimenses e que algumas
podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade,
participao e igualdade para todos, um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez
inatingvel. Mas ele tem servido de parmetro para o julgamento da qualidade da cidadania
em cada pas e em cada momento histrico.
Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, polticos e sociais. O cidado
pleno seria aquele que fosse titular dos trs direitos. Cidados incompletos seriam os que
possussem apenas alguns dos direitos. Os que no se beneficiassem de nenhum dos
direitos seriam no-cidados. Esclareo os conceitos. Direitos civis so os direitos
fundamentais vida, liberdade, propriedade, igualdade perante a lei. Eles se
desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de
organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondncia, de no ser
preso a no ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de no ser condenado
sem processo legal regular. So direitos cuja garantia se baseia na existncia de uma justia
independente, eficiente, barata e acessvel a todos. So eles que garantem as relaes
civilizadas entre as pessoas e a prpria existncia da sociedade civil surgida com o
desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque a liberdade individual.
possvel haver direitos civis sem direitos polticos. Estes se referem participao do
cidado no governo da sociedade. Seu exerccio limitado a parcela da populao e
consiste na capacidade de fazer demonstraes polticas, de organizar partidos, de votar, de
ser votado. Em geral, quando se fala de direitos polticos, do direito do voto que se est
falando. Se
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JOS MURILO DE CARVALHO
pode haver direitos civis sem direitos polticos, o contrrio no vivel. Sem os direitos
civis, sobretudo a liberdade de opinio e organizao, os direitos polticos, sobretudo o
voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de contedo e servem antes para
justificar governos do que para representar cidados. Os direitos polticos tm como
instituio principal os partidos e um parlamento livre e representativo. So eles que
conferem legitimidade organizao poltica da sociedade. Sua essncia a idia de
autogoverno.
Finalmente, h os direitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os
direitos polticos garantem a participao no governo da sociedade, os direitos sociais
garantem a participao na riqueza coletiva. Eles incluem o direito educao, ao trabalho,
ao salrio justo, sade, aposentadoria. A garantia de sua vigncia depende da existncia
de uma eficiente mquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir
sem os direitos civis e certamente sem os direitos polticos. Podem mesmo ser usados em
substituio aos direitos polticos. Mas, na ausncia de direitos civis e polticos, seu
contedo e alcance tendem a ser arbitrrios. Os direitos sociais permitem s sociedades
polticamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo
e garantir um mnimo de bem-estar para todos. A idia central em que se baseiam a da
justia social.
O autor que desenvolveu a distino entre as vrias dimenses da cidadania, T. A.
Marshall, sugeriu tambm que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita
lentido. Primeiro vieram os direitos civis, no sculo XVIII. Depois, no sculo XIX,
surgiram os direitos polticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no sculo
XX. Segundo ele, no se trata de seqncia apenas cronolgica: ela tambm
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CIDADANIA NO BRASIL
lgica. Foi com base no exerccio dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses
reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu pas. A participao
permitiu a eleio de operrios e a criao do Partido Trabalhista, que foram os
responsveis pela introduo dos direitos sociais.
H, no entanto, uma exceo na seqncia de direitos, anotada pelo prprio Marshall.
Trata-se da educao popular. Ela definida como direito social mas tem sido
historicamente um pr-requisito para a expanso dos outros direitos.
Nos pases em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra,
por uma razo ou outra a educao popular foi introduzi da. Foi ela que permitiu s pessoas
tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausncia de
uma populao educada tem sido sempre um dos principais obstculos construo da
cidadania civil e poltica.
O surgimento seqencial dos direitos sugere que a prpria idia de direitos, e, portanto, a
prpria cidadania, um fenmeno histrico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania
plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradio ocidental dentro da qual nos movemos.
Mas os caminhos so distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver tambm
desvios e retrocessos, no previstos por Marshall. O percurso ingls foi apenas um entre
outros. A Frana, a Alemanha, os Estados Unidos, cada pas seguiu seu prprio caminho. O
Brasil no exceo. Aqui no se aplica o modelo ingls. Ele nos serve apenas para
comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferenas
importantes. A primeira refere-se maior nfase em um dos direitos, o social, em relao
aos outros. A segunda refere-se alterao na seqncia em que os direitos foram
adquiridos:
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Jos MURILO DE CARVALHO
entre ns o social precedeu os outros. Como havia lgica na seqncia inglesa, uma
alterao dessa lgica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidado ingls,
ou norte-americano, e de um cidado brasileiro, no estamos falando exatamente da mesma
coisa.
Outro aspecto importante, derivado da natureza histrica da cidadania, que ela se
desenvolveu dentro do fenmeno, tambm histrico, a que chamamos de Estado-nao e
que data da Revoluo Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, todos eles, sempre se deu
dentro das fronteiras geogrficas e polticas do Estado-nao. Era uma luta poltica
nacional, e o cidado que dela surgia era tambm nacional. Isto quer dizer que a construo
da cidadania tem a ver com a relao das pessoas com o Estado e com a nao. As pessoas
se tornavam cidads medida que passavam a se sentir parte de uma nao e de um Estado.
Da cidadania como a conhecemos fazem parte ento a lealdade a um Estado e a
identificao com uma nao. As duas coisas tambm nem sempre aparecem juntas.
A identificao nao pode ser mais forte do que a lealdade ao Estado, e vice-versa. Em
geral, a identidade nacional se deve a fatores como religio, lngua e, sobretudo, lutas e
guerras contra inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do grau de participao na
vida poltica. A maneira como se formaram os Estados-nao condiciona assim a
construo da cidadania. Em alguns pases, o Estado teve mais importncia e o processo de
difuso dos direitos se deu principalmente a partir da ao estatal. Em outros, ela se deveu
mais ao dos prprios cidados.
Da relao da cidadania com o Estado-nao deriva uma ltima complicao do problema.
Existe hoje um consenso a respeito da idia de que vivemos uma crise do Estado-nao.
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CIDADANIA NO BRASIL
Discorda-se da extenso, profundidade e rapidez do fenmeno, no de sua existncia. A
internacionalizao do sistema capitalista, iniciada h sculos mas muito acelerada pelos
avanos tecnolgicos recentes, e a criao de blocos econmicos e polticos tm causado
uma reduo do poder dos Estados e uma mudana das identidades nacionais existentes. As
vrias naes que compunham o antigo imprio sovitico se transformaram em novos
Estados-nao. No caso da Europa Ocidental, os vrios Estados-nao se fundem em um
grande Estado multinacional. A reduo do poder do Estado afeta a natureza dos antigos
direitos, sobretudo dos direitos polticos e sociais.
Se os direitos polticos significam participao no governo, uma diminuio no poder do
governo reduz tambm a relevncia do direito de participar. Por outro lado, a ampliao da
competio internacional coloca presso sobre o custo da mo-de-obra e sobre as finanas
estatais, o que acaba afetando o emprego e os gastos do governo, do qual dependem os
direitos sociais. Desse modo, as mudanas recentes tm recolocado em pauta o debate sobre
o problema da cidadania, mesmo nos pases em que ele parecia estar razoavelmente
resolvido.
Tudo isso mostra a complexidade do problema. O enfrentamento dessa complexidade pode
ajudar a identificar melhor as pedras no caminho da construo democrtica. No ofereo
receita da cidadania. Tambm no escrevo para especialistas. Fao convite a todos os que
se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a
cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o eventual companheiro ou
companheira de jornada poder desenvolver viso prpria do problema. Ao faz-lo, estar
exercendo sua cidadania.
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CAPTULO I Primeiros passos (1822-1930)
A primeira parte do trajeto nos levar a percorrer 108 anos da histria do pas, desde a
independncia, em 1822, at o final da Primeira Repblica, em 1930. Fugindo da diviso
costumeira da histria poltica do pas, englobo em um mesmo perodo o Imprio (1822-
1889) e a Primeira Repblica (1889-1930). Do ponto de vista do progresso da cidadania, a
nica alterao importante que houve nesse perodo foi a abolio da escravido, em 1888.
A abolio incorporou os ex-escravos aos direitos civis. Mesmo assim, a incorporao foi
mais formal do que real. A passagem de um regime poltico para outro em 1889 trouxe
pouca mudana. Mais importante, pelo menos do ponto de vista poltico, foi o movimento
que ps fim Primeira Repblica, em 1930. Antes de iniciar o percurso, no entanto,
preciso fazer rpida excurso fase colonial. Algumas caractersticas da colonizao
portuguesa no Brasil deixaram marcas duradouras, relevantes para o problema que nos
interessa.
O PESO DO PASSADO (1500-1822)
Ao proclamar sua independncia de Portugal em 1822, o Brasil herdou uma tradio cvica
pouco encorajadora. Em trs s-
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JOS MURILO DE CARVALHO
culos de colonizao (1500-1822), os portugueses tinham construdo um enorme pas
dotado de unidade territorial, lingstica, cultural e religiosa. Mas tinham tambm deixado
uma populao analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e
latifundiria, um Estado absolutista. poca da independncia, no havia cidados
brasileiros, nem ptria brasileira.
A histria da colonizao conhecida. Lembro apenas alguns pontos que julgo pertinentes
para a discusso. O primeiro deles tem a ver com o fato de que o futuro pas nasceu da
conquista de povos seminmades, na idade da pedra polida, por europeus detentores de
tecnologia muito mais avanada. O efeito imediato da conquista foi a dominao e o
extermnio, pela guerra, pela escravizao e pela doena, de milhes de indgenas. O
segundo tem a ver com o fato de que a conquista teve conotao comercial. A colonizao
foi um empreendimento do governo colonial aliado a particulares.
A atividade que melhor se prestou finalidade lucrativa foi a produo de acar,
mercadoria com crescente mercado na Europa. Essa produo tinha duas caractersticas
importantes: exigia grandes capitais e muita mo-de-obra. A primeira foi responsvel pela
grande desigualdade que logo se estabeleceu entre os senhores de engenho e os outros
habitantes; a segunda, pela escravizao dos africanos. Outros produtos tropicais, como o
tabaco, juntaram-se depois ao acar. Consolidou-se, por esse modo, um trao que marcou
durante sculos a economia e a sociedade brasileiras: o latifndio mono cultor e exportador
de base escravista. Formaram-se, ao longo da costa, ncleos populacionais baseados nesse
tipo de atividade que constituram os principais plos de desenvolvimento da colnia e lhe
deram viabilidade econmica at o final
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CIDADANIA NO BRASIL
do sculo XVII, quando a explorao do ouro passou a ter importncia.
A minerao, sobretudo de aluvio, requeria menor volume de capital e de mo-de-obra.
Alm disso, era atividade de natureza voltil, cheia de incertezas. As fortunas podiam surgir
e desaparecer rapidamente. O ambiente urbano que logo a cercou tambm contribua para
afrouxar os controles sociais, inclusive sobre a populao escrava. Tudo isto contribua para
maior mobilidade social do que a existente nos latifndios.
Por outro lado, a explorao do ouro e do diamante sofreu com maior fora a presena da
mquina repressiva e fiscal do sistema colonial. As duas coisas, maior mobilidade e maior
controle, tomaram a regio mineradora mais propcia rebelio poltica. Outra atividade
econmica importante desde o incio da colonizao foi a criao de gado. O gado
desenvolveu-se no interior do pas como atividade subsidiria da grande propriedade
agrcla. A pecuria era menos concentrada do que o latifndio, usava menos mo-de-obra
escrava e tinha sobre a minerao a vantagem de fugir ao controle das autoridades
coloniais. Mas, do lado negativo, gerava grande isolamento da populao em relao ao
mundo da administrao e da poltica. O poder privado exercia o domnio inconteste.
O fator mais negativo para a cidadania foi a escravido.
Os escravos comearam a ser importados na segunda metade do sculo XVI. A importao
continuou ininterrupta at 1850, 28 anos aps a independncia. Calcula-se que at 1822
tenham sido introduzidos na colnia cerca de 3 milhes de escravos. Na poca da
independncia, numa populao de cerca de 5 milhes, incluindo uns 800 mil ndios, havia
mais de 1 milho de escravos. Embora concentrados nas reas de grande agricultura
exportadora e de minerao, havia escravos em
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JOS MURILO DE CARVALHO
todas as atividades, inclusive urbanas. Nas cidades eles exerciam vrias tarefas dentro das
casas e na rua. Nas casas, as escravas faziam o servio domstico, amamentavam os filhos
das sinhs, satisfaziam a concupiscncia dos senhores. Os filhos dos escravos faziam
pequenos trabalhos e serviam de montaria nos brinquedos dos sinhozinhos. Na rua,
trabalhavam para os senhores ou eram por eles alugados. Em muitos casos, eram a nica
fonte de renda de vivas. Trabalhavam de carregadores, vendedores, artesos, barbeiros,
prostitutas.
Alguns eram alugados para mendigar. Toda pessoa com algum recurso possua um ou mais
escravos. O Estado, os funcionrios pblicos, as ordens religiosas, os padres, todos eram
proprietrios de escravos. Era to grande a fora da escravido que os prprios libertos,
uma vez livres, adquiriam escravos. A escravido penetrava em todas as classes, em todos
os lugares, em todos os desvos da sociedade: a sociedade colonial era escravista de alto a
baixo.
A escravizao de ndios foi praticada no incio do perodo colonial, mas foi proibida pelas
leis e teve a oposio decidida dos jesutas. Os ndios brasileiros foram rapidamente
dizimados. Calcula-se que havia na poca da descoberta cerca de 4 milhes de ndios. Em
1823 restava menos de 1 milho. Os que escaparam ou se miscigenaram ou foram
empurrados para o interior do pas. A miscigenao se deveu natureza da colonizao
portuguesa: comercial e masculina.
Portugal, poca da conquista, tinha cerca de 1 milho de habitantes, insuficientes para
colonizar o vasto imprio que conqUIstara, sobretudo as partes menos habitadas, como o
Brasil. No havia mulheres para acompanhar os homens.
Miscigenar era uma necessidade individual e poltica. A miscigenao se deu em parte por
aceitao das mulheres indge-
20
CIDADANIA NO BRASIL
nas, em parte pelo simples estupro. No caso das escravas africanas, o estupro era a regra.
Escravido e grande propriedade no constituam ambiente favorvel formao de futuros
cidados. Os escravos no eram cidados, no tinham os direitos civis bsicos integridade
fsica (podiam ser espancados), liberdade e, em casos extremos, prpria vida, j que a
lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais. Entre escravos e
senhores, existia uma populao legalmente livre, mas a que faltavam quase todas as
condies para o exerccio dos direitos civis, sobretudo a educao. Ela dependia dos
grandes proprietrios para morar, trabalhar e defender-se contra o arbtrio do governo e de
outros proprietrios. Os que fugiam para o interior do pas viviam isolados de toda
convivncia social, transformando-se, eventualmente, eles prprios em grandes
proprietrios.
No se pode dizer que os senhores fossem cidados. Eram, sem dvida, livres, votavam e
eram votados nas eleies municipas. Eram os "homens bons" do perodo colonial.
Faltava-lhes, no entanto, o prprio sentido da cidadania, a noo da igualdade de todos
perante a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funes do Estado,
sobretudo as funes judicirias. Em suas mos, a justia, que, como vimos, a principal
garantia dos direitos civis, tornava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do
governo terminava na porteira das grandes fazendas.
A justia do rei tinha alcance limitado, ou porque no atingia os locais mais afastados das
cidades, ou porque sofria a oposio da justia privada dos grandes proprietrios, ou porque
no tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita
corrupo dos magis-
21
Jos MURILO DE CARVALHO
trados. Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e recursos
fora do alcance da maioria da populao. O cidado comum ou recorria proteo dos
grandes proprietrios, ou ficava merc do arbtrio dos mais fortes. Mulheres e escravos
estavam sob a jurisdio privada dos senhores, no tinham acesso justia para se
defenderem. Aos escravos s restava o recurso da fuga e da formao de quilombos.
Recurso precrio porque os quilombos eram sistematicamente combatidos e exterminados
por tropas do governo ou de particulares contratados pelo governo.
Freqentemente, em vez de conflito entre as autoridades e os grandes proprietrios, havia
entre eles conluio, dependncia mtua. A autoridade mxima nas localidades, por exemplo,
eram os capites-mores das milcias. Esses capitesmores eram de investi dura real, mas
sua escolha era sempre feita entre os representantes da grande propriedade. Havia, ento,
confuso, que era igualmente conivncia, entre o poder do Estado e o poder privado dos
proprietrios. Os impostos eram tambm freqentemente arrecadados por meio de contratos
com particulares. Outras funes pblicas, como o registro de nascimentos, casamentos e
bitos, eram exercidas pelo clero catlico. A conseqncia de tudo isso era que no existia
de verdade um poder que pudesse ser chamado de pblico, isto , que pudesse ser a garantia
da igualdade de todos perante a lei, que pudesse ser a garantia dos direitos civis.
Outro aspecto da administrao colonial portuguesa que dificultava o desenvolvimento de
uma conscincia de direitos era o descaso pela educao primria. De incio, ela estava nas
mos dos jesutas. Aps a expulso desses religiosos em 1759, o governo dela se
encarregou, mas de maneira completamente inadequada. No h dados sobre alfabetizao
ao final do
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CIDADANIA NO BRASIL
perodo colonial. Mas se verificarmos que em 1872, meio sculo aps a independncia,
apenas 16% da populao era alfabetizada, poderemos ter uma idia da situao quela
poca. claro que no se poderia esperar dos senhores qualquer iniciativa a favor da
educao de seus escravos ou de seus dependentes. No era do interesse da administrao
colonial, ou dos senhores de escravos, difundir essa arma cvica. No havia tambm
motivao religiosa para se educar. A Igreja Catlica no incentivava a leitura da Bblia. Na
Colnia, s se via mulher aprendendo a ler nas imagens de Sant' Ana Mestra ensinando
Nossa Senhora.
A situao no era muito melhor na educao superior. Em contraste com a Espanha,
Portugal nunca permitiu a criao de universidades em sua colnia. Ao final do perodo
colonial, havia pelo menos 23 universidades na parte espanhola da Amrica, trs delas no
Mxico. Umas 150 mil pessoas tinham sido formadas nessas universidades. S a
Universidade do Mxico formou 39.367 estudantes. Na parte portuguesa, escolas superiores
s foram admitidas aps a chegada da corte, em 1808. Os brasileiros que quisessem, e
pudessem, seguir curso superior tinham que viajar a Portugal, sobretudo a Coimbra. Entre
1772 e 1872, passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros.
Comparado com os 15 o mil da colnia espanhola, o nmero ridculo.
A situao da cidadania na Colnia pode ser resumida nas palavras atribudas por Frei
Vicente do Salvador a um bispo de Tucumn de passagem pelo Brasil. Segundo Frei
Vicente, em sua Histria do Brasil, 1500-1627, teria dito o bispo: "Verdadeiramente que
nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela no repblica, sendo-o cada casa".
No havia repblica no Brasil, isto , no havia sociedade poltica; no
23
JOS MURILO DE CARVALHO
havia "repblicos", isto , no havia cidados. Os direitos civis beneficiavam a poucos, os
direitos polticos a pouqussimos, dos direitos sociais ainda no se falava, pois a assistncia
social estava a cargo da Igreja e de particulares.
Foram raras, em conseqncia, as manifestaes cvicas durante a Colnia. Excetuadas as
revoltas escravas, das quais a mais importante foi a de Palmares, esmagada por particulares
a soldo do governo, quase todas as outras foram conflitos entre setores dominantes ou
reaes de brasileiros contra o domnio colonial. No sculo XVIII houve quatro revoltas
polticas. Trs delas foram lideradas por elementos da elite e constituam protestos contra a
poltica metropolitana, a favor da independncia de partes da colnia. Duas se passaram
sintomaticamente na regio das minas, onde havia condies mais favorveis rebelio. A
mais politizada foi a Inconfidncia Mineira (1789), que se inspirou no iderio iluminista do
sculo XVIII e no exemplo da independncia das colnias da Amrica do Norte. Mas seus
lderes se restringiam aos setores dominantes - militares, fazendeiros, padres, poetas e
magistrados -, e ela no chegou s vias de fato.
Mais popular foi a Revolta dos Alfaiates, de 1798, na Bahia, a nica envolvendo militares
de baixa patente, artesos e escravos. j sob a influncia das idias da Revoluo Francesa,
sua natureza foi mais social e racial que poltica. O alvo principal dos rebeldes, quase todos
negros e mulatos, era a escravido e o domnio dos brancos. Distinguia-se das revoltas de
escravos anteriores por se localizar em cidade importante e no buscar a fuga para
quilombos distantes. Foi reprimida com rigor. A ltima e mais sria revolta do perodo
colonial aconteceu em Pernambuco, em 1817. Os rebeldes de Pernambuco eram militares
de alta patente, comerciantes,
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CIDADANIA NO BRASIL
senhores de engenho e, sobretudo, padres. Calcula-se em 45 o nmero de padres
envolvidos. Sob forte influncia manica, os rebeldes proclamaram uma repblica
independente que inclua, alm de Pernambuco, as capitanias da Parm'ba e do Rio Grande
do Norte. Controlaram o governo durante dois meses. Alguns dos lderes, jnclusive padres,
foram fuzilados.
Na revolta de 1817 apareceram com mais clareza alguns traos de uma nascente
conscincia de direitos sociais e polticos. A repblica era vista como o governo dos povos
livres, em oposio ao absolutismo monrquico. Mas as idias de igualdade no iam muito
longe. A escravido no foi tocada.
Em 1817, houve, sobretudo, manifestao do esprito de resistncia dos pernambucanos.
Sintomaticamente, falava-se em "patriotas" e no em "cidados". E o patriotismo era
pernambucano mais que brasileiro. A identidade pernambucana fora gerada durante a
prolongada luta contra os holandeses, no sculo XVII. Como vimos, guerras so poderosos
fatores de criao de identidade.
Chegou-se ao fim do perodo colonial com a grande maioria da populao excluda dos
direitos civis e polticos e sem a existncia de um sentido de nacionalidade. No mximo,
havia alguns centros urbanos dotados de uma populao polticamente mais aguerrida e
algum sentimento de identidade regional.
1822: OS DIREITOS POTICOS SAEM NA FRENTE
A independncia no introduziu mudana radical no panorama descrito. Por um lado, a
herana colonial era por demais negativa; por outro, o processo de independncia envolveu
25
Jos MURILO DE CARVALHO
conflitos muito limitados. Em comparao com os outros pases da Amrica Latina, a
independncia do Brasil foi relativamente pacfica. O conflito militar limitou-se a
escaramuas no Rio de Janeiro e resistncia de tropas portuguesas em algumas provncias
do norte, sobretudo Bahia e Maranho.
No houve grandes guerras de libertao como na Amrica espanhola. No houve
mobilizao de grandes exrcitos, figuras de grandes "libertadores", como Simn Bolvar,
Jos de San Martn, Bernardo O'Higgins, Antonio Jos de Sucre. Tambm no houve
revoltas libertadoras chefiadas por lderes populares, como os mexicanos Miguel Hidalgo e
Jos Mara Morelos. A revolta que mais se aproximou deste ltimo modelo foi a de 1817,
que se limitou a pequena parte do pas e foi derrotada.
A principal caracterstica poltica da independncia brasileira foi a negociao entre a elite
nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora o prncipe D.
Pedro. Do lado brasileiro, o principal negociador foi Jos Bonifcio, que vivera longos anos
em Portugal e fazia parte da alta burocracia da metrpole. Havia sem dvida participantes
mais radicais, sobretudo padres e maons. Mas a maioria deles tambm aceitou uma
independncia negociada. A populao do Rio de Janeiro e de outras capitais apoiou com
entusiasmo o movimento de independncia, e em alguns momentos teve papel importante
no enfrentamento das tropas portuguesas. Mas sua principal contribuio foi secundar por
meio de manifestaes pblicas a ao dos lderes, inclusive a de D. Pedro. O radicalismo
popular manifestava-se sobretudo no dio. aos portugueses que controlavam as posies de
poder e o comrcio nas cidades costeiras.
Parte da elite brasileira acreditou at o ltimo momento
26
CIDADANIA NO BRASIL
ser possvel uma soluo que no implicasse a separao completa de Portugal. Foram as
tentativas das Cortes portuguesas de reconstituir a situao colonial que uniram os
brasileiros em torno da idia de separao. Mesmo assim, a separao foi feita mantendo-se
a monarquia e a casa de Bragana. Graas intermediao da Inglaterra, Portugal aceitou a
independncia do Brasil mediante o pagamento de uma indenizao de 2 milhes de libras
esterlinas. A escolha de uma soluo monrquica em vez de Repblicana deveuse
convico da elite de que s a figura de um rei poderia manter a ordem social e a unio das
provncias que formavam a antiga colnia. O exemplo do que acontecera e ainda acontecia
na ex-colnia espanhola assustava a elite. Seus membros mais ilustrados, como Jos
Bonifcio, queriam evitar a todo custo a fragmentao da ex-colnia em vrios pases
pequenos e fracos, e sonhavam com a construo de um grande imprio. Os outros temiam
ainda que a agitao e a violncia, provveis caso a opo fosse pela repblica, trouxessem
riscos para a ordem social. Acima de tudo, os proprietrios rurais receavam algo parecido
com o que sucedera no Haiti, onde os escravos se tinham rebelado, proclamado a
independncia e expulsado a populao branca.
O "haitianismo", como se dizia na poca, era um espantalho poderoso num pas que
dependia da mo-de-obra escrava e em que dois teros da populao eram mestios. Era
importante que a independncia se fizesse de maneira ordenada, para evitar esses
inconvenientes. Nada melhor do que um rei para garantir uma transio tranqila,
sobretudo se esse rei contasse, como contava, com apoio popular.
O papel do povo, se no foi de simples espectador, como queria Eduardo Prado, que o
comparou ao carreiro do qua-
27
JOS MURILO DE CARVALHO
dro Independncia ou morte!, de Pedro Amrico, tambm no foi decisivo, nem to
importante como na Amrica do Norte ou mesmo na Amrica espanhola. Sua presena foi
maior nas cidades costeiras; no interior, foi quase nula. Nas capitais provinciais mais
distantes, a notcia da independncia s chegou uns trs meses depois; no interior do pas,
demorou ainda mais. Por isso, se no se pode dizer que a independncia se fez revelia do
povo, tambm no seria correto afirmar que ela foi fruto de uma luta popular pela
liberdade. O papel do povo foi mais decisivo em 1831, quando o primeiro imperador foi
forado a renunciar. Houve grande agitao nas ruas do Rio de Janeiro, e uma multido se
reuniu no Campo de Santana exigindo a reposio do ministrio deposto. Ao povo uniram-
se a tropa e vrios polticos em raro momento de confraternizao. Embora o movimento se
limitasse ao Rio de Janeiro, o apoio era geral. No entanto, se possvel considerar 1831
como a verdadeira data da independncia do pas, os efeitos da transio de 1822 j eram
suficientemente fortes para garantir a soluo monrquica e conservadora.
A tranqilidade da transio facilitou a continuidade social. Implantou-se um governo ao
estilo das monarquias constitucionais e representativas europias. Mas no se tocou na
escravido, apesar da presso inglesa para aboli-la ou, pelo menos, para interromper o
trfico de escravos. Com todo o seu liberalismo, a Constituio ignorou a escravido, como
se ela no existisse. Alis, como vimos, nem a revolta Repblicana de 1817 ousou propor a
libertao dos escravos. Assim, apesar de constituir um avano no que se refere aos direitos
polticos, a independncia, feita com a manuteno da escravido, trazia em si grandes
limitaes aos direitos civis.
poca da independncia, o Brasil era puxado em duas
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CIDADANIA NO BRASIL
direes opostas: a direo americana, Repblicana, e a direo europia, monrquica. Do
lado americano, havia o exemplo admirado dos Estados Unidos e o exemplo recente, mais
temido que admirado, dos pases hispnicos. Do lado europeu, havia a tradio colonial
portuguesa, as presses da Santa Aliana e, sobretudo, a influncia mediadora da Inglaterra.
Foi esta ltima que facilitou a soluo conciliadora e forneceu o modelo de monarquia
constitucional, complementado pelas idias do liberalismo francs ps-revolucionrio. O
constitucionalismo exigia a presena de um governo representativo baseado no voto dos
cidados e na separao dos poderes polticos. A Constituio outorgada de 1824, que
regeu o pas at o fim da monarquia, combinando idias de constituies europias, como a
francesa de 1791 e a espanhola de 1812, estabeleceu os trs poderes tradicionais, o
Executivo, o Legislativo (dividido em Senado e Cmara) e o Judicirio. Como resduo do
absolutismo, criou ainda um quarto poder, chamado de Moderador, que era privativo do
imperador. A principal atribuio desse poder era a livre nomeao dos ministros de
Estado, independentemente da opinio do Legislativo. Essa atribuio fazia com que o
sistema no fosse autenticamente parlamentar, conforme o modelo ingls. Poderia ser
chamado de monarquia presidencial, de vez que no presidencialismo Republicano a
nomeao de ministros tambm independe da aprovao do Legislativo.
A Constituio regulou os direitos polticos, definiu quem teria direito de votar e ser
votado. Para os padres da poca, a legislao brasileira era muito liberal. Podiam votar
todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mnima de 100 mil-ris. Todos os
cidados qualificados eram obrigados a votar. As mulheres no votavam, e os escravos,
naturalmen-
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JOS MURILO DE CARVALHO
te, no eram considerados cidados. Os libertos podiam votar na eleio primria. A
limitao de idade comportava excees. O limite caa para 21 anos no caso dos chefes de
famlia, dos oficiais militares, bacharis, clrigos, empregados pblicos, em geral de todos
os que tivessem independncia econmica. A limitao de renda era de pouca importncia.
A maioria da populao trabalhadora ganhava mais de 100 mil-ris por ano. Em 1876, o
menor salrio do servio pblico era de 600 mil-ris. O critrio de renda no exclua a
populao pobre do direito do voto. Dados de um municpio do interior da provncia de
Minas Gerais, de 1876, mostram que os proprietrios rurais representavam apenas 24% dos
votantes. O restante era composto de trabalhadores rurais, artesos, empregados pblicos e
alguns poucos profissionais liberais. As exigncias de renda na Inglaterra, na poca, eram
muito mais altas, mesmo depois da reforma de 1832. A lei brasileira permitia ainda que os
analfabetos votassem. Talvez nenhum pas europeu da poca tivesse legislao to liberal.
A eleio era indireta, feita em dois turnos. No primeiro, os votantes escolhiam os eleitores,
na proporo de um eleitor para cada 100 domiclios. Os eleitores, que deviam ter renda de
200 mil-ris, elegiam os deputados e senadores. Os senadores eram eleitos em lista trplice,
da qual o imperador escolhia o candidato de sua preferncia. Os senadores eram vitalcios,
os deputados tinham mandato de quatro anos, a no ser que a Cmara fosse dissolvida
antes. Nos municpios, os vereadores e juzes de paz eram eleitos pelos votantes em um s
turno. Os presidentes de provncia eram de nomeao do governo central.
Esta legislao permaneceu quase sem alterao at 1881.
Em tese, ela permitia que quase toda a populao adulta mas-
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CIDADANIA NO BRASIL
culina participasse da formao do governo. Na prtica, o nmero de pessoas que votavam
era tambm grande, se levados em conta os padres dos pases europeus. De acordo com o
censo de 1872, 13% da populao total, excludos os escravos, votavam. Segundo clculos
do histriador Richard Graham, antes de 1881 votavam em torno de 50% da populao
adulta masculina. Para efeito de comparao, observe-se que em torno de 1870 a
participao eleitoral na Inglaterra era de 7% da populao total; na Itlia, de 2%; em
Portugal, de 9%; na Holanda, de 2,5%. O sufrgio universal masculino existia apenas na
Frana e na Sua, onde s foi introduzido em 1848. Participao mais alta havia nos
Estados Unidos, onde, por exemplo, 18% da populao votou para presidente em 1888.
Mas, mesmo neste caso, a diferena no era to grande.
Ainda pelo lado positivo, note-se que houve eleies ininterruptas de 1822 at 1930. Elas
foram suspensas apenas em casos excepcionais e em locais especficos. Por exemplo,
durante a guerra contra o Paraguai, entre 1865 e 1870, as eleies foram suspensas na
provncia do Rio Grande do Sul, muito prxima do teatro de operaes. A proclamao da
Repblica, em 1889, tambm interrompeu as eleies por muito pouco tempo; elas foram
retomadas j no ano seguinte. A freqncia das eleies era tambm grande, pois os
mandatos de vereadores e juzes de paz eram de dois anos, havia eleies de senadores
sempre que um deles morria, e a Cmara dos Deputados era dissolvida com freqncia.
Este era o lado formal dos direitos polticos. Ele, sem dvida, representava grande avano
em relao situao colonial. Mas preciso perguntar pela parte substantiva. Como se
davam as eleies? Que significavam elas na prtica? Que tipo de cidado
31
JOS MURILO DE CARVALHO
era esse que se apresentava para exercer seu direito poltico?
Qual era, enfim, o contedo real desse direito?
No difcil imaginar a resposta. Os brasileiros tornados cidados pela Constituio eram
as mesmas pessoas que tinham vivido os trs sculos de colonizao nas condies que j
foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do
governo, um alvar da justia, uma postura municipal. Entre os analfabetos incluam-se
muitos dos grandes proprietrios rurais. Mais de 90% da populao vivia em reas rurais,
sob o controle ou a influncia dos grandes proprietrios. Nas cidades, muitos votantes eram
funcionrios pblicos controlados pelo governo.
Nas reas rurais e urbanas, havia ainda o poder dos comandantes da Guarda Nacional. A
Guarda era uma organizao militarizada que abrangia toda a populao adulta masculina.
Seus oficiais eram indicados pelo governo central entre as pessoas mais ricas dos
municpios. Nela combinavam-se as influncias do governo e dos grandes proprietrios e
comerciantes. Era grande o poder de presso de seus comandantes sobre os votantes que
eram seus inferiores hierrquicos.
A maior parte dos cidados do novo pas no tinha tido prtica do exerccio do voto durante
a Colnia. Certamente, no tinha tambm noo do que fosse um governo representativo,
do que significava o ato de escolher algum como seu representante poltico. Apenas
pequena parte da populao urbana teria noo aproximada da natureza e do funcionamento
das novas instituies. At mesmo o patriotismo tinha alcance restrito. Para muitos, ele no
ia alm do dio ao portugus, no era o sentimento de pertencer a uma ptria comum e
soberana.
Mas votar, muitos votavam. Eram convocados s eleies
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CIDADANIA NO BRASIL
pelos patres, pelas autoridades do governo, pelos juzes de paz, pelos delegados de polcia,
pelos procos, pelos comandantes da Guarda Nacional. A luta poltica era intensa e
violenta. O que estava em jogo no era o exerccio de um direito de cidado, mas o domnio
poltico local. O chefe poltico local no podia perder as eleies. A derrota significava
desprestgio e perda de controle de cargos pblicos, como os de delegados de polcia, de
juiz municipal, de coletor de rendas, de postos na Guarda Nacional. Tratava, ento, de
mobilizar o maior nmero possvel de dependentes para vencer as eleies. As eleies
eram freqentemente tumultuadas e violentas. s vezes eram espetculos tragicmicos. O
governo tentava sempre reformar a legislao para evitar a violncia e a fraude, mas sem
muito xito. No perodo inicial, a formao das mesas eleitorais dependia da aclamao
popular. Aparentemente, um procedimento muito democrtico. Mas a conseqncia era que
a votao primria acabava por ser decidida literalmente no grito. Quem gritava mais
formava as mesas, e as mesas faziam as eleies de acordo com os interesses de uma
faco. Segundo um observador da poca, Francisco Belisrio Soares de Sousa, a
turbulncia, o alarido, a violncia, a pancadaria decidiam o conflito. E imagine-se que tudo
isto acontecia dentro das Igrejas! Por precauo, as imagens eram retiradas para no
servirem de projteis. Surgiram vrios especialistas em burlar as eleies. O principal era o
cabalista.
A ele cabia garantir a incluso do maior nmero possvel de partidrios de seu chefe na lista
de votantes. Um ponto importante para a incluso ou excluso era a renda. Mas a lei no
dizia como devia ser ela demonstrada. Cabia ao cabalista fornecer a prova, que em geral era
o testemunho de algum pago para jurar que o votante tinha renda legal.
33
JOS MURILO DE CARVALHO
O cabalista devia ainda garantir o voto dos alistados. Na hora de votar, os alistados tinham
que provar sua identidade.
A entrava outro personagem importante: o "fsforo". Se o alistado no podia comparecer
por qualquer razo, inclusive por ter morrido, comparecia o fsforo, isto , uma pessoa que
se fazia passar pelo verdadeiro votante. Bem-falante, tendo ensaiado seu papel, o fsforo
tentava convencer a mesa eleitoral de que era o votante legtimo. O bom fsforo votava
vrias vezes em locais diferentes, representando diversos votantes. Havia situaes
verdadeiramente cmicas. Podia acontecer aparecerem dois fsforos para representar o
mesmo votante. Vencia o mais hbil ou o que contasse com claque mais forte. O mximo
da ironia dava-se quando um fsforo disputava o direito de votar com o verdadeiro votante.
Grande faanha era ganhar tal disputa. Se conseguia, seu pagamento era dobrado.
Outra figura importante era o capanga eleitoral. Os capangas cuidavam da parte mais
truculenta do processo. Eram pessoas violentas a soldo dos chefes locais. Cabia-lhes
proteger os partidrios e, sobretudo, ameaar e amedrontar os adversrios, se possvel
evitando que comparecessem eleio.
No raro entravam em choque com capangas adversrios, provocando os "rolos" eleitorais
de que est cheia a histria do perodo. Mesmo no Rio de Janeiro, maior cidade do pas, a
ao dos capangas, freqentemente capoeiras, era comum. Nos dias de eleio, bandos
armados saam pelas ruas amedrontando os incautos cidados. Pode-se compreender que,
nessas circunstncias, muitos votantes no ousassem comparecer, com receio de sofrer
humilhaes. Votar era perigoso.
Mas no acabavam a as malandragens eleitorais. Em caso de no haver comparecimento de
votantes, a eleio se fazia
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CIDADANIA NO BRASIL
assim mesmo. A ata era redigida como se tudo tivesse acontecido normalmente. Eram as
chamadas eleies feitas "a bico de pena", isto , apenas com a caneta. Em geral, eram as
que davam a aparncia de maior regularidade, pois constava na ata que tudo se passara sem
violncia e absolutamente de acordo com as leis.
Nestas circunstncias, o voto tinha um sentido completamente diverso daquele imaginado
pelos legisladores. No se tratava do exerccio do autogoverno, do direito de participar na
vida poltica do pas. Tratava-se de uma ao estritamente relacionada com as lutas locais.
O votante no agia como parte de uma sociedade poltica, de um partido poltico, mas como
dependente de um chefe local, ao qual obedecia com maior ou menor fidelidade. O voto era
um ato de obedincia forada ou, na melhor das hipteses, um ato de lealdade e de gratido.
medida que o votante se dava conta da importncia do voto para os chefes polticos, ele
comeava a barganhar mais, a vend-lo mais caro. Nas cidades, onde a dependncia social
do votante era menor, o preo do voto subia mais rpido. Os chefes no podiam confiar
apenas na obedincia e lealdade, tinham que pagar pelo voto. O pagamento podia ser feito
de vrias formas, em dinheiro, roupa, alimentos, animais.
A crescente independncia do votante exigia tambm do chefe poltico precaues
adicionais para no ser enganado. Por meio dos cabalistas, mantinha seus votantes reunidos
e vigiados em barraces, ou currais, onde lhes dava farta comida e bebida, at a hora de
votar. O cabalista s deixava o votante aps ter este lanado seu voto. Os votantes
aprendiam tambm a negociar o voto com mais de um chefe. Alguns conseguiam vend-lo
a mais de um cabalista, vangloriando-se do feito. O voto neste caso no era mais expresso
de obedin-
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JOS MURILO DE CARVALHO
cia e lealdade, era mercadoria a ser vendida pelo melhor preo. A eleio era a
oportunidade para ganhar um dinheiro fcil, uma roupa, um chapu novo, um par de
sapatos. No mnimo, uma boa refeio.
O encarecimento do voto e a possibilidade de fraude generalizada levaram crescente
reao contra o voto indireto e a uma campanha pela introduo do voto direto. Da parte de
alguns polticos, havia interesse genuno pela correo do ato de votar. Incomodava-os,
sobretudo, a grande influncia que o governo podia exercer nas eleies por meio de seus
agentes em aliana com os chefes locais. Nenhum ministrio perdia eleies, isto ,
nenhum se via diante de maioria oposicionista na Cmara. Nenhum ministro de Estado era
derrotado nas umas. Para outros, no entanto, o que preocupava era o excesso de
participao popular nas eleies. Alegavam que a culpa da corrupo estava na falta de
preparao dos votantes analfabetos, ignorantes, inconscientes. A proposta de eleio direta
para esses polticos tinha como pressuposto o aumento das restries ao direito do voto.
Tratava-se, sobretudo, de reduzir o eleitorado sua parte mais educada, mais rica e,
portanto, mais independente. Junto com a eliminao dos dois turnos, propunham-se o
aumento da exigncia de renda e a proibio do voto do analfabeto.
Havia ainda uma razo material para combater o voto ampliado. Os proprietrios rurais
queixavam-se do custo crescente das eleies. A vitria era importante para manter seu
prestgio e o apoio do governo. Para ganhar, precisavam manter um grande nmero de
dependentes para os quais no tinham ocupao econmica, cuja nica finalidade era votar
na poca de eleies. Alm disso, como vimos, o votante ficava cada vez mais esperto e
exigia pagamentos cada vez maiores.
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CIDADANIA NO BRASIL
O interesse desses proprietrios era baratear as eleies sem pr em risco a vitria. O meio
para isso era reduzir o nmero de votantes e a competitividade das eleies. A eleio ideal
para eles era a de "bico de pena": barata, garantida, "limpa".
Alm da participao eleitoral, houve, aps a independncia, outras formas de
envolvimento dos cidados com o Estado. A mais importante era o servio do jri.
Pertencer ao corpo de jurados era participar diretamente do Poder Judicirio. Essa
participao tinha alcance menor, pois exigia alfabetizao. Mas, por outro lado, era mais
intensa, de vez que havia duas sesses do jri por ano, cada uma de 15 dias. Em torno de 80
mil pessoas exerciam a funo de jurado em 1870. A prtica tambm estava longe de
corresponder inteno da lei, mas quem participava do jri sem dvida se aproximava do
exerccio do poder e adquiria alguma noo do papel da lei. A Guarda Nacional, criada em
1831, era sobretudo um mecanismo de cooptar os proprietrios rurais, mas servia tambm
para transmitir aos guardas algum sentido de disciplina e de exerccio de autoridade legal.
Estavam sujeitas ao servio da Guarda quase as mesmas pessoas que eram obrigadas a
votar. Experincia totalmente negativa era o servio militar no Exrcito e na Marinha. O
carter violento do recrutamento, o servio prolongado, a vida dura do quartel, de que fazia
parte o castigo fsico, tornavam o servio militar - em outros pases, smbolo do dever
cvico - um tormento de que todos procuravam fugir.
A forma mais intensa de envolvimento, no entanto, foi a que se deu durante a guerra contra
o Paraguai. As guerras so fatores importantes na criao de identidades nacionais.
A do Paraguai teve sem dvida este efeito. Para muitos brasileiros, a idia de ptria no
tinha materialidade, mesmo
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JOS MURILO DE CARVALHO
aps a independncia. Vimos que existiam no mximo identidades regionais. A guerra veio
alterar a situao. De repente havia um estrangeiro inimigo que, por oposio, gerava o
sentimento de identidade brasileira. So abundantes as indicaes do surgimento dessa
nova identidade, mesmo que ainda em esboo. Podem-se mencionar a apresentao de
milhares de voluntrios no incio da guerra, a valorizao do hino e da bandeira, as canes
e poesias populares. Caso marcante foi o de Jovita Feitosa, mulher que se vestiu de homem
para ir guerra a fim de vingar as mulheres brasileiras injuriadas pelos paraguaios. Foi
exaltada como a Joana d'Arc nacional. Lutaram no Paraguai cerca de 135 mil brasileiros,
muitos deles negros, inclusive libertos.
1881: TROPEO
Em 1881, a Cmara dos Deputados aprovou lei que introduzia o voto direto, eliminando o
primeiro turno das eleies.
No haveria mais, da em diante, votantes, haveria apenas eleitores. Ao mesmo tempo, a lei
passava para 200 mil-ris a exigncia de renda, proibia o voto dos analfabetos e tornava o
voto facultativo. A lei foi aprovada por uma Cmara unanimemente liberal, em que no
havia um s deputado conservador. Foram poucas as vozes que protestaram contra a
mudana. Entre elas, a do deputado Joaquim Nabuco, que atribuiu a culpa da corrupo
eleitoral no aos votantes mas aos candidatos, aos cabalistas, s classes superiores. Outro
deputado, Saldanha Marinho, foi contundente: "No tenho receio do voto do povo, tenho
receio do corruptor." Um terceiro deputado, Jos Bonifcio, o Moo, afirmou, retrica mas
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CIDADANIA NO BRASIL
corretamente, que a lei era um erro de sintaxe poltica, pois criava uma orao poltica sem
sujeito, um sistema representativo sem povo.
a limite de renda estabelecido pela nova lei, 200 mil-ris, ainda no era muito alto. Mas a
lei era muito rgida no que se referia maneira de demonstrar a renda. No bastavam
declaraes de terceiros, como anteriormente, nem mesmo dos empregadores. Muitas
pessoas com renda suficiente deixavam de votar por no conseguirem provar seus
rendimentos ou por no estarem dispostas a ter o trabalho de prov-los. Mas onde a lei de
fato limitou o voto foi ao excluir os analfabetos. A razo simples: somente 15% da
populao era alfabetizada, ou 20%, se considerarmos apenas a populao masculina. De
imediato, 80% da populao masculina era excluda do direito de voto.
As conseqncias logo se refletiram nas estatsticas eleitorais. Em 1872, havia mais de 1
milho de votantes, correspondentes a 13% da populao livre. Em 1886, votaram nas
eleies parlamentares pouco. mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% da populao total.
Houve um corte de quase 90% do eleitorado. a dado chocante, sobretudo se lembrarmos
que a tendncia de todos os pases europeus da poca era na direo de ampliar os direitos
polticos. A Inglaterra, sempre olhada como exemplo pelas elites brasileiras, fizera
reformas importantes em 1832, em 1867 e em 1884, expandindo o eleitorado de 3% para
cerca de 15%. Com a lei de 1881, o Brasil caminhou para trs, perdendo a vantagem que
adquirira com a Constituio de 1824.
a mais grave que o retrocesso foi duradouro. A proclamao da Repblica, em 1889, no
alterou o quadro. A Repblica, de acordo com seus propagandistas, sobretudo aque-
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JOS MURILO DE CARVALHO
les que se inspiravam nos ideais da Revoluo Francesa, deveria representar a instaurao
do governo do pas pelo povo, por seus cidados, sem a interferncia dos privilgios
monrquicos. No entanto, apesar das expectativas levantadas entre os que tinham sido
excludos pela lei de 1881, pouca coisa mudou com o novo regime. Pelo lado legal, a
Constituio Republicana de 1891 eliminou apenas a exigncia da renda de 200 mil-ris,
que, como vimos, no era muito alta. A principal barreira ao voto, a excluso dos
analfabetos, foi mantida. Continuavam tambm a no votar as mulheres, os mendigos, os
soldados, os membros das ordens religiosas. No , ento, de estranhar que o nmero de
votantes tenha permanecido baixo. Na primeira eleio popular para a presidncia da
Repblica, em 1894, votaram 2,2% da populao. Na ltima eleio presidencial da
Primeira Repblica, em 1930, quando o voto universal, inclusive feminino, j fora adotado
pela maioria dos pases europeus, votaram no Brasil 5,6% da populao. Nem mesmo o
perodo de grandes reformas inaugurado em 1930 foi capaz de superar os nmeros de 1872.
Somente na eleio presidencial de 1945 que compareceram s umas 13,4% dos
brasileiros, nmero ligeiramente superior ao de 1872.
O Rio de Janeiro, capital do pas, tambm dava mau exemplo. Em 1890, a cidade tinha
mais de 500 mil habitantes, e pelo menos metade deles era alfabetizada. Mesmo assim, na
eleio presidencial de 1894 votaram apenas 7.857 pessoas, isto , 1,3% da populao. Em
1910,21 anos aps a proclamao da Repblica, a porcentagem desceu para 0,9%, menor
do que a mdia nacional. Em contraste, em Nova York, em 1888, a participao eleitoral
chegou a 88% da populao adulta masculina. Lima Barreto publicou um romance satrico
chamado Os
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CIDADANIA NO BRASIL
Bruzundangas, no qual descreve uma repblica imaginria em que "os polticos prticos
tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento
perturbador - o voto". A repblica dos Bruzundangas se parecia muito com a repblica dos
brasileiros.
Do ponto de vista da representao poltica, a Primeira Repblica (1889-1930) no
significou grande mudana. Ela introduziu a federao de acordo com o modelo dos
Estados Unidos. Os presidentes dos estados (antigas provncias) passaram a ser eleitos pela
populao. A descentralizao tinha o efeito positivo de aproximar o governo da populao
via eleio de presidentes de estado e prefeitos. Mas a aproximao se deu sobretudo com
as elites locais. A descentralizao facilitou a formao de slidas oligarquias estaduais,
apoiadas em partidos nicos, tambm estaduais. Nos casos de maior xito, essas oligarquias
conseguiram envolver todos os mandes locais, bloqueando qualquer tentativa de oposio
poltica. A aliana das oligarquias dos grandes estados, sobretudo de So Paulo e Minas
Gerais, permitiu que mantivessem o controle da poltica nacional at 1930.
A Primeira Repblica ficou conhecida como "repblica dos coronis". Coronel era o posto
mais alto na hierarquia da Guarda Nacional. O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais
poderosa do municpio. j no Imprio ele exercia grande influncia poltica. Quando a
Guarda perdeu sua natureza militar, restou-lhe o poder poltico de seus chefes.
Coronel passou, ento, a indicar simplesmente o chefe poltico local. O coronelismo era a
aliana desses chefes com os presidentes dos estados e desses com o presidente da
Repblica. Nesse paraso das oligarquias, as prticas eleitorais fraudulentas no podiam
desaparecer. Elas foram aperfeioa-
41
Jos MURILO DE CARVALHO
das. Nenhum coronel aceitava perder as eleies. Os eleitores continuaram a ser coagidos,
comprados, enganados, ou simplesmente excludos. Os historiadores do perodo concordam
em afirmar que no havia eleio limpa. O voto podia ser fraudado na hora de ser lanado
na uma, na hora de ser apurado, ou na hora do reconhecimento do eleito. Nos estados em
que havia maior competio entre oligarquias, elegiam-se s vezes duas assemblias
estaduais e duas bancadas federais, cada qual alegando ser a legtima representante do
povo. A Cmara federal reconhecia como deputados os que apoiassem o governador e o
presidente da Repblica, e tachava os demais pretendentes de ilegtimos.
Continuaram a atuar os cabalistas, os capangas, os fsforos. Continuaram as eleies "a
bico de pena". Dez anos depois da proclamao da Repblica, um adversrio do regime
dizia que quando as atas eleitorais afirmavam que tinham comparecido muitos eleitores
podia-se ter a certeza de que se tratava de uma eleio "a bico de pena". Os resultados
eleitorais eram s vezes absurdos, sem nenhuma relao com o tamanho do eleitorado. Com
razo dizia um jornalista em 1915 que todos sabiam que "o exerccio da soberania popular
uma fantasia e ningum a toma a srio". Mas, apesar de todas as leis que restringiam o
direito do voto e de todas as prticas que deturpavam o voto dado, no houve no Brasil, at
1930, movimentos populares exigindo maior participao eleitoral. A nica exceo foi o
movimento pelo voto feminino, valente mas limitado. O voto feminino acabou sendo
introduzido aps a revoluo de 1930, embora no constasse do programa dos
revolucionrios.
Pode-se perguntar se no tinham alguma razo os que defendiam desde 1881 a limitao do
direito do voto, com
42
CIDADANIA NO BRASIL
base no argumento de que o povo no tinha condies de o exercer adequadamente. Vimos
que, de fato, no houve experincia poltica prvia que preparasse o cidado para exercer
suas obrigaes cvicas. Nem mesmo a independncia do pas teve participao popular
significativa. Este povo no seria de fato um fator perturbador das eleies por no dispor
de independncia suficiente para escapar s presses do governo e dos grandes
proprietrios? No era este o argumento usado em muitos pases europeus para limitar o
exerccio do voto? O grande liberal Jonh Stuart Mill no exigia que o cidado soubesse ler,
escrever e fazer as operaes aritmticas bsicas para poder votar?
Os crticos da participao popular cometeram vrios equvocos. O primeiro era achar que a
populao sada da dominao colonial portuguesa pudesse, de uma hora para outra,
comportar-se como cidados atenienses, ou como cidados das pequenas comunidades
norte-americanas. O Brasil no passara por nenhuma revoluo, como a Inglaterra, os
Estados Unidos, a Frana. O processo de aprendizado democrtico tinha que ser, por fora,
lento e gradual. O segundo equvoco j fora apontado por alguns opositores da reforma da
eleio direta, como Joaquim Nabuco e Saldanha Marinho. Quem era menos preparado
para a democracia, o povo ou o governo e as elites? Quem forava os eleitores, quem
comprava votos, quem fazia atas falsas, quem no admitia derrota nas umas? Eram os
grandes proprietrios, os oficiais da Guarda Nacional, os chefes de polcia e seus delegados,
os juzes, os presidentes das provncias ou estados, os chefes dos partidos nacionais ou
estaduais. At mesmo os membros mais esclarecidos da elite poltica nacional, bons
conhecedores das teorias do governo representativo, quando se tratava de fazer
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JOS MURILO DE CARVALHO
poltica prtica recorriam aos mtodos fraudulentos, ou eram coniventes com os que os
praticavam.
O terceiro equvoco era desconhecer que as prticas eleitorais em pases considerados
modelos, como a Inglaterra, eram to corruptas como no Brasil. Mesmo aps as grandes
reformas inglesas, continuaram a existir os "burgos podres", dominados por dcadas pelo
mesmo poltico, ou pela mesma famlia. A Inglaterra tinha construdo ao longo de sculos
um sistema representativo de governo que estava longe de ser democrtico, de incorporar o
grosso da populao. Foi ao longo do sculo XIX que esta incorporao se deu, e no
faltaram polticos, conservadores e liberais, que consideravam inconveniente a extenso dos
votos aos operrios. Um liberal, Robert Lowe, dizia que as classes operrias eram
impulsivas, irrefletidas, violentas, dadas venalidade, ignorncia e bebedeiras. Sua
incorporao ao sistema poltico, acrescentava, levaria ao rebaixamento e corrupo da vida
pblica. A diferena que na Inglaterra houve presso popular pela expanso do voto. Essa
presso forou a elite a democratizar a participao. Havia l, j no sculo XIX, um povo
poltico, ausente entre ns.
O quarto e ltimo equvoco era achar que o aprendizado do exerccio dos direitos polticos
pudesse ser feito por outra maneira que no sua prtica continuada e um esforo por parte
do governo de difundir a educao primria. Pode-se mesmo argumentar que os votantes
agiam com muita racionalidade ao usarem o voto como mercadoria e ao vend-lo cada vez
mais caro. Este era o sentido que podiam dar ao voto, era sua maneira de valoriz-lo. De
algum modo, apesar de sua percepo deturpada, ao votarem, as pessoas tomavam
conhecimento da existncia de um poder que vinha de fora do pe-
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CIDADANIA NO BRASIL
queno mundo da grande propriedade, um poder que elas podiam usar contra os mandes
locais. j havia a, em germe, um aprendizado poltico, cuja prtica constante levaria ao
aperfeioamento cvico. O ganho que a limitao do voto poderia trazer para a lisura das
eleies era ilusrio. A interrupo do aprendizado s poderia levar, como levou, ao
retardamento da incorporao dos cidados vida poltica.
DIREITOS CIVIS S NA LEI
A herana colonial pesou mais na rea dos direitos civis. O novo pas herdou a escravido,
que negava a condio humana do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada
ao da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado. Esses trs empecilhos
ao exerccio da cidadania civil revelaram-se persistentes. A escravido s foi abolida em
1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas reas do pas e a
desprivatizao do poder pblico tema da agenda atual de reformas.
A escravido
A escravido estava to enraizada na sociedade brasileira que no foi colocada seriamente
em questo at o final da guerra contra o Paraguai. A Inglaterra exigiu, como parte do preo
do reconhecimento da independncia, a assinatura de um tratado que inclua a proibio do
trfico de escravos. O tratado foi ratificado em 1827. Em obedincia a suas exigncias, foi
votada em 1831 uma lei que considerava o trfico como pirataria. Mas a lei no teve efeito
prtico. Antes de ser votada,
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JOS MURILO DE CARVALHO
houve grande aumento de importao de escravos, o que permitiu certa reduo nas
entradas logo aps sua aprovao. Mas no demorou at que as importaes crescessem de
novo.
Dessa primeira lei contra o trfico surgiu a expresso "lei para ingls ver", significando
uma lei, ou promessa, que se faz apenas por formalidade, sem inteno de a pr em prtica.
A Inglaterra voltou a pressionar o Brasil na dcada de 1840, quando se devia decidir sobre
a renovao do tratado de comrcio de 1827. Desta vez o governo ingls usou a fora,
mandando sua Marinha apreender navios dentro das guas territoriais brasileiras. Em 1850,
a Marinha inglesa invadiu portos brasileiros para afundar navios suspeitos de transportar
escravos. S ento o governo decidiu interromper o trfico de maneira efetiva.
Calcula-se que, desde o incio do trfico at 1850, tenham entrado no Brasil 4 milhes de
escravos. Sua distribuio era desigual. De incio, nos sculos XVI e XVII, concentravam-
se na regio produtora de acar, sobretudo Pernambuco e Bahia.
No sculo XVIII, um grande nmero foi levado para a regio de explorao do ouro, em
Minas Gerais. A partir da segunda dcada do sculo XIX, concentraram-se na regio do
caf, que inclua Rio de Janeiro, Minas Gerais e So Paulo.
Depois da abolio do trfico, os polticos s voltaram a falar no assunto ao final da guerra
contra o Paraguai. Durante o conflito, a escravido revelara-se motivo de grande
constrangimento para o pas. O Brasil tornou-se objeto das crticas do inimigo e mesmo dos
aliados. Alm disso, a escravido mostrara-se perigosa para a defesa nacional, pois impedia
a formao de um exrcito de cidados e enfraquecia a segurana interna. Por iniciativa do
imperador, com o apoio da imprensa e a ferrenha resistncia dos fazendeiros, o gabinete
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CIDADANIA NO BRASIL
chefiado pelo visconde do Rio Branco conseguiu fazer aprovar, em 1871, a lei que libertava
os filhos de escravos que nascessem da em diante. Apesar da oposio dos escravistas, a
lei era pouco radical. Permitia aos donos dos "ingnuos", isto , dos que nascessem livres,
beneficiar-se de seu trabalho gratuito at 21 anos de idade.
A abolio final s comeou a ser discutida no Parlamento em 1884. S ento, tambm,
surgiu um movimento popular abolicionista. A abolio veio em 1888, um ano depois que a
Espanha a fizera em Cuba. O Brasil era o ltimo pas de tradio crist e ocidental a libertar
os escravos. E o fez quando o nmero de escravos era pouco significativo. Na poca da
independncia, os escravos representavam 30% da populao. Em 1873, havia 1,5 milho
de escravos, 15% dos brasileiros. s vsperas da abolio, em 1887, os escravos no
passavam de 723 mil, apenas 5% da populao do pas. Se considerarmos que nos Estados
Unidos, s vsperas da guerra civil, havia quase 4 milhes de escravos, mais que o dobro
dos existentes no Brasil, pode-se perguntar se a influncia da escravido no foi maior l e
se no seria exagerada a importncia que se d a ela no Brasil como obstculo expanso
dos direitos civis.
A resposta pode ser dada em duas partes. A primeira que a escravido era mais difundida
no Brasil do que nos Estados Unidos. L ela se limitava aos estados do sul, sobretudo os
produtores de algodo. O resto do pas no tinha escravos. A principal razo da guerra civil
de 1860 foi a disputa sobre a introduo ou no da escravido nos novos estados que se
formavam. Esta separao significava que havia uma linha divisria entre liberdade e
escravido. A linha era geogrfica.
O escravo que fugia do sul para o norte, atravessando, por
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JOS MURILO DE CARVALHO
exemplo, o rio Orno, escapava da escravido para a liberdade. Havia at mesmo um
movimento, chamado Underground Railway, que se ocupava de ajudar os escravos a
fugirem para o norte.
No Brasil, no havia como fugir da escravido. Se verdade que os escravos se distribuam
de maneira desigual pelo pas, tambm verdade que havia escravos no pas inteiro, em
todas as provncias, no campo e nas cidades. Havia escravos que fugiam e organizavam
quilombos. Alguns quilombos tiveram longa durao, como o de Palmares, no nordeste do
pas. Mas a maioria dos quilombos durava pouco porque era logo atacada por foras do
governo ou de particulares. Os quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam
mantendo relaes com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era escravista. No
prprio quilombo dos Palmares havia escravos.
No existiam linhas geogrficas separando a escravido da liberdade.
Acrescente-se a isto o fato de que a posse de escravos era muito difundida. Havia
propriedades com grandes plantis, mas havia tambm muitos proprietrios de poucos
escravos.
Mesmo em reas de maior concentrao de escravos, como Minas Gerais, a mdia de
escravos por proprietrio era de trs ou quatro. Nas cidades, muitas pessoas possuam
apenas um escravo, que alugavam como fonte de renda. Em geral, eram pessoas pobres,
vivas, que tinham no escravo alugado seu nico sustento. O aspecto mais contundente da
difuso da propriedade escrava revela-se no fato de que muitos libertos possuam escravos.
Testamentos examinados por Ktia Mattoso mostram que 78% dos libertos da Bahia
possuam escravos. Na Bahia, em Minas Gerais e em outras provncias, dava-se at mesmo
o fenmeno extraordinrio
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CIDADANIA NO BRASIL
de escravos possurem escravos. De acordo com o depoimento de um escravo brasileiro que
fugiu para os Estados Unidos, no Brasil "as pessoas de cor, to logo tivessem algum poder,
escravizariam seus companheiros, da mesma forma que o homem branco".
Esses dados so perturbadores. Significam que os valores da escravido eram aceitos por
quase toda a sociedade. Mesmo os escravos, embora lutassem pela prpria liberdade,
embora repudiassem sua escravido, uma vez libertos admitiam escravizar os outros. Que
os senhores achassem normal ou necessria a escravido, pode entender-se. Que libertos o
fizessem, matria para reflexo. Tudo indica que os valores da liberdade individual, base
dos direitos civis, to caros modernidade europia e aos fundadores da Amrica do Norte,
no tinham grande peso no Brasil.
sintomtico que o novo pensamento abolicionista, seguindo tradio portuguesa, se
baseasse em argumentos distintos dos abolicionismos europeu e norte-americano. O
abolicionismo anglo-saxnico teve como fontes principais a religio e a Declarao de
Direitos. Foram os quakers os primeiros a interpretar o cristianismo como sendo uma
religio da liberdade, incompatvel com a escravido. A interpretao tradicional dos
catlicos, vigente em Portugal e no Brasil, era que a Bblia admitia a escravido, que o
cristianismo no a condenava. A escravido que se devia evitar era a da alma, causada pelo
pecado, e no a escravido do corpo. O pecado, este sim, que era a verdadeira escravido.
Os quakers inverteram esta posio, dizendo que a escravido que era o pecado, e com
base nessa afirmao iniciaram longa e tenaz luta pela abolio, primeiro do trfico, depois
da prpria escravido.
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JOS MURILO DE CARVALHO
As idias e valores que inspiraram os textos bsicos da fundao dos Estados Unidos eram
tambm fonte segura para justificar a luta contra a escravido. Se a liberdade era um direito
inalienvel de todos, como dizia a Declarao de Independncia, no havia como neg-la a
uma parte da populao, a no ser que se negasse condio humana a essa parte. Os
pensadores sulistas que justificaram a escravido, como George Fitzhugh, tiveram que
partir de uma premissa que negava a igualdade estabelecida nos textos constitucionais.
Para eles, as pessoas eram naturalmente desiguais, justificando-se o domnio dos superiores
sobre os inferiores.
No Brasil, a religio catlica, que era oficial, no combatia a escravido. Conventos,
clrigos das ordens religiosas e padres seculares, todos possuam escravos. Alguns padres
no se contentavam em possuir legalmente suas escravas, eles as possuam tambm
sexualmente e com elas se amigavam. Alguns filhos de padres com escravas chegaram a
posies importantes na poltica do Imprio. O grande abolicionista Jos do Patrocnio era
um deles. Com poucas excees, o mximo que os pensadores luso-brasileiros encontravam
na Bblia em favor dos escravos era a exortao de So Paulo aos senhores no sentido de
trat-los com justia e eqidade.
Fora do campo religioso, o principal argumento que se apresentava no Brasil em favor da
abolio era o que podamos chamar de razo nacional, em oposio razo individual dos
casos europeu e norte-americano. A razo nacional foi usada por Jos Bonifcio, que dizia
ser a escravido obstculo formao de uma verdadeira nao, pois mantinha parcela da
populao subjugada a outra parcela, como inimigas entre si. Para ele, a escravido impedia
a integrao social
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CIDADANIA NO BRASIL
e poltica do pas e a formao de foras armadas poderosas.
Dizia, como o fez tambm Joaquim Nabuco, que a escravido bloqueava o
desenvolvimento das classes sociais e do mercado de trabalho, causava o crescimento
exagerado do Estado e do nmero dos funcionrios pblicos, falseava o governo
representativo.
O argumento da liberdade individual como direito inalienvel era usado com pouca nfase,
no tinha a fora que lhe era caracterstica na tradio anglo-saxnica. No o favorecia a
interpretao catlica da Bblia, nem a preocupao da elite com o Estado nacional. Vemos
a a presena de uma tradio cultural distinta, que poderamos chamar de ibrica, alheia ao
iluminismo libertrio, nfase nos direitos naturais, liberdade individual. Essa tradio
insistia nos aspectos comunitrios da vida religiosa e poltica, insistia na supremacia do
todo sobre as partes, da cooperao sobre a competio e o conflito, da hierarquia sobre a
igualdade.
Havia nela caractersticas positivas, como a viso comunitria da vida. Mas a influncia do
Estado absolutista, em Portugal, acrescida da influncia da escravido, no Brasil, deturpou-
a. No podendo haver comunidade de cidados em Estado absolutista, nem comunidade
humana em plantao escravista, o que restava da tradio comunitria eram apelos, quase
sempre ignorados, em favor de um tratamento benevolente dos sditos e dos escravos. O
melhor que se podia obter nessas circunstncias era o paternalismo do governo e dos
senhores. O paternalismo podia minorar sofrimentos individuais mas no podia construir
uma autntica comunidade e muito menos uma cidadania ativa.
Tudo isso se refletiu no tratamento dado aos ex-escravos aps a abolio. Foram
pouqussimas as vozes que insistiram
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JOS MURILO DE CARVALHO
na necessidade de assistir os libertos, dando-lhes educao e emprego, como foi feito nos
Estados Unidos. L, aps a guerra, congregaes religiosas e o governo, por meio do
Freedmen's Bureau, fizeram grande esforo para educar os ex-escravos. Em 1870, havia
4.325 escolas para libertos, entre as quais uma universidade, a de Howard. Foram tambm
distribudas terras aos libertos e foi incentivado seu alistamento eleitoral. Muitas dessas
conquistas se perderam aps o fim da interveno militar no sul. A luta pelos direitos civis
teve que ser retomada 100 anos depois. Mas a semente tinha sido lanada, e os princpios
orientadores da ao estavam l.
No Brasil, aos libertos no foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos. Passada a
euforia da libertao, muitos ex-escravos regressaram a suas fazendas, ou a fazendas
vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salrio. Dezenas de anos aps a abolio, os
descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de
seus antepassados escravos. Outros dirigiram-se s cidades, como o Rio de Janeiro, onde
foram engrossar a grande parcela da populao sem emprego fixo. Onde havia dinamismo
econmico provocado pela expanso do caf, como em So Paulo, os novos empregos,
tanto na agricultura como na indstria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes
italianos que o governo atraa para o pas. L, os ex-escravos foram expulsos ou relegados
aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos.
As conseqncias disso foram duradouras para a populao negra. At hoje essa populao
ocupa posio inferior em todos os indicadores de qualidade de vida. a parcela menos
educada da populao, com os empregos menos qualificados, os menores salrios, os piores
ndices de ascenso social. Nem
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CIDADANIA NO BRASIL
mesmo o objetivo dos defensores da razo nacional de formar uma populao homognea,
sem grandes diferenas sociais, foi atingido. A populao negra teve que enfrentar sozinha
o desafio da ascenso social, e freqentem ente precisou faz-I o por rotas originais, como
o esporte, a msica e a dana. Esporte, sobretudo o futebol, msica, sobretudo o samba, e
dana, sobretudo o carnaval, foram os principais canais de ascenso social dos negros at
recentemente.
As conseqncias da escravido no atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que
aqui nos interessa - a formao do cidado -, a escravido afetou tanto o escravo como o
senhor. Se o escravo no desenvolvia a conscincia de seus direitos civis, o senhor
tampouco o fazia. O senhor no admitia os direitos dos escravos e exigia privilgios para si
prprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertao dos
escravos no trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas
negada na prtica. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilgios e arrogncia de poucos
correspondem o desfavorecimento e a humilhao de muitos.
A grande propriedade
O outro grande obstculo expanso da cidadania, herdado da Colnia, era a grande
propriedade rural. Embora profundamente ligada escravido, ela deve ser tratada em
separado porque tinha caractersticas prprias e teve vida muito mais longa. Se possvel
argumentar que os efeitos da escravido ainda se fazem sentir no Brasil de hoje, a grande
propriedade ainda uma realidade em vrias regies do pas. No Nordeste e nas reas
recm-colonizadas do Norte e Centro-Oeste, o
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JOS MURILO DE CARVALHO
grande proprietrio e coronel poltico ainda age como se estivesse acima da lei e mantm
controle rgido sobre seus trabalhadores.
At 1930, o Brasil ainda era um pas predominantemente agrcola. Segundo o censo de
1920, apenas 16,6% da populao vivia em cidades de 20 mil habitantes ou mais (no
houve censo em 1930), e 70% se ocupava em atividades agrcolas. A economia passava
pela fase que se convencionou chamar de "voltada para fora", orientada para a exportao.
Exportao de produtos primrios, naturalmente. No caso do Brasil, esses produtos eram
agrcolas. A economia do ouro dominara a primeira parte do sculo XVIII, mas ao final do
sculo j quase desaparecera. Na primeira dcada aps a independncia, trs produtos eram
responsveis por quase 70% das exportaes: o acar (30%), o algodo (21%) e o caf
(18%).
Na ltima dcada do Imprio, as nicas alteraes nesse quadro foram a subida do caf para
o primeiro lugar, o que se deu na dcada de 1830, e o aumento da participao dos trs
produtos para 82% do total, o caf com 60%, o acar, 12% e o algodo, 10%.
A Primeira Repblica foi dominada economicamente pelos estados de So Paulo e Minas
Gerais, cuja riqueza, sobretudo de So Paulo, era baseada no caf. Esse produto tinha
migrado do Rio de Janeiro para o sul de Minas e oeste de So Paulo, onde terras mais
frteis e o trabalho livre de imigrantes europeus multiplicaram a produo. Um dos
problemas econmicos recorrentes da Primeira Repblica era a superproduo do caf. Os
governos federal e dos estados produtores introduziram em 1906 programas de defesa do
preo do caf, ameaado pela superproduo. Quando as economias centrais entraram em
colapso como conseqncia da crise da Bolsa de
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CIDADANIA NO BRASIL
Valores de Nova York em 1929, o principal choque so!ido pelo Brasil foi a reduo
metade dos preos do caf e a impossibilidade de vender os estoques. A crise econmica
que se seguiu foi um dos motivos que levaram ao movimento poltico-militar que ps termo
Primeira Repblica.
Na sociedade rural, dominavam os grandes proprietrios, que antes de 1888 eram tambm,
na grande maioria, proprietrios de escravos. Eram eles, freqentemente em aliana com
comerciantes urbanos, que sustentavam a poltica do coronelismo. Havia, naturalmente,
variaes no poder dos coronis, em sua capacidade de controlar a terra e a mo-deobra. O
controle era mais forte no Nordeste, sobretudo nas regies de produo de acar. A se
podiam encontrar as oligarquias mais slidas, formadas por um pequeno grupo de famlias.
No interior do Nordeste, zona de criao de gado, tambm havia grandes proprietrios. No
estado da Bahia, eles eram poderosos a ponto de fugirem ao controle do governo do estado.
Em certo momento, o governo federal foi obrigado a intervir no estado como mediador
entre os coronis e o governo estadual. Os coronis baianos formavam pequenos estados
dentro do estado. Em suas fazendas, e nas de seus iguais em outros estados, o brao do
governo no entrava. O controle no era to intenso nas regies cafeeiras e de produo de
laticnios, como So Paulo e Minas Gerais. Em So Paulo, particularmente, a entrada
macia de imigrantes europeus possibilitou as primeiras greves de trabalhadores rurais e o
incio da diviso das grandes propriedades. Em Minas, os coronis eram poderosos, mas j
necessitavam do poder do Estado para atender a seus interesses. Foi em So Paulo e Minas
que o coronelismo, como sistema poltico, atingiu a perfeio e contribuiu para o domnio
que os dois esta-
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JOS MURILO DE CARVALHO
dos exerceram sobre a federao. Os coronis articulavam-se com os governadores, que se
articulavam com o presidente da Repblica, quase sempre oriundo dos dois estados.
O poder dos coronis era menor na periferia das economias de exportao e nas reas de
pequena propriedade, como nas colnias de imigrantes europeus do Sul. Foi nessas regies
que se deram as maiores revoltas populares durante o perodo da Regncia (1831-1840) e
onde se verificaram movimentos messinicos e de banditismo j na Repblica. Para listar
s os ltimos, a revolta de Canudos se deu no interior da Bahia; a do Contestado, em reas
novas do Paran; a do Padre Ccero, no Cear. Nas reas de forte controle oligrquico s
podia haver guerras entre coronis; nas de controle mdio, as perturbaes da ordem
oligrquica eram raras.
O coronelismo no era apenas um obstculo ao livre exerccio dos direitos polticos. Ou
melhor, ele impedia a participao poltica porque antes negava os direitos civis. Nas
fazendas, imperava a lei do coronel, criada por ele, executada por ele. Seus trabalhadores e
dependentes no eram cidados do Estado brasileiro, eram sditos dele. Quando o Estado
se aproximava, ele o fazia dentro do acordo coronelista, pelo qual o coronel dava seu apoio
poltico ao governador em troca da indicao de autoridades, como o delegado de polcia, o
juiz, o coletor de impostos, o agente do correio, a professora primria. Graas ao controle
desses cargos, o coronel podia premiar os aliados, controlar sua mo-de-obra e fugir dos
impostos. Fruto dessa situao eram as figuras do "juiz nosso" e do "delegado nosso",
expresses de uma justia e de uma polcia postas a servio do poder privado.
O que significava tudo isso para o exerccio dos direitos civis? Sua impossibilidade. A
justia privada ou controlada por
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CIDADANIA NO BRASIL
agentes privados a negao da justia. O direito de ir e vir, o direito de propriedade, a
inviolabilidade do lar, a proteo da honra e da integridade fsica, o direito de manifestao,
ficavam todos dependentes do poder do coronel. Seus amigos e aliados eram protegidos,
seus inimigos eram perseguidos ou ficavam simplesmente sujeitos aos rigores