1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A CATEGORIA DAS PARTEIRAS TRADICIONAIS INDÍGENAS: GÊNERO EM AÇÃO? Maria Christina Barra 1 Resumo: A proposta deste trabalho é pensar a trajetória de construção da categoria das parteiras tradicionais indígenas a partir das transformações decorrentes das ações das políticas públicas de saúde. Mais especificamente, o presente trabalho busca abordar os deslocamentos possíveis no modo de viver das populações indígenas ao enquadrar as diversas ações sobre corpo e as diferentes formas de transformação corpora l na categoria do “conhecimento tradicional indígena”. As relações de gênero perpassam esta trajetória desde a fluidez de um modo de viver às formas de produção deste conhecimento. O conhecimento tradicional é das parteiras que nem sempre são mulheres, mas é também do rezador e do pajé que são em sua maioria homens, mas são também mulheres. Abarca as ações de plantas, animais e diversos seres que habitam os diferentes mundos indígenas, além de uma série de condutas e práticas que tomam a forma de texto escrito e de desenhos no registro do saber das parteiras tradicionais indígenas. São elas, nem sempre mulheres, mas agrupadas como tal, as fazedoras e produtoras de um conhecimento cabível aos olhos das políticas públicas de saúde. Fica a questão de como se dá então, a transformação de um saber sensível construído nas ações cotidianas de diferentes agentes sociais e reinventado a partir de diferentes modos de criatividade, na homogeneização não só do conhecimento tradicional, mas também de uma categoria de gênero em ação. Palavras-chave: parteira tradicional indígena, conhecimento tradicional, relações de gênero. Muitos dos relatos das mulheres indígenas que se dizem parteiras referem-se ao cuidado das mulheres mais velhas que acompanham as mais jovens no momento do parto. Contam que aprenderam com as mães, tias ou avós, as mulheres mais velhas da comunidade e os primeiros partos que acompanharam foram de suas filhas, noras, sobrinhas e netas. “Fiquei curiando. Minha mãe me chamou quando uma mulher ganhou nenê”, ou “o primeiro parto que fiz foi aos 20 anos. Foi da minha sobrinha. Aprendi acompanhando minha mãe e minha tia”. São essas mesmas mulheres que apresentam reflexões sobre a categoria da parteira tradicional indígena: “eu tenho dúvida deste negócio de parteira, como eu disse, eu tinha uma colega, a gente mesmo é que fazia os partos”, ao mesmo tempo em que falam com muita clareza das transformações que vem com as ações de saúde: “Não existia o sofrimento, aquela dificuldade. O homem mesmo ajudava. Então não acontecia nada. O parto era tudo normal. Então as enfermeiras passavam a ensinar que tem perigo, que ninguém sabe o que vai acontecer”. Assim, o que me pergunto e me proponho a conhecer um pouco mais é o que é “esse negócio de parteira”. Como se dá este saber sobre o próprio corpo que se mostra na forma do ato de partejar por vezes oculto numa cadência cotidiana de um modo de viver e por vezes destacado como “conhecimento tradicional indígena”, um saber legítimo pertencente a um grupo de mulheres 1 Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A CATEGORIA DAS PARTEIRAS TRADICIONAIS INDÍGENAS:
GÊNERO EM AÇÃO?
Maria Christina Barra 1
Resumo: A proposta deste trabalho é pensar a trajetória de construção da categoria das parteiras tradicionais indígenas a
partir das transformações decorrentes das ações das políticas públicas de saúde. Mais especificamente, o presente
trabalho busca abordar os deslocamentos possíveis no modo de viver das populações indígenas ao enquadrar as diversas
ações sobre corpo e as diferentes formas de transformação corporal na categoria do “conhecimento tradicional
indígena”. As relações de gênero perpassam esta trajetória desde a fluidez de um modo de viver às formas de produção
deste conhecimento. O conhecimento tradicional é das parteiras que nem sempre são mulheres, mas é também do
rezador e do pajé que são em sua maioria homens, mas são também mulheres. Abarca as ações de plantas, animais e
diversos seres que habitam os diferentes mundos indígenas, além de uma série de condutas e práticas que tomam a
forma de texto escrito e de desenhos no registro do saber das parteiras tradicionais indígenas. São elas, nem sempre
mulheres, mas agrupadas como tal, as fazedoras e produtoras de um conhecimento cabível aos olhos das políticas
públicas de saúde. Fica a questão de como se dá então, a transformação de um saber sensível construído nas ações
cotidianas de diferentes agentes sociais e reinventado a partir de diferentes modos de criatividade, na homogeneização
não só do conhecimento tradicional, mas também de uma categoria de gênero em ação.
Palavras-chave: parteira tradicional indígena, conhecimento tradicional, relações de gênero.
Muitos dos relatos das mulheres indígenas que se dizem parteiras referem-se ao cuidado das
mulheres mais velhas que acompanham as mais jovens no momento do parto. Contam que
aprenderam com as mães, tias ou avós, as mulheres mais velhas da comunidade e os primeiros
partos que acompanharam foram de suas filhas, noras, sobrinhas e netas. “Fiquei curiando. Minha
mãe me chamou quando uma mulher ganhou nenê”, ou “o primeiro parto que fiz foi aos 20 anos.
Foi da minha sobrinha. Aprendi acompanhando minha mãe e minha tia”. São essas mesmas
mulheres que apresentam reflexões sobre a categoria da parteira tradicional indígena: “eu tenho
dúvida deste negócio de parteira, como eu disse, eu tinha uma colega, a gente mesmo é que fazia os
partos”, ao mesmo tempo em que falam com muita clareza das transformações que vem com as
ações de saúde:
“Não existia o sofrimento, aquela dificuldade. O homem mesmo ajudava. Então não
acontecia nada. O parto era tudo normal. Então as enfermeiras passavam a ensinar que tem
perigo, que ninguém sabe o que vai acontecer”.
Assim, o que me pergunto e me proponho a conhecer um pouco mais é o que é “esse
negócio de parteira”. Como se dá este saber sobre o próprio corpo que se mostra na forma do ato de
partejar por vezes oculto numa cadência cotidiana de um modo de viver e por vezes destacado como
“conhecimento tradicional indígena”, um saber legítimo pertencente a um grupo de mulheres
1 Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
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específico, “as parteiras”? “As parteiras” nem sempre são mulheres, são também homens, os pais,
os avôs, os maridos. O que é então, o “conhecimento tradicional das parteiras indígenas” que nem
sempre são mulheres, e que é também o conhecimento do rezador e do pajé? “Sozinha mesma, eu já
fiz uns 10 partos. O pai da criança ajuda. Quando a passagem da criança tá ruim, o pajé ou rezador
reza e quando a passagem abre, a criança nasce”. Como se dá então a transformação desse saber
sensível construído nas ações de diferentes agentes sociais em ”conhecimento tradicional
indígena”?
Não há dúvida que esse “negócio” de parteira tradicional indígena é um movimento
necessário frente às ações de saúde. São elas, nem sempre mulheres, mas agrupadas como tal, as
fazedoras e produtoras de um conhecimento cabível aos olhos das políticas públicas de saúde na
atenção ao parto e nascimento. As parteiras parecem ser então, a possibilidade política do
conhecimento tradicional indígena, das práticas próprias de cuidado e de um modo específico de
viver. Em outras palavras, passam a ser uma agência política de suas “culturas” 2 como é possível
perceber na fala de uma delas:
“Querendo que os não-índios reconheçam que nós temos uma raiz, um saber, um
conhecimento. Tem muita remoção das mulheres indígenas e quando chega uma indígena
no hospital, os profissionais logo perguntam: “será que não tem parteira? Ou “vocês não
tem mais cultura 3?
Assim, para os olhos da saúde, quando estão lá na terra indígena, a “cultura” não importa, é
melhor remover. Mas quando estão na cidade, cadê sua “cultura”, era melhor ter ficado por lá. A
proposta deste trabalho é ver então, quais são as ações e os caminhos percorridos pelas populações
indígenas para “terem cultura” aos olhos das ações de saúde. Mais especificamente, ver como os
indígenas, sejam eles homens ou mulheres, se afetam nestes caminhos a partir de “esquemas
interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas” (Cunha, 2009, p.313). Da cultura à
“cultura”. A categoria da parteira tradicional indígena parece ser então, uma forma de ter “cultura”
aos olhos das ações de saúde. Assim, proponho pensar “esse negócio de parteira” como um
2 Refiro-me à distinção do uso da palavra cultura sem aspas e com aspas proposto por Manuela Carneiro da Cunha
(2009) a partir de uma categoria analítica da antropologia e seu aspecto fluido e dinâmico que passou a ser usada “pelos
outros” de forma objetificada ou essencializada (SOUZA, 2010, p.97). 3 As falas apresentadas até então são falas das mulheres parteiras no curso de capacitação de parteiras em Boa Vista,
pelo Projeto Parteiras Tradicionais nos SUS: Ações para promoção e o fortalecimento da articulação entre o trabalho
das parteiras tradicionais e a atenção ao parto e nascimento domiciliar em Roraima. Este curso intitulado Encontro de
Parteiras Tradicionais Indígenas foi realizado pelo Grupo Curumim em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde do
estado de Roraima, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste de
Roraima com o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAN), Organização Mundial de Saúde (OMS) e a
Rede Cegonha do Ministério da Saúde. O DSEI Leste de Roraima é responsável pela atenção à saúde dos povos
indígenas Wapixana, Ingarikó, Wai-wai, Macuxi, Patamona, Sapará e Taurepang.
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movimento mais do que necessário na luta das mulheres indígenas4. Mas pensar também, como
“esse negócio de parteira”, ao enquadrar diversas ações de diferentes agentes sociais e várias formas
de transformação corporal na categoria do conhecimento tradicional indígena, vai moldando, ao
longo do tempo, novas formas de percepção e de ação.
Para tal apresentarei experiências que falam na forma da escrita e da imagem sobre o
conhecimento tradicional indígena voltado para as questões da saúde. São relatos indígenas
retirados de referências bibliográficas, filmes e outras fontes afins à temática apresentada até então.
Assim como no “negócio das parteiras”, não há dúvida do quão necessário é esse movimento de
produção escrita e de registro de imagens do que se diz hoje conhecimento tradicional indígena.
São várias as vozes indígenas que têm tomado a forma da “pele de imagem” 5 do “conhecimento
tradicional indígena”. Para muitos, essas “peles de imagem” ou “peles de papel” (Kopenawa,
Albert, 2010, p.76) são para os brancos. Para que eles possam conhecer as imagens dos indígenas.
Mas para tantos outros, essas “peles de imagem e de papel” não são só para os brancos, são também
para os jovens indígenas. Para que eles possam conhecer o saber dos antigos. Para que eles possam
entender “como é que a gente vivia antes do contato e como a gente vem vivendo depois do
contato” (Mateus, 2012, introdução), e para “ver realizado o desejo de que seus filhos observem,
contem, escrevam, aprendam; e do passado não se esqueçam” (Huni Kuimbu, 2013, p.17 e p.29).
Um misto de “tradição e resistência” (Flória e Fernandes, 2008, p.10) em formas de permanência e
de fixação dessas vozes como documento: “quando a palavra se fixa, ela toma uma força política
diferente” (ibidem).
O livro Una Hiwea, o Livro Vivo, dos Huni Kuin, organizado por Agostinho Manduca
Mateus Ika Muru (2012), é na voz do próprio autor, um “documento da identidade e do
conhecimento do nosso povo antepassado”. O livro foi escrito porque “o povo ia perdendo tudo”,
“porque muito dos nossos parentes do Brasil não estão conhecendo a realidade que é nossa cultura”.
O livro precisou ser escrito para falar “de onde vieram as doenças, por que nasceu a morte e por que
os antigos se transformaram em ervas”. Por isso o livro é um Livro Vivo, porque “a natureza está
viva, porque as ervas que se transformaram estão vivas e os pesquisadores estão vivos”. Além das
4 Ver Carta das Mulheres reunidas na 1º Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas realizada no
Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília no mês de abril de 2017. http://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/pesquisa/carta-das-mulheres-reunidas-na-1o-conferencia-livre-
de-saude-das-mulheres-indigenas. Acesso em 14/05/2017. 5 5 Davi Kopenawa usa as expressões “peles de imagens” e “peles de papel” para falar da diferença entre o pensamento
Yanomami e o pensamento do branco: “Porém, não precisamos como os brancos de peles de imagens para impedi-las
de fugir da nossa mente. Não temos que desenhá-las como fazem com as suas.” (KOPENAWA, ALBERT, 2014, p.75)
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palavras desenhadas, o Livro Vivo é composto também de um filme para “apresentação não só da
história escrita, mas também da imagem, para ver” (Mateus, 2012, introdução).
As palavras de um xamã yanomami, Davi Kopenawa, no livro A queda do céu, escrito por
ele e Bruce Albert (2015), são também antigas e muitas, pois vêm de seus antepassados. Foram
desenhadas em traçados de escritas apenas para falar aos brancos, pois são gravadas em seus
corpos, guardadas bem no fundo e por isso não se distanciam deles. “Por isso nossa memória é
longa e forte” (ibidem, p.75) E tem também as antigas palavras dos espíritos xapiri, “que voltam a
ser novas sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã”. As palavras são assim
aprendidas e apreendidas por uma experiência corporal, “não fixando os olhos em peles de papel”,
mas vendo
“as coisas da floresta de verdade, bebendo o sopro da vida dos meus antigos com o pó de
yâkoana que me deram. Foi desse modo que me transmitiram também o sopro dos espíritos
que agora multiplicam minhas palavras e estendem meu pensamento em todas as direções”
(KOPENAWA, 2015, p.76).
Mas para falar da saúde, outras palavras yanomami precisaram ser fixadas em “peles de
papel” como forma de fortalecer os conhecimentos tradicionais e dialogar com outros
conhecimentos indígenas e não indígenas. O conhecimento sobre os remédios tradicionais foi
apontado pelas lideranças yanomami como tema prioritário a ser pesquisado e fortalecido. Daí
surgiu a proposta de retomada do levantamento sobre as plantas medicinais yanomami realizado
entre 1992 e 1994, a pedido do projeto de saúde da Comissão Pró-Yanomami (CCPY)6 para o
aprimorar o atendimento à saúde por meio da valorização da medicina tradicional. Ao longo dos
anos de 2012 e 2013, jovens pesquisadores indígenas7 entrevistaram três homens de idade e grandes
conhecedores da floresta8, e o conjunto de dados desta pesquisa foi organizado e publicado na
forma de um manual voltado para o uso cotidiano dos Yanomami (2014). O cuidado das mulheres
mais velhas aparece novamente nesta “pele de papel” sobre as plantas medicinais Yanomami. As
palavras do ancião Justino ao falar sobre os remédios da floresta remetem às “mulheres velhas dos
nossos antigos”:
“Quando as mulheres velhas dos nossos antigos eram numerosas, elas nos tratavam com
estes remédios, quando os Omoari, seres maléficos da seca, não paravam de nos comer.
6 Entre 1994 a 1999, a CCPY desenvolveu um programa de atendimento à saúde do povo yanomami através de um
convênio com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) (HWËRIMAMOTIMATHËPË Â ONI, Manual dos remédios
tradicionais yanomami, 2014). 7 Nove jovens pesquisadores formados pelo projeto de educação interculturalparticiparam das oficinas de pesquisa na
comunidade Watoriki, sob a coordenação de Morzaniel Iramari Yanomami da Hutukara Associação Yanomami (HAY)
(HWËRIMAMOTIMATHËPË Â ONI, Manual dos remédios tradicionais yanomami, 2014). 8 Justino, Lucas e Antônio (HWËRIMAMOTIMATHËPË Â ONI, Manual dos remédios tradicionais yanomami, 2014).
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Elas nos davam banhos, elas tratavam as mãos quentes dos espíritos” (YANOMAMI, 2014,
p.15).
As palavras do ancião Justino vão dizendo também e de diversas formas ao longo do texto
como “isso acabou” ou foi acabando cada vez mais no decorrer dos diferentes momentos de contato
com o mundo do branco. “Agora ficamos empobrecidos” é uma fala repetida a cada “feitiçaria de
epidemia” relatada por ele, quando morriam as mulheres mais idosas ou as mulheres mais jovens
que tinham visto suas mães curarem. “As pessoas viam suas mães – as crianças, as filhas imitam do
mesmo jeito, não é? - viam coletar folhas para curar” e “curavam por sua vez seguindo seus passos”
(ibidem, p.19). Mas as pessoas agora não foram criadas assim, por isso não sabem.
Outra “pele de papel” inventada para falar da saúde é o livro Hitupmã’ax: Curar (2008) dos
Maxakali. Esta “pele de papel” é um dos modos como os Maxakali pensaram e realizaram um
fazer-se visível aos olhos dos agentes de saúde brancos, para mostrar aos brancos que eles têm
“cultura”: “este livro foi feito para mostrar a cultura Maxakali e para que toda equipe que trabalha
com saúde indígena conheça nossa tradição” (2008, p 12). O livro da saúde dos Maxacali começa
pelo parto: “Comecemos pelo começo: o parto.” (Índios Maxakali, 2008, p.57). Falar do parto
indígena hoje é falar de tudo o que o circunda. É falar da menina, da mulher, do menino, do homem,
do pai, da mãe, da avó, das parteiras, do rezador, do pajé, das plantas, dos bichos, dos antigos, dos
antepassados, dos espíritos, ou seja, dos diversos seres que habitam os diferentes mundos indígenas.
Mas é falar também do homem branco, da relação com a saúde do branco e dos deslocamentos
possíveis no modo de viver indígena a partir desta relação. O momento do parto, além de ser o
começo proposto por eles, é também hoje a imagem concreta de um “saber” não só sobre o próprio
corpo, mas sobre um coletivo de ações que constroem diariamente um modo de viver distinto. Em
alguns casos específicos, como na fala de Suely Maxakali “as mulheres iam para o hospital, e
tinham dificuldade, porque não entendiam, né?”, “o hospital nunca entendeu a nossa saúde
diferenciada” 9 este modo de viver vem sendo desmanchado pelas ações de saúde. Situações
corriqueiras e repetitivas traduzem de uma maneira muito simples e triste, a dificuldade dos agentes
de saúde brancos em entender e trabalhar com as populações indígenas:
“Quando ganha neném também não coça com a mão, tem que ser um pedaço de madeira
pequenininho para poder coçar e no hospital não tinha, né? Aí, a gente precisou que uma
pessoa lá da CASAI (Casa de Saúde do Índio), a Cìntia, desse uma entrevista. Ela falou
um pouco porque teve uma vez que levaram uma índia em Governador Valadares que
9 Fala proferida no seminário: Curas, Cuidados e Políticas de Saúde Indígena realizado em maio de 2016 na linha de
Habilitação das Ciências da Vida e da Natureza no Programa de Formação Intercultural para Formação Indígena – FIEI
da Faculdade de Educação – FAE da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
https://www.youtube.com/watch?v=Z1sL466BbLc Acesso em 20/05/2017.