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CLUDIA MORAES TRINDADE
A CASA DE PRISO COM TRABALHO DA BAHIA,
1833-1865
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria Social da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para
obteno do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Joo Jos Reis
Salvador Bahia
2007
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CLUDIA MORAES TRINDADE
A CASA DE PRISO COM TRABALHO DA BAHIA,
1833-1865
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em
Histria Social da
Universidade Federal da Bahia UFBA, como parte dos requisitos
necessrios obteno do
grau de Mestre em Histria Social.
Aprovada por:
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Joo Jos Reis (Orientador)
________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eugnio Lbano Soares
________________________________________________
Prof. Dr. Walter Fraga Filho
Salvador, 27 de abril de 2007.
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Para Mestre Moraes
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AGRADECIMENTOS
Nos caminhos percorridos para escrever esta dissertao deparei-me
com muitas
pessoas que, em momento algum, relutaram em me ajudar. No
disfararei a necessidade de
privilegiar a algumas pessoas, seja pela afetividade ou pela
importncia que tiveram na
concretizao deste trabalho. Por lapso de memria, provavelmente,
deixarei de citar algumas,
mas o prprio trabalho denunciar as suas participaes. Da, em
primeiro lugar, quero
agradecer aos meus pais.
Sou especialmente grata ao professor Joo Jos Reis pela orientao
competente e
tranquila. A indicao da bibliografia estrangeira foi fundamental
para o crescimento deste
trabalho, alm da leitura cuidadosa de cada captulo desta
dissertao, chamando a minha
ateno para equvocos que meus olhos ainda no estavam aptos a
observar. Seu interesse
pelo tema e a confiana que me tem depositado so fontes de
estmulo para minhas pesquisas.
Ao professor e amigo Carlos Eugnio Lbano Soares, agradeo por ter
ele acreditado
na viabilidade do meu tema, norteando-me em direo ao
Mestrado.
Agradeo aos funcionrios dos arquivos e bibliotecas onde
pesquisei, os quais sempre
me receberam com muito carinho e disponibilidade, em especial a
Marina da Silva Santos, da
Biblioteca da FFCH/UFBA, e aos funcionrios do Arquivo Pblico do
Estado da Bahia, nas
pessoas de Maria Edite Pita Costa e Paulo Roberto Lemos
Meireles.
Agradeo ao Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento
(CNPq) pela
concesso de uma bolsa de estudos, durante o curso de Mestrado, o
que foi de suma
importncia para a concretizao deste trabalho.
Aos professores, colegas e funcionrios do Mestrado, em especial
s professoras
Maria Hilda Baqueiro Paraso, e a Maria Ceclia Velasco e Cruz,
pelas sugestes
bibliogrficas. Aos colegas Pablo Magalhes e Juliana Lacet pela
amizade e interlocuo.
Aos funcionrios Ariane Ferreira e Jos Carlos Cavalcante Caldas
Junior pela pacincia
quando foram procurados, por mim, em busca de informaes quanto
minha vida
burocrtica dentro do Programa.
Agradeo aos membros da linha de pesquisa Escravido e Inveno da
Liberdade, do
Programa de Ps-Graduao em Histria da UFBA, em cujas reunies
muito aprendi, dando
destaque discusso do primeiro captulo desta dissertao.
Aos amigos do Laboratrio Reitor Eugnio Veiga UCSAL, professores
Ventia
Durando Braga Rios, Afonso Bandeira Florence, Ana Maria Villar
Leite e Renata Soraya
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Bahia de Oliveira sou grata pelo apoio dado durante todo o
processo que resultou nesta
dissertao, fosse atravs da interlocuo, do emprstimo de livros,
de transcries
paleogrficas e, sobretudo, pelo incentivo. A Karinna Leo pela
contribuio dada, ao revisar
as verses preliminares deste trabalho, sacrificando, seu tempo
por mim. Sem esquecer da
amizade e solicitude dos professores Cndido da Costa e Silva,
Neivalda Freitas Oliveira e
Wellington Castellucci Junior.
Aos professores Fernando Salla e Ricardo D. Salvatore, agradeo
pelo envio de
material bibliogrfico e por terem se colocado disposio para
dirimir dvidas, quando
necessrio.
Aos companheiros e companheiras do Grupo de Capoeira Angola
Pelourinho, em
especial a Helen Catalina Ubinger, pela ajuda, a qualquer
momento, quando a lngua de
Shakespeare exigiu mais. Ao sempre solicito e atencioso amigo
Jair Moura pelo apoio e
preocupao com as adversidades em todos os momentos. Sou grata ao
Forte da Capoeira, na
pessoa de Jos Leal, pelo apoio dado na fase final desse
trabalho.
Ao meu filho, espero que aceite as minhas desculpas pelo fato de
eu no ter podido,
por algum tempo, participar ativamente do seu dia-a-dia. minha
filha, companheira e
questionadora, finalmente posso responder sua insistente
pergunta: mame, j acabou de
copiar?
Pedro Moraes Trindade, meu marido, no me convenceu com a alegao
de que somos
a unio do cncavo e do convexo e que, por isso, dispensava
agradecimentos. Ele teve
presena singular, desde a minha graduao, em todo o processo
necessrio para que este
trabalho viesse luz, fosse discutindo a documentao, fazendo
criticas ou corrigindo os
meus lapsos de redao. Seu companheirismo, dedicao e amor
contriburam, de fato, para a
realizao desta dissertao.
Por fim, ao Alapini Deoscoredes Maximiano dos Santos, Mestre
Didi, pelo tratamento
sempre carinhoso, e a todos os irmos e as irms do Il Aip, Mo
dup, por terem, apesar das
minhas ausncias, sempre me recebido com o mesmo carinho.
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RESUMO
Esta dissertao tem o objetivo de estudar a instalao e os anos
iniciais de funcionamento da
primeira penitenciria da Bahia, que recebeu o nome de Casa de
Priso com Trabalho, no
perodo de 1833 a 1865. Analisamos os debates, entre os
diferentes grupos da elite, em torno
da adaptao de novas idias penitencirias numa sociedade
escravista como era a da Bahia
no sculo XIX. No perodo de 1861 a 1865, estudamos o perfil dos
primeiros presos da
instituio, alm de reconstruir o que nos foi possvel do cotidiano
da priso. A reforma
prisional foi um movimento mundial, que teve incio na Inglaterra
e nos Estados Unidos no
final do sculo XVIII. Um dos principais objetivos dos
reformadores era romper com as
antigas prticas de punio, que consistiam em torturas e execues
pblicas dos condenados.
O novo conceito de punio baseava-se na privao da liberdade e na
recuperao do
criminoso. Na Bahia, o smbolo da reforma prisional foi a
construo da Casa de Priso com
Trabalho, que teve incio em 1834, e comeou a receber os
primeiros presos em 1861. No
entanto, ela foi oficialmente inaugurada apenas dois anos
depois, em 14 de outubro de 1863,
quando entrou em vigor o seu primeiro regulamento. Um sistema
penitencirio deveria ser
implantado na instituio e, na poca, dois modelos
norte-americanos dividiam as opinies
dos reformadores, o chamado sistema da Pensilvnia e o de Auburn,
ambos baseados no
trabalho, na religio e no isolamento do prisioneiro. As elites
polticas e intelectuais
encararam o trabalho prisional um importante aliado para
disciplinar a cada vez mais
numerosa populao pobre, livre e majoritariamente de cor. Uma das
maiores contradies da reforma prisional, no Imprio do Brasil, foi o
Cdigo Criminal de 1830 que estabelecia
punies diferentes para crimes iguais, a depender se o infrator
era livre ou escravo. Essa
dualidade contrariava princpios de igualdade social que regiam
as doutrinas penitencirias e
faziam parte do discurso civilizatrio e reformador do perodo. Ou
seja, dado que, em meados
do sculo XIX, o Brasil era um pas escravista em todo seu vigor,
um setor importante de sua
populao, os escravos, ficaram de fora da discusso penitenciria.
Ao reconstruirmos parte
dos primeiros anos de funcionamento da priso, constatamos que os
presos no se
intimidaram com as novas formas de dominao prisional. Simulavam
doenas para conseguir
privilgios, escreviam cartas reivindicatrias, reclamavam da
comida, fugiam, entre muitas
outras reaes. O estudo do perfil da populao carcerria revelou
que ela era formada,
principalmente, por homens livres, pardos e crioulos. As
mulheres representaram um
pequeno nmero. As cadeias civis, militares e religiosas da
cidade de Salvador, tambm
foram estudadas ao contextualizarmos o incio da reforma
prisional.
Palavras-chaves: Priso, Penitenciria, Casa de Priso com
Trabalho, Bahia Histria, Sculo XIX.
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ABSTRACT
The aim of this thesis is to study the origins and initial years
of operation of Bahias first penitentiary, known as the Casa de
Priso com Trabalho (Prison-Workhouse), from 1833 to
1865. I examine the debates among various elite groups regarding
the adaptation of new ideas
about penitentiaries to a slaveholding society as 19th
-century Bahia was. I have also studied
the profiles of the first prisoners in that institution between
1861 and 1865, in addition to
discuss aspects of daily life in the prison. The first prison
reform in Brazil was part of an
international movement that began in Great Britain and the
United States in the late 18th
century. One of the reformers principal aims was to break with
the traditional forms of punishment, which involved torture and
public execution of convicts. The new concept of
punishment was based on depriving criminals of their freedom and
rehabilitating them. Prison reform in Bahia was symbolized by the
construction of the Casa de Priso com
Trabalho, which began in 1834. The penitentiary received its
first prisoners in 1861, but it
would only be officially inaugurated two years later, in October
14, 1863, when its original
regulations came into effect. A penitentiary system had to be
introduced, and opinions were
divided between the so-called Pennsylvania and Auburn systems,
both of which were based
on labor, religion and the isolation of convicts. The political
and intellectual elites viewed
prison labor as an important factor for disciplining the growing
population of poor, free
people, most of them coloreds. One of the greatest
contradictions in the prison reforms in the Brazilian Empire was
related to the Criminal Code of 1830, which established
different
punishments for the same crimes, depending on whether the
perpetrator was free or enslaved.
This duality contradicted the principle of equality that
governed the penitentiary doctrine and
was part of the civilizing and reformation discourse of the
period. In other words, because
Brazil was a full-fledged slaveocracy in the mid-19th century, a
significant portion of its
population the slaves fell outside the penitentiary discourse.
In a partial reconstruction of the early years of Bahias
prison-workhouse, I have found that convicts were not intimidated
by the new forms of domination imposed on them. Among many other
forms of resistance,
they feigned illness to obtain privileges, wrote letters
demanding their rights, complained
about the quality and quantity of food, and, of course, they
fled from the institution. An
analysis of the profile of the prison population revealed that
it was primarily composed of
freeborn men, mostly pardos (brown-skinned persons or mulattos),
and crioulos (blacks born
in Brazil). The female population was very small. I have also
included a study of Salvadors civilian, military and religious
jails to provide a background and a context for the creation of
Bahias first penitentiary.
Keywords: Prison, Penitentiary, Prison-Workhouse, Bahia History,
19th Century
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SUMRIO
Introduo
......................................................................................................................
10
Captulo 1.
As cadeias da cidade de Salvador e a reforma prisional
............................................ 22
As prises da cidade de Salvador na primeira metade do sculo XIX
......................... 22
A nova legislao e a reforma prisional
.......................................................................
39
A reforma prisional e os modelos estrangeiros
........................................................... 46
Captulo 2.
A implantao da Casa de Priso com Trabalho
....................................................... 54
A Cmara Municipal de Salvador e as primeiras providncias.
................................... 57
O governo provincial em busca de solues
................................................................
61
A localizao da
CPCT.................................................................................................
65
Auburn x Pensilvnia: qual o melhor sistema penitencirio para a
Bahia? .................. 66
O trabalho prisional
......................................................................................................
69
A legislao criminal e a escravido
............................................................................
74
O andamento da obra
....................................................................................................
77
A inaugurao da CPCT
...............................................................................................
79
Captulo 3.
O perfil dos presos da Casa de Priso com Trabalho
............................................... 84
A populao carcerria da cidade de Salvador
.............................................................
87
O perfil dos prisioneiros da CPCT
...............................................................................
91
Captulo 4.
O Cotidiano da Casa de Priso com Trabalho: modelo e realidade
........................ 113
As instalaes
...............................................................................................................
113
Os funcionrios e suas atribuies
...............................................................................
115
Os africanos livres
........................................................................................................
120
Os presos e suas classificaes
.....................................................................................
130
As primeiras denncias
.................................................................................................
131
As doenas prisionais
...................................................................................................
136
Alimentao
..................................................................................................................
142
A galeria das mulheres
.................................................................................................
147
Brigas e castigos
...........................................................................................................
148
Fugas
.............................................................................................................................
152
A inaugurao das oficinas
...........................................................................................
153
CONSIDERAES FINAIS
........................................................................................
157
FONTES E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
.................................................... 160
-
TABELAS, MAPAS E ILUSTRAES
Tabelas.
1. Distribuio dos presos na cadeia da Relao em 1843.
............................................. 34
2. Distribuio dos presos na cadeia do Aljube em 1842
................................................ 35
3. Condio jurdica dos presos do Aljube em 30/06/1854
............................................. 36
4. Comparao da estatstica prisional em Salvador e Filadlfia
.................................... 57
5. Prises e cadeias de Salvador sculo XIX.
............................................................... 86
6. Populao carcerria de Salvador 1861-1865.
......................................................... 87 7.
Presos sentenciados de Salvador 1861-1865
............................................................ 88 8.
Homens e mulheres presos em Salvador 1861-1865.
.............................................. 90 9. Durao das
sentenas dos presos, existentes na CPCT, em
12/12/1863.................... 90
10. Motivo da priso - 1861-1865.
..................................................................................
94
11. Sentenas dos presos da CPCT 1861-1865
............................................................ 101
12. Cor e condio civil dos presos da CPCT - 1861-1865.
............................................ 111
13. Causas de internamento dos presos da CPCT 1865
............................................... 138 14. Tabela
alimentar dos presos
......................................................................................
143
Mapa.
1. Localizao da CPCT, das cadeias civis e da priso do
Arsenal
da Marinha. (Mapa da cidade de S. Salvador. Por Carlos Augusto
Weyll) .................... 21
Ilustraes.
Capa. Penitenciria do Estado da Bahia, Oficina de sapateiro e
Galeria das celas, 1908.
Acervo do Instituto Histrico e Geogrfico da Bahia (IHGB).
1. Aoitamento pblico de escravos. Jean Baptiste Debret
............................................ 41
2. Representao de um preso se redimindo dos seus crimes. Acervo
da Eastern
Penitentiary. http://www.easternstate.org
.......................................................................
51
3. Planta da penitenciria de Ghent, na Blgica. Randall Shelden
G, Arquitetura and Disciplinary,
http://www.sheldensays.com/architectural_and_disciplinary_i.htm.
..... 61 4. Desenho da CPCT idealizado por Pedro Weyll, indicando a
concluso de
dois raios. Mapa da cidade de S. Salvador. Por Carlos Augusto
Weyll ......................... 61
5. Negro tranando palha para fazer cesto. Fotografia de Jos
Cristiano de Freitas
Henriques. Acervo particular de Jair Moura.
..................................................................
127
-
10
INTRODUO
No dia 30 de outubro de 1861, o chefe de polcia da provncia
expedia as ltimas
portarias, instruindo os carcereiros das Cadeias do Barbalho e
da Correo sobre o
procedimento de transferncia dos primeiros condenados a ocuparem
a Casa de Priso com
Trabalho. No dia seguinte, a operao teve incio e, a Bahia,
finalmente, inaugurava a sua
penitenciria, depois de um conturbado trabalho de construo, que
durou cerca de trs
dcadas. Mesmo no estando terminada, a Casa de Priso com Trabalho
foi, durante algum
tempo, a menina dos olhos dos governantes da Bahia, que a
adotaram como um smbolo da
modernidade prisional. Contudo, adapt-la aos princpios de
igualdade e humanidade que
embalaram a criao do sistema penitencirio na Europa e Estados
Unidos, no incio do
sculo XIX, no era uma tarefa fcil para uma sociedade movida pela
escravido. De qualquer
forma, a implantao das primeiras penitencirias no Brasil, no
sculo XIX, denominadas
Casas de Correo e, especificamente na Bahia, de Casa de Priso
com Trabalho, representou
uma ruptura com o antigo regime prisional que vigorara desde o
incio da colonizao
portuguesa.
Na poca, o Brasil acompanhava uma tendncia mundial de modernizao
das
prises, que teve inicio na Inglaterra e nos Estados Unidos no
final do sculo XVIII. As
execues e as torturas em praas pblicas, utilizadas para
atemorizar a quem estivesse
planejando novos crimes, foram, gradativamente, abandonadas
pelos pases do Ocidente.
Entrava em cena a penalidade moderna, que privava o criminoso do
seu bem maior a sua
liberdade internando-o numa instituio construda especificamente
para recuper-lo, que
recebeu o nome de penitenciria. O seu funcionamento era regido
por normas que seriam
aplicadas de acordo com o modelo penitencirio escolhido, mas
todos eles utilizavam
elementos como o trabalho, a religio, a disciplina, o uso de
uniformes e, sobretudo, o
isolamento como mtodo de punio e recuperao do condenado. Dessa
forma, esperava-se
criar um novo homem que seria devolvido sociedade com todos os
atributos necessrios
convivncia social, principalmente para o trabalho.
Dois sistemas rivais norte-americanos Auburn (em Nova Iorque) e
Pensilvnia
dividiram reformadores de vrias partes do mundo. Muitos pases
enviaram representantes
para conhecerem as experincias norte-americanas, no intuito de
adot-las. Essas visitas
resultaram em relatrios que se transformaram em valiosas fontes
histricas. Entre os mais
-
11
conhecidos esto os escritos dos franceses Alexis de Tocqueville
e Gustave de Beaumont.1
Eles eram defensores do sistema penitencirio conhecido como
Pensilvnia, que previa o
isolamento contnuo do condenado, ou seja, todas as suas
atividades deveriam ser realizadas
em completa solido, incluindo o trabalho. Esse sistema foi
repudiado por muitos juristas e
mdicos que acreditavam que o isolamento total levaria o
condenado loucura ou morte. No
sistema rival, conhecido por Auburn, ou silent system, as
atividades eram coletivas e o
trabalho realizado em oficinas de ofcio no mais absoluto
silncio. Era o que eles chamavam
de separao moral j que, fisicamente, estavam reunidos. noite,
eram acomodados em
celas individuais. As primeiras penitencirias dos Estados Unidos
a adotarem este sistema
utilizavam castigos corporais para punir os infratores do
silncio, razo que levou muitos
reformadores a defenderem o outro sistema. Alguns anos depois os
Estados Unidos proibiram
os castigos corporais e, em substituio, outras formas de punio
fora empregadas, como o
uso da solitria e a reduo alimentar, que muitas vezes se resumia
a po e gua.
Durante o processo da reforma prisional, alguns reformadores se
tornaram verdadeiros
smbolos de luta contra as prticas do antigo regime, entre eles o
ingls John Howard (1726-
1790) e o francs Charles Lucas (1803-1889). Ambos deixaram
importantes obras sobre o
assunto.2 A Inglaterra teve outra grande participao atravs das
idias de Jeremy Bentlham,
que idealizou o panptico em 1791.
A reforma prisional foi processo complexo, uma vez que exigiu
mudanas profundas
na legislao dos pases que a ela aderiram. As cadeias comuns
tambm sofreram
transformaes, no sentido de oferecerem condies mais humanitrias,
como por exemplo, a
separao de presos, a partir de critrios como natureza do crime,
sexo, entre outros. Mesmo
com todas as diferenas, o principal smbolo da reforma foi a
penitenciria, que surgiu com a
expectativa de resolver o problema da criminalidade. Cada pas
precisou adapt-la de acordo
com a sua realidade local, seja nas sociedades industriais ou
nas escravistas, como foi o caso
do Brasil.
A partir da dcada de 1960, os historiadores viram a
possibilidade de se fazer uma
histria social da priso. A aplicao das idias penitencirias, a
resistncia dos prisioneiros e
o impacto que elas provocaram na sociedade em geral, tornou-se
um promissor campo de
1 Gustave de Beaumont e Alexis de Tocqueville, Du systme
pnitentiaire aux tats-Unis et de son application
en France, suivi d'un appendice sur les colonies pnales et de
notes statistiques, 2 vols., Paris, Impr. de H.
Fournier, 1833, 2e d., Paris, C. Gosselin, 1836. 2 John Howard,
State of the prisons in England and Wales, with Preliminary
Observations, and an Account of
Some Foreign Prisons, London, Printed by William Eyres, and sold
by T. Cadell in the Strand, and N. Conant,
1777; Charles Lucas, De la rforme des prisons, ou de la thorie
de l'emprisonnement, de ses principes, de ses
moyens et de ses conditions pratiques, 3 vols, Paris, E. Legrand
et J. Bergounioux, 1836-1838.
-
12
pesquisa envolvendo aspectos tais como, criminalidade, gnero,
raa, formao de classe, o
processo de construo das sociedades modernas, entre outras
possibilidades. Em 1975, a
publicao da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir, suscitou
debates que contriburam
para o crescimento dos estudos sobre a histria da priso. Para
Foucault, a penitenciria
nasceu para atender aos interesses do capitalismo e no para
substituir os suplcios. Para
Foucault a casa de correo, o hospital, a priso, os trabalhos
forados nascem com a
economia mercantil e evoluem com ela.3 O pessimismo foucaultiano
se aprofunda com sua
anlise do poder absoluto que a instituio prisional exercia sobre
a alma e o corpo do
condenado, negligenciando porm, muitas vezes, que a priso tambm
um lugar de
resistncia e desordem. Contudo, sua discusso sobre as doutrinas
penitencirias dos sistemas
de Auburn e Pensilvnia contribuiu para nossas reflexes sobre o
caso baiano. Principalmente
quando o autor tratou do trabalho prisional, da religio e do
isolamento, dialogando
criticamente com o pensamento de importantes reformadores como
Charles Lucas e Alex
Tocqueville.
Em 1978, o historiador Michael Ignatieff publicou A Just Measure
of Pain, onde
discutiu a histria das reformas penitencirias, seu impacto na
sociedade industrial inglesa e a
resistncia dos prisioneiros e de outros setores da sociedade
frente ao novo regime prisional. 4
Rejeitando a idia reducionista, de que somente o capitalismo
explicaria o nascimento da
priso, Ignatieff considerou que o apoio oferecido ao sistema
penitencirio por diferentes
setores da sociedade foi resultado, principalmente, da
expectativa da sua capacidade de
controlar a criminalidade. Num trabalho crtico sobre as
instituies totais e classes
trabalhadoras, publicado na dcada de 1980, Ignatieff apontou a
importncia de estudar a
participao das classes dominadas e dependentes nos seus prprios
mecanismos de sujeio,
pelo Estado, e criticou alguns historiadores que insistiam em
basear-se unicamente na
documentao administrativa de uma instituio para estud-la. Por
fim lanou a seguinte
questo: podemos comear a escrever uma histria social que parta
da suposio de que uma
sociedade um denso tecido de permisses, proibies, obrigaes e
regras, sustentadas e
3 Michel Foucault, Vigiar e Punir: Histria da violncia nas
prises, 5 edio. Petrpolis, Vozes, 1987; Michel
Foucault, A priso vista por um filsofo francs, in Manoel Barros
da Mota (org), Michel Foucault, Estratgia, poder-saber, (Rio de
Janeiro, Forense Universitria, 2003), p.152. 4 Michael Ignatieff, A
Just Measure of Pain: The Penitentiary in the Industrial
Revolution, 1750-1850, New
York, Pantheon Books, 1978.
-
13
forjadas em milhares de pontos, ao invs de uma pirmide de poder
nitidamente
organizada?.5
Procurando incluir a priso na dinmica dos acontecimentos da
sociedade, Michelle
Perrot props uma viso da revoluo de 1848 a partir do estudo das
prises francesas. Em
sua obra Os excludos da Histria, a autora ressaltou a importncia
de estudar a resistncia
dos prisioneiros, discutindo fontes e mtodos.6 Para a autora, o
que importa no estudo da
priso a vida cotidiana dos prisioneiros, que nos interessa
captar, no nvel mais oculto,
atravs e para alm da serenidade e das convenes do discurso
penitencirio. De acordo
com essa idia, buscamos, neste trabalho elaborar o nosso quarto
captulo, que trata do
cotidiano da Casa de Priso com Trabalho.
Em 1998, Norval Morris e David Rothman publicaram a coletnea
intitulada The
Oxford History of the Prison com trabalhos sobre a reforma
prisional na Europa e nos
Estados Unidos. Nesta obra os autores so apresentados pelos
organizadores como pioneiros
neste campo, e os artigos como resultado de pesquisas iniciadas
desde a dcada de 1970. Com
variadas formas de abordagem, so trabalhos que vieram contribuir
para ampliar nossa viso
em relao ao estudo da priso. O texto de David Rothman trata da
reforma prisional dos
Estados Unidos compreendendo o perodo de 1796 a 1865.7 O autor
contextualiza a priso
no ps-independncia, quando o sentimento democrtico tomou conta
da populao nas
dcadas de 1820 e 1830, com a eleio do presidente Andrew Jackson.
Qual a razo da
Amrica Jacksoniana ter adotado a reforma prisional? Por que a
sociedade se orgulhava tanto
das suas prises? Por que outras naes a tomaram como exemplo?
Para responder a essas
questes o autor aborda no somente a histria do crime e da punio,
ele tambm discorre
sobre as idias de ordem e desordem sociais e o destino da nova
repblica. Para Rothman, as
novas idias penitencirias, criadas nos Estados Unidos, refletiam
muito mais a questo de
educao aliada preocupao com o futuro da repblica, do que questes
meramente
econmicas. Segundo ele, a sociedade americana, naquele momento,
temia mais por um caos
moral causado pelo enfraquecimento da autoridade da famlia e da
comunidade, do que por
um conflito envolvendo a classe trabalhadora. Os sistemas de
Auburn e Pensilvnia so
analisados pelo autor numa perspectiva que contraria muitas
anlises anteriores, associando a
5 Michael Ignatieff, Instituies totais e classes trabalhadoras:
um balano crtico, in Revista Brasileira de
Histria, 14, (1987), p. 193. Instituies totais foi um termo
inventado pelo socilogo Erving Goffman para denominar instituies
como priso, asilos, conventos, campos de concentrao, etc. 6 Michele
Perrot, Os excludos da histria: operrios mulheres e prisioneiros, 3
edio, So Paulo, Paz e Terra,
2001. 7 David J. Rothman, Perfecting the Prison: Unides States,
1789-1865, in Norval Morris e David J. Rothman,
(orgs), The Oxford History of the Prison, (New York, Oxford
University Press, 1995), pp. 100-116.
-
14
punio reabilitadora da penitenciria com s prticas disciplinares
na escola, famlia e
religio. 8
O texto de Randall MacGowen versa sobre a reforma prisional na
Inglaterra no
perodo de 1780 a 1865. As prises inglesas do sculo XVIII so
mostradas pelo autor como
lugares de concentrao de doenas e corrupo. Um nmero
significativo de pessoas eram
presas por dvida, como garantia do credor, uma vez que no antigo
regime prisional no
existia idia de reabilitao. Ela s surgiria na Inglaterra em
1780. A luta do reformador John
Howard tambm discutida, assim como a influncia dos objetivos das
workhouses nas
discusses dos sistemas penitencirios do sculo XIX. As workhouses
surgiram na Inglaterra,
no sculo XVI, com o objetivo de sanar o problema da mendicncia,
instrumentalizando a
populao pobre para o trabalho. Entre os reformadores ingleses, o
sistema de isolamento
contnuo ou da Pensilvnia teve maior aceitao. A resistncia dos
prisioneiros ao novo
regime foi estudada pelo autor a partir da experincia de uma
penitenciria inglesa, em 1865.
Impedidos de conversar, os presos inventaram diferentes formas
de comunicao, entre elas o
ventriloquismo, que consiste em falar sem movimentar os lbios.
Durante a noite ouvia-se
uma infinidade de sons que eram utilizados como cdigo de
comunicao. Eles tambm eram
mestres na simulao de doenas, buscando no hospital se livrarem
da rigorosa disciplina da
priso. Na Bahia os presos da Casa de Priso com Trabalho tambm se
fingiam de doentes
como estratgia para conseguirem privilgios. Por fim, o autor
analisa o impacto das novas
idias penitencirias na sociedade inglesa que, em sua maioria,
receava o novo homem que a
priso moderna iria restituir ao convvio social.9
Outro captulo desta obra que merece destaque o de Lucia Zender,
sobre as
transformaes das prises femininas em pases como a Inglaterra,
Frana e Estados Unidos,
desde meados do sculo XIX at as primeiras dcadas do sculo
XX.10
Os reformadores das
prises no levaram em considerao as diferenas de gnero, de tal
forma que, durante muito
tempo, as mesmas normas aplicadas aos homens valiam para as
mulheres. A autora apresenta
as primeiras discusses sobre qual dos sistemas, Auburn ou
Pensilvnia, deveria ser aplicado
s mulheres. O sistema de Auburn, utilizado na primeira priso
feminina dos Estados Unidos,
em Nova Iorque, gerou mais controvrsias do que o sistema rival,
uma vez que, na poca, a
mulher era vista como um ser mais socivel do que o homem, e
assim qualquer cerceamento
8 Ibid.
9 Randall McGowen, The Well-Ordered Prison: England, 1780-1865,
in Morris e Rothman (orgs), The Oxford
History of the Prison, pp.79-109. 10
Lucia Zedner, Wayward Sisters: The Prison for Women, in Morris e
Rothman (orgs), The Oxford History of the Prison, pp.295-324.
-
15
do direito de comunicao seria mais danoso para o seu sistema
nervoso, uma vez que eram
vistas como seres, naturalmente, sem auto-controle. Foi
observado, ento, que o silent system
traria problemas de vrias ordens, por exemplo, a necessidade de
vigilncia redobrada e a
aplicao excessiva de castigos, devido s infraes da lei do
silncio. 11
Ento o sistema da
Pensilvnia foi mais bem aceito, tornando-se tambm dominante na
maioria dos pases da
Europa, pois era creditado s mulheres um comportamento passivo,
capaz de faz-las
suportar, melhor que os homens, o isolamento celular.12
Na Bahia o sistema penitencirio
excluiu totalmente a mulher. Elas estiveram presentes na Casa de
Priso com Trabalho
somente nos primeiros anos e em nmero bastante reduzido. De 1865
at pelo menos o
restante do sculo XIX as sentenciadas cumpriram pena em cadeias
comuns, em celas
lotadas. Situao que as privaram de usufruir melhores condies
prisionais que,
teoricamente, a Casa de Priso com Trabalho lhes poderia
garantir.
No texto de Patricia OBrien as prises de vrios pases como a
Frana, Blgica,
Austrlia, Inglaterra e outros foram analisadas e tiveram suas
regras discutidas.13
Os
diferentes horrios de trabalho das oficinas, a arquitetura, os
prisioneiros e os guardas foram
estudados. A autora observou marcas de uma identidade cultural
entre os presos, fruto de
experincias adquiridas em momentos anteriores ao ingresso na
priso. O valor social de um
preso, entre os seus companheiros, era muitas vezes,
representado por uma simples tatuagem,
o que poderia tambm indicar uma posio de liderana. Frases ou
desenhos cunhados em seu
prprio corpo revelavam a viso que o prisioneiro tinha da
sociedade. Vocabulrio e gestos
prprios, tambm foram apontados pro Obrien como smbolos de
valores identitrios.
Em 1995 os historiadores Carlos Aguirre e Ricardo Salvatore
organizaram uma
coletnea dedicada histria da penitenciria na Amrica Latina.
Segundo eles os
historiadores latinoamericanos, durante muito tempo,
negligenciaram o estudo das prises
por estarem presos a antigos conceitos e teorias que os impediam
de ver na pesquisa sobre a
priso uma conexo com estudos fascinantes da rea social,
intelectual, histria poltica,
(estado, trabalho, ideologia, conflito social, mulher, famlia).
Alm do mais os historiadores
no consideravam o estudo da priso como sendo crucial para o
entendimento do nosso
passado.14
11
Ibid., p. 303. 12
Ibid. pp.303-304. 13
Patricia OBrien, The prison on the continent, Europe 1865-1965,
in Morris e Rothman (orgs), The Oxford History of the Prison, pp.
178-201. 14
Ricardo Salvatore e Carlos Aguirre (orgs), The Birth of the
Penitentiary in Latin America: Essays on
Criminology, Prison Reform, and Social Control, 1830-1940,
(Austin, University of Texas Press, 1996), p. xi.
-
16
O texto de autoria de Salvatore e Aguirre cobre todo o processo
de implantao das
penitencirias nos pases latinoamericanos, no perodo de 1830 a
1940. Eles mostram o Brasil
como pioneiro, e Cuba como o ltimo pas a tocar uma reforma
prisional, vindo a
penitenciria, neste ltimo, a ser construda somente em
1939.15
Para os autores, a construo
das penitencirias nos pases latinoamericanos pode ser
interpretada como um processo de
modernizao tradicional que no alterou as estruturas sociais
anteriores, formas de
interao racial ou de hierarquia de gnero mas, ao invs disso, as
reforava.16 Os autores
destacam, tambm, que o pioneirismo do Brasil est em ter sido
esse pas o primeiro a
inaugurar uma penitenciria na Amrica Latina, exatamente no Rio
de Janeiro, em 1850, mas
chamam a ateno para o pessimismo que tomou conta dos
reformadores brasileiros no final
do sculo. Pessimismo este vigente no decorrer da segunda metade
do sculo, que teve, dentre
outros fatos geradores, a falta de verba e o uso da penitenciria
para fins contrrios aos
previstos, no momento em que estas se tornaram, tambm, lugares
de aprisionamento e
castigos de escravos.17
Contudo, essas ltimas prticas no se reproduziram na Casa de
Priso
com Trabalho da Bahia, nem tampouco existiam ali os calabouos,
como nas Casas de
Correo do Rio e de So Paulo.
Em outro texto, Salvatore compara a reforma prisional na
Argentina e no Brasil quanto
s suas vises de classe.18
Mesmo tendo com foco principal a criminologia acoplada ao
racismo cientfico que prevaleceram no Brasil no final do sculo
XIX, o autor tambm
abordou a reforma prisional no perodo regencial. Ele observou
que nenhuma das
penitencirias brasileiras correspondeu s expectativas
civilizatrias originais. O regime
escravista teria sido o principal causador desta desiluso, pois
fazia com que a legislao
estabelecesse punies diferentes para homens livres e
escravizados. Para Salvatore, a
priso, usada como uma extenso do poder do senhor, no poderia ser
apresentada como um
instrumento da modernidade.19 questionvel a assero de Salvatore
quando analisa a
priso como extenso do poder do senhor sem levar em considerao
que, na maioria das
vezes, Estado e senhor se encontravam em posies opostas. Muitas
vezes os senhores
evitavam denunciar os crimes dos seus escravos para no terem
prejuzos pois, enquanto
estivesse preso, o escravo no produziria. Uma vez liberado pela
justia, a sua soltura estava
15
Ricardo Salvatore e Carlos Aguirre, The Birth of the
Penitentiary in Latin America: Toward an Interpreative Social
History of Prisons, in Salvatore e Aguirre (orgs), The Birth of the
penitentiary, pp. 1-43. 16
Salvatore e Aguirre (orgs), The Birth of the penitentiary, p.
xii. 17
Salvatore e Aguirre, The Birth of the Penitentiary, p. 9. 18
Ricardo Salvatore, Penitentiares, Visions of Class, and Export
Economies, in Salvatore e Aguirre (orgs), The Birth of the
penitentiary, pp. 194-223. 19
Ibid., p. 200.
-
17
condicionada ao pagamento de uma taxa pelo senhor. Nas penas
mais graves, como de gals
perptua, o prejuzo do senhor era ainda maior e, caso o escravo
fosse perdoado pelo
imperador, ele no retornaria sua antiga condio.
Outra obra sobre o tema uma coletnea tambm organizada por
Ricardo Salvatore e
Carlos Aguirre, alm de Gilbert M. Joseph. Dentre vrios textos
destacamos o de Carlos
Aguirre sobre a priso de Lima, no Peru. Aguirre privilegiou a
viso dos prisioneiros para
estudar a priso, analisando a correspondncia individual e
coletiva dos presos.20
Segundo ele,
muitos trabalhos sobre prises foram escritos sem que os
historiadores se preocupassem em
incorporar as experincias e as vises dos prisioneiros.21
Aspectos como o paternalismo e o
clientelismo, na relao dos presos com as autoridades, so
discutidos pelo autor. Nas
correspondncias de presos, datadas do final do sculo XIX, ele
encontrou um tom carregado
de splica e subservincia que se alterou, no incio do sculo XX,
quando as cartas passaram a
ter um apurado discurso poltico. Na correspondncia dos presos da
Casa de Priso com
Trabalho da Bahia, o tom subserviente tambm foi utilizado como
estratgia para
conquistarem suas reivindicaes junto ao presidente da provncia e
ao chefe de polcia.
A bibliografia brasileira tem poucos estudos sobre a reforma
prisional oitocentista. A
obra mais completa que localizamos a do socilogo Fernando Salla
sobre a reforma
prisional em So Paulo.22
O autor apresenta um panorama das cadeias do antigo regime e
das
penas previstas no Livro V das Ordenaes Filipinas, que antecedeu
o Cdigo Criminal de
1830. O foco central a Casa de Correo de So Paulo, inaugurada em
1852, e a aplicao
das novas idias da reforma prisional. Os africanos livres,
explorados na construo e depois
nos servios internos da penitenciria, ganharam certo destaque na
obra de Salla, assim como
os presos dessa instituio. Ao contrrio da Casa de Priso com
Trabalho, a Casa de Correo
de So Paulo encarcerou e castigou escravos. A resistncia dos
presos foi registrada em
relatos de revoltas, suicdios e castigos. Salla conclui que o
sistema prisional moderno
carregou marcas profundas do antigo regime colonial. Este
trabalho contribuiu muito para esta
dissertao facilitando o nosso entendimento quanto ao significado
da Bahia no processo da
reforma prisional do Brasil no sculo XIX.
20
Carlos Aguirre, Disputed Views of Incarceration in Lima,
1890-1930: The Prisoners Agenda for Prison Reform, in Ricardo
Salvatore, Carlos Aguirre e Gilbert M. Joseph (orgs), Crime and
Punishment in Latin
America: Law and society since late colonial times, (London,
Duke University, 2001), pp.342-367. 21
Ibid., p.342. 22
Fernando Salla, As prises de So Paulo: 1822-1940, So Paulo,
Anablume, 1999.
-
18
Sobre o Rio de Janeiro, destacamos o trabalho de Glucia Pessoa
sobre a Casa de
Correo da Corte.23
O enfoque principal da autora foi a resistncia dos prisioneiros
ao
trabalho nas oficinas, destacando, dentre outras estratgias de
luta, a simulao de doenas o
que nos chamou a ateno para o comportamento semelhante dos
presos da Bahia. Foram
tambm importantes as informaes da autora no que concerne ao
perfil da populao
carcerria da penitenciria, permitindo anlises comparativas com
os presos da Casa de
Priso com Trabalho da Bahia. Ainda sobre o Rio de Janeiro, a
obra de Thomas Holloway
sobre a polcia do Rio de Janeiro contribuiu para o nosso
entendimento da estrutura
organizacional da polcia no sculo XIX, alm de nos fornecer dados
estatsticos da populao
prisional da Corte.24
Por fim, Carlos Eugnio Soares, com o seu estudo sobre a
capoeira, no
Rio de Janeiro oitocentista, nos trouxe importantes contribuies.
A narrativa do autor sobre o
cotidiano dos presos no Arsenal da Marinha, assim como a
interpretao da correspondncia
de prisioneiros livres e escravos reivindicando melhores
condies, complementaram o
entendimento da situao prisional das principais provncias do
Imprio.25
No existem trabalhos historiogrficos sobre a Casa de Priso com
Trabalho da Bahia.
No entanto, outras medidas civilizatrias, adotadas no decorrer
do sculo XIX, tm sido
contempladas pela historiografia baiana. Em meados da dcada de
1830, a inaugurao do
cemitrio do Campo Santo e a proibio dos sepultamentos nas
igrejas inauguraram uma
srie de medidas que buscavam incluir a Bahia nos padres europeus
de modernidade, que
inclua a higienizao das cidades. A reao da populao diante da
obrigatoriedade do uso do
cemitrio afetou antigas tradies fnebres e resultou numa revolta
popular. Esse episdio foi
estudado por Joo Reis em sua obra a Morte uma Festa, publicada
em 1991.26
Nesse pacote civilizador, alm dos cemitrios, estavam tambm as
instituies de
controle social. O asilo, a priso, o orfanato e a escola, do
sculo XIX eram regidos por
normas disciplinares muito parecidas. Segundo Michel Foucault,
se nos fosse apresentado um
regulamento de qualquer instituio do sculo XIX, como o do ano de
1840, e nos
perguntassem se era de uma priso, de um colgio ou de um asilo
seria difcil de adivinhar.27
A obra de Walter Fraga sobre a pobreza na cidade de Salvador,
contemplou o estudo do Asilo
23
Glucia Tomaz de Aquino Pessoa, Trabalho e resistncia na
penitenciria da Corte, 1850-1876, (Dissertao de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 2000). 24
Thomas H. Holloway, Polcia no Rio de Janeiro: represso e
resistncia numa cidade do sculo XIX, Rio de
Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1997. 25
Carlos Eugnio Lbano Soares, A Capoeira Escrava e outras tradies
rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850,
Campinas, Unicamp, 2003. 26
Joo Jos Reis, A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular
no Brasil do sculo XIX, So Paulo,
Companhia das Letras, 1991. 27
Michel Foucault, Prises e Revoltas nas Prises, in Motta (org),
Michel Foucault, p. 74.
-
19
de Mendicidade, inaugurado em 1876. 28
O Asilo So Joo de Deus, destinado aos alienados,
e inaugurado em 1874, teve sua histria e a dos seus internos
discutidas nos trabalhos de Vera
Natlia Silva e Ventia Rios.29
A Casa Pia Colgio de rfo de So Joaquim, fundada no final
do sculo XVIII, tambm mereceu um estudo feito por Alfredo Eurico
Matta.30
Outra
importante instituio foi o Liceu de Artes e Ofcios da Bahia,
estudado por Maria das Graas
de Andrade.31
Esta dissertao tem o objetivo de analisar a instalao da Casa de
Priso com
Trabalho, na Provncia da Bahia, no perodo de 1833 a 1865.
Analisamos as disputas entre os
diferentes grupos da elite da poca, em torno da instalao desta
instituio, enfocando os
debates sobre a escolha do primeiro sistema penitencirio da
Bahia. No perodo de 1861 a
1865, estudamos o perfil dos primeiros presos da instituio alm
de reconstruir, o que nos foi
possvel do cotidiano da penitenciria.
Os dois primeiros captulos tratam do incio da reforma prisional
e o processo de
implantao da penitenciria na Bahia. Para elaborao desta etapa,
centramos nossa
pesquisa nos documentos que revelam as vises das autoridades,
como os relatrios de
presidentes da provncia, a correspondncia entre as autoridades e
um nico relatrio, datado
de 1847, produzido por uma comisso, especialmente constituda
pelo governo da provncia,
que estudou a Casa de Priso com Trabalho e a implantao dos
sistemas penitencirios. As
Atas da Cmara Municipal, o livro de visita das prises, datado de
1829, e a tese mdica do
Dr. Jos Barbosa dOliveira, datada de 1843, que tratou da higiene
das prises de Salvador,
nos ajudaram a revelar a situao prisional da cidade nas dcadas
de 1830 e 1840. Na
segunda etapa, quando a Casa de Priso com Trabalho j estava em
funcionamento, nos anos
de 1861 a 1865, nossa perspectiva de anlise se voltou para os
documentos que nos
informassem sobre o perfil da populao carcerria e sua movimentao
dentro da instituio.
Para isso, procuramos, sempre que possvel, confrontar os
documentos oficiais com os
documentos que refletiam a viso do prisioneiro. A correspondncia
escrita pelos presos ou a
mando destes foi especialmente valorizada, seguida dos ofcios
entre a administrao da
28
Walter Fraga Filho. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do
sculo XIX, Salvador, EDUFBA, 1999, pp.
169-178. 29
Vera Nathlia dos Santos Silva, Equilbrio Distante: a mulher, a
medicina mental e o asilo. Bahia 1874-1912, (Dissertao de Mestrado,
Universidade Federal da Bahia, 2005); Ventia Durando Braga Rios, O
Asylo de So Joo de Deus: as faces da loucura, (Tese de Doutorado,
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2006). 30
Alfredo Eurico Rodrigues Matta, Casa Pia Colgio de rfos de So
Joaquim: de recolhido a assalariado, (Dissertao de Mestrado,
Universidade Federal da Bahia), 1996. 31
Maria das Graas Andrade Leal, A arte de ter um ofcio. O Liceu
das Artes e Ofcios da Bahia - 1872/1977, (Dissertao de Mestrado,
Universidade Federal da Bahia, 1996).
-
20
priso, o chefe de polcia e o presidente da provncia que, muitas
vezes, indiretamente,
tambm registraram a vontade dos presos. A documentao referente s
cadeias e Casa de
Priso com Trabalho, composta de mapa de presos e correspondncia
tratando dos mais
variados assuntos, foram todas examinadas dentro do perodo.
Dividimos a dissertao em quatro captulos. No primeiro captulo,
intitulado As
cadeias da cidade de Salvador e a reforma prisional, discutimos
os acontecimentos que
envolveram a reforma prisional da Bahia. Analisamos as heranas
do encarceramento
colonial, traando um panorama da situao das cadeias, da nova
legislao e, tambm, da
implantao dos sistemas penitencirios da Europa e Estados Unidos
que inspiraram as elites
da Bahia na tarefa de construir a primeira penitenciria da
provncia, que recebeu o nome de
Casa de Priso com Trabalho.
No segundo captulo, A implantao da Casa de Priso com Trabalho,
estudamos
como se deu esse processo, analisando os planos e a retrica das
autoridades e dos estudiosos
envolvidos - mdicos, advogados e engenheiros. Discutimos
aspectos da adaptao da
penitenciria na Bahia, como a dualidade homem livre/escravo na
legislao criminal
brasileira diante das idias penitencirias, fundamentadas nos
princpios de igualdade civil.
Discutimos tambm o trabalho prisional e sua relao com a
mo-de-obra livre e escrava
No terceiro captulo, O perfil dos presos da Casa de Priso com
Trabalho,
apresentamos as caractersticas dos presos transferidos para a
nova instituio entre os anos de
1861 e 1865. Selecionamos 111 prisioneiros, dos quais analisamos
quesitos como sexo, cor,
idade, ocupao, natureza do crime e sentena, que foram
apresentados ao leitor em meio a
fragmentos da histria de vida de alguns deles. Fizemos tambm um
levantamento da
populao carcerria de Salvador com o objetivo de situar o papel
da Casa de Priso com
Trabalho dentro da organizao prisional da cidade.
No quarto captulo, O cotidiano da Casa de Priso com Trabalho:
modelo e
realidade, reconstitumos o que pudemos apurar do cotidiano da
instituio no perodo de
1861 a 1865, contrastando com o modelo de rotina estabelecido
nas leis e regulamentos. No
coube avaliarmos os efeitos das doutrinas penitencirias nos
prisioneiros, uma vez que o
perodo pesquisado no o permitiu. Nossa proposta, neste captulo,
foi entender a priso a
partir da viso dos prisioneiros, conhecer suas condies, lutas e
estratgias de sobrevivncia
num perodo de ruptura com o antigo sistema prisional.
-
21
-
22
CAPTULO 1
AS CADEIAS DA CIDADE DE SALVADOR E A REFORMA PRISIONAL
As prises da cidade de Salvador na primeira metade do sculo
XIX.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, ainda predominava na Bahia o
sistema prisional
instaurado pelos portugueses desde o incio da colonizao. As
primeiras providncias
significativas rumo reforma prisional vieram, sucessivamente,
atravs da Constituio do
Imprio e do Cdigo Criminal. O sentimento antilusitano, que
vigorava no perodo ps-
independncia, aumentou o entusiasmo das elites em reformar a
legislao. Inclusive no que
dizia respeito ao sistema prisional. o que podemos perceber no
trecho abaixo que foi
escrito, em 1832, por uma comisso da Cmara Municipal, responsvel
pelo melhoramento
das prises da cidade de Salvador:
[...] a ideia de atrazo da nossa civilizao , e ainda miservel
aluzo aos principios
brutaes de um governo estupido, e desumano, qual o que pezou
sobre o Brazil ate a
epocha de sua Emancipao Politica, restringi-se a lembrar Camara
Municipal que a
continuao da existencia da Cadeia Publica desta cidade nada
menos importa que a
continuao da corrupo fisica e moral no so dos prezos nella, como
mesmo do resto
dos habitantes[...]1
Antes da reforma prisional a cadeia no tinha o objetivo de
reabilitao nem, havia
preocupao com higiene e separao de presos. O flagelo do corpo do
criminoso era o
conceito de punio. A legislao criminal era regida pelo Livro V
das Ordenaes Filipinas,
base legal de todo o Imprio Luso, que estabelecia as penas e
castigos a serem aplicados.2 As
Ordenaes vigoraram por todo o perodo colonial at a promulgao do
Cdigo Criminal, em
1830. De acordo com a Legislao Filipina a priso servia para o
condenado aguardar outros
tipos de pena, como a morte, aoite, degredo, etc; ou tambm
quando se estipulava uma multa
para um determinado delito, mantinha-se o condenado preso para
garantir o pagamento.3 No
1Arquivo Municipal de Salvador (AMS), Pareceres de Comisses,
Relatrio para o presidente e membros da
Cmara Municipal de Salvador, ( 29/01/1832). 2 Constituio Poltica
do Imprio do Brazil, ttulo 8, artigo 179, pargrafos, 18, 19 e 21,
in Colleo das Leis
do Imprio do Brazil de 1824, Rio de Janeiro, Typografia
Nacional, 1878. Sobre as Ordenaes Filipinas ver
Silvia Hunold Lara. (org), Ordenaes Filipinas: livro V, So
Paulo, Companhia das Letras, 1999, ver tambm
Thomas H. Holloway, Polcia no Rio de Janeiro: represso e
resistncia numa cidade do sculo XIX, Rio de
Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1997, p.44. 3 Fernando Salla A. O
Encarceramento de So Paulo: das enxovias Penitenciria do
Estado,(Tese de
doutorado em Sociologia, Universidade de So Paulo), 1997,
p.20.
-
23
tempo das Ordenaes Filipinas era muito comum a condio social do
infrator interferir no
tipo de pena que lhe seria aplicada.
O mesmo crime poderia ser punido, portanto, de formas distintas:
se o indivduo era
peo ou escravo poderia ser recolhido priso, pagar multa ou ainda
ser aoitado ou
condenado morte. Porm se fosse um indivduo de maior condio
pagava apenas a multa ou ento era degredado para o Brasil ou
frica.
4
No antigo sistema colonial, as cadeias se localizavam nos
centros urbanos; se
integrando ao cotidiano da cidade, facilitando a interao do
preso com o mundo exterior.
Essa era uma situao comum em todo o Imprio. No Rio de Janeiro, a
Cadeia Pblica tinha
suas grades voltadas para a rua, o que mostrava aos passantes a
terrvel situao em que se
encontravam os prisioneiros.5 Essa interao proporcionava as mais
diferentes relaes entre
os presos e os passantes como, por exemplo, na Corte, onde as
negras quitandeiras
costumavam vender os seus quitutes para os prisioneiros. 6
Em So Paulo a construo de
uma calada de pedra que rodeava a cadeia pblica proporcionou
maior conforto aos
visitantes dos prisioneiros que viviam, como de praxe,
dependurados s grades das suas
enxovias a conversar com parentes e amigos[...]7 Na Bahia esse
contato foi registrado na
cadeia da Relao quando o boticrio Joo Ladislau de Figueiredo
Mello conversava da rua
com o amigo encarcerado, [Cipriano Barata] separados pelas
grades e sob a vista do
carcereiro que olhava da janela.8
As esmolas dos passantes que se sensibilizavam com esse srdido
espetculo
ajudavam os presos a sobreviverem. Por outro lado, aqueles que
podiam contar com a ajuda
de amigos e parentes tinham a alimentao e a vestimenta
garantidas. O poder pblico era
conivente com a ajuda da populao, pois apenas fornecia alimentao
e roupas para aqueles
que no podiam contar com ningum e que por algum motivo estavam
impossibilitado de
trabalhar. Eram os chamados presos pobres. Para aliment-los, o
governo mantinha um
contrato com a Santa Casa da Misericrdia, que fornecia a
alimentao nas cadeias pblicas
4 Ibid., p.21.
5 Carlos Eduardo Moreira Arajo, O duplo Cativeiro: escravido
urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro,
1790 1821, (Dissertao de mestrado em Historia Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004), p. 46. 6 Em 1841 uma
representao de presos da Casa de Correo da Corte, que se encontrava
em construo, citava
que as negras quitandeiras vendiam alimentos para eles atravs
das grades, Carlos Eugnio Lbano Soares, A
Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de
Janeiro,1808-1850, Campinas, Editora da Unicamp,
2003. p. 395. 7 Affonso de E.Taunay, Historia Social da Cidade
de So Paulo no sculo XIX ,1801-1822, So Paulo, Depto. de
Cultura, Vol.3, p.237, apud. Salla, O encarceramento, p.24. 8
Marco Morel, Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade, Salvador,
Academia de Letras da Bahia;
Assemblia legislativa do Estado da Bahia, 2001, p.78.
-
24
da cidade. A m qualidade da comida da Santa Casa tema constante
na documentao
pesquisada. Seja em representaes de presos s autoridades, seja
na documentao do
governo.9
Alm do contato com as visitas o preso tinha a possibilidade de
circular por outros
ambientes, quando era obrigado a desempenhar trabalhos
pblicos.10
Eram servios,
geralmente desempenhados pelos presos condenados a pena de gals,
que trabalhavam
acorrentados uns aos outros carregando gua, desempenhando
servios de pedreiro ou at
mesmo retirando formigas de lugares pblicos e particulares, como
aconteceu em So Paulo.11
Para o Rio de Janeiro, Carlos Eugnio descreve as vrias
modalidades de trabalhos forados e
formas de acorrentamento a que os presos, escravos ou no, eram
submetidos no Dique da
Ilha de Cobras. Uma dessas formas era o libambo - quando trs ou
mais escravos, unidos por
uma corrente, buscavam gua para garantir o abastecimento da
Ilha.12
Apesar da brutalidade
a que estavam sujeitos, os presos tinham um certo contato com a
cidade. Seja trabalhando,
conversando com familiares ou comprando alimentos das
quitandeiras, eles reproduziam
costumes seculares que, mais tarde, os levariam a resistir
submisso das novas regras que
seriam impostas pela instituio penitenciria.
Fernando Salla, em seu estudo sobre as prises de So Paulo,
observou que essa
interao do preso com o mundo do lado de fora da priso vestia a
Cadeia de um significado
distinto daquele que viria a ter, algumas dcadas depois, com a
Casa de Correo.13 O novo
significado a que Salla se referiu decorre de uma nova
interpretao do conceito de priso e
de punio que moveu os debates em vrios pases. O Brasil, embora
com atraso, estava
acompanhando uma tendncia mundial, que buscava reestruturar o
aparelho prisional. Sobre
esse novo significado da priso, Michelle Perrot escreveu que no
final do sculo XIX,
9 Arquivo da Santa Casa de Misericrdia da Bahia (ASCMB), Livro
de Registros n 09/ A-93 Fl. 30,
Requerimento para o Governo da Provncia Cobrando pagamento
referente ao contrato de sustento dos presos,
Em 1833 o contrato de sustento dos presos entre a Santa Casa da
Misericrdia e o Governo da Provncia custava aos cofres pblicos doze
conto de reis annuaes. Numa ocasio, em que os presos das cadeias do
Barbalho e da Correo reclamaram ao chefe de polcia da pssima
qualidade da comida da Santa Casa, o
mordomo desta instituio alegou que os presos pobres tem o
costume de representar contra a Santa Casa toda vez que sabem que
ha novo Presidente ou novo Chefe de Policia, preparando at para
isso, com reconhecida m
f raes [ilegvel], e que lhes no so fornecidas, como por vezes se
ha verificado, ASCMB, Livro de Registros n 9 / A-93 F. 210-211,
Mordomo para o chefe de polcia Polycarpio Lopes de Leo,
(08/06/1858). 10
Inicialmente, as Ordenaes Filipinas determinavam que o condenado
a gals fosse remetido s embarcaes
para remar. Posteriormente essa pena foi comutada para trabalhos
forados em obras pblicas. Salla, O encarceramento, p.39. No
confundir trabalhos forados com pena de priso com trabalho, cuja
diferena ser abordada ainda neste captulo quando tratarmos da
legislao. 11
Sobre os trabalhos forados em So Paulo ver Salla, O
Encarceramento, p.26. 12
Para saber mais sobre o libambo ver Soares, A Capoeira Escrava,
pp.258-259. 13
Salla, O Encarceramento, p.25.
-
25
coberta de lei, cercada de muros, ela [ a priso] se fecha cada
vez mais. A ela no se escapa,
assim como dela no se evade.14
Apesar da nova Legislao, que teve incio nos primeiros anos da
dcada de 1820, as
mudanas no aparelho prisional aconteceram muito lentamente. Nas
cadeias da cidade de
Salvador, somente na dcada de 1840 comearam a ser perceptveis
algumas mudanas.
Atendendo Lei Imperial de 1828 a Cmara de Salvador constituiu
uma comisso de visitas
s prises e aos estabelecimentos pios cuja comisso teria o
objetivo de informar s
autoridades a situao em que se encontravam as cadeias, alm de
sugerir os devidos
melhoramentos.15
Essa era uma medida complementar ao artigo 179 da Constituio
do
Imprio, que previa melhores condies para as cadeias.16
Em Salvador, a primeira comisso
de visitas foi formada em 1829. As outras de que temos notcia so
do ano de 1832 e 1833. 17
Entre os membros da primeira comisso estavam Antonio Pereira
Rebouas, poltico,
advogado, combatente da causa da independncia e pai do
abolicionista Andr Rebouas;
Manoel Maria do Amaral, advogado, o qual, em 1864 governou a
provncia, na qualidade de
vice-presidente. Da comisso de 1832, fazia parte o mdico Manoel
Maurcio Rebouas,
professor da Faculdade de Medicina da Bahia e irmo de Antonio
Pereira Rebouas. Este
ltimo, esteve tambm envolvido com os estudos sobre a teoria dos
miasmas, muito em voga
na poca, quando o projeto civilizador buscava, entre outras
medidas, higienizar a morte,
pleiteando o enterro dos mortos nos cemitrios.18
Inspecionar e propor mudanas nas cadeias
da cidade fazia parte desse projeto que tomou conta da
municipalidade, aps a lei de 28 de
14
Michelle Perrot, Os excludos da histria, p.241. 15
Brasil, Lei de 1 de outubro de 1828, D nova forma s Camaras
Municipaes, marca suas atribuies, e o processo para a sua eleio, e
dos Juizes de Paz, Esta lei tambm estabeleceu que todos os assuntos
relacionados manuteno e construo das prises, assim como aqueles
relacionados aos presos, fossem de
responsabilidade das Cmaras Municipais e que todos os municpios
do Imprio deveriam constituir as
comisses de visitas. Sobre essa lei e sua relao com o projeto
liberal civilizatrio e higienizador em Salvador,
ver Joo Jos Reis, A morte uma festa: ritos fnebres e revolta
popular no Brasil do sculo XIX, So Paulo,
Companhia das Letras, 1991, pp.275-276. 16
As Cadas sero seguras, limpas, bem arejadas, havendo diversas
casas para separao dos Ros, conforme suas circumstancias, e
natureza dos seus crimes. Constituio poltica do Imprio do
Brazil,op. cit., ttulo 8 pargrafo 21. 17
AMS, Cmara, Atas e mais objetos da comisso de visita das prises
civis e militares, 1829; AMS, Cmara,
Pareceres de Comisses. Apenas a documentao produzida pela
comisso de 1829 encontra-se completa. A de
1832 grande parte foi localizada, j a de 1833 localizamos
algumas pginas do relatrio. A primeira comisso
constituda em 1829 era composta pelos seguintes membros: Gervsio
de Souza Vieira; Joo Duarte Silva Uziel;
Antonio Pereira Rebouas; Francisco Manoel Gonalves da Cunha;
Francisco de Paulo de Araujo e Almeida e
Manoel Maria do Amaral. A comisso de 1832 tinha como membros Joo
Joaquim da Silva, Joaquim Jos da
Rocha Bastos, Luis Tavares de Macedo e Francisco da Silva
Az[eved]o da RoxaVieira. A comisso de 1833 era
constituda por Manoel Maurcio Rebouas, Lucio Pereira de Azevedo,
Athanazio da Silva Couto, Joo Antonio
Monteiro e Joo Alexandre de Andrade Silva e Freitas. A composio
desta ltima comisso consta na obra de
Joo Jos Barboza d' Oliveira, As prises do paiz, o systema
penitencial, ou hygiene penal. These apresentada, e
sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia, em 11 de
dezembro de 1843, Bahia, Typ. de L.A. Portella
e Companhia, 1843. Sobre Manoel Maurcio Rebouas ver Reis, A
morte, p. 255-256. 18
Sobre a proibio dos sepultamentos na Igreja e a implantao do
cemitrio, ver Reis, A morte.
-
26
outubro de 1828. As cadeias eram tidas como lugares insalubres e
propcios para a
proliferao de doenas. Mdicos, advogados, alm dos engenheiros,
estiveram presentes nas
questes pblicas durante o sculo XIX, e, com a reforma prisional
no foi diferente.
Conseguimos levantar informaes sobre a condio das cadeias da
Capital graas aos
relatrios, elaborados por estas comisses que estiveram nas
prises religiosas, militares e
civis. Esses pareceres nos proporcionam uma viso do estado em
que se encontrava o antigo
sistema prisional, quando a nova legislao comeava a entrar em
vigor. Alm dos escritos
das comisses mencionadas, utilizaremos os relatos de visita do
Dr. Joo Jos Barbosa
dOliveira que publicou suas impresses na sua tese de
doutoramento sobre a higiene das
cadeias, apresentada a Faculdade de Medicina de Salvador em
1843.
Nestes pareceres, nos deparamos com as prises eclesistica e a
dos Conventos dos
Regulares, ou seja, das Ordens Religiosas. Devido peculiaridade
dessas instituies
religiosas, preciso trat-las com especial ateno, uma vez que as
leis que julgavam os
membros da Igreja no eram as mesmas, utilizadas pelo poder
laico, e sim aquelas escritas nas
Constituies Primeiras do Arcebispado. A priso do Clero,
conhecida como Aljube, foi
construda no sculo XVIII por ordem do arcebispo Jos Botelho de
Mattos. Para l eram
enviados os diocesanos e os cristos leigos que cometiam
delitos.19
Neste caso o exerccio da
lei cabia ao Arcebispo, e Bispos, e seus Vigarios Geraes.20
Funcionou at o ano de 1833
quando foi desativada e alugada ao Governo da Provncia que
passou a utiliz-la como priso
civil at o ano de 1861, ocasio em que o prdio foi devolvido
Igreja.21
A desativao da priso religiosa do Aljube em 1833 foi decorrente
de mudanas que
j vinham ocorrendo no Governo Eclesistico, desde as lutas pela
Independncia. Com a
19
Aljube, do rabe al-jubb significa cisterna, poo. Priso de
padres, crcere de foro eclesistico, caverna, gruta,
Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionrio, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p.71.
interessante a atribuio do nome Aljube para uma cadeia se
atentarmos para a interpretao de Thereza
Baumaan: [...] o poo tem um peso simblico expressivo, representa
uma via de comunicao entre a terra e o cu e, inclusive, com a vida
do alm-tmulo [..]. Entre os hebreus o signo da abundncia, a fonte
da vida [...].
Mas, ao mesmo tempo, a imagem do abismo, das profundezas [...],
Thereza de B. Baumann, Da iconografia, da loucura, da histria, in
Revista de Histria Regional, vol.2, n1 (1997), p.16. Em Salvador o
Aljube localizava-se no p da ladeira que tomava o mesmo nome. A
priso do Aljube tambm existia em outras
provncias como o Rio de Janeiro e Sergipe com data de fundao
anterior de Salvador. Em So Paulo, em
1818, foi reservado um cmodo da cadeia da Relao, que recebeu o
nome de Aljube, para servir de priso aos
religiosos, Salla, O encarceramento, p.25. 20
Arquivo da Cria Metropolitana de Salvador (ACMS), Constituies
Primeiras do Arcebispado, feitas e
ordenadas pelo [...] Senhor D. Sebastio Monteiro da Vide [...]
propostas e aceitas em Synodo Diocesano que o
dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707, So Paulo,
Typ. 2 de dezembro, 1853, p.59. Ver tambm
Captulo II, 22- Modos de proceder nos feitos crimes, pp.59-63.
21
Cndido da Costa e Silva, Os Segadores e a messe: o clero
oitocentista na Bahia. Salvador, SCT, EDUFBA,
2000, pp. 131-132 e 180; ACMS, Gabinete Archiepiscopal, Conde de
S. Salvador, Correspondncia da Bahia,
Livro VII 1861863, Presidente da Provncia Antonio C. de S e
Albuquerque para o Arcebispo, (03/03/1863). Agradeo a Ventia
Durando Braga Rios pela indicao deste documento.
-
27
organizao do Estado Nacional aps a Independncia, entrou em
colapso o poder repressor
da Igreja.22 muito comum relacionarmos as transformaes do
Governo Eclesistico com
o advento da Repblica, porm j podemos notar mudanas nas
estruturas do poder clerical
desde a Independncia do Brasil.
As inspees feitas pela Cmara Municipal, no Aljube, em 1829,
enquanto este
funcionava como priso de clrigos, demonstraram que as suas
condies eram boas. Porm
mereceu reprovao dessa mesma comisso o fato do andar trreo
servir como residncia, o
que poderia proporcionar meios de ivasiva de algum preso alm da
fumaa da cozinha da
casa que subia para as celas.23
A comisso de 1832 tambm considerou o Aljube como uma
boa prizo mas sugeriu que fossem tiradas as privadas de dentro
das celas.24
O restante das prises religiosas visitadas pela comisso de 1829
era dos conventos
dos regulares. Neste caso eram os seus dirigentes quem aplicavam
a lei expressa nas
Constituies Primeiras, enviando para os crceres da instituio os
religiosos ou religiosas
que infringiam as regras . O crcere dos Religiosos Carmelitas
Calados foi considerado
bastante rigoroso, embora os visitadores tenham recebido a
notcia de que o mesmo estivesse
em desuso. J o Crcere do Convento de So Francisco foi
considerado pela comisso de
1829 apenas como soffrivel. A comisso de 1832, porm,
considerou-o espaoso e bom,
mas aterrador por possuir apenas uma porta de ferro hasteada com
uma pequena janela, o
que fez a comisso acreditar que os presos dali ficavam
incomunicveis. O crcere dos
monges beneditinos obteve uma boa avaliao.
O arcebispo no permitiu que todas as prises fossem visitadas, o
que, provavelmente,
demonstrava reprovao da Igreja interferncia do poder laico em
seus negcios. Os
crceres que tiveram o acesso negado foram os do convento da
Soledade, da Lapa, das
Mercs e do Recolhimento dos Perdes. A comisso de 1829 acatou a
proibio do Arcebispo
e justificou no relatrio no estar de sua parte remover obstculos
que lhe oppoz o Gov[ern]
Eccl[esistic] .25
As prises religiosas tiveram uma boa avaliao da primeira comisso
de visitas em
1829. A segunda comisso, de 1832, avaliou que as condies das
prises da Igreja eram
soffriveis, ou seja, razoveis, e encerrou o seu relatrio
declarando que na maior parte dos
conventos os seos Prelados ou preladas, asseveraro a comisso que
os religiosos ou
22
Silva, Os Segadores e a messe, p.131. 23
AMS, Atas e mais objetos da comisso, op. cit., f. 16r. 24
AMS, Pareceres de comisses, Relatrio, (29/01/1832). 25
AMS, Atas e mais objetos da comisso, op. cit., f. 16v.
-
28
religiosas ero sempre detidos em suas sellas ou cubculos.26Em
outras palavras, informava
que os religiosos eram punidos em seus prprios aposentos,
dispensando o uso das prises, o
que parece contraditrio com o que acabamos de expor.27
Uma vez que a pesquisa no
encontrou outros relatrios de visitas podemos interpretar, com
base naqueles que acabamos
de expor, que no interessava s comisses da Cmara Municipal
denunciar possveis
irregularidades encontradas nas prises da Igreja e, com isso, se
indispor com o arcebispo.
Afinal o governo eclesistico j havia afirmado o seu poder,
impondo limites, ao impedir que
algumas de suas prises fossem vistoriadas.
Passemos agora a tratar das prises militares, que no eram
poucas, at mesmo pela
grande quantidade de fortalezas existentes em Salvador.
Diferente das prises religiosas, as
prises militares, em sua maioria, foram consideradas imprprias
para receberem presos.
Mesmo assim eram, aparentemente, melhores do que as prises
civis, das quais falaremos
adiante. Nas fortalezas e nos quartis se localizavam os terrveis
calabouos; lugares midos,
sem iluminao e com pouco ar.28
A priso da fortaleza do Barbalho, que j havia funcionado
como priso de soldados, servia na poca das visitas como priso de
recrutas, lembrando que,
em 1845, essa fortaleza passaria a funcionar como priso civil,
substituindo a cadeia da
Relao.29
A priso do forte de Santo Antnio Alm do Carmo estava desativada,
porm a
comisso de 1829 observou que ali estava proporcionado para uma
boa Casa de Correo.
Pelo menos esta recomendao foi atendida, pois em 1832 j
funcionava ali a Casa de
Correo, que inicialmente foi pensada em servir interinamente
como priso para
condenados a pena de priso com trabalho mas acabou tendo a funo
de deteno at
provavelmente o incio do sculo XX.30
A priso do forte da Jequitaia encontrava-se
26
AMS, Relatrio,(29/01/1832), op.cit., Celas ou cubculos eram
tambm o nome dados ao quarto dos religiosos
e religiosas. Prelados ou Preladas eram os dirigentes dos
Conventos. 27
Sou grata a Cndido da Costa e Silva e Ventia Durando Braga Rios
pelos comentrios referente aos assuntos
eclesisticos discutidos neste captulo. 28
Calabouos, palavra originada do espanhol, calabozo, Priso
subterrnea, crcere. No sentido figurativo lugar mido, sombrio,
Ferreira, Novo dicionrio, p. 253. Para Fernando Salla o calabouo
consistia num espao ou num conjunto de celas destinadas priso
correcional dos escravos [...]. Segundo o autor, o calabouo
da Casa de Correo de So Paulo foi criado exclusivamente para
recolhimento de escravos, Salla, O encarceramento, p.86. Em 16 de
novembro de 1693 um alvar rgio mandou construir, no Rio de Janeiro,
junto ao Arsenal do Exrcito, no morro do Castelo, um calabouo ou
casa pblica para castigo dos escravos. Na Casa de Correo do Rio de
Janeiro, em 1840, foi construdo um calabouo, Clvis Moura, Dicionrio
da
Escravido Negra no Brasil, So Paulo: Edusp, 2004, p. 79. Para a
Bahia, encontramos calabouos somente nas
fortalezas e nos quartis, servindo de priso para escravos,
militares e civis livres, no estando claro na
documentao se eles ficavam no subterrneo. Tambm no encontramos
indcios sobre a existncia de
calabouos na Casa de Priso com Trabalho da Bahia. 29
Arquivo Pblico do Estado da Bahia (APEBa), Presidncia da
Provncia, Cmara de Salvador, 1843-1846,
mao 1399, Cmara da capital da provncia da Bahia, ano de 1845.
30
No podemos precisar at que ano do sculo XX o forte de Santo
Antnio Alm do Carmo funcionou como
Cadeia de Correo. Porm temos notcia que em 1908 ela estava em
atividade com esse mesmo nome. Octavio
Torres, A cidade do Salvador perante a hygiene, Tese apresentada
Faculdade de Medicina da Bahia, Bahia,
-
29
desativada mas a comisso da Cmara Municipal, de 1829, encontrou
no local
trabalhadores forados que era utilizados na construo de um
canal. Provavelmente eram
presos condenados a gals executando servios pblicos. Outras
prises visitadas foram a do
Trem Militar ou quartel dos Aflitos, tambm conhecido como Casa
do Trem, a do Forte de
So Pedro, do 15 Batalho, do 20 Batalho, o 2 Batalho e uma outra
especificada apenas
como sendo da Polcia, onde a comisso notou que estivessem
confundidos alguns forados
das gals, soldados, paisanos em custdia, e escravos e at que ali
existisse tambm um
tronco.31
Sobre a fortaleza do Mar, a comisso constatou em 1829 que as
celas ficavam nas
abbadas do Forte com execepo de cinco destinadas a officiais,
que foram declaradas
muito quentes.32
Todas as outras eram escuras, com pouco ar e extremamente midas.
Em
1832 a outra comisso confirmou as pssimas condies, declarando
ser essas celas
destruidoras das vidas dos encarcerados.33 No incio da dcada de
1840, o mdico Joo Jos
Barbosa dOliveira nos forneceu uma descrio informando-nos que
essas abbadas eram em
nmero de quatorze, sendo uma delas mais ampla, com 36,5m de
comprimento por 1,82 m de
largura. Esta tambm seria a pior delas por ser muito mida, suja,
baixa e o ar que lhe entra
pouco, porque vem-lhe s pela porta de frestas; e sendo como as
demais, rodeada de uma
cinta de muros, que pouco espao no meio deixa. Ainda segundo o
seu testemunho, os
ardentes e brilhantes raios de sol, que as alumia sim, porem que
as torra de calor. Quanto s
outras treze, eram de menor tamanho, em situao precria, e com
portas duplas e paredes
grossas o que levou o Dr Barbosa consider-las segurissimas.34 O
que tambm garantia a
segurana dessa fortaleza era o fato da mesma estar rodeada pelo
mar. Em vrios momentos
da dcada de 1830, as atenes das autoridades da provncia
estiveram voltadas para o forte
do Mar. Remetido da priso do Rio de Janeiro, em 1832, Cipriano
Barata, aos 70 anos, passou
a compor o quadro de prisioneiros dessa fortaleza. Em 1833,
presos polticos, com a ajuda da
guarnio, desencadearam a segunda revolta dos federalistas. Entre
as propostas dos
revoltosos, alm de benefcios aos presos polticos, os presos
comuns tambm foram
lembrados ao sugerirem a reforma do Cdigo Criminal de 1830. Os
liberalistas tambm
Typ. Moderna, 1908. Quanto Casa de Correo do Santo Antonio
servir, interinamente, para condenados a
pena de priso com trabalho, ver APEBa, Cmara da capital da
provncia da Bahia, ano de 1845, op.cit. 31
AMS, Atas e mais objetos da comisso, op. cit., fl. 16r. 32
Ibid., fls. 15-16. 33
AMS, Relatrio, (29/01/1832), op. cit. 34
Oliveira, As prises do paiz, p. 27.
-
30
pediram o fim dos navios-prises, conhecidos como presigangas, da
qual trataremos adiante.35
Mesmo sendo priso militar, em 1835 foram aprisionados ali cerca
de 120 africanos, entre
escravos e libertos, vtimas da represso policial aps o Levante
dos Mals.36
Finalmente, a priso do Arsenal da Marinha, que teve um papel
significativo no
perodo colonial e imperial, pelo grande nmero de escravos e
livres que cumpriam,ali, a
pena de gals. Na visita, novamente foi encontrado um tronco,
instrumento de tortura, o
que a comisso declarou ter visto com estranheza. Talvez devido a
Constituio do Imprio
ter proibido os aoites e demais torturas. Afinal era para
denunciar este tipo de infrao que
as visitas eram realizadas. provvel que a partir do ano seguinte
a comisso deixasse de ver
com estranheza esse tipo de achado, uma vez que o Cdigo Criminal
iria legalizar as torturas
para os escravos, conforme trataremos ainda neste captulo. J o
Dr. Barbosa, em 1843,
considerou a priso do Arsenal da Marinha como sendo a menos
ruim. Segundo ele a
denominada dos gals [priso do Arsenal] muito melhor que todas as
civis: esses
captivos, com traserem a calcta da ignominia, vivem vida menos
desgraada; porque alem de
haverem alimentos para duas veses ao dia, no local ha mais
hygiene. Ainda existia no
Arsenal um quartinho por baixo de uma escada onde os marinheiros
ingleses eram detidos
a mando do seu cnsul. Tal cmodo que comportava apenas uma
pessoa, era privado de ar e
com buracos pelo cho em meio imundcie.37
Como podemos constatar, era terrvel a situao do sistema
prisional da provncia. Ao
que parece, a Constituio no intimidou os torturadores, que
mantiveram os troncos nas
dependncias das prises, nem houve iniciativa de mudana com relao
separao entre os
presos sentenciados e os detidos. As prises militares foram
consideradas insalubres, escuras
e responsveis pela morte de muitos presos. Abaixo podemos
acompanhar a descrio do
calabouo do 10 Batalho militar registrado pela comisso de
1832.38
[...] a vista do qual a dor se misturava com a indignao. Elle [
o calabouo] consistia
em uma spelunca tenebrosa, onde tudo era immundice, tudo nojo; a
especie humana
parecia ter degenerado!! Por isso oficiou immediatam[ent]e ao
Exm. Presidente da
35
Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante
dos Mals em 1835, Edio Revista e
Ampliada. So Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.60. 36
Sobre a revolta federalista e a priso dos africanos ver, Reis,
Rebelio escrava, pp. 57-67 e p.435; ver tambm
Morel, Cipriano Barata, 282-284. 37
AMS, Atas e mais objetos da comisso, op. cit., fl. 26r. 38
Tudo indica que esse batalho se localizava no Quartel da Palma,
Relatrio em que o excelentssimo senhor
desembargador Antonio Joaquim da Silva Gomes, presidente da
Bahia, entregou a administrao da provncia
ao seu sucessor. o excelentssimo senhor Luiz Antonio Barboza D
Almeida, em 5 de novembro de 1864, Bahia: Typografhia Poggeti de
Tourinho e C., 1864, p. 11.
-
31
Provncia que deregindo-se ao Comman[dant]e de Armas, consta
Comisso, fizera
mudar aquele inferno dos vivos!39
Se realmente o calabouo do 10 Batalho foi mudado ou interditado
no pudemos
saber. Porm, segundo o Dr. Barbosa, em 1843, muitos calabouos
estavam desativados,
estando em funcionamento os da fortaleza do Mar, os do quartel
da Palma, da Mouraria, da
Cavalaria, da Cavalaria Policial, do Trem dos Aflitos e do
batalho dos Artfices. A fortaleza
de So Pedro estava com suas trs prises, horrendamente escuras e
muito calorosas,
ocupadas. Uma delas, onde se encontravam 11 soldados mal
vestidos, de camisa e calas
sujas, num banho de suor, era muito baixa com aproximadamente
5,5 metros de largura e 11
de comprimento. Tinha o cho sujo, o ar impregnado pela latrina
asquerosa e putrida e
quase sem iluminao. 40
Uma vez que j nos ocupamos das prises religiosas e militares,
passaremos a tratar
das prises civis, as quais esto mais relacionadas com a proposta
desse trabalho. No perodo
de 1829 a 1855, as prises mais movimentadas da Cidade de
Salvador eram a do Aljube,
atuando como priso civil a partir de 1833, e a Cadeia Pblica da
Cidade ou Cadeia da
Relao, que funcionava no subsolo da Cmara Municipal. A primeira
comisso de visitas
registrou, em 1829, um levantamento dos presos na cidade de
Salvador. Essas informaes
foram extradas do caderno do carcereiro desta Cidade, o que nos
leva a supor que a
Cadeia da Relao tivesse sido o espao de observao j que, naquele
momento, esta era a
nica cadeia civil em Salvador de que temos notcia. Aps
examinarmos os dados referente a
gnero, profisso e tipos de crime, chegamos a um resultado que no
se harmoniza com o
total apresentado pelos membros da comisso, porm ainda
possibilita traar um perfil da
populao em estudo.
Embora o relatrio apresente um total de 322 prisioneiros, a
classificao apresentada
foi elaborada a partir de outros totais, a saber: de 306 presos,
91% eram homens e 30% eram
escravos. Passando agora a considerar um total de 308 presos, os
casados constituam apenas
31%. Quanto natureza dos crimes, a comisso classificou o motivo
da priso de 308
prisioneiros, sendo que os crimes de morte compunham 36%, furto
19%, moeda falsa outros
19%. Os crimes considerados leves perfaziam 4%, diversos crimes
11% e aqueles sem
declarao constituam 10%.
39
AMS, Relatrio, (29/01/1832), op.cit., Descrio do extinto Batalho
n 10. 40
Oliveira, As prises do paiz, p. 25; Segundo Aurlio Buarque de
Holanda, sentina significa latrina, lugar muito
sujo, o poro das gals.
-
32
Ao que parece o caderno do carcereiro no era muito organizado,
pois ao mencionar as
profisses, apenas 280 presos foram considerados, a saber:
roceiros e lavradores constituam
21%; embarcadios 3%; pescadores 1%; proprietrios 1%; negcio 7%;
diversos ofcios 17%
e sem declarao 50%. provvel que ao considerar as profisses de
280 presos o carcereiro
tenha excludo as mulheres, que eram em nmero de 29, e caso
fossem acrescentadas o total
passaria a ser de 309, aproximando-se assim dos 306 presos
informados acima. Quanto
faixa etria, apenas 182 presos foram contabilizados, sendo que
deste total 8% eram de
Rapazes e Raparigasat 20 anos; aqueles de idade entre 20 e 50
anos compunham 77% e os
que foram considerados apenas como velhos perfaziam uma total de
14%. Uma ltima
informao foi sobre o ano de ingresso de alguns presos. Desta vez
o carcereiro anotou, em
seu caderno, um total de 252 presos, entre os quais 12% deram
entrada entre os anos de 1817
e 1826, 77% entre os anos de 1827 e 1829 e 11% foram
considerados sem essa informao.41
Esses ltimos nmeros revelam que a maioria dos presos estava h
pouco tempo na cadeia, o
que uma das caractersticas da priso antes do Cdigo Criminal
entrar em vigor. Nesta
poca a cadeia no tinha uma funo asilar como viria a ter aps a
reforma, ou seja, no
existia um processo de internamento do preso com um conjunto de
normas disciplinares que
visasse sua recuperao e posterior reinsero na sociedade.
Como j vimos, tudo indica que essa populao carcerria se
encontrava na Cadeia da
Relao nas dependncias do prdio da Cmara Municipal. Ela era
composta por vrias
divises: enxovia dos homens, prises das mulheres, entre-portas,
priso do oratrio, sala
livre, sala fechada e priso do sto. Em 1829, a comisso encontrou
essa cadeia no estado
o mais immundo, resultado sem dvida do mais apatico desleixo e
cruel indifferena [...]. A
enx