Top Banner

of 89

A Campanha de Canudos.txt

Mar 02, 2016

Download

Documents

Fabio Pereira
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • Conselho E ditorial Edies Eletrnicas

    A Campanha de Canudos

    Aristides A. Milton

    Biblioteca Bsica Classicos da Poltica Memria Brasileira Brasil 500 anos O Brasil Visto por Estrangeiros Para visualizar esta obra necessrio o acrobat reader 4.0. Se voc no possui esta verso instalada em seu computador, clique aqui, para fazer o download. Em pleno serto da Bahia, junto ao rio Vaza-Barris, no vilarejo de Canudos, que crescerarapidamente dia e noite, em 1897, se concentravam os sertanejos aguerridos, afeitos s duras penasde viver junto a uma natureza agressiva... (Olmpio de Sousa Andrade, in Introduo a Canudos eOutros Temas.) Pgina anterior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    A CAMPANHA DE CANUDOS Mesa Diretora Bi nio 2003/2004

    Senador Jos Sarney Presidente

    Senador Paulo Paim Senador Eduardo Siqueira Campos 1 Vice-Presidente 2 Vice-Presidente

    Senador Romeu Tuma Senador Alberto Silva 1 Secretrio 2 Secretrio Senador Herclito Fortes Senador Srgio Zambiasi 3 Secretrio 4 Secretrio

    Suplentes de Secretrio

  • Senador Joo Alberto Souza Se na dora Serys Slhes sa ren koSenador Geraldo Mesquita Jnior Senador Marcelo Crivella

    Conselho Editorial

    Senador Jos Sarney Jo a quim Cam pe lo Mar ques Presidente Vice-Presidente

    Conselheiros Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga Joo Almino Ra i mun do Pon tes Cunha Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Edies do Senado Fe deral Vol. 5

    A CAMPANHA DE CANUDOS

    Aristides A. Milton

    Braslia 2003 EDIES DO SENADO FEDERAL Vol. 5 O Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997, buscar editar, sempre, obras de valor histrico e cultural e de importncia relevante para a com preenso da hist riapoltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do pas.

    Projeto Gr fi co: Achil les Mi lan Neto Senado Federal, 2003Congresso NacionalPraa dos Trs Poderes s/n CEP 70168-970 Braslia [email protected]://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm...........................................................

    Mil ton, Aris ti des Au gus to. A Campanha de Ca nu dos / Aristides A. Milton -- Braslia : Se na do Fe de ral, Conselho Editorial, 2003. 154 p. (Edies do Senado Federal ; v. 5)

    1. Gu er ra de Ca nu dos (1897). 2. Bra sil, his t ria. I. T tu lo

  • . II. S rie. CDD 981.0521........................................................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    A CAMPANHA DE CANUDOS, DE ARISTIDES A. MILTON,RELATO DIRETO, OBJETIVO, DOCUMENTADSSIMO DOSACONTECIMENTOS OCORRIDOS NO ALTO SERTO DABAHIA NO FIM DO SCULO XIX JUNTO COM O LIVROCANUDOS E O UTROS TEMAS, DE EUCLIDES DA CUNHA MARCA A HOMENAGEM DO CONSELHO EDITORIAL DOSENADO FEDERAL AOS 100 ANOS DE PUBLICAO DEOS SERTES, OBRA-MESTRA DE EUCLIDES DA CUNHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Aristides Milton

    N asceu Aristides Augusto Milton a 29 de maio de1848, na cidade da Cachoeira. Seus primeiros estudos foram na terranatal, sendo os secundrios no Ginsio Baiano, onde teve como compa-nheiros a Castro Alves e Rui Barbosa. Seguindo, depois, para Recife, ase formou, pela Faculdade de Direito, em 1869. Em 1872, na Bahia,trabalhou na imprensa, como redator do Correio da Bahia. Em suacidade natal, fundou o Jornal da Cachoeira, onde pugnou pelo desen-volvimento da cidade. Foi, tambm, juiz municipal, em Lenis e emMaracs, e de Direito, no Piau. Em 1881, assumiu a presidncia de Alagoas e, mais tarde,foi chefe de polcia de Sergipe. Ingressando na poltica, filiou-se ao PartidoConservador, sendo eleito deputado provincial e, de 1886-1889, deputadogeral. Proclamada a Repblica, foi eleito deputado ConstituinteFederal, sendo reeleito na segunda, terceira, quarta e quinta legislaturas.A sua ao a foi das mais profcuas, especialmente na comisso incum-bida do projeto do Cdigo Penal. Tambm escritor, apreciando os estudos histricos, divulgoutrabalhos de valor, como A Campanha de Canudos, A Repblica10 Aristides A. Milton

    e a Federao no Brasil, A Constituio do Brasil , e, ainda, Efem-rides Cachoeiranas , onde esto enfeixados, com um critrio e honestida-de inexcedveis, os fatos mais palpitantes ocorridos na histrica cidade.Por sua terra, a que tinha profundo amor, trabalhou muito, fundando,ali, o Monte Pio dos Artistas Cachoeiranos. Depois de uma existncia gloriosa, legando ao pas um nomeimaculado, faleceu Aristides Milton no Rio de Janeiro, a 26 de janeirode 1904.

    ANTNIO LOUREIRO DE SOUSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    I1

  • Q UANDO O PAS, depois de ver jugulada a revolta de6 de setembro, se reputava livre do pesadelo, que por longos meses ooprimira, e, restabelecidas afinal a tranqilidade e a ordem, cria que aRepblica estava definitivamente consolidada, graves e originais aconte-cimentos, ocorridos no Estado da Bahia, vieram sobressaltar o espritopblico, abrindo na histria do Brasil um novo sulco de lgrimas e sangue. A mesma tendncia revolucionria que, desde 1822 at 1848,trouxera pendente da sorte das armas o futuro do Imprio, e, predomi-nando ora aqui, ora acol, celebrizara esse quarto de sculo por uma agi-tao constante, e lutas fratricidas de pungitiva lembrana, havia ressur-gido na plenitude de sua funesta energia para perturbar o regime, queem 1889 tinha sido inaugurado. E se dentre os protagonistas desses movimentos destaca-vam-se caracteres que, cedendo a suas convices polticas, eram esti-mulados pelo desejo de bem-servir ptria, outros obedeciam simples-mente s sugestes do amor-prprio ofendido, e ao impulso de ambiescontrariadas.1 Este trabalho foi escrito por incumbncia do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, como se v da ata de sua sesso celebrada em 17 de outubro de 1897.12 Aristides A. Milton

    Como quer que fosse, s instituies recentemente adotadasimputava-se inteira a responsabilidade do prurido de deposies, que aco-metera os Estados da Unio, bem como dos excessos e violncias, queem quase todos eles ao mesmo tempo se praticavam. Mas, a verdade que sob a monarquia tambm se tinham testemunhado cenas de deposi-es e rebeldia, que empanaram-lhe o prestgio, comprometeram a pazpblica e geraram no raro o desalento e o terror. A conseqncia, portanto, a deduzir da que a nenhum dosdous sistemas de governo se pode com justia atribuir os erros de queso culpados, unicamente, alguns espritos irrequietos e certas conscin-cias empedernidas, que aparecem alis em todos os tempos e situaes. Opor-se-ia, alm disto, razo e justia estabelecer confron-to entre uma poca qualquer que comea a esboar-se, atravs das difi-culdades prprias de todas as inovaes, e outra que se acha completa-mente desenhada, por j ter atingido a seu termo. Em todo caso, foroso confessar que a campanha de Canu-dos, a despeito de no revelar feio partidria bem caracterizada, assi-nala contudo um perodo de grandes surpresas e reais temores para a re-pblica. E o que mais tendo sido explorada por uma politicagemperversa, serviu muitas vezes de pretexto para agresses injustas ao Go-verno, e afrontas insensatas ao povo baiano. Antes de tudo, entretanto, preciso reconhecer que to tristeluta civil poderia ter irrompido durante a monarquia, visto como foraem 1864, ainda, que principiaram a se acumular os inflamveis, cuja ex -ploso produziu o incndio voraz de que foi teatro o serto de minhaterra. No h negar que, no incio da campanha, propalou-se in -sistentemente que os inimigos da repblica remetiam munies e ar -mas a Antnio Conselheiro, embarcando-as na estrada de ferro Centraldo Brasil, com endereo estao das Sete Lagoas, donde seguiam paraseu destino. O Governo de Minas Gerais providenciou no sentido deapurar a exatido desse fato, e a imprensa deu notcia de que um desta-camento de polcia havia tiroteado com os tropeiros incumbidos daque-le servio. E por toda parte ento se espalhou que Canudos era o redutoda monarquia e a guarda avanada da restaurao. A Campanha de Canudos 13

  • certo, porm, no se ter nunca provado que os monarquis-tas estivessem de inteligncia com os habitantes de Canudos; pelo con-trrio, se liquidou que no passava de balela o boato, que circulara, dehaverem muitos dentre eles enviado somas avultadas ao Conselheiro,em cujo acampamento alguns at deveriam se encontrar. No contesto que os monarquistas anelassem a vitria dos fa-nticos, na esperana de tirar dela proveito assaz aprecivel; mas, na es -sncia, a questo era outra. Um homem alucinado pela doutrina religiosa, que ele prpriocriara, alterando a seu talante a ortodoxia aprendida de seus pais, conse-guiu fanatizar uma populao numerosa, pela qual era tido em conta deapstolo insubstituvel, e verdadeiro inspirado de Deus. exato que ele atacava a repblica, menos porm pela pre -tenso de restaurar a monarquia do que pela vontade de ver ainda esta-belecidos os institutos, como por exemplo o do casamento religioso,que a Constituio de fevereiro havia substitudo, incorrendo por istono desagrado dos tradicionalistas impenitentes. O Conselheiro hostilizava a repblica por ter esta decretado aseparao do Estado e da Igreja, medida repelida por quantos no apro-fundaram jamais os ensinamentos de Cristo, ou no tm forte e enraiza-da a sua f. Ele se insurgia contra a repblica, porque esta ousara enfren-t-lo em Macet, dando assim o sinal de que no reconhecia aquele esta-do no estado, constitudo sombra de uma tolerncia imperdovel, emmenoscabo das autoridades e da lei. Cumpre, porm, reconhecer que era preciso ser um homemfora do comum para se impor multido por meio da palavra e do ges -to, como Antnio Conselheiro o fazia, a despeito de faltar-lhe a elo -qncia dos oradores de escol, e a majestade grandiosa dos profetas b-blicos. Envergando uma tnica de pano comum e cor azul, com abarba e os cabelos intonsos, arrimado a um nodoso basto, mostrandonas faces a palidez dos ascetas, e nos ps trazendo as sandlias de pere-grino, o fantico de Canudos vivia rodeado de centenas de admiradorese proslitos.14 Aristides A. Milton

    Assim das cercanias desse lugar, como de pontos mais afasta-dos, at onde chegava a fama do santo , vinham troos de homens e mu-lheres, velhos e crianas, doentes e sos, com o fim de ouvir e consultarao Bom Jesus, nome por que era tratado o Conselheiro, o qual no passa-va de um louco, de um sonhador das cousas do Cu. Quase todos, car-regados de imagens, acurvados debaixo dos andores, cantando pelasestradas ladainhas e salmos; cada um querendo haurir no verbo de tosingular personagem a esperana e o consolo, como beber-lhe nosexemplos a lio da prece e da tenacidade. "Alguma cousa, mais do que a simples loucura de um homem,era necessria para este resultado, e essa alguma cousa a psicologia dapoca e do meio, em que a loucura de Antnio Conselheiro achou com-bustvel para atear o incndio de uma verdadeira epidemia vesnica."2 Ao nascente arraial, portanto, vinham ter quase todos os diasgrandes caravanas, compostas de pessoas crdulas e simples, proceden-tes de Mundo Novo, Entre-Rios, Inhambupe, Tucano, Cumbe e outrospontos, as quais se constituam logo aps discpulos e defensores danova seita. Muitas dentre elas tinham deixado, sem o mnimo pesar, o s-tio em que habitavam desde a infncia; abandonando, sem saudades, olar e a famlia; e todas aspiravam felicidade de pertencer s falanges dofantico, por ele educadas a princpio na escola do misticismo e da reza,convertidas depois em centro de reao e aventuras.

  • Realizava-se, destarte, uma das leis que regem a psicologia dasmultides; fazia-se sentir, assim, a influncia indiscutvel da imitao. Os desordeiros, que tinham combatido alhures s ordens dofamigerado Volta Grande, bem como os que haviam fugido das LavrasDiamantinas, acossados por autoridades cumpridoras do seu dever, for-maram afinal o grosso das foras do Conselheiro. Eram todos eles, mais ou menos, do tipo de Joo Abade, Ma-cambira e Paje; de uma valentia assombrosa; afeitos vida dos sertesagrestes; habituados a encarar a morte com afoiteza e desdm. Como corrente, o sertanejo possui uma organizao robusta, e uma capacidade2 Dr. Nina Rodrigues Revista Brasileira, 3 ano, tomo XI. A Campanha de Canudos 15

    de resistncia, que pasmam; distingue-se por uma energia francamenteindmita. Verdadeira raa de heris, dignos de outros ideais, merecedo-res de mais nobre e alevantado destino! Atrados, no entanto, por informaes exageradas, e convitesinstantes que recebiam, parentes e amigos dos que estavam j instaladosem Canudos, iam se reunindo a estes, com entusiasmo e fervor. Contri-bua tambm para aumentar a populao do arraial a grande leva de cri-minosos, que se lhe vinham incorporar, persuadidos de que por essemodo evitavam a punio de seus delitos, por nada poderem contra oConselheiro a polcia e a justia do pas. O povoado crescia a olhos vis -tos, e se transformara numa cidade, contando para cima de 5.000 prdios. Mas, o intuito, que levava a Canudos a maior parte dessa gen-te, fora o de aprender a praticar as cousas santas; o principal mvel quea inspirava era, com certeza, a conquista da salvao eterna. O Conse-lheiro a todos acolhia bondosamente, e lhes aceitava os donativos e pre-sentes, dando s vezes por escambo sortes de terra, que deveriam ser cul-tivadas em benefcio comum. Dominava ele e superintendia tudo, desdeo santurio at ltima das choupanas, e era servido sempre com obe -dincia e presteza. Desse concerto de tantas vontades, entregues e submetidas influncia e direo de uma s, decorreram surpreendentes efeitos, cujaimportncia bem se pde dentro em pouco aquilatar, e que teriampasmado o mundo inteiro se houvesse por acaso ocorrido em outropas. Prevendo eventualidades, que a rebeldia de sua atitude positi-vamente provocava, os habitantes de Canudos trataram de se garantircontra qualquer movimento, que visasse persegui-los ou desaloj-los. Eda procedeu que eles edificaram suas casas, atendendo a um plano dedefesa, mais ou menos estratgico; e se premuniram de munies e ar -mas, que nos momentos oportunos tornariam mais eficazes a sua abne-gao e valentia. E foi desse modo que se formou aquela nova Vendia, com -parvel da Frana pelos acidentes topogrficos, que ambas ofereciam,natureza especial do solo, devotamento cego a uma superstio e a um16 Aristides A. Milton

    erro, pretexto religioso tambm como justificativa de uma conduta anti-patritica, insensata e criminosa afinal. Para ser mais perfeita a semelhana, que assim fica indicada, o 3jaguno baiano usava de processo igual ao dos insurretos da gleba fran-cesa. Ele caava os soldados republicanos de dentro dos matagais ondecostumava se ocultar, como os outros tinham atacado o Exrcito nacio-nal, a fuzil, "de cima das escarpas, atravs das sebes traioeiras; tendo-oquase prisioneiro em verdadeiros calabouos de pedra: de um lado e ou-tro a linha violenta e escabrosa dos despenhadeiros, alm o catingal es-

  • pesso, impenetrvel, prenhe dos mistrios horrveis da emboscada e damorte". Urgia, contudo, fazer tal gente entrar na ordem econmica ejurdica; tornava-se imprescindvel que cessasse de uma vez essa ameaaconstante paz pblica. Quem era, no entanto, esse homem que aos 60 anos de idadecongregava em torno de sua individualidade to grandes elementos deao e reao? Donde tinha vindo? De que meios usava para se fazeramar e servir? O que pretendia, insurgindo-se contra os poderes polti-cos da nao? Como conseguira ser o heri dessa epopia, cujas estrofeso fragor das tempestades h de repetir por muitos anos, penetrando ats frinchas das serras que alcantilam o norte da Bahia? Antnio Vicente Mendes Maciel, conhecido depois por Ant nioConselheiro, nascera em Quixeramobim, da antiga provncia do Cear.Descendia de uma famlia, cujos membros na maior parte sofriamde alienao mental. Seu pai Vicente Mendes Maciel fora um dosclebres Maciis, cuja coragem tornara lendrio esse nome declinado na histriacriminal daquele Estado; era negociante, homem bonito, a tez ligeiramente morena,vigoroso e inteligente, mas retrado, taciturno, mau, e perigosamente desconfiado, bemque muito corts, obsequiador e honrado. Tinha momentos terrveis de clera, princi-palmente se tocava em lcool. Era de uma valentia indmita, e meio surdo.4 A mede Antnio Conselheiro chamava-se Maria Maciel, mas era geralmenteconhecida pelo apelido de Maria Chana.3 Jaguno o indivduo que vive habitualmente envolvido em desordem, por conta prpria ou alheia.4 Joo Brgido, Publicaes diversas, pgs. 108 a 109. A Campanha de Canudos 17

    Depois de ter deixado a escola primria, Antnio Vicente,que era de ndole dcil, inteligente e avesso aos prazeres, havia iniciadoo estudo da lngua latina, e duvidoso no que lograsse aproveitar doensino de seus professores, porquanto dispunha de certa cultura que demuito lhe valeu no desempenho do papel que escolhera para alcanarnomeada. Um mdico ilustrado escrevia, em 1897: "Antnio Conselheiro seguramente um simples louco. Mas,essa loucura daquelas, em que a fatalidade inconsciente da molstia re-gistra com preciso instrumental o reflexo, seno de uma poca, pelomenos do meio em que elas se geraram." E acrescentava: "a cristaliza-o do delrio de Antnio Conselheiro, no terceiro perodo de psicoseprogressiva, reflete as condies sociolgicas do meio em que se organi-zou".5 Antnio Maciel, porm, se casara em tempo com uma parenta,filha de Francisca Maciel, irm de seu pai. No foi, todavia, feliz em seular. Desavindo-se com a sogra, liquidou sua casa comercial, e transfe-riu-se em 1859 para Sobral, onde serviu de caixeiro e, depois, de escrivode paz. Da, se passou para Ipu, sua mulher foi raptada pelo sargentoJoo de Melo, comandante do destacamento de linha, o qual entretantodeixou-a morrer esmolando em Sobral. Antnio Maciel, no querendo ser testemunha de sua pr -pria vergonha, se retirou com destino cidade de Crato. Mas, passandopelo lugar denominado Paus Brancos , demorou-se em casa de seucunhado, Loureno Correia Lima, a quem durante um acesso de lou -cura levemente feriu. Do Crato partiu para a provncia, hoje Estado,da Bahia, onde entrou pela primeira vez em 1874. Fizera toda a viagem por terra. A pouco e pouco, foi o Conselheiro executando o planoque tinha traado, e graas sua habilidade e boa fortuna, chegara a cap-

  • tar simpatias e admirao quase gerais, em uma larga faixa da zona serta-neja. que ele observava um regime sbrio, seno fortificante, o quesempre maravilha, por ser exceo. S comia cereais, repousava no raro5 Revista Brasileira, tomo XI, "Estudo" pelo Dr. Nina Rodrigues.18 Aristides A. Milton

    sobre o cho, no recebia de esmola seno a quantia de que restritamenteprecisasse. Padres houve, que lhe cederam o plpito de suas igrejas, paraque da doutrinasse ele as multides ignaras: fato alis condenado poruma pastoral do arcebispo metropolitano. E, de 1874 at 1876, Antnio Conselheiro assim viveu. Nesse ltimo ano, porm, o delegado do termo de Itapicururequisitou do chefe de polcia da provncia a fora necessria para conterAntnio Conselheiro e seus sequazes, que estavam cometendo excessosde toda natureza, tendo mesmo alguns dentre eles insultado a primeiraautoridade da comarca. Satisfeita a requisio aludida, foi efetuada a diligncia, con -forme se ver do ofcio, que passo a copiar: "Delegacia da vila de Itapicuru, 28 de junho de 1876 Ilmo. Sr. Ao Sr. Alferes Diogo Antnio Bahia, comandante da fora que V. S.remeteu a esta vila por minha requisio, no s para manter a ordem e orespeito devidos autoridade, como para conduzir o preso AntnioVicente Mendes Maciel, entreguei no s o mesmo preso, como ainda ooutro, de nome Paulo Jos da Rosa, que se achavam aqui detidos porordem de V. S. para serem remetidos secretaria, segundo me ordenouem ofcio de 15 de abril ltimo. "Em presena da fora, desistiram os fanticos do plano entreeles combinado da desmoralizao autoridade, pois s essa providn-cia os faria conter desse propsito; sendo certo que agora propalam que faro na volta do seu santo Antnio, como chamam o primeiro dospresos; o que contam por certo. " vista desse mau plano que, em face das circunstncias,executaro, peo a V. S. para dar providncias, a fim de que no volte odito fanatizador do povo ignorante; e creio que V. S. assim o far, por -que no deixar de saber da notcia, que h meses apareceu, de ser elecriminoso de morte na provncia do Cear. "Tambm aproveito a ocasio para remeter a V. S. pelo mes -mo alferes os indivduos de nomes Jos Manuel e Estvo; o primeirorecrutei para o exrcito, visto no apresentar iseno alguma, no ter paie me, e no ter emprego nenhum conhecido, seno o de larpio; pois A Campanha de Canudos 19

    h poucos dias furtou a uma pobre viva 60$, que ela reservava de suaseconomias para suas precises, e os deu quase todo a mulheres perdidas.E segundo, por denncia que tive de ser cativo de uma viva, residenteno Porto da Folha, na provncia de Sergipe, e andar aqui constantemen-te embriagado, e insultando as autoridades, como h pouco acaba depraticar com o Dr. Juiz de direito desta comarca. " Esses indivduos so fanatizados, e partidrios do preso AntnioVicente Mendes Maciel. "Deus guarde a V. S. Ilmo. Sr. Dr. Joo Bernardes de Maga-lhes, m.d. chefe de polcia desta provncia. O delegado em exerccio,Francisco Pereira da Assuno. " Com o fim de averiguar a procedncia da imputao que sefazia ao Conselheiro, enviou-o logo depois o chefe de polcia da Bahiaao seu colega do Cear, como consta do ofcio a seguir: "Secretaria da polcia da provncia da Bahia, em 5 de junho de 1876 2 seco N 2.182 Ao dr. Chefe de polcia do Cear. "Fao apresentar a V. S. o indivduo, que se diz chamar Ant-

  • nio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antnio Conselheiro, que sus -peito ser algum dos criminosos dessa provncia, que andam foragidos. "Esse indivduo apareceu ultimamente no lugar denominadoMisso da Sade, em Itapicuru, e a, entre gente ignorante, disse-se envi-ado de Cristo, e comeou a pregar, levando a superstio de tal gente aoponto de um fanatismo perigoso. "Em suas prdicas plantara o desrespeito ao vigrio daquelafreguesia e, cercado de uma multido de adeptos, comeara a desassossegara tranqilidade da populao. "Em virtude da reclamao, que recebi do exm. Sr. Vigriocapitular, contra o abusivo procedimento desse indivduo, que ia, almde tudo, embolsando os dinheiros com que, crdulos, iam lhe enchendoas algibeiras os seus fiis, mandei-o buscar capital, onde obstinada-mente no quis responder ao interrogatrio que lhe foi feito, como verV. S. do auto junto. Era uma medida de ordem pblica de que no deviaeu prescindir. "Entretanto, se porventura no for ele a criminoso peo emtodo o caso a V. S. que no perca de sobre ele as suas vistas, para que20 Aristides A. Milton

    no volte a esta provncia, ao lugar referido, para onde a sua volta trarcertamente resultados desagradveis, pela exaltao em que ficaram osespritos dos fanticos com a priso do seu dolo. J. B. de Magalhes." O chefe de polcia do Cear, decorridos que foram algunsmeses, gastos em pesquisas, respondeu "que no poder conservarpreso o Conselheiro, por no se achar este ali processado, nem ter co -metido crime algum". Mas, antes de ser conhecido esse fato, a imaginao popularse expandiu, compondo os mais curiosos e sensacionais romances. Assim que nuns contava-se que Antnio Conselheiro, in -voluntariamente embora, matara a prpria me, no momento em queesta, disfarada de trajes masculinos, batia por alta noite janela daalcova da nora, procurando com semelhante ardil demonstrar ao filho que a esposa lhe era infiel. Em outros romances, relata-se que o fantico cearense as -sassinara a consorte, impelido por suspeitas, que os acontecimentos denenhum modo justificaram. De maneira que a vida original do Conselheiro era tomadapor muita gente conta de expiao e penitncia. Certo que, uma vez restitudo liberdade, Antnio Macielvoltou para o antigo teatro de suas faanhas, a continuar na mesma vidade agitao e prdica. Percorreu ele ento vrias localidades da Bahia,demorando-se mais tempo em Monte Santo, Cumbe, Bom-Conselho eMaacar. Por toda parte, entretanto, conquistava a nomeada especial debeato, pois consumia quase todo o seu tempo na edificao de igrejas ecemitrios. Alm disto, conseguira levantar na comarca de Itapicuru um novo povoado a que pusera o nome de Bom Jesus. Foi por ocasio de achar-se o Conselheiro a, que o delegadode polcia respectivo dirigiu ao chefe de polcia da Bahia este curiosoofcio: "Vila de Itapicuru, 10 de novembro de 1876 Delegacia de polcia. "Ilmo. sr. de meu dever levar ao conhecimento de V. S.que, no arraial do Bom Jesus, existe uma scia de fanatizados e malva-dos que pem em perigo a tranqilidade pblica. H 12 anos, poucomais ou menos, com pequenas interrupes, fez sua residncia neste A Campanha de Canudos 21

    termo Antnio Vicente Mendes Maciel, vulgo Antnio Conselheiro, que,por suas prdicas, tem abusado da credulidade dos ignorantes, arrastan-do-os ao fanatismo.

  • "Havendo suspeitas de que ele fosse criminoso no Cear, pro-vncia de seu nascimento, foi no ano de 1876 preso por ordem do dr.Chefe de polcia daquela poca e para ali remetido. Regressando poucodepois, fez neste termo seu acampamento, e presentemente est no re -ferido arraial construindo uma capela a expensas do povo. Conquantoesta obra seja de algum melhoramento, alis dispensvel para o lugar, to-davia os excessos e sacrifcios no compensam este bem, e, pelo modopor que esto os nimos, mais que justo e fundado o receio de grandesdesgraas. "Para que V. S. saiba quem Antnio Conselheiro, basta dizerque acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-noe cumprem suas ordens de preferncia s do vigrio desta parquia. Ofanatismo no tem mais limites, e assim que, sem medo de erro e fir-mado em fatos, posso afirmar que adoram-no como se fosse um deusvivo. Nos dias de sermes e tero, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Naconstruo dessa capela, cuja fria semanal de quase cem mil-ris, d -cuplo do que devia ser pago, esto empregados cearenses, aos quaisAntnio Conselheiro presta a mais cega proteo, tolerando e dissimu-lando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crdulos e ig -norantes, que, alm de no trabalharem, vendem o pouco que possueme at furtam para que no haja a menor falta, sem falar nas quantias ar-recadadas que tm sido remetidas para outras obras do Chorox, termode Capim Grosso. incalculvel o prejuzo que a esta terra tem causadoAntnio Conselheiro. Entre os operrios figura o cearense Feitosa,como chefe, que com os demais fanatizados fizeram do referido arraialuma praa de armas, intimando a cidados, como o negociador Miguelde Aguiar Matos, para mudarem-se do lugar com sua famlia, em 24 ho-ras, sob pena de morte. Havendo desinteligncia entre o grupo de Ant-nio Conselheiro e o vigrio de Inhambupe, est aquele municiado comose tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que esto espera que ovigrio v ao lugar denominado Junco para assassin-lo. Faz medo aostranseuntes passarem por ali, vendo aqueles malvados munidos de cace-22 Aristides A. Milton

    tes, facas, faces, clavinotes, e ai daquele que for suspeito de ser infensoa Antnio Conselheiro! "Nenhum dos vigrios das freguesias limtrofes tem consenti-do nos lugares de sua jurisdio esta horda de fanticos, s o daqui atem tolerado, e agora tardio o arrependimento, porque sua palavra noser ouvida. H pouco, mandando cham-lo para pr a termo a este es -tado de cousas, a resposta que lhe mandou Antnio Conselheiro, foi que no tinha negcios com ele; e no veio. Consta que os vigrios dasfreguesias tm lido a pastoral do exm. sr. Arcebispo, proibindo os ser -mes e mais atos religiosos de Antnio Conselheiro, e exortando opovo para o verdadeiro caminho da religio: nesta ainda no foi lida,sem dvida pelo receio que tem o vigrio de se revoltarem contra ele osfanatizados. "O cidado Miguel de Aguiar Matos, com outros, tem vindopedir providncias, as quais tenho deixado de dar por no contar comfora suficiente para empreender esta diligncia, que, se for malograda,piores sero ainda os resultados. "Cumpre dizer que Antnio Conselheiro, que veste uma ca -misola de pano azul, com barbas e cabelos longos, malcriado, capri-choso e soberbo. "No convindo esta ameaa constante ao bem pblico, e an-tes cumprindo prevenir atentados e desgraas, solicito de V. S. um desta-camento de linha para dispersar o grupo de fanticos. Renovo a V. S. osmeus protestos da mais subida estima, considerao e respeito. Deusguarde a V. S. Ilmo. Sr. Dr. Domingos Rodrigues Guimares, m. d.chefe de polcia desta provncia. Lus Gonzaga de Macedo."

  • Embora nenhum fato positivo houvesse ainda denunciado,por parte do Conselheiro, intentos verdadeiramente criminosos, bemcerto que os fazendeiros e proprietrios, residentes na zona por elefreqentada, mostravam-se receosos e alarmados. Nem era, certamente,para tranqilizar a grande comitiva de Antnio Conselheiro, formadaexclusivamente de pessoas fanatizadas, entre as quais ele dominavacomo mestre infalvel, e senhor absoluto. "Em peregrinaes religiosas e atitude pacfica, em comeo,esses grupos, crescendo dia a dia pelo contgio do fanatismo, entrega-vam-se por ltimo prtica de crimes, perturbavam a ordem pblica, A Campanha de Canudos 23

    impediam mo armada a cobrana de impostos, invadiam e saqueavamvrias fazendas, e ameaavam povoaes."6 Realmente, no tardou muito que os sectrios do supostoprofeta, abandonando a sua primitiva posio de simples adoradores doBom Jesus, como ao Conselheiro denominavam, se convertessem todosnuma legio de jagunos, que foram praticando por aqueles arredoresvrios atos infringentes da lei. Da procedeu que, em 1893, foi mandada ao encontro deAntnio Conselheiro, uma fora de 35 praas de polcia, comandadaspelo tenente Virglio de Almeida. Mas essa diligncia, bem como outrade mesma natureza que se lhe seguiu, e finalmente uma terceira cons -tante de 80 praas de linha, produziram todas resultado negativo.7 Corria o ano de 1893, quando Antnio Conselheiro, aps umencontro, em Macet, com certo destacamento policial do que se origi-naram mortes de parte parte, parou definitivamente em Canudos, en-to simples fazenda de gado, tendo apenas a casa do vaqueiro, se bemque servida por diversas estradas, por onde podiam transportar-se recur-sos de todo gnero, e situada margem do Vaza-Barris, na comarca deMonte Santo. de crer que o Conselheiro muito de indstria preferisseesse lugar, porquanto ao primeiro relance se impunha como um pontonatural e vantajosamente estratgico. O bando fanatizado, contudo, se bem que j incutisse certotemor, ocupou-se em Canudos da edificao de uma pequena capelapara cujas obras o seu chefe pedia sem cessar o concurso do povo;assegurando que quantos o coadjuvassem no seu empenho, com es -foro pessoal ou com dinheiro, seriam perdoados dos seus pecados porDeus, de quem ele se inculcava emissrio especial e representante naTerra. Como, em todo o caso, no tivessem cessado os receios deatentados, que de uma hora para outra aquela gente aglomerada e deste-mida poderia praticar, e, do mais, tivessem fracassado as diligncias or -6 Relatrio do chefe de polcia da Bahia, em 1898, pg. 4.7 Ainda em 1897, um grupo de jagunos do Conselheiro prendera, em Chorox, Hor- cio Pacheco de Meneses, juiz de paz; e, depois de o ter feito andar 60 quilme- tros, o ps em liberdade mediante 6:200$, por quanto o resgatou.24 Aristides A. Milton

    ganizadas para cham-la ao dever, o Dr. Joaquim Manuel RodriguesLima, que era a esse tempo governador da Bahia, cogitou noutro meioque se lhe afigurava mais eficaz e adequado ao fim que se visava ento. E com esse nobilssimo propsito se entendeu com o preladoda arquidiocese, ficando entre os dois assentada a ida do capuchinho fr.Joo Evangelista de Monte Marciano, a quem foi cometida a misso defazer o Conselheiro tornar com sua gente para o grmio da Igreja, eobedincia s leis e autoridades do pas.

  • Desde o dia 13 at 21 de maio de 1895, o digno religioso per-maneceu no arraial de Canudos. Mas, infelizmente, no logrou ele realizar seus intuitos, e todoo trabalho, que ento despendera, se esterilizou diante da teimosia e daignorncia que os fanticos ostentavam. Muito melhor, porm, do que eu poderia faz-lo, o prprio fr.Joo vai narrar o ocorrido, como se ver do seu relatrio, que eu tomo aliberdade de registrar aqui: "Exm. e Revmo. Sr. No ignora V. Ex. Revma. que o Exm. eRevmo. Sr. Arcebispo, nas vsperas de sua viagem para a visita ad liminaapostolorum, confiou-me a rdua misso de ir ao povoado de Canudos,freguesia do Cumbe, onde se estabeleceu o indivduo conhecido vulgar-mente por Antnio Conselheiro, a fim de procurar pela pregao daverdade evanglica, e apelando para os sentimentos da f catlica, queesse indivduo diz professar, cham-lo e aos seus infelizes asseclas aosdeveres de catlicos e de cidados, que de todo esqueceram, e violamhabitualmente com as prticas as mais extravagantes e condenveis,ofendendo a religio e perturbando a ordem pblica. Compreendendobem as graves dificuldades da tarefa, aceitei-a como filho da obedincia,e confiado s na misericrdia e no poder infinito d'Aquele que, para fazero bem, serve-se dos mais fracos e humildes instrumentos, e no cessa dequerer que os mais inveterados pecadores se convertam e se salvem. "Munido, ento, de faculdades e poderes especiais, seguiacompanhado de um outro religioso fr. Caetano de S. Lu; e, hoje, de-sempenhada como nos foi possvel a incumbncia recebida, venho rela-tar minuciosamente a v. ex. revma. o que observamos, e qual o resultadodos nossos esforos, em parte frustrados, para que tenha V. Ex. Revma. A Campanha de Canudos 25

    cincia de tudo, e providencie como for conveniente, na qualidade degovernador do arcebispado. "Principiarei por dizer que partindo a 26 de abril, s a 13 demaio conseguimos entrar no povoado de Canudos, apesar do nosso em-penho em transportar-nos o mais depressa possvel. As dificuldades emobter conduo e se encontrar agasalho nas estradas, e guias conhecedo-res do caminho, retardaram a viagem, forando-nos uma demora demuitos dias no Cumbe, que ainda fica a 18 lguas de Canudos. "Ainda to distantes, j deparvamos os prenncios da insu-bordinao e da anarquia de que amos ser testemunhas, e que se fazemsentir por muitas lguas em derredor do referido povoado. "Trs lguas antes de chegar ao Cumbe, avistamos um nume-roso grupo de homens, mulheres e meninos, quase nus, aglomerados emtorno de fogueiras, e, acercando-nos deles, os saudamos; perguntan-do-lhes eu se era aquela a estrada que conduzia ao Cumbe. "Seu primeiro movimento foi lanar mo de espingardas efaces, que tinham de lado, e juntarem-se todos em atitude agressiva.Pensando acalm-los, disse-lhes que ramos dois missionrios que se tinhamperdido na estrada, e queriam saber se era longe a freguesia. Responderam:no sabemos, perguntem ali; e apontaram uma casa vizinha. "Era uma guarda avanada de Antnio Conselheiro, essa genteque havamos encontrado. "Anunciada, no Cumbe, missa conventual do domingo, 5 demaio, a misso que amos dar em Canudos, no foi para os habitantesdesse povoado uma surpresa a nossa chegada, no dia 13 s 10 horas damanh. "A fazenda Canudos dista duas lguas do Riacho das Pedras,no lado oposto serra Geral. A uma lgua de distncia, o terreno in culto, porm timo para a criao mida, principalmente nas cheias dorio Vaza-Barris. "Um quilmetro adiante descobre-se uma vasta plancie muito

  • fr til re ga da pelo rio, na ba i xa de um mon te, de cuja emi nn cia jse avistam a casa antiga da fazenda Canudos, a capela edificada porAntnio Conselheiro, e as misrrimas habitaes dos seus fanatizadosdiscpulos.26 Aristides A. Milton

    "Passado o rio, logo se encontram essas casinholas toscas,construdas de barro e cobertas de palha, de porta, sem janela, e noar ruadas. O interior imundo, e os moradores, que quase nus saamfora a olhar-nos, atestavam, no aspecto esqulido e quase cadavrico, asprivaes de toda espcie que curtiam. Vimos depois a praa, de extensoregular, ladeada de cerca de 12 casas de telha, e nas extremidades emfrente uma outra a capela e a casa de residncia de Antnio Conse-lheiro. porta da capela, e em vrios pontos da praa, apinhavam-seperto de 1000 homens, ar mados de bacamarte, garrucha, faco, etc.,dando a Canudos a semelhana de um acampamento de bedunos. "Eles usam camisa, cala e blusa de azulo, gorro azul cabea,alpercatas nos ps. O ar inquieto e o olhar, ao mesmo tempo, indagadore sinistro, denunciavam conscincias perturbadas e intenes hostis. "Alojamo-nos numa casa de propriedade do Revmo. vigriodo Cumbe, que nos acompanhava e ali no havia voltado, desde que h cerca de um ano sofrera grande desacato. Logo aps a nossa che -gada, no decurso apenas de duas horas, pude ver o seguinte, que d amedida do abandono e desgraa, em que vive aquela gente: passaram aenterrar oito cadveres, conduzidos por homens armados, sem o mnimosinal religioso. Ouvi tambm que isso um espetculo de todos osdias, e que a mortalidade nunca inferior, devido s molstias contra-das pela extrema falta de asseio e penria dos meios de vida, o que dlugar at a morrerem de fome. "Refeitos um pouco da nossa penosa viagem, dirigimo-nospara a capela, onde se achava ento Antnio Conselheiro, assistindo aostrabalhos de construo. Mal nos perceberam, os magotes de homensarmados cerraram fileiras junto porta da capela; e, ao passarmos, dis -seram todos louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo: saudao freqente ecomum, que s recusam em rompimento de hostilidades. "Entrando, achamo-nos em presena de Antnio Conselheiro,que saudou-nos do mesmo modo. "Vestia tnica de azulo, tinha a cabea descoberta, e empu-nhava um bordo. Os cabelos crescidos, e sem nenhum trato, a caremsobre os ombros; as hisurtas barbas grisalhas, mais para brancas, olhosfundos, raras vezes levantados para fitar algum; o rosto comprido, e deuma palidez quase cadavrica, o porte grave e ar penitente: davam-lhe A Campanha de Canudos 27

    ao todo uma aparncia que no pouco teria contribudo para enganar eatrair o povo simples e ignorante em nossos sertes. "As primeiras palavras que trocamos foram sobre as obras,que se construam, e ele convidou-nos a examin-las, guiando-nos a to-das as divises do edifcio. "Chegados ao coro, aproveitei a ocasio de estarmos quasess, e disse-lhe que o fim que eu ia era todo de paz, e que assim muitoestranhava s enxergava ali homens armados; e no podia deixar decondenar que se reunissem num lugar to pobre tantas famlias entre-gues ociosidade, e num abandono e misria tais, que diariamente se da-vam de oito a nove bitos. "Por isso, de ordem e em nome do Sr. Arcebispo, ia abrir umasanta misso, e aconselhar o povo a dispersar-se, e a voltar aos lares e aotrabalho, no interesse de cada um e para o bem geral. "Enquanto dizia isto, a capela e o coro enchiam-se de gente, eainda no acabara eu de falar, j eles a uma voz clamavam: Ns queremos

  • acompanhar o nosso Conselheiro. Este os fez calar, e, voltando-se para mim,disse: " ` para minha defesa que tenho comigo estes homens ar -mados, porque V. Revma. h de saber que a polcia atacou-me, e quismatar-me no lugar chamado Macet, onde houve mortes de um lado eoutro lado. " `No tempo da monarquia deixei-me prender, porque reco-nhecia o Governo; hoje no, porque no reconheo a repblica.' `"Senhor'", repliquei eu, `"se catlico, deve considerar que aIgreja condena as revoltas, e, acatando todas as formas de Governo ensina que os poderes constitudos regem os povos em nome de Deus. " ` assim por toda parte. A Frana, que uma das principaisnaes da Europa, foi monarquia por muitos sculos; mas h mais de 20anos repblica: e todo o povo, sem exceo dos monarquistas de l,obedece s autoridades e s leis do governo. `"Ns mesmos, aqui no Brasil, a principiar dos bispos at aoltimo catlico, reconhecemos o Governo atual. Somente vs no que -reis sujeitar? mau pensar esse, uma doutrina errada a vossa.'28 Aristides A. Milton

    "Interrompeu-me um da turba, gritando com arrogncia: V.Revma. quem tem uma doutrina falsa, e no o nosso Conselheiro. Desta vez ovelho imps silncio, e por nica resposta me disse: Eu no desarmo a mi-nha gente, mas tambm no estorvo a santa misso. "No insisti no assunto, e, acompanhados da multido, sa-mos todos, indo escolher o lugar para a latada e providenciar para queno dia seguinte principiassem os exerccios. "Feito isso, e quando me retirava, os fanticos levantaram es-trondosos vivas Santssima Trindade, ao Bom Jesus, ao Divino Espri-to Santo, e ao Antnio Conselheiro. "Missionando em vrias freguesias vizinhas, eu havia j colhidoinformaes sobre Antnio Conselheiro e seus principais sectrios;mas estando entre eles, quis antes de dar princpio minha pregao averiguar o que realmente eles eram, e o que faziam. "Do que vi e ouvi apurei o que passo a registrar, para que seaprecie melhor o ocorrido. "Antnio Conselheiro, cujo nome de famlia Antnio Vi -cente Mendes Maciel, cearense, de cor branca tostada ao sol, magro, altode estatura, tem cerca de 65 anos, e pouco vigor fsico, parecendo sofreralguma afeco orgnica, por freqentes e violentos acessos de tosse aque sujeito. "Com uma certa reputao de austeridade de costumes, en -volvem-no tambm, e concorrem para aumentar a curiosidade de que alvo e o prestgio que exerce, umas vagas mas insistentes suposies daexpiao rigorosa de um crime cometido, alis em circunstncias ate -nuantes. "Ningum pode falar-lhe a ss, porque seus pretorianos no odeixam, ou receando pela vida do chefe, ou para no lhes escapar ne -nhum de seus movimentos e resolues. Antnio Conselheiro, inculcandozelo religioso, disciplina e ortodoxia catlica, no tem nada disto; poiscontesta o ensino, transgride as leis, e desconhece as autoridades eclesis-ticas, sempre que de algum modo lhe contrariam as idias ou caprichos; e,arrastando por esse caminho os seus infelizes sequazes, consente aindaque eles lhe prestem homenagens que importam em culto, e propalem emseu nome doutrinas subversivas da ordem, da moral e da f. A Campanha de Canudos 29

    "Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir ao povo deque todo aquele que quiser se salvar precisa vir para Canudos, porquenos outros lugares tudo est contaminado e perdido pela repblica; ali,

  • porm, nem preciso trabalhar: a terra da promisso, onde corre umrio de leite, e so de cuscuz de milho os barrancos. "Quem tiver bens disponha deles, e entregue o produto davenda ao bom Conselheiro, no reservando para si mais do que um vin -tm em cada 100$. Se possuir imagens traga-as para o santurio comum. "O que seguir isto risca ter direito a vesturio e rao, econtam-se em tais condies para mais de 800 homens e 200 mulheresno squito do conhecido fantico. "As mulheres se ocupam em preparar a comida, coser, e enfei-tar os gorros de que usam os homens; e noite vo cantar benditos nalatada, acendendo fogueiras quando tempo de frio. "Os homens esto sempre ar mados, e dia e noite montamguarda a Antnio Conselheiro; parecem idolatr-lo e cada vez que eletranspe o limiar da casa em que mora, logo recebido com ruidosasaclamaes, e vivas Santssima Trindade, ao Bom Jesus e ao DivinoEsprito Santo. "Entre essa turba desorientada h vrios criminosos, segundome afirmaram, citando-se at os nomes, alguns dos quais eu retive,como o de Joo Abade, que ali chamado o chefe do povo, natural de Tu-cano, ru de dois homicdios, e o de Jos Venncio, a quem atribuemdezoito mortes. "O santo homem fecha os olhos a estas travessuras, e acolhe osinocentes, para que no os venha a perder a repblica! "Quanto a deveres e prticas religiosas, Antnio Conselheirono se arroga nenhuma funo sacerdotal, mas tambm no d jamais oexemplo de aproximar-se dos sacramentos; fazendo crer com isto queno carece deles, nem do ministrio dos padres: e as cerimnias do cultoa que preside, e que se repetem mais a mido entre os seus, so mescla-das de sinais de superstio e idolatria, como por exemplo o cha-mado beijo das imagens, a que procedem com profundas prostraes, eculto igual a todas, sem distino entre as do Divino Crucificado e daSantssima Virgem e quaisquer outras.30 Aristides A. Milton

    "Antnio Conselheiro costuma reunir, em certos dias, o seupovo para dar-lhes conselhos, que se ressentem sempre do seu fanatismoem assunto de religio, e da sua formal oposio ao atual regime polti-co; mas, ou para mostrar diferena com o missionrio, ou por ter meiode dar instrues secretas, absteve-se de falar em pblico, enquanto lestive. "Abri a misso em 14 de maio, e j nesse dia concorreramno menos de 4.000 pessoas; dos homens, todos os que podiam mane-jar uma arma l estavam, carregando bacamartes, garruchas, espingar-das, pistolas e faces: de cartucheira cinta e gorro cabea, na atitudede quem vai guerra. O Conselheiro tambm veio, trazendo o bordo;colocava-se ao lado do altar, e ouvia atento e impassvel: mas, comoquem fiscaliza, e deixando escapar alguma vez gestos de desaprovao,que os maiores da grei confirmavam com incisivos protestos. "Sucedeu isto de um modo mais notvel, num dia em que euexplicava o que era, e como devia fazer-se, o jejum; ponderando que eletinha por fim a mortificao do corpo, e o refreamento das paixes pelasobriedade e temperana, mas no o aniquilamento das foras por umalonga e rigorosa privao de alimentos; e que por isso a Igreja, parafacilitar, dispensava em muitos dias de jejum a abstinncia, e nuncaproibiu o uso dos lquidos, em moderada quantidade. "Ouvindo que se podia jejuar, muitas vezes, comendo carneao jantar, e tomando, pela manh, uma chvena de caf, o Conselheiroestendeu o lbio inferior, e sacudiu negativamente a cabea, e os seusprincipais asseclas romperam logo em apartes, exclamando com nfaseum dentre eles: ora, isto no jejum; comer a fartar.

  • "Fora essas ligeiras interrupes, a misso correu em paz ato quarto dia, em que eu preguei sobre o dever de obedincia autorida-de, e fiz ver que sendo a repblica o governo constitudo no Brasil to-dos os cidados, inclusive os que tivessem convices contrrias, deviamreconhec-lo e respeit-lo. Observei que nesse sentido j se pronun-ciara o Sumo Pontfice recomendando a concrdia dos catlicos brasi-leiros com o poder civil; e conclu declarando que se persistissem emdesobedecer e hostilizar um Governo que o povo brasileiro quase nasua totalidade aceitara, no fizessem da religio pretexto ou capa deseus dios e caprichos, porque a Igreja Catlica no , nem ser nunca, A Campanha de Canudos 31

    solidria com instrumentos de paixes e interesses particulares, ou comperturbadores da ordem pblica. "Estas minha palavras irritaram o nimo de muitos, e desdelogo comearam a fazer propaganda contra a misso e os missionrios,arredando o povo para vir assistir pregao de um padre maom, protes-tante e republicano; e dirigindo-me, quando passavam, e at ao p do plpito,ameaas de castigo e at de morte. "Espalharam que eu era emissrio do Governo, e que, deinteligncia com este, ia abrir caminho tropa, que viria de surpresaprender o Conselheiro e exterminar a todos eles. "E, passando de palavras a fatos, ocuparam com gente ar ma-da todas as entradas do povoado, pondo-o em estado de stio, de modoa no poder ningum entrar nem sair, sem ser antes reconhecido, comofizeram ao prprio vigrio da freguesia, detendo-o boca da estrada,quando s 7 horas da noite, tendo se ausentado por justo motivo, re -gressava para Canudos. "Roguei a Deus que amparasse a minha fraqueza, e sem meafastar da calma e da moderao, com que deve falar um missionrio ca-tlico, em um dos dias seguintes ocupei-me do homicdio, e, depois deconsiderar a malcia enorme e a irreparabilidade desse crime, entrei amostrar que no eram homicidas s os que serviam-se do ferro ou doveneno para, de emboscada ou de frente, arrancar a vida a seus seme-lhantes; e que tambm eram, at certo ponto, aqueles que arrastavamoutros a acompanh-los em seus erros e desatinos, deixando-os depoismorrer, dizimados pelas molstias, mingua de recursos e at de po,como acontecia ali mesmo: ento perguntei-lhes quem eram os res -ponsveis pela morte e pelo fim miservel de velhos, mulheres e crian-as, que diariamente pereciam naquele povoado em extrema penria eabandono. "Saiu dentre a multido uma voz lamuriosa, dizendo assim: o bom Jesus, que os manda para o Cu. "Exasperava-os a franqueza e a energia, com que o mission-rio lhes censurava os maus feitos, e no perdiam ocasio de rugir contraele, mas no se animavam a pr-lhe mos violentas, porque havia maisde 6.000 pessoas assistindo misso, e a mor parte era gente de fora,que s a isto viera, e reagiria certamente se eles me tocassem.32 Aristides A. Milton

    "Limitaram-se a injrias, acenos, ditos ameaadores, at o dia20 de maio, stimo da misso, em que j no se contiveram nessas mani-festaes isoladas, e organizaram um protesto geral e estrepitoso dogrupo arregimentado. "Desde s 11 horas da manh, Joo Abade, chamado o Chefedo Povo, foi visto a percorrer a praa, apitando impaciente, como a cha -mar soldadesca a postos contra alguma agresso inimiga, e a gente foi sereunindo, at que ao meio-dia estava a praa coalhada de homens ar ma-dos, mulheres e meninos, que a queimar foguetes, e com uma algazarrainfernal, dirigiram-se para a capela, erguendo vivas ao Bom Jesus, ao

  • Divino Esprito Santo e ao Antnio Conselheiro; e de l vieram at nos-sa casa, dando foras aos republicanos, maons, e protestantes, e gritando que no precisavam de padres para se salvar, porque tinham o seu con-selheiro. "Nessa desatinada passeata andaram acima e abaixo pelo es -pao de duas horas, dispersando-os afinal, sem irem alm. " tarde verberando a cegueira e a insensatez dos que assimhaviam procedido, eu mostrei que tinha sido aquilo um desacato sa -crlego religio e ao sagrado carter sacerdotal; e que, portanto, punhatermo santa misso, e como outrora os apstolos s portas das cidadesque os repeliam, eu sacudia ali mesmo o p das sandlias, e retirava-me,anunciando que, se a tempo no abrissem os olhos luz da verdade,sentiriam um dia o peso esmagador da justia divina, qual no esca-pam os que insultam os enviados do Senhor, e desprezam os meios desalvao. "E os deixei, no voltando mais latada, nem me prestando aexercer o meu ministrio em lugar ou ato pblico. "A suspenso repentina da santa misso produziu nos cir-cunstantes o efeito de um raio, deixando-os atnitos e impressionados,os que ainda no se haviam alistado na Companhia do Bom Jesus, que norecebiam do Conselheiro a comida e a roupa, e no dependiam deleportanto, deram-me plena razo e, reprovando formalmente os desvariosde tal gente, comearam a sair do povoado, j queixosos, e complementedesiludidos das virtudes de Antnio Conselheiro. "Os outros, conhecendo-se em grande minoria, e avaliandoque essa retirada em massa redundaria em notrio descrdito deles, en- A Campanha de Canudos 33

    viaram-me s pressas uma comisso, em que entraram os mais exalta-dos, e que veio pedir-me em nome do Antnio Conselheiro a conti-nuao da misso, alegando que no deviam sofrer os inocentes pelosculpados, e que assim ficaria o povo privado do sacramento do crismae de outros benefcios espirituais, que s no fim da misso se lucravam. "Descobrindo-lhe, ao mesmo tempo, a manha e a fraqueza,resisti aos pedidos; e deixei que o meu ato, mais feliz do que minhas pa-lavras, acabassem de operar a disperso daquelas multides, presas imi-nentes do fanatismo de um insensato, servido por imbecis, ou explora-do por perversos. "Haviam-se feito j quando encerrei de chofre os meus traba-lhos da misso, 55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais400 confisses. "No dia em que devamos partir, fui pela manh chamadopara uma confisso de enfermo, e acudi sem hesitao, seguindo unshomens ar mados, que tinham vindo chamar-me a esse fim. "Chegando casa interroguei o doente se queria confessar-se,e respondendo que sim, pedi aos tais homens ar mados que sassem parano ouvir a confisso. Eles no se moveram, e um perfilou-se e bradou:Custe o que custar no samos. "Observei, ento, ao doente que nem eu podia ouvir a con-fisso, nem ele estava obrigado a faz-la em tais circunstncias e imedia-tamente retirei-me, protestando em voz alta, da porta da casa, e na rua,contra aquela afrontosa violao das leis da religio e da caridade. "Redobrou, ento, a fria daqueles desvairados, e vomitandoinsultos e imprecaes, e juras de vingana, tomaram a entrada da casaem que me hospedara, e onde j me achava. "A minha misso terminara; a seita havia levado o maior gol-pe que eu podia descarregar-lhe: e conservar-me por mais tempo nomeio daquela gente, ou sair-lhe ainda ao encontro, seria rematada im -prudncia, sem a mnima utilidade. "Os companheiros de viagem esperavam-nos, com os animais

  • arreados, nos fundos da casa. Dando costas aos mseros provocadores,de l mesmo seguimos, e, galgando a estrada, ao olhar pela ltima vez opovoado, condodo da sua triste situao, como o divino Mestre diante34 Aristides A. Milton

    de Jerusalm, eu senti um aperto n'alma, e pareceu-me poder tambmdizer-lhe: `"Desconheceste os emissrios da verdade e da paz, repelistea visita da salvao; mas a vm tempos em que foras irresistveis te si-tiaro; brao poderoso te derrubar e, arrasando as tuas trincheiras, de-sarmando os teus esbirros, dissolver a seita impostora e maligna, que tereduziu ao seu jugo odioso e aviltante.' "Hoje, longe dessa infeliz localidade, e podendo informarsem ressentimento e com toda a exatido e justia, eu recapitularei o ex-posto dizendo o seguinte: "A misso de que fui encarregado, alm da vantagem deapreender e denunciar a impostura e perversidade da seita fantica, noprprio centro de suas operaes, teve ainda um benfico efeito, que foio de arrancar-lhe inmeras presas, desenganando a uns das virtudes su -postas, e premunindo outros contra as doutrinas e prticas abusivas ereprovadas de Antnio Conselheiro e de seus fanticos discpulos. Des-creram dele, e felizmente j o abandonaram multides considerveis depovo que, regressando a suas terras, maldizem da hora em que o segui-ram, e vo resgatar o seu erro pela obedincia s legtimas autoridades epelo trabalho. "Onde no chegarem as vozes dos que colheram to amargaexperincia, faa-se ouvir a palavra autorizada dos pastores das almas,denunciando o carter abominvel e a influncia malfica da seita, e eladecerto no lograr fazer novos proslitos. "Entretanto, comprazendo-me em consignar que s se con -servam atualmente ao lado do Conselheiro aqueles que j estavam in -corporados na legio por eles intitulada Companhia do Bom Jesus, no inte-resse da ordem pblica e pelo respeito devido lei, garanto a inteira ve-racidade do que informo, e acrescento: "A seita poltico-religiosa, estabelecida e entrincheirada emCanudos, no s um foco de superstio e fanatismo, e um pequenocisma na Igreja baiana; principalmente um ncleo, na aparncia des-prezvel, mas um tanto perigoso e funesto, de ousada resistncia e hosti-lidade ao Governo constitudo no pas. A Campanha de Canudos 35

    "Encarados o arrojo das pretenses e a soberania dos fatos,pode-se dizer que aquilo um Estado no Estado; ali no so aceitas asleis, no so reconhecidas as autoridades, no admitido circulao oprprio dinheiro da repblica. "Antnio Conselheiro conta a seu servio mais de mil com -panheiros decididos, entre eles os homens, em nmero talvez de 800,sempre armados, e as mulheres e crianas dispostas de modo a forma-rem uma reserva que ele mobiliza, e pe em p de guerra, quando julgapreciso. "Quem foi alistado na Companhia dificilmente poder liber-tar-se, e vem a sofrer violncias, se fizer qualquer reclamao, como su -cedeu durante minha estada a um pobre coitado que, por exigir a resti-tuio das imagens que havia trazido, foi posto em priso. "A milcia fantica s d entrada no povoado a quem bem lheapraz, aos amigos do Governo, ou republicanos conhecidos ou suspei-tos ela faz logo retroceder, ou tolera que entrem, mas trazendo-os emvista e pronta a expuls-los; quanto aos indiferentes, e que no se deci-dem a entrar na seita, esses podem viver ali, e tm liberdade para seocupar de seus interesses, mas correndo grandes riscos, entre estes o de

  • serem algum dia inesperadamente saqueados os seus bens, em proveitoda Santa Companhia; sorte esta pouco invejvel, que ainda recentementecoube a um certo negociante que l se estabelecera, vindo da cidade doBonfim. "Naquela infeliz localidade, portanto, no tem imprio a lei, eas liberdades pblicas esto inteiramente coartadas. "O desagravo da religio, o bem social e a dignidade do podercivil pedem uma providncia, que restabelea no povoado de Canudos oprestgio da lei, as garantias do culto catlico e os nossos foros de povocivilizado. Aquela situao deplorvel de fanatismo e anarquia deve ces-sar para honra do povo brasileiro, para o qual triste e humilhante que, ainda na mais inculta nesga de terra ptria, o sentimento religiosodesa a tais aberraes, e o partidarismo poltico desvaire em to estultae baixa reao. "Releve-me V. Ex. Revma. a rudeza das consideraes que ex-pedi, e a prolixidade desta exposio, cujo intuito mostrar o quantoesforou-se o humilde missionrio por desempenhar a tarefa que lhe36 Aristides A. Milton

    foi confiada, e inteirar a V. Ex. Revma. de quanto ocorreu por essa oca-sio, e da atitude rebelde e belicosa, que Antnio Conselheiro e seus se -quazes assumiram e mantm contra a Igreja e o Estado, a fim de que,dando s informaes prestadas o valor que meream, delibere V. Ex.Revma. sobre o caso, como em seu alto critrio e reconhecido zelo jul-gar conveniente. "Deus guarde a V. Ex. Revma. Exmo. e Revmo. Sr. cnegoClarindo de Sousa Aranha, digno governador do arcebispado do Estadoda Bahia fr. Joo Evangelista de Monte Marciano , missionrio apostlicocapuchinho." Antnio Conselheiro, entretanto, continuava a se esforarpela edificao da capela, em cujas obras fr. Joo Evangelista o encon-trara; e, terminada que foi ela, empreendeu a construo de uma grandeigreja, para o que dispunha j de grosso capital, angariado mediante es-molas, enviadas de vrios lugares, algumas at por pessoas abastadas,cuja venerao pelo Santo Homem cada dia acentuava-se mais. Para levarem a cabo o edifcio projetado, era necessria, po -rm, certa quantidade de tabuado, que s no Juazeiro poderia ser maisfacilmente obtida. Com este propsito, pois, foi a essa cidade um certoMacambira, emissrio do Conselheiro. E, tendo efetuado a desejadacompra, despachou a madeira pelo rio S. Francisco abaixo, at o Jacar,stio que dista de Juazeiro 100 quilmetros, mais ou menos. Ali, o Con-selheiro aguardava a chegada de sua encomenda, que fez transportarpara Canudos cabea de devotos, desde muito dispostos a semelhantesacrifcio. Corria j o ano de 1896 quando o citado Macambira dirigiuuma carta ao coronel Joo Evangelista Pereira de Melo, pedindo-lhe que comprasse em Juazeiro nova poro de tabuado, cujas dimenses egrossura determinava. Logo que houve abundncia de madeira no mer -cado, o coronel preveniu disto ao missivista. E ento se espalhou queo Conselheiro estava se prontificando para ir ao Juazeiro escolher, eleprprio, o material de que carecia. E, como sucede com quase todos os boatos, esse foi se avolu-mando de momento a momento, de modo que dentro em pouco anotcia se tinha transformado numa ameaa tremenda. A Campanha de Canudos 37

    O Conselheiro, invadindo a cidade, ordenaria um saque ge-ral ao comrcio. Em seguida, tiraria uma vingana cabal do juiz de direi-to da comarca de quem no gostava, por fatos acontecidos em Bom

  • Conselho, onde esse magistrado havia anteriormente servido. Aponta-se como causadora de todas essas novidades uma car-ta, escrita pelo coronel Francisco de Sales Silva, cidado conhecido, edigno de crdito. Achavam-se as cousas neste p, quando chegou s mos dogovernador um telegrama urgente, passado pelo juiz de direito da co -marca do Juazeiro, e concebido nos termos a seguir: "Juazeiro, 29 de outubro de 1896 Conselheiro Gover- nador Notcias transmitidas por positivo confirmam boato da vinda do perverso Antnio Conselheiro, reunido a ban - didos; partiro Canudos 2 vindouro. Populao receosa. Cidade sem garantias. Requisito enrgicas providncias. O juiz de direito, Arlindo Leone ." Apesar do que fica exposto, o coronel Joo Evangelista Pereirade Melo e outros cidados qualificados de Juazeiro no acreditavam nosboatos, que por toda parte circulavam, de intenes hostis atribudas aoConselheiro e seu squito. Tentando acalmar os nimos, excitados pornovas progressivamente alarmantes, o referido coronel assegurava queo asceta de Canudos no penetraria na cidade; pois ainda quando acom-panhasse a sua gente, seria com certeza para guardar a remessa de ta -buado em Jacar, como j de outra feita havia praticado. O juzo assim expendido no calou, contudo, no nimo dapopulao sobressaltada; e da resultou a expedio do telegrama, que jdeixei trasladado. O governador conselheiro Lus Viana, em resposta ao juizlhe ponderou que no podia mover fora, induzido por simples boatos; mas aomesmo tempo, lhe recomendou que, mandasse vigiar as estradas em distn-cia, e, verificado o movimento dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o Governoficava prevenido para enviar incontinenti, num trem expresso, a fora necessriapara recha-los e garantir a cidade . Era esta a situao quando, a 4 de novembro, o Dr. ArlindoLeone dirigiu novo telegrama ao governador, nos termos que se vo ler:38 Aristides A. Milton

    "Conselheiro governador Pedro Serafim, emissrio Conselheiro, chegado fazenda Tenente Mota afirma Ter vindo esperar bandidos sados, ontem Canudos, passando es- trada Manioba, distante daqui oito lguas. Trajeto todo 40 lguas. Receio que espias, postos na estrada, cheguem tempo impossvel dar providncias satisfazerem. Convm mltiplos motivos evitar combate dentro da cidade. Serafim afirma s- quito Conselheiro ser superior a 1000 clavinoteiros. Nega in- tenes perversas, limitando 9 dias Conselheiro conduo ta- buado. O desnimo domina a populao, apreensiva da pos - sibilidade de invaso, antes da chegada de fora." Das prprias palavras do telegrama se v que o coronelJoo Evangelista parecia estar com a verdade, quando contestava o pro-psito sinistro, geralmente atribudo ao Conselheiro. O emissrio destetambm negava-lhe intenes perversas, e assinalava como motivo de sua via-gem ao Juazeiro a conduo do tabuado. Entretanto, o governador havia por cautela requisitado dogeneral comandante do distrito militar 100 praas de linha, a fim de se -guirem para aquela cidade ao primeiro aviso do juiz de direito respecti-vo. Semelhante medida fora ditada pela circunstncia de existir, ento,na capital do Estado um nmero limitado de praas de polcia, por estara maior parte delas em Jequi, Lenis, e outros pontos, onde a ordempblica tinha sido alterada. De maneira que, logo depois da recepo do telegrama de 4,o governador pde fazer seguir para Juazeiro um forte destacamento do

  • 9 Batalho de Infantaria do Exrcito, sob o comando do tenente Ma-nuel da Silva Pires Ferreira, que ali deveria proceder de acordo com ojuiz de direito da comarca. A 7 de novembro, esse mesmo magistrado telegrafava aogovernador assim: "Requisito ordem a telegrafista para reter qualquer tele- grama, porventura expedido, noticiando partida expedio contra o Conselheiro. Fora chegou. Envido esforos para cumprir as ordens de v. ex. Arlindo Leone." A Campanha de Canudos 39

    As ordens a que esse telegrama alude relacionavam-se com amarcha da fora, que o governador punha disposio do juiz de direi-to, confiando em que este combinaria com o tenente Pires Ferreira omelhor meio de repelir a gente do Conselheiro. E, efetivamente, entre os dois ficou assentado que convinhasair ao encontro dos bandidos, a fim de evitar que eles invadissem a cidade . Algumas pessoas, no entanto, se insurgiram contra a delibera-o assim tomada; e dentre elas o coronel Joo Evangelista, que ao pr-prio comandante da fora fez ver que era verdadeira aventura arris-c-la numa luta inquestionavelmente temerria, vista da desigualdadede condies em que as duas partes contendoras se encontrariam. Repelidas em definitiva as observaes por esse modo ex-ternadas, e aceito como ficara o alvedrio de ir atacar o Conselheirono ponto mesmo onde ele ento se achava, de caminho para o Juazeiroconforme se dizia, no quis o j citado coronel se recusar ao servio,que dele exigiam, em nome do Governo e da paz pblica. Forneceu,portanto, a cavalhada e os guias de que o tenente Pires Ferreira careciapara realizar o seu plano de ataque. E, a 12 de novembro, a fora assim preparada partiu doJuazeiro. Sem que, durante todo o percurso de 192 quilmetros que fez,houvesse encontrado o menor obstculo sua viagem, no dia 19 acam -pou ela no arraial de Uau, que fica distante de Canudos 114 quilme-tros aproximadamente. Na manh de 21, os sequazes do Conselheiro, em nmero de130, mais ou menos, acometeram de surpresa esse destacamento. Tra -vou-se um vigoroso combate, em que morreram da tropa do Governo 1 oficial e 10 praas, fora mais de 20 que saram feridas; tendo os ja -gunos perdido tambm cerca de 100 homens. O tenente retrocedeu, declarando que se dispusesse de umreforo de 100 soldados teria marchado sobre Canudos. Antes de se retirar, contudo, a fora pusera fogo ao arraial, oque no se compadece alis com a razo e a justia. Porquanto, nemUau era habitado pela gente do Conselheiro, que ali estava apenas depousada, nem que o fosse nada acrescentava ao brilho da diligncia40 Aristides A. Milton

    tamanho descomedimento, que at poderia prejudicar interesses de ou -tros brasileiros, alheios inteiramente ao conflito. Nos tempos que correm, no estado atual da civilizao, e pe -rante os princpios do direito das gentes moderno, tais excessos no po-dem ser justificados, sobretudo tratando-se de uma guerra civil. Circunstncias diversas, porm, concorreram para que a fora,comandada pelo tenente Pires Ferreira, chegasse a Juazeiro quase emcompleta debandada. Abandonara ela em Uau grande quantidade demunies de guerra, e algum armamento mesmo, parte do qual foi pos -teriormente obtido pelo j citado coronel Evangelista, que em tempo re-meteu-a para o chefe de polcia da Bahia. Por toda a estrada, verifi-caram-se algumas deseres. Do tratamento dos feridos, que penosamente alcanaram

  • aquela cidade, se encarregou, com a maior solicitude, o Dr. Antnio Ro-drigues Cunha Melo, que a todos conseguiu salvar, sendo-lhe necessriopara isso praticar diversas operaes cirrgicas. Poucos dias depois, o destacamento se recolhia a seu quartel,na capital do Estado. Em aviso de 11 de dezembro, o Ministrio da Guerra man -dou louvar o tenente Pires Ferreira pelo modo por que se portara ante ainvaso de malfeitores no arraial de Uau, e bem assim o sargento Anacleto e o sol-dado Caetano (sem mais nada) dos quais fizera o referido tenente especial meno. Para conhecimento cabal do incidente, todavia, me pareceacertado transcrever aqui a parte, dada a respeito do combate pelo pr-prio tenente Pires Ferreira. Do cotejo dela com o que j deixei relatado resultar, natural-mente, toda a verdade dos acontecimentos, que muito importa no sejadeturpada jamais. Leiamos, pois, o interessante documento. "COMBATE DE UAU Logo que chegamos ao arraial, no diadezenove, mandei estabelecer o servio de segurana, postando guardasavanadas nas quatro estradas que ali conduzem em distncia conveniente,a fim de evitar qualquer surpresa; nomeei o pessoal de ronda, e conser-vei toda a fora no acantonamento. O dia vinte passou-se sem nenhumin cidente notvel, a no ser o abandono do arraial noite, e furtivamente, A Campanha de Canudos 41

    por quase todos os habitantes. Das informaes que colhi consta queassim procederam com receio da gente do Antnio Conselheiro. Incli -no-me, porm, a crer que se achavam mancomunados com esta paraatraioarem a fora pblica, como o fizeram, pois que at os poucos queficaram no arraial no foram ofendidos pelos bandidos, e garantiram-meantes do combate que ali no havia fanticos, nem adeptos do AntnioConselheiro; que este e o seu povo se achavam em Canudos, de ondeno sairiam, no obstante terem eles a certeza quando isso me afirma-ram de que os mencionados bandidos se achavam a quatro lguas dedistncia, dirigidos por Quinquim Coyam, e viriam atacar a fora na ma-drugada do dia imediato. "s cinco horas da manh do dia vinte e um, fomos surpre-endidos por um tiroteio partido da guarda avanada, colocada na estradaque vai ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multi-do enorme de bandidos fanticos, resistiu-lhes denodadamente, fazen-do fogo em retirada. Por essa ocasio o soldado da segunda companhiaTeotnio Pereira Bacelar, que por se achar muito estropiado no pdeacompanhar a guarda, foi degolado por um bandido. Imediatamente,dispus a fora para a defensiva, fazendo colocar em distncia convenien-te do acantonamento uma linha do atiradores, que causou logo enormesclaros nas fileiras dos bandidos. Estes, no obstante, avanaram sempre,fazendo fogo, aos gritos de viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro!Viva a monarquia, etc., etc., etc., chegando at alguns a tentarem cortar afaco os nossos soldados. Um deles trazia alada uma grande cruz demadeira, e muitos outros traziam imagens de santos em vultos. Avana-ram e brigaram com incrvel ferocidade, servindo-se de apitos para exe -cuo de seus movimentos e manobras. Pelo grande nmero que apre -sentaram foram por algumas praas calculados em trs mil! H, porm,nisso exagero, proveniente de erro de apreciao; seriam uns quinhen-tos, mais ou menos, os que nos atacaram, divididos em vrios grupos,que procuravam envolver a nossa fora e apoderar-se do arraial, o queno conseguiram devido s enrgicas providncias que tomei, eficaz-mente auxiliado pelos oficiais e a disciplina das praas. Conseguiu, en -tretanto, grande nmero deles, apoderar-se de algumas casas abandona-das, que se achavam desguarnecidas por insuficincia da fora e de ondenos fizeram algum mal, sendo necessrio incendiar as ditas casas, a fim

  • 42 Aristides A. Milton

    de desaloj-los, o que conseguimos depois de algum trabalho. Chegadosa esta fase do combate, depois de mais de quatro horas de luta, conhe-cendo que eles j se achavam desmoralizados, pela dificuldade com querespondiam ao nosso fogo e porque j tentavam fugir, passei a tomar aofensiva, e fiz persegui-los at meia lgua de distncia, morrendo muitosdeles nessa ocasio, e ficando o resto completamente desbaratado. Nolevei mais longe a perseguio e mandei tocar a retirar, por constar-meachar-se um grande reforo deles um pouco adiante, e por estar a nossagente cansada e sem alimentar-se desde a vspera. Alm disso cum-pria-me reunir os elementos que me restavam, a fim de resistir a umanova agresso que porventura se desse. Seria pouco mais ou menosmeio-dia, quando terminou essa luta, com o regresso de nossas praasao acantonamento, sem que durante a perseguio tivesse sofrido preju-zo algum. Na fase mais aguda do combate, houve fogo incessante e re -nhido de parte a parte, durante mais de quatro horas. Todos os oficiais,inferiores e praas portaram-se nessa grave emergncia com um heros-mo e uma disciplina sem par, o que muito concorreu para o seu bomxito, faltando-me palavras com que possa exprimir o procedimentonobre, correto e entusiasmador de que deram exuberantes provas, hon-rando assim a corporao a que pertencemos. "Os inimigos deixaram no campo e dentro das casas queocupavam mais de cento e cinqenta cadveres, sendo in calculvel onmero de feridos que tiveram e dos que foram morrer pela estrada, oudentro de caatingas. As nossas perdas foram alis insignificantes quantoao nmero, sendo, porm, dolorosamente sensveis e lamentveis, porterem sido vitimados pelas balas dos bandidos o distinto e temerrioalferes Carlos Augusto Coelho dos Santos, o bom e destemido segundo-sar-gento Emterio Pereira dos Santos Bahia, os valorosos cabo-de-esquadraManuel Francisco de Sousa, anspeada Antnio Joaquim do Bonfim,soldados Herculano Ferreira de Arajo, Vitorino Jos dos Santos e JooCrisstomo de Abreu, alm do j mencionado Bacelar, que foi degoladono comeo da ao, tendo sido assim a primeira vtima. Ficaram feridos:gravemente cabos-de-esquadra Cesrio Joo dos Santos, ManuelAntnio do Nascimento, Pedro Leo Mendes de Aguiar, anspeadas Ti-burtino de Oliveira Lima, Pacfico Severiano da Silva, Jos Maria Go -mes, Minervino Belo da Cruz, soldados Jos Antnio Moreira, Casimiro A Campanha de Canudos 43

    de Freitas Passos, Joo Ferreira de Pinho e Virglio Manuel dos Reis; le -vemente cabos-de-esquadra Atansio Flix de Santana e SalustianoAlves de Oliveira; anspeadas Joo Evangelista de Lima e Rafael Perei-ra Cardoso; soldados Antnio Bispo de Oliveira e Feliciano Jos dosSantos. Faleceram, tambm na luta, os paisanos Pedro Francisco de Mo-rais e seu filho Joo Batista de Morais, que nos serviram de guias, e quese portaram com galhardia na ocasio do combate, juntando-se fora eenfrentando os bandidos. Eram ambos casados e deixaram a famlia semrecursos. Perdemos, portanto, um oficial, um inferior, um cabo-de-esquadra,um anspeada e quatro soldados, que com os dois paisanos guias do umtotal de dez homens mortos no referido combate. Me cumpre aindanotar que alguns casos de morte se deram por excessos de bravura, prati-cados pelas vtimas que se expunham sem necessidade s balas do inimigo.Os cadveres do oficial e das praas foram cuidadosamente sepultadosna capela do arraial, os dos bandidos ficaram insepultos por no dispormosde tempo, de pessoal, nem dos instrumentos necessrios para o enterra-mento deles. Fomos forados a retirar para o Juazeiro, na tarde do mesmodia do combate, no s para evitar o mal que poderia advir da decom-posio de tantos corpos, como tambm pela falta de vveres e outrosrecursos em Uau.

  • "Os bandidos estavam ar mados em grande parte com carabi-nas Comblain e Chuchu, outros tinham bacamartes, garruchas e pisto-las, e quase todos traziam, alm das armas de fogo, grandes faces, foi-ces e machados. O Dr. Antnio Alves dos Santos, mdico adjunto doExrcito, que acompanhou a fora, prestou reais servios durante ocombate, tratando as praas feridas com interesse e desvelo, mostran-do-se na altura da humanitria misso que lhe fora confiada; tendo, po-rm, depois de terminada a luta apresentado sintomas de desarranjomental, entreguei os feridos logo que cheguei ao Juazeiro aos cuidadosdo facultativo civil Dr. Antnio Rodrigues da Cunha Melo, que se en-carregou do tratamento, fazendo-o com dedicao, solicitude e interes-se, operando at algumas praas, no que foi auxiliado pelo cirurgiodentista Brgido Pimentel, que muito se prestou durante alguns dias comincansvel zelo. "ARMAMENTO O fuzil Mannlicher, de que se acha ainda ar-mado o batalho, conquanto seja de repetio e de grande alcance, com44 Aristides A. Milton

    seu projetil dotado de uma fora de penetrao extraordinria, e dandoao tiro uma justeza admirvel, contudo no compensa com essas boasqualidades, aliadas a muitas outras que possui, o prejuzo resultante daextrema delicadeza de seu mecanismo que facilmente se estraga, ficandoo fuzil reduzido a simples arma branca, quando adaptado no extremodo cano o competente sabre-punhal. Basta um pouco de poeira ou umsimples gro de areia, introduzido na cmara, para que no possa o fer-rolho funcionar. Acontece, alm disso, que com o fogo um pouco pro-longado os carregadores no podem entrar no depsito com o nmerode cartuchos regulamentar, dilata-se o ao do cano que, aumentando dedimetro, dificulta a introduo dos cartuchos para o tiro simples, nopodendo a arma funcionar como as de repetio. Da um grande nme-ro de armas incapazes para o seu mister na ocasio oportuna, comoaconteceu durante o combate em que tive de tom-las das mos das pra-as, a fim de ver se conseguia faz-las funcionar, sendo infrutferos to-dos os esforos nesse sentido. Mesmo em muitas das armas que funcio-navam, o extrator, pea de grande delicadeza, perdida a necessria juste-za e enfraquecida a mola, deixava de extrair o cartucho, que tinha de serextrado a mo, o que prejudicou a rapidez do tiro. Esse armamento noconvm ao nosso exrcito, por no dispor ainda este de meios de trans -porte fcil, rpido e cmodo, de que dispem os exrcitos europeus;no merece a confiana dos oficiais, nem das praas que deles se utili-zam, por no poderem contar, com segurana, com seus bons efeitosnuma emergncia qualquer. "No obstante os assduos cuidados que tive pela boa conser-vao do armamento das praas, pois que como intuitivo do estadodele dependeria, em grande parte, em uma dada circunstncia, a vitriaou a derrota de nossa fora, ainda assim tive o desprazer de observar oque venho de referir. Durante o combate muitas armas ficaram tambminutilizadas por outros motivos, umas perderam os respectivos ferrolhosque saltaram com a violncia do choque na defesa arma branca, outrastiveram as coronhas partidas a talhos de faco ou por balas; algumas fi-caram com a camisa do cano inutilizada por bala, muitas sem seus sa -bres-punhais, e ainda outras com os depsitos arrebentados. A poeira eas escabrosidades das estradas, o calor de um sol abrasador e insuportvel,as condies em que foram feitas as marchas, sem comodidade de or - A Campanha de Canudos 45

    dem alguma, tudo isso, frustrando os meus previdentes cuidados, deramo resultado acima apontado. Acontece ainda que essas ar mas, que servi-ram na campanha de S. Paulo e Paran, em mil oitocentos e noventa equatro, j se achavam bastante usadas, tendo a mor parte delas sofrido

  • consertos. Outras fossem as condies de resistncia e solidez de seumecanismo, e melhor teria sido o resultado obtido na luta. "FARDAMENTO O das praas que compuseram a fora demeu comando ficou bastante estragado, em estado mesmo de no podercontinuar a servir, devido ao dos raios solares, da chuva e da poeira,e ainda do uso constante que dele fizeram, por necessidade, pois queno s marchavam, como dormiam com ele, noite, sobre o solo nu ebarrento das estradas, pela falta de barracas; e tambm pela necessidadede conservar-se a fora sempre em armas em stios cuja topografia nosera desconhecida, e onde no nos podamos fiar em informaes adredepreparadas, com o intuito de nos iludir. Muitas praas tiveram ainda al-gumas peas de seus uniformes perdidas por completamente inutiliza-das, como fossem tnicas de flanela cinzenta e cala de pano garana,rasgadas pelos galhos das rvores e espinhos das picadas, estrada, etc.Algumas perderam na marcha as gravatas de couro, outras tiveram nocombate os gorros e os capotes crivados de balas ou cutilados a faco,em farrapos e ensangentados. Ainda outras perderam os gorros, leva-dos pelas balas. O calado incapaz de resistir a uma marcha to longa, epor to maus caminhos, estragou-se, ficando um grande nmero de pra-as descalas. "D ISCIPLINA Foi mantida em toda sua plenitude, sem quetivesse havido infrao alguma digna de nota, durante todo perodo demeu comando. Quartel da Palma, na Bahia, 10 de dezembro de 1896. Manuel da Silva Pires Ferreira, tenente." Apesar da segurana com que o tenente Pires Ferreira fala dodesbaratamento dos fanticos, a verdade que a opinio pblica doEstado no se satisfez com a vitria, apregoada por esse militar. Fosse porque Canudos no tinha sido atacado, fosse porque aretirada da fora impressionara mal os espritos, fosse enfim porque ossoldados voltaram para Juazeiro numa completa desordem; certo ningum acreditou que aquele triunfo pudesse servir de corretivo gen-46 Aristides A. Milton

    te do Conselheiro, ou produzir qualquer efeito favorvel tranqilidadedas paragens que ela estava alarmando. Muito pelo contrrio, cresceu com a notcia da ocorrncia oprestgio do velho cearense. Os seus antigos correligionrios redobraram-lhe a confiana,e fizeram maior praa do seu valor. E a emigrao para Canudos aumentou desmedidamente. Foi com certeza impressionado por esses fatos que, a 22 dedezembro de 1896, o comissrio de polcia do municpio de Pombal re-solveu oficiar ao chefe respectivo, nos termos que se seguem: "Exmo. Sr. Corre-me o dever de levar ao vosso conheci-mento, alm do estado de aflio em que se acha a populao deste mu-nicpio, em consequncia do terror que tm incutido as ameaas de de -vastao e aniquilamento, que todos os dias lhe fazem os fanticos deAntnio Conselheiro, as ocorrncias posteriores ao combate de Uau,que se tm dado no territrio deste termo e nos circunvizinhos. "Parece que se decorrerem mais alguns dias, sem que se travenovo combate entre as foras legais e os sequazes de Antnio Conse-lheiro, a populao deste municpio e a dos limtrofes ficaro reduzidasa menos da metade, tendo em vista os numerosos grupos que tm sadoem direo a Canudos, no propsito de reforar os fanticos de Ant-nio Conselheiro. "Todos os dias chegam a esta vila notcias verdadeiras, trazi-das por pessoas que moram margem das estradas que conduzem a Ca-nudos, da passagem de grandes grupos de homens armados, que se diri-gem para ali, no empenho por eles confessado de se baterem e morre-rem pelo seu Bom Jesus, pois tal o modo por que eles tratam esse ho-

  • mem pernicioso, que tantos males j tem causado a esta zona sertaneja,seriamente ameaada por ele, e pelos seus, de maiores danos. "Ainda hoje tive informao de terem sido encontrados, on -tem, entre as fazendas Salgado e Junco, no extremo desta freguesia coma do Maacar, cento e muitos homens ar mados, que diziam ir para Ca -nudos "cortar soldados". Estes e todos que l esto asseveram queno tm medo de morrer, porquanto a morte para eles, segundo a ga - A Campanha de Canudos 47

    rantia que lhes d Antnio Conselheiro, importa uma mudana para oCu. "Infelizmente, no so somente os municpios desta zona quetm contribudo com reforos numerosos para a continuao da luta en-tre Antnio Conselheiro e o Governo, pois pblico e notrio nestavila, por notcias vindas de diversos pontos do rio So Francisco, que dediversas localidades daquele serto tm descido para Canudos grandescontingentes de homens armados e de munies blicas. "Contam como certo que somente da Vrzea da Ema, mu -nicpio de Capim Grosso, que um homizio de criminosos daquele ter-mo e de outros, foram duzentos e muitos homens ar mados, e de Rode-los, termo de Curral dos Bois, trezentos e tantos. "As autoridades de vrios municpios, alm de muitos outroscidados, que tm de alguma sorte feito oposio propaganda dos su -postos milagres do clebre fantico, esto ameaados de morte por ele epelo seu squito. A notcia da retirada da tropa de linha causou profun-do e geral desnimo em todo este serto, e inspirou grande vigor aos fa-nticos, que vem nisto um milagre do santo cuja vitria eles j garan-tem. Sade e fraternidade. Exmo. Sr. Dr. chefe de Polcia e seguranada Bahia. O comissrio de polcia, Alcides do Amaral Borges." Como quer que fosse, o governo carecia restabelecer a suafora moral, incontestavelmente abalada. E com esse fim tratou ele de organizar uma outra expedio,que deveria ser mais respeitvel pelo nmero de soldados, que a compu-sesse, tanto quanto mais bem aparelhada para o campo de ao, em queteria de agir. O major Febrnio de Brito, do 9 de Infantaria do Exrcito,foi nomeado ento para comandar essa fora, que seria formada por300 praas de linha e 100 da polcia baiana. Mas, daquelas apenas 100puderam partir. Com a diligncia seguiram 8 oficiais do Exrcito e trs docorpo de polcia, um mdico, um farmacutico e um enfermeiro com acompetente ambulncia, alm de um canho Krupp, calibre 8, conve-nientemente guarnecido, e acompanhado de alguma munio.48 Aristides A. Milton

    O comandante da expedio foi autorizado pelo governador adespender por conta do Estado o que julgasse necessrio para bom xitoda incumbncia, que lhe estava cometida. E se expediram, simultanea-mente, diversas providncias no sentido de se lhe prestarem todos osmeios de transporte e outros elementos de que viesse a carecer durantea sua marcha. O juiz de direito do Juazeiro recebeu, ento, ordem de setransportar para a vila de Queimadas, que fica mais perto de Canudos, eonde deveria ele auxiliar a mobilizao da fora expedicionria. No dia 25 de novembro, entretanto, passou esse magistradoum telegrama ao governador participando-lhe que o Conselheiro dispunhade um nmero superior a mil homens, armados, municiados e bem entrincheirados. Na mesma data, a expedio se ps a caminho, e a 26 entrouela em Queimadas, de onde aquele juiz telegrafou declarando nada ter fal -tado ao major, que estava satisfeito.

  • A seu turno, o major Febrnio expediu despachos telegrfi-cos, tanto ao governador como ao chefe de polcia da Bahia. Ao primei-ro dizia parecer-lhe a ele poder atacar Canudos com vantagem, bastandopara isto de 400 a 500 e poucos