A bela senhora (Romance) R ebecca F argo
A bela senhora
(Romance)
Rebecca Fargo
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Sumrio
Captulo 1 - A bela senhora ................
Captulo 2 O escritor .......................
Captulo 3 A terra estrangeira .........
Captulo 4 Um crime ......................
Captulo 5 Desconfiana .................
Captulo 6 Evaso ..........................
Captulo 7 Volta pro aconchego.........
Captulo 8 O precipcio .....................
Captulo 9 O best-seller ....................
Captulo 10 Revival .......................
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Captulo 1
A bela senhora
Um movimento suspeito despertou do
sono a dona solitria do palacete. Seria um rato
como tantos outros naquele lugar ridiculamente
chato de se arrumar? Ela, que ali morava desde que
fora agraciada pelo prmio da aplice, assim, sem
nenhum auxlio, quase acostumara com essas
intruses. Mas naquele dia o sono lhe custou a vir,
estava ainda exausta da ltima viagem de negcios.
Difcil era continuar naquele esprito; contudo, sem
nenhum representante que lhe resolvesse a vida
que ora se encaminhava, era a nica com quem
poderia contar sempre: foi uma promessa que fizera
perante seu Senhor. Teve, ento, que desprender-
se daquela reflexo preguiosa para verificar o
estrondo. E logo outro pde ouvir. E depois outro
mais cauteloso. Acendeu o candelabro, fitou-se no
espelho, suspirou, e, de pisar leve, saiu do quarto
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rumo ao corredor a sua esquerda que dava para o
hall frontal de onde os barulhos surgiram.
Corajosamente inspecionou cada canto e porta.
E quando o medo parecia comear a lhe
consumir pela terrvel falta de respostas, seguiu at
ltimo cmodo da parte baixa, e l presenciou, sem
surpresa, um banquete de ratazanas e outros bichos
em sobra farta de comida esquecida na mesa
principal. Riu-se disso com prazeres na carne. E
voltou-se, gargalhando de tudo, para seu descanso,
sem deixar de mirar-se outra vez no cristal: Como
sou porca! - Naquela cidadela longe do mundo,
quem a conhecesse certamente a descreveria assim
mesmo.
Num desdm de conformismo, fechou os olhos
e dormiu. Dormiu que sonhou. E no seu sonho, tudo
era sempre igual: s, num palacete, entre ratos e
comidas, tendo uma cama de respeito pra rir at o
sono vir. Sem saber que um intruso, alm de bichos
e sujeira, de fato, havia ali o tempo todo.
- Bonito. Quem escreveu?
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- No sei. Encontrei este manuscrito no
campus. Estava dentro de um livro de
hermenutica.
Lourdes guardava o papel como relquia. E
sempre que possvel o mostrava a algum. Na
verdade, queria entender melhor aquele achado,
que mais lhe parecia um aviso do alm. Talvez um,
ou outro pudesse lhe aliviar a tenso provocada
pelo assombro do conto. Um enigma existia ali que
lhe perturbava, e mesmo que aquele amigo ou
outro ignorassem tais prerrogativas, elas existiam
latentes. Quem poderia estar ali junto com a
Senhora em seu palacete sem que esta soubesse?
Nestas reflexes foradas a que ela se submetia
masoquisticamente, somente a hora fatdica podia
lhe trazer brandura: Todos os dias uma moa de
branco chegava gentil at Lourdes trazendo-lhe
remdios. Um para as dores do corpo, outro para as
dores da alma estas que ela bem conhecia em
flashes rpidos, confusos, de uma noite, uma
pessoa que acenava e sumia.
Essas lembranas lhe vieram depois, dois ou
trs anos mais tarde, sempre do mesmo jeito e na
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mesma motivao: era s estar com algum que
revirasse suas emoes secretas.
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Captulo 2
O escritor
Eu queria escrever um romance que falasse
de amor. Mas no seria aquele amor clich que a
gente v noutros romances da onda. Na verdade,
no seria necessariamente de amor, aquele de
nosso costume. No sei bem explicar que tipo de
amor seria. O que sei que duas pessoas se
encontrariam num clube, partilhariam um chope
numa mesa para dois, olhar-se-iam e, em seguida,
dirigir-se-iam a um hotel pequeno na Augusta para
uma transa de quinze a vinte minutos. Depois
trocariam telefone e nunca mais se encontrariam.
Talvez, passados dias ou anos de
esquecimento, sem telefones ou qualquer contato,
um andasse numa rua deserta, esquecida, cruzasse
com algum que o desejasse abraar, ameaador, e
de medo, fugisse sem olhar de quem, at t-lo
distante e isto o fizesse lembrar de algo
casualmente semelhante.
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Outro, por sua vez, numa trilha de parque,
sentasse pra descansar e iniciasse um longo papo
com outros dois que j ali estavam, falando sobre o
fracasso do Palmeiras no ltimo campeonato. De
repente um assalto, dois mortos e uma bala alojada
nas suas costas, deixando-o imobilizado tronco
abaixo. No haveriam pistas. O Notcias Populares
traria na capa uma manchete vermelha do ocorrido.
Renato iria ler e como qualquer um de ns,
lamentaria a banalidade de tudo aquilo a cada dia.
Violncia, sangue, sensacionalismo e um suspeito
que deveras conhecia de algum lugar...
Guardaria o jornal, receberia uma ligao na
qual seria informado de uma nova proposta de
emprego atravs de um amigo. Aquele ms poderia
ter sido a poca que mais enviara currculos numa
tentativa desesperada de mudar de emprego:
- No d mais trabalhar em banco! Pagam
pouco e exigem demais! ... e acabaria ficando ali
por mais dois anos at receber um cliente especial:
- Quanto a taxa de manuteno do banco?
- 0,2 por cento. - ... e um olhar mais profundo,
talvez de pena pela cadeira de rodas do cliente, to
novo!
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- Nos conhecemos?
- Tambm tive esta impresso... Pode assinar
aqui, por favor?
- Aqui?
- .
- Em quanto tempo liberado?
- 24 ou 48 horas.
- Obrigado, ento!
- Obrigado digo eu!
Ao tornar de sua distante divagao pelo toque
gentil da secretria que lhe trazia caf, o escritor
Allendes decidiu no mais insistir naquele projeto.
Eram duas e quarenta do dia de seu aniversrio, um
dia trs de julho, e mesmo naquela data to
significativa, nem ele e nem a moa conseguiram
descansar de modo favorvel. Ele tinha dor-de-
cabea, ela precisava recolher os papeis amassados
que cobriam o piso do gabinete improvisado. E l
pelas dez da manh correriam para o aeroporto em
viagem a um congresso de jornalistas na Rssia.
No avio, mente a mil por hora, numa
ansiedade ensurdecedora, Allendes maquinava
planos rabiscando cada pgina da agenda, enquanto
Ana tentava recuperar o sono perdido do dia
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anterior. Aquele seria seu melhor presente de
aniversrio, para o qual se preparara todo aquele
semestre. No entanto, seria corrido como todos os
outros dias, com um agravante: chegariam no fim
da vspera, sem tempo para turismo. Fechou tudo
na pasta que trazia sobre as pernas e se ps a olhar
a companheira de viagem sua esquerda, que
naquele momento pegara no sono como que
dopada. Tinha pena de seu esforo, merecia ser
recompensada. E nesse pensamento altrusta,
pareceu dormir por vrios minutos at ser chamado
por ela outra vez, agora num tom levemente
suspeito:
- Pedro, os documentos...!
- Os documentos...? enterrompe-lhe a fala
no diga que... no acredito...! - Estavam num
envelope azul timbrado da agncia!...
- No, no! Desculpe: esto aqui comigo
disse a moa aliviada. Era comum esquecerem as
coisas naquela rotina estressante que levavam. Ele,
recm-separado alm de recm-desassociado do
jornal que ajudara a fundar e que fizera parte de
suas prioridades nos ltimos quinze anos, tinha
motivos pra ter aquela cabea passvel das piores
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proezas do esquecimento. Ela, recm-contratada,
tentava no vacilar no ofcio, reconhecendo tambm
suas limitaes e as dificuldades a que fora
submetida.
Depois de uma escala em Lisboa, o voo seguiu
direto para a capital russa, onde permaneceriam por
uma semana a participarem de uma programao
dedicada a jornalistas do mundo todo, que inclua
assembleia com o presidente Putin, de fundamental
importncia para os novos rumos profissionais de
Pedro. A viagem fora encomendada por um
importante editor e financiada por uma companhia
parceira, de propriedade um grande amigo do
escritor.
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Captulo 3
A terra estrangeira
Ao pisar em solo russo, um frio de matar.
Dirigiram-se ao hotel contratado e l ficaram at a
hora do compromisso.
Pedro Allendes era um poliglota muito
admirado: falava russo, mandarm, hindi, alm de
italiano, francs e ingls. Esta habilidade lhe abrira
as portas para a vida pblica como correspondente
internacional num grande jornal logo que saiu da
faculdade. Desde ento, no parou mais. Foram
anos entre grandes empresas jornalsticas, at se
casar e decidir montar sua prpria empresa. Foi um
colega de profisso que o instigara. Ento,
montaram o Dirio Paulistano, que durante anos foi
um dos cinco mais importantes da metrpolis, sob
os esforos, inicialmente, dele e de Igncio, e
depois, de outros trs scios, que somaram
recursos para lhe ampliar o alcance. Mas nos
ltimos anos uma crise ocasionada por interesses
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opostos causaram sua sada da empresa que criara.
Tal crise resultou tambm na sua separao da
mulher com quem fora casado por quase uma
dcada e sem filhos. Allendes, portanto, no
titubeava nas propostas de viagem profissional,
ainda mais naquele momento em que tinha que
recomear sua carreira. Alm do mais, no
precisaria preocupar-se com quem deixava em
casa, nem mesmo queria aquele temor outra vez.
No congresso, muita gente, flashes, confuso.
O relgio marcava cinco da tarde e nem sinal de
Putin, a estrela da festa. Uma entrevista se iniciava
num campus com um congressista, outra se findava
na entrada com um magnata, e debates e mais
debates corriam por espaos do luxuoso hotel. Uma
crise aportava-se em territrio russo que ameava
guerra civil. Allendes dedicara-se a uma dessas
atividades at decidir, de exausto, voltar pro hotel
da pernoite com Ana. Quando, ento, na sada, foi
puxado pelo brao por algum. Era um moo jovem
com um envelope nas mos para lhe entregar. Mas
o que? Por que? De quem? O jovem no soube
explicar, mas pareceu a Pedro que algum o
encomendou aquela ao. Ana pediu para verificar o
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envelope, mas o escritor preferiu faz-lo com
reserva.
ENQUANTO RELUTO AO VENTO EM SILNCIO
RENASCE O SONHO SEDENTO RUDE... TRIUNFO
INDIRETO, INCOMPLETO... TRISTEZA SERVIDA
MESA COM CALDAS DE DIO... RASKLNIKOV F.
D.
Antes mesmo que lesse o contedo do bilhete
datilografado, Pedro Allendes atentou para a
assinatura. Quem dentre aqueles milhares de
homens socialmente bem vestidos seria aquele cujo
nome homenagearia o famoso personagem de
Crime e Castigo? Tentou em vo reencontrar o
jovem entregador de relance, mas ao sinal do
taxista, foi-se ao hotel. E l, durante toda a noite,
leu e releu o suposto verso, pois no lembrava de
tal citao na referida obra. E aquele nome: seria
prprio ou mera homenagem, visto que a sigla
remetia ao ortnimo do criador?
Um gafanhoto saltava no vitr embassado do
quarto. Na cabea de Pedro parecia ter muitos
deles, saltando bestiais, misturados a papeis e
baticuns grficos. Aquela noite no a ser boa,
pensava. Ento o interfone tocou:
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- Sr. Allendes, temos uma encomenda
destinada a voc aqui na recepo.
- Encomenda..? Sim! C-claro! Deso a logo.
E ento, foi receber a tal encomenda. No era
to formal assim: um envelope com fotos e pginas
de jornais recortadas endereadas a ele e sem
remetente. Ana assustou-se com a correspondncia.
Allendes apenas fuava querendo entender melhor.
As fotos, a pouco reveladas, eram suas, na coletiva
da manh; e os recortes eram de matrias
fresquinhas do evento. Ana pareceu se interessar
pelo assunto. Despediu-se para sua acomodao
dizendo-se ir ao banho, mas deviou-se do caminho
e desceu o piso at o elevador rumo recepo.
Allendes pde perceber sua deciso, mas
permaneceu neutro, apostando alguma novidade
por parte da secretria.
Antes que abrisse a boca, Ana foi interropida
por uma mulher idosa que estava no salo de
acesso, a qual lhe pediu segredo sobre o que iria lhe
falar.
Ao retornar, Allendes dormia. Agora era ela que
no conseguia entender aquela determinao.
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Captulo 4
Um crime
No penltimo dia daquela viagem capital
russa, Allendes acordou exaurido. O caf estava
posto, o jornal do dia estava na mesa e junto com
ele um bilhete de Ana:
Sr. Allendes, desculpa pelo modo, mas tive
que sair rpido para resolver uma questo. Ao
voltar lhe explicarei melhor. Em meia hora estarei
de volta. Fique tranquilo.
O prximo evento seria dali a uma hora e meia
no Salo da Repblica na Rua F do centro de
Moscou. Enquanto arrumava-se prequioso num frio
de quatro graus, passava uma a uma as fotos que
lhe foram enviadas. No sabia se eram cortesia, j
que aqueles hoteis tinham sempre um quitute pra
agradar seus clientes. E como tratava-se de terreno
russo... No so um povo adepto de formalismos ou
gracejos, pensava.
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Passadas as horas previstas, comeou a
preocupar-se com a demora de Ana. Ento usou o
interfone para informar-se sobre a sada de sua
acompanhante:
- De fato, ela comunicou sua sada, mas foi
sozinha. disse uma voz jovem da recepo do
prdio
- Estranho. Ok. Pea-me um txi em quarenta
minutos, por favor.
Nenhum telefonema da assistente Ana, nem
qualquer notcia na recepo. Ento, o txi chegou e
esperou. Quando foi comunicado outra vez da
espera impaciente do servidor, Pedro, que fumava
num canto do living com uma xcara na outra mo
do terceiro caf, gelou. Ele tinha uma pssima
sensao de perda. Desculpou-se propondo pagar a
taxa do servio dispensado e dirigiu-se at a
dependncia da moa a fim de encontrar qualquer
evidncia de seu real destino. L, mexeu na agenda
sobre a escrivaninha, folheou alguns livros na
mesinha de cabeceira. Depois foi no banheiro, fuou
o lixo. Tudo estava impecvel. Ento pensou em
buscar indcios nas suas prprias coisas.
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Tomou novamente nas mos o bilhete recebido
no congresso. E depois tomou o bilhete deixado por
Ana. Finalmente teve coragem de descer para
conversar pessoalmente sobre aquela situao. Com
o elevador travado, desceu trs pisos pelas escadas
at o salo de entrada e l foi atendido pela mesma
senhora que estivera horas antes com Ana.
Chamavam-na Sra. Kirtsnv. Era uma funcionria
antiga e respeitada no hotel. Diziam que por sua
demasiada severidade, no tinha amigos nem
gostava de t-los. Os colegas aturavam-na
pacientes, pois sabiam que sua imposio era
determinante na empregabilidade deles. Era quase
dona daquele luxuoso ambiente destacado na Rua
L, prximo Praa do Sol. Gostava de falar e muito.
Antes que Allendes tentasse expor sua angstia, ela
desatou a fazer recomendaes:
- Evite sair nas ruas de Moscou na semana do
Avivamento, pois h muitos malfeitores solta.
Aquela moa que estava com voc saiu daqui com
uma menina de Kuskvna que propagava os
eventos do Avivamento e no apareceu. E levou
consigo o carto do estacionamento de que agora
necessitamos... Voc so ortodoxos, ou o que?
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- Senhora, estou muito preocupado pela
demora de Ana. Quem a moa com que ela saiu?
Como se aproximaram?
Kirtsnv no se deixava ouvir, e falava
descompaadamente. Invocara-se pela indisciplina
de Ana, e queria a todo custo o carto levado por
ela.
Depois daquele dificultoso dilogo, Pedro
Allendes foi almoar. Perdera todos os caros
compromissos do dia e tudo o que queria era saber
o paradeiro da secretria. Queria ao menos uma
ligao, uma notcia.
A noite chegou e Pedro teve que insistir no
assunto do sumio de Ana. Ligaram finalmente para
a polcia. Em dez minutos um agente russo entrou
no hotel procurando pelo escritor, que j havia se
recolhido ao seu apartamento. Trazia consigo fotos
pavorosas de um assassinato. Allendes teria que
acompanh-lo para fazer reconhecimento no mdico
legista.
A notcia de que uma mulher com as
caractersticas de Ana havia sido encontrada morta
num ambiente soturno e distante dali dilacerou o
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escritor. Aquilo no estaria acontecendo a ele, era
um sonho do qual logo acordaria.
Lutando contra seus pavores, Allendes foi
quela atividade. Foram duas horas de depoimento,
at poder encarar aquela torturante realidade: uma
mulher fora violentada at a morte e jogada entre
escombros de um prdio demolido h uma dcada,
no muito longe dali. Mas a mulher era loira, tinha
marcas naturais no brao esquerdo e outras
caractersticas que contrastavam com as de Ana.
Um alvio. No entanto, ainda havia um cruel
desencontro.
Allendes voltou ao hotel e tentou dormir.
quela altura, Ana era procurada pela polcia, e
j se podia ouvir relatos sobre seu sumio nas
rdios locais. Enfatizavam com frieza russa as
origens e descendncia da procurada.
s duas da madrugada o interfone tocou para
Allendes, que demorou a atender. Era um dos
agentes da recepo anunciando a chegada da
secretria.
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Captulo 5
Desconfiana
Allendes recebeu Ana com alegria nos olhos.
Eram muitas perguntas, as quais eram respondidas
secamente, tendo em vista o aparente cansao da
moa e o frio cortante que abraava cada metro
quadrado do hotel.
Fora convidada a participar de uma reunio
com membros do Avivamento e, equivocada,
deixara-se levar por eles at o local sem perceber
que este ficava numa provncia h 140 quilmetros
dali, razo porque ficara impossibilitada de se
comunicar. O convite partira de um residente do
hotel com o qual iniciara pequenos dilogos de
corredor.
O Avivamento a denominao de grupos de
esquerda do governo russo que propaga campanhas
e aes anti-governamentais. formado por
intelectuais, professores, filsofos e estudante que o
fazem secretamente a fim de evitarem desovas.
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Mesmo correndo algum risco, Ana sentiu que
poderia utilizar a experincia em algum trabalho
futuro, j que ela tambm pretendia publicar algo
do gnero. Mas desculpara-se pelo transtorno
gerado e pela falta de jeito com aquela situao.
Ainda teria que ir ao oficial justificar sua
ausncia que gerou buscas policiais pela regio. No
sabia o impacto que aquela histria poderia causar,
se aquilo no a caracterizaria como arruaceira,
terrorista, rebelde. Riram-se de sua histria e foram
dormir de corao calmo.
Pela manh, Allendes organizou-se muito cedo
para o ltimo compromisso naquele pas. Mas no
tirava da cabea a surpreendente aventura de que
Ana participara. Passou a observ-la melhor a cada
minuto daquele dia sempre com uma sensao de
que tinha consigo uma mulher suspeitvel, qui
perigosa. O que mais poderia esperar daquela moa
calada que fora contratada h to pouco tempo para
ajudar-lhe naquela misso na Rssia em seu mais
novo projeto? No que poderia ter falhado quando
decidiu optar por ela como nova contratada? O que
mais precisaria saber sobre Ana?
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Na mesa do caf, no elevador, no txi, em
qualquer lugar, Allendes no conseguia parar de
fantasiar aquelas coisas, sempre fazendo referncia
a mulheres da literatura de Agatha Christie ou Poe,
indo das bruxas da inquisio at Salom da Bblia.
Ela tentava prosseguir nos relatos dos equvocos de
sexta noite, falava de Ramn, de Korskv, de
tantos nomes e cenrios que Allendes no
conseguia fazer qualquer relao alm de
questionar mentalmente a ndole da moa. Ele,
ento, passou a buscar novos indcios de suas
suspeitas, seja no olhar, no falar, e mesmo no
vestir de Ana. No almoo, pareceu-lhe irrestvel
criar novos caminhos na tentativa de desvend-la:
- Ana, apelou voc no me disse que se
interessava pela poltica russa.
- Devo ter comentado sutilmente sem efeito...
Mas um gosto sem pretenes profundas. S
curiosidade mesmo.
Allendes engoliu o caf queimando-se.
- Voc foi notcia no rdio. Pensamos que
estivesse morta.
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- Eu sei. Tambm tive medo. Aqui as pessoas
parecem inconsequentes. Mas no o so. Tudo
acontece muito sensatamente.
- Foi um grande risco. Voc saiu sem combinar
nada comigo, no deixou pistas, ou as deixou
confusas... Ficou ausente por mais de seis horas...!
- Sinto muito pelos compromissos perdidos.
Confesso que me perdi um pouco sim. Pensei que
estivesse no controle.
Essas ltimas palavras serviram como uma
pea em um dos quebra-cabeas que Pedro Allendes
ideologicamente montava. Ele mesmo olhava-se no
reflexo do fum, questionava a prpria sanidade
mental naquele instante por tais pensamentos e
orava para que eles no lhe sucumbissem. Mas a
moa tambm passou a nutrir desconfianas desde
ento, e a partir dali a viagem de txi ao consulado
teve ares de mata-mata silencioso.
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Captulo 6
Evaso
preciso encontrar o caminho do mistrio,
dizia ele, os amigos sorrindo. Sempre que dizia isso,
fechava os olhos. Quando os abria notava as feies
dos seus amigos transfiguradas. Aquilo abria-lhe a
certeza de tudo, de repente. No havia caminho!
Seus amigos continuavam sorrindo, pois sempre
souberam disso, apenas ele se dava s utopias
forjadas em sua alma ingnua. E ento, virou-se
para a esquerda e caminhou dizendo que jamais
fitaria feio alguma...
- No gostei.
- Por que?
- No gostei!
A cama de Lourdes estava feita, mas a vontade
era de desmanchar tudo pela resposta ingrata
recebida do irmo. Havia pensado em cada palavra
para que delas recebesse seu aplauso. Era a quarta
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reescrita. Ela tinha trezes anos e ele completava
naquele dia dezessete.
A menina crescera assim, esboando reflexes,
poesias e outras impresses. Por esta atividade era
tida por chata entre os da sua gerao. No corria,
no danava, no agia como as outras meninas.
Este jeito de ser lhe era incmodo, mas no podia
fugir dele, afinal nascera e crescera assim. Tantas
vezes fora insultada na escola por aquele
comportamento. Mas seu pai s enxergava uma
menina, pensava. Isto, mesmo quando completara
dezoito anos. Por esta razo, quis sair logo de casa.
Foi com Jonas, seu primo mais prximo, com quem
ela conseguiu. Com seus quase vinte anos, ele sabia
de sua inclinaes, e certamente era o nico que
compreendia um pouco o esprito conturbado de
Lourdes. Convenceu os tios a permitir que a moa o
seguisse para cursar alemo no exterior.
Morando em Genebra, onde iniciaram namoro e
posteriormente se casaram, vieram a separar-se
aps anos de convivncia, rompendo todas as
relaes que tinham. Suas motivaes ela
encaixotou-as e as depositou no fundo do oceano
quando o cruzou na volta ao seu lugar.
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Dali, uma nuvem de escurido, que no lhe era
desconhecida, distanciou-lhe dos seus por quase
uma dcada. E ento, acordou amarrada com soros
numa cama de hospital. De onde nunca saiu
definitivamente.
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Captulo 7
Volta pro aconchego
A viagem de volta a So Paulo foi muito
reconfortante para o escritor Allendes e sua
assistente, e tudo o que queriam era descansar bem
para a prxima reunio de negcios com os
investidores do novo projeto. Ana iria pra sua casa
em Itapevi, onde reveria seu saudoso co Adolfo,
sobre o qual falara toda a viagem, o que deu a
Pedro a certeza de que a moa de fato existia. A
partir dali, falara de seu jardim, de flores, de ps de
amora e de projetos corriqueiros. Enquanto ele
sequer sabia se tinha uma casa, o que faria ao
adentrar nela.
- Qualquer coisa, me liga, Sr. Allendes!
- Sim, ligarei. Aproveite o feriado. disse
enquanto observava o esforo da moa com a
bagagem de mo a tentar segurar o cabelo do
vento.
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Logo, o escritor tomou o seu txi a caminho da
Vila Snia.
No caminho, os costumeiros engarrafamentos.
Desta vez, uma fila de muitos quilmetros da
Avenida Rebouas at a Avenida Francisco Morato
perturbava a todos que queriam chegar em casa
naquele sbado chuvoso. Como opo para passar o
tempo, Allendes tomou um dos livros que lhe foram
presenteados por Ana. Tinha uma capa roxa com
cones socialistas que ele apenas folheou e logo
jogou do lado. Mal fizera isso e ouviu do motorista
uma indagao:
- O Senhor aquele do Dirio Paulistano?
- Sim, sou.
- O que aconteceu? verdade que o Senhor
desviou dinheiro do grupo para financiar o Partido
Socialista?
- No desviei.
- Desculpa, Senhor! Mas foi o que li no Notcias
Populares quando houve o fim do seu jornal.
- Esse jornal uma vergonha, tambm no vai
resistir por muito tempo.
- Verdade. muito sensionalista disse o
rapaz, calando-se at chegar no destino. Allendes
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tambm no tinha disposio para aquele tipo de
conversa. Imagina: desviar dinheiro de sua prpria
empresa! Que absurdo! Ria-se por dentro sem
esboar qualquer expresso de confiana.
Dispensou a ajuda do taxista e subiu levando a
mala. Acabou esquecendo a bagagem de livros que
trazia do lado e, em rpido ponderamento, desistiu
de tentar reav-la.
Retirou as correspondncias do box e foi
cumprimentado pelo vigia do prdio.
No apartamento, tudo estava do mesmo jeito.
Pegou um pedao de queijo e encheu meia taa de
vinho. E foi direto pro computador a prosseguir na
digitao de um dos seus textos:
ANTNIA - Se eu pudesse contar tudo de
Antnia sem que isso a privasse da liberdade de ir e
vir e de poder sonhar com as coisas mais femininas
que esgotam o suspiro de mulheres como ela, eu
certamente faria. O fato que em seus cinquenta
anos ainda lhe vinha o sonho de um casamento
simples que lhe desse algumas dcadas de
felicidade, como fora o primeiro - bem, o primeiro
no fora to feliz assim, num sentido mais amplo da
palavra felicidade... tiveram filhos, eles cresceram e
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tiveram seus prprios filhos... enfim, e uma
exposio demasiada de tudo o que vivera poderia
lhe abrir algumas feridas ou matar alguns sonhos, e
eu prefiro que as cicatrizes sejam muito bem
lacradas e percam sua forma com o tempo, e que os
sonhos plantados vinguem...
Foi justamente no tempo ureo que Antnia
mais plantou. Literalmente. O trabalho na roa,
quando muito menina, lhe renderam calos e
msculo num corpo franzino e plido. Tambm
pescava, caava e brincava. Era criana.
- Me, posso ver seus peitos?
- No! Deixa de salincia!
Os cabelos brilhavam duros, na lagoa, na
procura de peixes pro almoo. Eram trs naquela
tentativa: a me, que escondia as vergonhas
molhadas de sua curiosidade pueril, e a irm caula
Francisca. O pai, sempre com um problema de
garganta razo porque no entrava na lagoa na
luz do dia - limpava os peixes lisos trazidos pelas
pescadoras. A me armava uma rede de cansao. E
de repente, as pequenas pescadoras tambm
viravam cozinheiras.
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Peixe era man. Graas a Deus eles davam em
certa abundncia. Ou porque ningum os queria, ou
porque o milagre de Jesus ocorria por ali. Quando
no era peixe, era pre, que, farejados pela
Princesa, eram pegos e louvados como prmio.
Mas almoo bom mesmo era quando iam na
casa da av. L tinham galinha, cuscuz, batata com
leite. Ficava h umas trs lguas a p. No caminho
rezavam por uma carona na estrada carroal.
Um dia estava l a tia Maura. Ela morava num
lugarejo por ali havia pouco tempo. E desde ento
visitava a parentela da redondeza com frequncia.
Era domingo. Antnia tinha dez anos.
- T grande! dizia pra aproximar bora
morar mais eu?
Antnia se recolhia, mas a ideia lhe parecia
boa. Comer e viver bem, numa casa de gente
empregada sempre lhe parecia algo fascinante.
Quando a tia ia embora, ficava s na vontade.
- D a bena a teu tio! dizia Maura olhando
pro recm-marido, um homem magro que, diziam,
tinha atestado de louco.
- Bena.
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Na casinha humilde que moravam, tinham
muito pouco, mas era um porto seguro. Corriam no
terreiro que era aguado de vez em quando pra
baixar a poeira da tarde. noite, contavam estrelas
pro sono vir. s vezes dormiam ali mesmo e o pai
doente as carregava pras redes friinhas armadas no
corredor.
Dia seguinte, pela manh, a rotina dos peixes
ou dos pres. tarde iam pra escola rural. Era
assim todos os dias e anos.
O sonho de Francisca era completar doze anos.
Doze era uma palavra muito bonita em sua boca.
Significava virar moa, namorar, usar suti. Feito
isso, sentia-se realizada. Para Antonia, no foi to
assim, exceto que outra vez a tia Maura com seu
esposo voltava a visit-los e desta vez a menina
estava disposta a aceitar o convite. Com cartorze
anos aquele lugar perdera sua importncia. Queria
conhecer outras bandas, outras pessoas.
No quintal, depois do almoo, enquanto os pais
dormiam, Antonia juntou-se tia que, sentada no
cho de terra sob a sombra de um velho juazeiro,
acariciava a nuca do marido escorado em seu
ventre.
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De repente a ateno do casal voltou-se para
Antonia.
Refizeram o convite de tantas vezes e contaram
as vantagens do lugar. Entusiasmada, a menina se
imaginava cuidando de uma casa maior, dos filhos
da tia ela esperava o primeiro nen e poderia
querer ter outros depois. Pensava nas fazendas que
ganharia pra confeccionar suas roupinhas como
aprendera da av. Nem pode perceber a mo que
lhe apalpava as pernas, depois o busto. Era bonita,
poderia ter o que quisesse.
Ento foi desperta daquela divagao. A voz
que ditava era Maura, mas a mo que lhe tocava
era Chico. E logo, tudo lhe fez sentido. Mas o
corao de menina lhe palpitava numa excitao
movida pela novidade assistida. Nunca sentira
aquilo antes. Era um alvoroo novo, inexplicvel.
No fim da tarde, todos se despediam, pois o
caminho noite no era bom. Antonia pegou uma
sacolinha de pano e ps nela suas coisinhas. O pai
sara sem rastro. A me tinha pena, mas imaginava
que seria melhor para a menina, j que era perto da
cidade e poderia comear a trabalhar. Francisca no
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esboou nada. Estava confusa com o pouco que
presenciara at ali.
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Captulo 8
O precipcio
Quarta-feira. O salo de reunies da Emritos
na Avenida Paulista estava lotado. Allendes
assustou-se quando viu cmeras e reprteres
apontando para ele. Queriam saber sobre suas
expectativas sobre os novos rumos do grupo, se era
majoritrio e, outra vez, como faria para compensar
o peso do escndalo de 1996. O assunto
permanecera enterrado at cogitar um revival, j
que o Dirio Paulistano fora vendido para o grupo
grfico Emritos, que queria Allendes no casting.
Estes explicou aos economistas que um novo
projeto exigiria uma nova perspectiva e que mais de
uma cabea pensante estariam mapeando a nova
empreitada considerando todos os possveis riscos.
Ento, depois da coletiva promocional, os
envolvidos fecharam-se no salo enquanto a
imprensa se dissolvia na multido fora da sala do
edifcio.
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L dentro, antes de todo mundo, estava Ana.
Vestia um sobretudo marrom comprado s pressas
na viagem Rssia. vista de Allendes, estava
linda. Olhos bem delineados, coque alto. Mas tinha
algo estranho no olhar.
Depois de toda a discusso sobre o formato do
jornal, filosofia, partido, bandeira, custos, ganhos
etc., partiram para um coffee-break numa saleta ao
lado. Allendes no resistiu em perguntar se estava
bem, se havia algum problema. Ela dizia que no
havia nada de mais, mas que voltara a ter uns
problemas gastrointestinais que tivera na
adolescncia. Com seus trinta e dois anos, Ana, que
a priori lhe aparentara uma solteirona pouco
atraente, agora despertava-lhe algo superior. Mas
ele jurava dentro de si no querer demonstrar
qualquer interesse e nem mesmo aliment-los.
Trabalhavam juntos h pouco meses, e ela ainda
estava em processo experimental; precisava
conhec-la muito bem como profissional, depois
como pessoa antes de tom-la como amiga.
Segundo lhe constava, ela tambm sara de um
casamento conturbado e tinha uma filha
adolescente que dependia daquele suporte
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financeiro. Tinha que manter a distncia e o
respeito antes de tudo.
Enquanto os direitores voltavam pros seus
lugares, Ana distanciou-se para tomar um de seus
remdios. Allendes assistia com discrio.
O cu em So Paulo comeava a mostrar sua
colorao real quando veio a noite roubar-lhe o
encanto.
Um telefonema fez Allendes voltar de sua
distante contemplao pela janela:
- Com licena, senhores! ausentou-se rpido
para atender a ligao. Era um nmero estranho.
Todos olharam desapontados para o jornalista, visto
que chegavam num momento crtico daquela
plenria. Tiveram que fazer uma pausa.
Ana, agora estabilizada sob efeito de remdio,
saiu como para o toillete, tomando o rumo da
escadaria onde Allendes falava ao telefone.
Ouvira palavras ternas, em baixo tom e depois
alguns resmungos.
Quando a conversa pareceu em finalizao, Ana
decididamente adentrou no toillete e trancou-se por
vrios minutos.
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- Desculpem, senhores! Voltemos pauta
disse Allendes temeroso aos companheiros que ali
j se encontravam em torno do mediador, e
silenciaram os assuntos aleatrios para
reconduzirem a reunio. Augusto, o mediador,
falava dos desafios que a nova empreitada
enfrentaria diante da concorrncia acirrada de
empresas tradicionais na capital paulistana, de onde
teriam que arrancar uma grande fatia dos negcios
se quisessem se consolidar.
Allendes agora ouvia a tudo com muito
interesse. Fez anotaes, gesticulou apoio,
reclamou. Pediu a palavra para falar sobre seus
projetos. Depois mencionou a viagem. Todas as
vezes foi interrompido e lembrado de que deveria
guardar aquelas elocubraes para um momento
oportuno, visto que ali se discutia a parte
administrativa do novo Dirio Paulistano, no qual
era meramente um empregado, que abrira mo de
seus poderes na tentativa de livrar-se das
acusaes que quase lhe privaram da liberdade
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Captulo 9
O best-seller
Era uma manh fria de dezembro. Lourdes,
com dez anos, sara para um camping escolar.
Trazia na sacola seus cadernos de versos, seus
lbuns de fotografia e um livro muito especial
dedicado pela me ainda em vida. Recebera-o aos
sete anos, logo que aprendera a ler sem grandes
pausas. Fora uma promessa que a me lhe fizera.
Ela morrera de um cncer, muito jovem, deixando
seus trs filhos, sendo Lourdes a menor. O pai
mantivera um luto de oito meses at encontrar uma
substituta para ela. Todos os filhos absorveram a
estranha, menos Lourdes. Ento, para uma ocasio
como aquela, a menina no deixava de reunir o que
pensava ela ter de mais valor.
Na hora do almoo, uma pequena confuso.
Assim que a menina ps-se em fila para ser servida,
deixou cair o bandeijo vazio, o qual fizera um
grande estrondo na cantina improvisada no stio,
excitando todas as outras crianas, sobretudo um
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garoto repetente da quarta srie a quem ela temia
muito pelo comportamento agressivo e hostil.
Ele, ento, passou a ridiculariz-la, puxando a
maioria em seu apoio.
No satisfeito com o que havia produzido, o
moleque tomou da menina a bolsa na qual ela
carregava seu inestimvel tesouro, em seguida,
tirando seus pertences de dentro, jogou-os na parte
profunda do lago.
Lourdes caiu em pranto eterno. Mesmo
suspendendo-se o garoto dali como punio pelo
atentado, e tendo os tutores resgatado parte dos
objetos encharcados, Lourdes nunca mais voltou a
sorrir, sobretudo pelo livrinho ganhado
carinhosamente da me falecida, que, selado nas
pginas pela crueza da gua, no pode mais ser lido
por ela.
Ento, ela o guardou assim mesmo consigo por
anos. Mas nunca quis voltar escola alguma. Nem
respondia a qualquer estmulo desde ento. Por
conta disso, passou a tomar dzias de
medicamentos em um lar psiquitrico, para onde
fora conduzida a pedido dos pais.
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Saiu dali e voltou vrias vezes. A primeira volta
foi quando atentara contra a prpria vida, depois,
quando atentara contra a de Helena, sua madrasta.
Uma vez, na Chcara, conheceu um rapaz com
quem se afeioou. Comiam juntos, passeavam,
conversavam. Diziam que um belo casal estava
formado. Ento Lourdes teve seu primeiro beijo.
Ao saber de tais novidades, o pai providenciara
para ela o retorno.
Agora seria diferente. Com dezoito anos,
Lourdes deveria encarar a realidade e viver as
consequncias de suas escolhas. Talvez novos ares
ajudassem-na a enxergar seu potncial oculto.
Lourdes poderia agora escrever sua prpria histria
com o final que desejasse.
Aquelas palavras realmente surtiram efeito em
Lourdes. Assim que pode, viajou com o primo Jonas
para estudar e nunca mais se soube de nenhum
retrocesso.
Escrevia cartas e mandava cartes incrveis de
todos os lugares por onde andava.
Montaram uma casa com um belo jardim em
Genebra e l, se soube, passaram a produzir
objetos de decorao que vendiam para colegas e,
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depois, com o aumento da procura, passaram a
fornecer para uma loja de departamento.
- ENQUANTO RELUTO AO VENTO EM SILNCIO
RENASCE O SONHO SEDENTO RUDE: TRIUNFO
INDIRETO INCOMPLETO TRISTEZA SERVIDA
MESA COM CALDAS DE DIO... Legal. Esse
tambm era da tia?
- do Versos perversos, que ela publicou
antes de morrer.
- Eu tinha doze quando ela se foi.
- Eu sei concordou Lourdes cabisbaixa. Ao ver
o rosto da companheira transformar-se com aquele
tipo de recordao, Jonas mudava de assunto e
provocava nova excitao:
- Olha isto! Estamos sendo convidados para
expor nossas peas no Espao Le Mousse! Vamos
comemorar?
Dali, pegaram a bolsa e foram um pub na Rua
L tomar vodka e comer canaps de salmo.
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Captulo 10
O revival
A campainha tocou cedo e inesperadamente
para o escritor Allendes, que pretendia dormir um
pouco mais naquele domingo. Ao olhar pelo visor,
outra surpresa: o motorista do txi tomado h
meses retornara com um pacote.
- So seus livros, Senhor! H tempos que penso
em devolv-los, mas nunca tinha a chance de vir
por esta regio. disse-lhe o homem assim que
Allendes abriu a porta.
- Trouxe ainda, a pedido do rapaz da portaria,
um telegrama. - entregou o motorista, o qual
continuou falando sobre a facilidade de encontrar
seu endereo, sobre a indiscrio na ltima vez,
sobre o modo costumaz das pessoas de esquecerem
coisas em seu carro e o cuidado que tem de buscar
a pessoa para devolv-lo, etc. Allendes no ouvia
nada, s tentava entender aquele telegrama em
plena dcada de noventa, enviado a ele por sua ex-
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esposa a fim de convid-lo festividade de ano
novo da nova famlia dela. Piada?
Aps as denncias de m administrao que
culminaram na expulso de Allendes da empresa
jornalstica que fundara, Susana pediu o divrcio,
pois no suportara o impacto daquele escndalo na
sua vida particular. Allendes sara a uma viagem de
negcios e quando voltou ela o havia expulsado de
sua prpria casa com a desculpa de que descobrira
tambm um suposto romance dele com uma
secretria. Assim, Allendes assumiu a separao e
mudou do Morumbi para a Vila Snia.
Susana ficou com tudo o que tinham e nunca
mais haviam se falado amigavelmente, exceto em
ocasies mpares inevitveis, como os eventos
familiares.
Mas, passado alguns anos, Susana casou-se
com um contador e teve um filho, que depois
passou a ser usado como emblema de sua duvidosa
masculinidade por aqueles que o conheciam
distncia.
Allendes no ligava para calnias e perdoava
sempre.
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Buscou entre amigos em comum um telefone
para contato e ligou para Susana.
- Al! era ela do outro lado da linha
- Susana! Recebi hoje um telegrama em que
me convidava pro reveilln na sua casa...
- Sim, gostaria que voc viesse. Soube que tem
amargado uma solido terrvel por a, ento falei
com o Marcelo e ele no viu nenhum problema nisso
e at me aconselhou a insistir no convite.
- Bom, vou pela gentileza do convite. Agradea
ao Marcelo por isso. Posso levar uma
acompanhante?
- T namorando?
- No, minha nova secretria.
- Hahaha... Sei. Pode trazer sim. Tchau!
- Tchau.
Aquele riso maldoso de Susana sempre o
intrigou. Parecia mesmo que ela criara um jogo a
fim de se beneficiar e quisera fazer dele a pea-
chave. Sem problema, ele no ligava. Reconstrura
sua vida outra vez. Voltara a viajar. Realizara o
sonho de ir Russia. Lanara um novo jornal. Mas
ainda no queria um novo casamento. Era cedo pra
jogar tudo pro alto por causa de sentimentalismos.
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Ainda assim, ousara ao falar de acompanhante.
Nem sabia se podia contar com a companhia de
Ana.
Nesses pensamentos, Allendes ligou o
computador e comeou a escrever.
(Esta obra est incompleta procura de
pessoas que se interessem em complet-la)