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A A A A l l m m a a d d a a R R o o m m i i s s e e t t a a Conto de José Antonio Martino
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A Alma da Romiseta

Mar 28, 2016

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Conto do escritor José Antonio Martino
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Page 1: A Alma da Romiseta

AAAAAAAA AAAAAAAAllllllllmmmmmmmmaaaaaaaa ddddddddaaaaaaaa RRRRRRRRoooooooommmmmmmmiiiiiiiisssssssseeeeeeeettttttttaaaaaaaa

Conto de José Antonio Martino

Page 2: A Alma da Romiseta

O autor permite a reprodução deste texto,

desde que citada a sua autoria.

Conto: A Alma da Romiseta

Autor: José Antonio Martino

E-mail: [email protected]

Page 3: A Alma da Romiseta

AAAAAAAA AAAAAAAAllllllllmmmmmmmmaaaaaaaa ddddddddaaaaaaaa RRRRRRRRoooooooommmmmmmmiiiiiiiisssssssseeeeeeeettttttttaaaaaaaa

José Antonio Martino

Como eles eram sempre pontuais, já não marcávamos o final

do nosso joguinho de biriba pelo relógio, mas pelo horário em que

começavam a gritaria e o quebra-quebra. Toda noite era a mesma

coisa. Nós, velhinhas do terceiro andar, começávamos a jogar por

volta das sete horas, após termos jantado a nutritiva canja de aipim

que a Gertrudes preparava com tanto esmero. Depois, sentávamos à

mesa para jogar e falar mal do próximo até a hora em que o marido

retornava ao lar e as brigas recomeçavam. O jovem casal morava no

apartamento de cima ao nosso e penso que o distinto mancebo não

deixava de ter certa razão em ralhar com a esposa, porque todas nós

sabíamos que ela costumava receber muita visita masculina quando

seu venerável marido se encontrava ausente, mas isso não é da

nossa conta.

O fato é que o moço chegava de suas farras toda noite meio

bêbado e, após abrir a porta do apartamento violentamente, gritava

para todo prédio escutar:

- Matilda, tô sentindo cheiro de homem!

Era quando recolhíamos nosso baralho e começávamos a nos

despedir.

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Então vinham todos aqueles nomes pouco elegantes para se

dizer a uma dama e as portas batiam e as coisas quebravam muito

naturalmente até que um silêncio lascivo parecia dominar tudo e as

estrelas piscavam vermelhas no céu excitado.

A tal Matilda mantinha numa estante da sala um velho ferro

de passar roupa, que funcionava com brasas, creio que de aço ou

mesmo de chumbo, pois o cujo era pesado como um diabo gordo.

Aparentemente, o ferro servia de vaso, pois ela lhe metia dentro

umas plantinhas murchas, mas o bibelô era menos enfeite do que

arma. Quando o marido avançava furibundo contra ela, a boa

senhorinha apanhava o ferro e o atirava sobre seus cornos, mas

fazia isto com tamanha destreza e arte, que procurava sempre errar

o alvo, pois o seu intuito era apenas amedrontá-lo. Tinha boa

pontaria e a mão tão adestrada, que muitas vezes o ferro passava

zunindo nas orelhas do rapaz e em mais de uma oportunidade ele

sentiu um ventinho gelado lhe roçando a barba mal feita.

Um dia, porém, ela errou, ou melhor, acertou em cheio a testa

do galhardo varão. O marido só não foi a nocaute, porque era muito

cabeça-dura, mas ficou possesso e, cambaleando troncho de cólera,

pegou a primeira coisa que achou ao alcance de sua raiva, atirando-

a contra a referida consorte que, por estar com sorte, não foi

atingida. Eis o que é se encontrar no lugar errado e na hora errada.

O que ele apanhara assim às pressas acabou sendo nada mais nada

menos do que a infortunada Romiseta, uma velha tartaruga de

estimação, que a tudo assistia mui pacatamente, esperando apenas

ganhar sua banana diária para se recolher. Porém, a tragédia não

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parou aí. Quis o destino que a malfadada tartaruga tivesse sua

noite de albatroz. Ao se agachar, Matilda ainda pôde ver a pobre

Romiseta sair voando pela janela, mas certamente ela não viu a

infeliz criatura se espatifando no chão, como nós todas vimos, uma

vez que estávamos bisbilhotando na varanda. O miserando quelônio

ainda tentou aprender a voar naqueles breves instantes, agitando

as perninhas desesperadamente feito asas improvisadas, mas pouco

resultado obteve, de maneira que aterrissou com a sutileza de um

tijolo.

A boa notícia é que a bichinha não morreu. Levada às pressas

a um veterinário, após exames acurados com direito a raio X e tudo,

o diagnóstico indicou que a velha Romiseta havia fraturado

internamente a carapaça e, se esta não fosse removida com

urgência, a tartaruga morreria em poucos dias, pois uma lasca de

seu casco encontrava-se cravada em suas costas feito um punhal.

Comido de remorso, o marido não mediu esforços para lhe salvar a

vida e mandou vir do estrangeiro um americano, que são os maiores

especialistas nestas coisas de tirar o couro dos outros.

Algumas meses depois, encontrei Matilda na rua, levando

Romiseta para um refrescante passeio. Ao vê-la, confesso que

melhor seria que a tartaruga tivesse morrido. Estava

esquisitíssima! Nosso cão foi lhe cheirar meio de soslaio, temeroso,

perguntando-me que diabos seria aquilo, se de comer ou de brincar.

Na verdade, a velha Romiseta estava mais para um sapo de pescoço

comprido, com pele de lagartixa toda esticada e dorso de chiuaua

tosquiado com máquina zero. A bem dizer, lembrava também outra

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coisa, mas a minha provecta idade e a boa educação já não me

permitem comparações desse tipo. O certo é que os olhinhos

melancólicos da Romiseta pareciam dizer a todo instante:

- Matem-me... matem-me...

Em suma, faltava-lhe a alma, que fora arrancada com sua

carapaça. Tirem tudo destes pobres animaizinhos, mas não lhe

tirem o casco já dizia um antigo sábio toscano, proprietário de

famoso restaurante especializado em sopa de tartaruga.

Foi então que aconteceu. Durante longos dias, ela

permanecera admirando o velho ferro enferrujado, como se

caraminholasse coisas que somente os cérebros dos quelônios podem

compreender. Tanto fez, que levou Matilda a exclamar:

- Esta tartaruga está apaixonada pelo antigo ferro de passar

roupa, que fora de minha bisavó!

Não estava. Na primeira oportunidade que teve, Romiseta

meteu-se dentro do ferro para nunca mais dele sair. Enfim, sentia-

se novamente uma tartaruga, espichando o pescoço feliz pelo buraco

que servia para dar saída à fumarada das brasas. Talvez corresse

em suas veias a mesma febre inexplicável que picava os cavaleiros

medievais em suas armaduras ou quem sabe Romiseta se sentisse

como o próprio Davi no corpo de Golias.

Se pensam que vou terminar este conto dizendo que Romiseta

virou uma canja pedaçuda, enganam-se. Ela morreu mesmo foi

esturricada, tentando fazer amor com um ferro elétrico, que Matilda

comprara numa liquidação.