1 A.P.SINNETT O BUDISMO ESOTÉRICO PENSAMENTO ÍNDICE Prefácio à Edição Comentada ..................................................................................... 2 Prefácio da Edição Original ....................................................................................... 10 Ao Leitor .................................................................................................................... 17 1. INSTRUTORES ESOTÉRICOS ............................................................................ 19 COMENTÁRIOS .................................................................................................... 32 2. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM ........................................................................... 37 COMENTÁRIOS .................................................................................................... 47 3. A CADEIA PLANETÁRIA ...................................................................................... 51 COMENTÁRIOS .................................................................................................... 64 4. OS PERÍODOS DO MUNDO ................................................................................ 67 5. O DEVACHAN....................................................................................................... 85 COMENTÁRIOS .................................................................................................. 105 6. KÂMA-LOKA ....................................................................................................... 106 COMENTÁRIOS .................................................................................................. 121 7. A ONDA DA MARÉ HUMANA ............................................................................. 134 COMENTÁRIOS .................................................................................................. 145 8. O PROGRESSO DA HUMANIDADE .................................................................. 149 COMENTÁRIOS .................................................................................................. 163 9. BUDA .................................................................................................................. 166 10. O NIRVANA....................................................................................................... 182 11. O UNIVERSO .................................................................................................... 191 12. REVISÃO DA DOUTRINA ................................................................................. 203
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Transcript
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A.P.SINNETT
O BUDISMO ESOTÉRICO
PENSAMENTO ÍNDICE
Prefácio à Edição Comentada.....................................................................................2 Prefácio da Edição Original .......................................................................................10 Ao Leitor....................................................................................................................17 1. INSTRUTORES ESOTÉRICOS ............................................................................19
COMENTÁRIOS....................................................................................................32 2. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM...........................................................................37
COMENTÁRIOS....................................................................................................47 3. A CADEIA PLANETÁRIA ......................................................................................51
COMENTÁRIOS....................................................................................................64 4. OS PERÍODOS DO MUNDO ................................................................................67 5. O DEVACHAN.......................................................................................................85
COMENTÁRIOS..................................................................................................121 7. A ONDA DA MARÉ HUMANA.............................................................................134
COMENTÁRIOS..................................................................................................145 8. O PROGRESSO DA HUMANIDADE ..................................................................149
COMENTÁRIOS..................................................................................................163 9. BUDA ..................................................................................................................166 10. O NIRVANA.......................................................................................................182 11. O UNIVERSO....................................................................................................191 12. REVISÃO DA DOUTRINA.................................................................................203
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Prefácio à Edição Comentada
Este livro foi publicado pela primeira vez no começo de 1883. Desde então,
recebi numerosas informações referentes a muitos dos problemas de que trata. Mas
apraz-me dizer que, se os ensinamentos posteriores mostram o caráter incompleto
de minha concepção original da doutrina esotérica, de modo algum eles evidenciam
qualquer erro material. Na verdade, recebi do próprio Grande Adepto, de quem
obtive minha instrução, a certeza de que o livro, como se apresenta agora, é uma
exposição segura e digna de confiança do esquema da Natureza tal como os
iniciados da ciência oculta a entendem. Esta pode ser, em futuro próximo, ampliada
consideravelmente, se o interesse que estimula for suficiente para levar a uma
procura acentuada de ensinamentos desse tipo por qualquer um, mas nunca terá de
ser reformada ou justificada. Em vista dessa certeza, parece melhor que eu exponha
minhas conclusões últimas e as minhas informações complementares sob a forma
de comentários em cada um dos ramos do assunto, sem fundi-los no texto original,
onde, devido às circunstâncias, não me disponho a introduzir qualquer alteração.
Este é o plano adotado para a presente edição.
Querendo transmitir meu reconhecimento indireto da harmonia geral a ser
estabelecida entre esses ensinamentos e os reconhecidos dogmas filosóficos de
algumas outras grandes escolas de pensamento hindu, passo aqui a referir-me às
críticas a este livro, publicadas na revista indiana Theosophist, em junho de 1883,
por "Um hindu brâmane". Lamenta-se o autor que, ao interpretar a doutrina
esotérica, eu me tenha afastado desnecessariamente da nomenclatura sânscrita
aceita. Entretanto, sua objeção significa simplesmente que, em alguns casos, dei
nomes pouco familiares para idéias já incorporadas aos sagrados escritos hindus, e
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que honrei demasiado o sistema religioso comumente conhecido por Budismo,
apresentando-o mais intimamente ligado à doutrina esotérica do que nenhum outro.
Diz o meu crítico brâmane: "A sabedoria popular da maior parte dos hindus até o dia
de hoje é mais ou menos influenciada pela doutrina esotérica ensinada no livro de
Mr. Sinnett, impropriamente denominado O budismo esotérico, enquanto que não
existe uma só aldeia ou vilarejo, em toda a índia, em que o povo não esteja mais ou
menos familiarizado com os sublimes princípios da filosofia Vedanta. ... Os efeitos do
karma no próximo nascimento, o gozo de seus frutos, bons ou maus, num estado
subjetivo ou espiritual de existência, anterior à reencarnação da mônada espiritual
neste ou nalgum outro mundo, o vagar das almas insaciadas ou dos cascões
humanos na Terra (Kâma-loka), os períodos malaicos e manvantáricos... não são
apenas inteligíveis, como também, para muitos hindus, são familiares sob nomes
diferentes dos usados pelo autor de O budismo esotérico”. É tanto melhor que assim
seja — permito-me contestar — sob o ângulo dos leitores ocidentais, para os quais
deve ser indiferente se a religião esotérica, hindu ou budista, está mais ou menos
próxima da ciência espiritual absolutamente verdadeira, que por certo não deveria
admitir nome algum que pareça fazê-la solidária, no mundo exterior, a uma fé mais
do que a outra. Na Europa, tudo o que podemos aspirar é chegar à clara
compreensão dos princípios essenciais daquela ciência; e se neste livro
encontramos definidos esses princípios, conforme os representantes ilustrados de
mais de uma das grandes crenças orientais, como à altura de verdades subjacentes
a todos os diversos sistemas, estaremos tanto mais propensos a crer que a presente
exposição da doutrina merece nossa atenção.
Com referência à crítica de que os ensinamentos, aqui reduzidos a uma forma
inteligível, estão incorretamente descritos pelo nome que este livro leva, não posso
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fazer nada melhor do que citar a nota com que o redator de Theosophist replica a
seu colaborador brâmane. Essa nota diz: "Publicamos a carta anterior porque
expressa, em linguagem cortês e de modo hábil, as opiniões de grande número de
nossos irmãos hindus. Ao mesmo tempo, deve ser dito que o nome O budismo
esotérico foi dado à última publicação de Mr. Sinnett, não porque a doutrina nela
exposta pretenda estar especialmente identificada com qualquer forma particular de
fé, mas porque Budismo significa a doutrina dos Budas, dos Sábios, isto é, a
Religião da Sabedoria". De minha parte, necessito apenas aduzir que aceito e
admito plenamente essa explicação do assunto. Seria, na verdade, uma concepção
errônea do propósito a que este livro responde o fato de supor que se preocupa em
recomendar, ao gosto do diletante moderno, modos de pensamento religioso
próprios do Mundo Antigo. As formas externas e fantasias religiosas, em uma época,
podem ser mais puras e, em outra, mais corrompidas, mas inevitavelmente se
adaptam a seu tempo, e seria extravagância imaginar que se possam substituir
umas pelas outras. Esta declaração não é formulada na esperança de converter em
budistas os seguidores de qualquer outro sistema, porém com o fito de comunicar
aos pensadores que nos lêem, tanto no Oriente como no Ocidente, uma série de
idéias-guia, referentes às verdades efetivas da Natureza e aos fatos reais do
progresso do homem através da evolução, e que, tendo sido comunicadas ao autor
pêlos filósofos orientais, amolda-se assim com mais facilidade ao Oriente. Quanto ao
valor desses ensinamentos, talvez se apreciará melhor quando se perceber
claramente que seu caráter é mais científico do que controverto. Ai verdades
espirituais, se são verdades, podem evidentemente ser tratado com espírito no
menos científico do que as reações químicas. E nenhum sentimento religioso, de
qualquer espécie que seja, precisa ser perturbado pela importação, ao repertório
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geral do conhecimento, de novos descobrimentos sobre a constituição e a natureza
do homem, no plano de suas mais altas atividades. Á religião verdadeira atinaria,
eventualmente, com um procedimento para assimilar muitos conhecimentos
recentes, do mesmo modo que sempre acaba por admitir maior expansão do
Conhecimento, no plano físico. À primeira vista, isso pode confundir noções
associadas a crenças religiosas — assim como, no início, a geologia complicou a
cronologia bíblica. Mas com o tempo os homens foram vendo que a essência das
afirmações bíblicas não reside no sentido literal das passagens cosmológicas do
Antigo Testamento, e os conceitos religiosos purificaram-se muito com o subsídio
que assim lhes pôde ser propiciado. Da mesma forma, quando os conhecimentos da
ciência positiva começarem a abranger uma compreensão das leis relativas ao
desenvolvimento espiritual do homem, alguns conceitos errôneos da Natureza,
durante muito tempo misturados com religião, poderão ser suplantados, mas apesar
de tudo se descobrirá que as idéias fundamentais da verdadeira religião foram mais
aclaradas e robustecidas, mediante aquele processo. À medida que tais
procedimentos continuam, em especial as dissensões internas do mundo religioso
serão fatalmente superadas. A luta entre seitas pode ser devida apenas à deficiência
da parte dos sectários rivais em compreender os fatos fundamentais. Quem sabe
chegará um dia em que as idéias fundamentais, nas quais a religião se apóia, sejam
compreendidas com a mesma certeza que compreendemos algumas leis físicas
elementares e que as discordâncias sobre elas sejam consideradas ridículas por
todas as pessoas instruídas; então, não haverá lugar para tantas acres divergências
no sentimento religioso. As circunstâncias externas ao pensamento religioso serão
diferentes ainda, em diferentes climas e entre raças diferentes, como diferem a
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indumentária e o regime alimentar; mas tais diferenças não causarão antagonismo
intelectual.
A meu ver, os fatos fundamentais da natureza indicada são desenvolvidos na
exposição da ciência espiritual que obtivemos agora de nossos amigos orientais.
Para os pensadores religiosos, é completamente inútil afastar-se deles sob a
impressão de que esses argumentos favoreçam algum credo oriental, em detrimento
da crença mais generalizada do Ocidente. Se a ciência médica descobrisse um fato
novo sobre o corpo humano, se desvendasse algum princípio até agora oculto, em
que se baseasse o crescimento da pele, da carne e dos ossos, essa descoberta não
seria encarada como uma violação do domínio da religião. O domínio da religião
poderia considerar-se invadido, por exemplo, por uma descoberta que, por trás da
ação dos nervos, revelasse urna série mais delicada de atividades que os
manipulassem, do mesmo modo como eles manipulam os músculos? De qualquer
modo, malgrado tal descoberta pudesse ser um princípio para reconciliar ciência e
religião, nenhum homem que permita que suas faculdades superiores tomem parte
em seus pensamentos religiosos desprezaria como hostil à religião um fato positivo
plenamente demonstrado da Natureza. Sendo um fato, inevitavelmente se ajustaria
a todos os outros fatos, assim como a verdade religiosa. Isso acontece com a
grande massa de informações relativas à evolução espiritual do homem,
compreendida na presente exposição. Nosso melhor intento é perguntar, antes de
nos fixarmos no relato que dou a público. Não se enquadra, sob todos os seus
aspectos, com opiniões preconcebidas. E realmente nos insere numa série de fatos
naturais relacionados com o crescimento e com o desenvolvimento das mais altas
faculdades do homem. Se assim é, podemos sabiamente examinar os fatos,
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primeiramente com espírito científico e, depois, deixar que eles exerçam seus efeitos
razoáveis e legítimos nas crenças colaterais.
À medida que a explanação prossegue, ramificando-se em muitas direções,
ver-se-á que a afirmação principal que agora se divulga é uma teoria antropológica
que completa e espiritualiza as noções correntes da evolução física. A teoria que
assinala o desenvolvimento do homem, por meio de sucessivos e graduais
aperfeiçoamentos das formas animais, de geração em geração, é uma teoria muito
desinteressante e pobre, se encarada como uma explicação que compreende a
criação inteira. Entretanto, devidamente entendida, facilita o acesso à compreensão
do processo concorrente superior que faz evoluir a alma do homem no reino
espiritual da existência. Á atual visão do assunto reconcilia o método evolucionista
com o anseio profundamente arraigado em cada entidade consciente, de
perpetuação da vida individual. As séries desarticuladas de formas progressivas
existentes na Terra não têm individualidade. À vida de cada uma é, por sua vez, uma
operação separada que não encontra na próxima e similar operação qualquer
compensação pêlos sofrimentos que a acompanham. Nenhuma justiça, nenhum
fruto de seus esforços. Todavia, pode-se argumentar, na suposição de nova e
independente criação de uma alma humana, cada vez que nova forma humana é
produzida por desenvolvimento fisiológico, que nos estados espirituais posteriores
desta alma a justiça será concedida. Mas, nesse caso, essa concepção está em
desacordo com a idéia fundamental da evolução que faz depender ou crê fazer
depender, em cada caso, a origem da alma das operações da matéria altamente
desenvolvida. Isso não deixa de ser discrepante com as analogias da Natureza,
mas, sem entrar neste assunto, basta por enquanto perceber que a teoria da
evolução espiritual, tal como ela aparece nos ensinamentos da ciência esotérica,
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harmoniza-se em todo caso com essas analogias, ao passo que, ao mesmo tempo,
coincide com as exigências da justiça e satisfaz a demanda instintiva, pela
continuação da vida individual.
Esta teoria reconhece a evolução da alma como um processo que é
inteiramente contínuo em si mesmo, embora efetivado, em parte, por intermédio de
uma grande série de formas dissociadas que servem como instrumentos. Deixando
de lado, por agora, a metafísica profunda da teoria que revela a origem do princípio
da vida, a primeira causa original do cosmos, encontramos a alma como uma
entidade emergente do reino animal e passando às formas humanas primigênias,
sem estar ainda preparada naquele tempo para a mais elevada vida intelectual com
que estamos familiarizados, no estado presente da humanidade. Porém, devido às
sucessivas encarnações nas formas, cujo aprimoramento físico, sob a lei de Darwin,
está constantemente se ajustando para ser a sua morada a cada retomo à vida
objetiva, adquire gradualmente aquele raio de experiência em que a resultante é o
seu mais elevado desenvolvimento. Nos intervalos entre as suas encarnações
físicas, prolonga, desenvolve e por fim esgota ou transforma as experiências
pessoais de cada vida em desenvolvimento proporciona abstrato. Esta é a chave da
explicação verdadeira daquela dificuldade aparente que persegue a forma mais crua
da teoria da reencarnação, apresentada algumas vezes pela especulação
independente. Cada homem é inconsciente das vidas por que passou anteriormente,
por isso sustenta que as vidas subseqüentes não podem lhe proporcionar
compensação alguma para esta presente. Não se dá conta da enorme importância
do estado espiritual intermediário, no qual de modo algum esquece as aventuras e
emoções pessoais pelas quais passou e durante o qual refina estas em outros
tantos progressos cósmicos. Nas páginas que seguem, tenta-se elucidar este
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mistério, profundamente interessante. O exame dos acontecimentos, pêlos quais
atualmente passamos, não é só' uma solução dos problemas da vida e da morte,
mas também de muitas das desconcertantes experiências que ocorrem na região
limítrofe entre estas duas condições — ou antes, entre a vida física e a espiritual —
que tanto prenderam a atenção e foram objeto de especulação nos últimos anos,
nos países mais civilizados.
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Prefácio da Edição Original
Os ensinamentos compreendidos neste volume lançam luz sobre questões
relacionadas com a doutrina budista, que deixaram perplexos os escritores que se
ocuparam dessa religião, e oferecem, ao mundo, pela primeira vez, uma chave
prática para o significado de quase todo o antigo simbolismo religioso. Mais ainda,
uma vez propriamente entendida a doutrina esotérica, ver-se-á que ela possui
razões muito poderosas para que todos os pensadores sérios lhe dêem atenção.
Seus princípios não nos são apresentados como a invenção de algum fundador ou
profeta. Seu testemunho não se baseia em nenhuma escritura. Suas opiniões sobre
a Natureza foram desenvolvidas graças às pesquisas de uma série enorme de
perquiridores, qualificados para sua missão, pela posse de faculdades e percepções
espirituais de uma ordem mais elevada que as pertencentes à humanidade comum.
No decorrer dos tempos, o repertório de conhecimentos assim acumulados,
referentes às origens do mundo e do homem e aos destinos posteriores de nossa
raça — relativos também à natureza de outros mundos e a estados de existência
que diferem dos de nossa vida presente — comprovados e examinados em cada um
de seus aspectos, e constantemente sujeitos a completo exame, chegou a ser
encarado por seus defensores como sendo a verdade absoluta, no que diz respeito
às coisas espirituais, ao estado real dos fatos nas vastas regiões de atividade vital,
mais além desta existência terrena.
A filosofia européia, quer se refira à religião, quer à metafísica pura,
acostumou-se, durante tanto tempo, a um sentimento de insegurança nas
especulações além dos limites da experiência física, que os pensadores prudentes
dificilmente reconhecem como objeto razoável de investigação, a verdade absoluta
sobre as coisas espirituais. Na Ásia, porém, adquiriram-se outros hábitos de
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pensamento. A doutrina secreta, que em extensão considerável tenho agora a
oportunidade de expor, é considerada não só por seus seguidores, como por grande
número dos que nunca esperaram conhecer dela outra coisa do que saber que
existe, como uma mina de conhecimentos inteiramente dignos de fé, da qual todas
as religiões e filosofias tiraram o que possuem de verdade e com os quais toda
religião deve coincidir, se pretende ser um modo de expressão da verdade.
De fato, isso é uma pretensão audaciosa, mas me aventuro a declarar que o
conteúdo deste livro é de suma importância para o mundo, porque creio que essa
pretensão pode ser justificada.
Não digo que dentro dos limites deste volume se possa provar a autenticidade
da doutrina esotérica. Essa prova não se apresenta por nenhum processo de
argumentação, mas apenas pelo desenvolvimento de per si das faculdades exigidas
à observação direta da Natureza, ao longo da senda indicada. Esta conclusão prima
fade pode se determinar pela importância que tenham para o indivíduo as opiniões
que se vão expor sobre a Natureza, e pelas razões que existem para confiar nos
poderes de observação daqueles que a comunicaram.
Pode-se supor, talvez, que a própria magnitude da presente pretensão em
benefício da doutrina esotérica suscite esta afirmação oriunda da região a que se
refere seu título — a da pesquisa relativa ao significado real e interno da religião
definida e específica chamada Budismo. O fato, contudo, é que o Budismo
Esotérico, embora de maneira alguma esteja divorciado das relações com o
Budismo Exotérico, não deve ser concebido como constituindo mero imperium in
imperio — uma escola central de cultura no vórtice do mundo budista. À medida que
o Budismo se retira dos recessos de sua fé, descobre-se que estes se misturam com
os recessos de outras crenças. As concepções cósmicas e o conhecimento da
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Natureza nos quais repousa o Budismo, como também constituem o Budismo
Esotérico, são as mesmas do Bramanismo esotérico. E a doutrina esotérica é assim
considerada por todos os "iluminados" (no sentido budista) das crenças como a
verdade mais absoluta referente à Natureza, ao Homem, à origem do Universo e aos
destinos para os quais tendem os seus habitantes. Ao mesmo tempo, o Budismo
Exotérico permaneceu em união mais estreita com a doutrina esotérica do que
qualquer uma das outras religiões populares. A exposição da ciência interna estará
associada, portanto, de forma irresistível por si mesma, com as descrições familiares
dos ensinamentos budistas. Com certeza, conferindo a estes um significado vívido,
que no geral lhes parece faltar, mas por isso mesmo contribuindo para que a
doutrina esotérica seja estudada em seu aspecto budista: além disso, um aspecto
que foi tão fortemente impresso sobre ela, desde os tempos de Gautama Buda.
Embora a essência da doutrina seja bem mais remota, o colorido budista penetrou
por completo em sua substância. O que vou expor ao leitor é o Budismo Esotérico, e
para estudantes acidentais, que pela primeira vez o abordam, seria imprópria
qualquer outra denominação.
À exposição das doutrinas deve ser considerada pelo leitor em seu conjunto,
antes que possa compreender por que os iniciados na doutrina esotérica consideram
como de assombrosa grandeza a situação que envolve uma revelação atual do
esboço geral desta doutrina. Uma explicação desse sentimento pode ser vista surgir,
de imediato, da extrema sacralidade que está sempre incorporada aos antigos
guardiães das verdades íntimas e vitais da Natureza. Até hoje, esta santidade tem
prescrito sua ocultação absoluta do rebanho profano. E, no que este costume de
ocultação — tradição de muitos séculos — vai sendo na atualidade substituído pelo
novo costume que determina o aparecimento deste livro, o será com surpresa e
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pesar por grande número de discípulos iniciados. Submeter à crítica, que pode às
vezes ser desairosa e irreverente, doutrinas que até agora foram tidas por tais
pessoas como de importância demasiado majestosa, para que se fale delas apenas
em circunstâncias de condizente solenidade, parecer-lhes-á uma terrível profanação
dos grandes mistérios. Considerando este livro do ponto de vista europeu, seria
pouco razoável esperar que se possa livrá-lo da dureza costumeira dispensada às
idéias novas. E as convicções especiais ou o fanatismo vulgar podem fazer com
que, algumas vezes, no caso presente, tal conduta se torne particularmente hostil.
Apesar de tudo isso e ainda que dar à luz tais conhecimentos seja coisa lógica de se
esperar de expositores europeus como eu, será encarado com grande pesar e
desgosto pelos seus mais antigos e regulares representantes. Com tristeza,
apelarão à sabedoria sancionada pelo tempo em que, no antigo e simbólico estilo,
se proibia aos iniciados jogar pérolas aos porcos.
Felizmente, conforme eu penso, não se permitiu que a regra funcionasse por
mais tempo em detrimento de todos aqueles que, apesar de estarem ainda muito
longe de ser iniciados, no sentido oculto da palavra, estão aptos, pela pura força da
cultura moderna, a apreciar essa concessão.
Parte das informações contidas nas páginas que se seguem foi,
primeiramente, divulgada de modo fragmentário no Theosophist, revista mensal
publicada em Madras, índia, pêlos diretores da Sociedade Teosófica. Como quase
todos os artigos foram assinados por mim, não vacilei em entremear trechos dos
mesmos, quando achei conveniente no presente volume. Desse modo, consegui
certa vantagem, mostrando como as separadas peças do mosaico, pela primeira vez
apresentadas a público, ajustam-se naturalmente em seus respectivos lugares no
pavimento já concluído.
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A doutrina ou sistema agora revelado, em seus traços essenciais, foi tão
zelosamente guardado até hoje que nenhum gênero de pesquisas literárias, embora
houvessem esquadrinhado a índia inteira, pôde trazer à luz a menor partícula do
conteúdo aqui revelado. Foi, afinal, dada ao mundo pela livre vontade daqueles sob
cuja custódia haviam permanecido até hoje. Ninguém teria arrancado deles nem a
sua primeira letra. Somente após ler com atenção estas explicações é que a atitude
em geral, com respeito às suas atuais revelações ou à reticência anterior, pode ser
criticada ou mesmo compreendida. As opiniões sobre a Natureza, agora expostas,
são bastante estranhas para os pensadores europeus. O modo de agir dos
graduados na ciência esotérica, resultado de uma longa intimidade com essas
opiniões, deve ser considerado em relação com o alcance peculiar da própria
doutrina.
Quanto às circunstâncias sob as quais estas revelações foram pela primeira
vez apresentadas no Theosophist, agora completadas e aqui expostas, como
perceberão nossos leitores, basta dizer, no momento, que a Sociedade Teosófica,
por meio da qual e graças à minha relação com ela vieram às minhas mãos as
informações deste livro, deve sua existência a certas pessoas que se incluem entre
os defensores da ciência esotérica. O assunto que, por fim, é exibido em proveito
dos que estão aptos a recebê-lo, é apresentado ao mundo por intermédio da
Sociedade Teosófica desde sua fundação, e somente circunstâncias posteriores
indicaram-me como o agente através de quem esta comunicação poderia ser feita
de modo conveniente.
É preciso que se saiba que não me considero o único expositor da verdade
esotérica para o mundo exterior, durante esta crise. Estes ensinamentos constituem
a conseqüência, no tocante ao conhecimento filosófico, das relações estabelecidas
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com o mundo exterior pelos guardiães da verdade esotérica por meu intermédio. E
apenas em virtude dos atos e intenções destes instrutores esotéricos que decidiram
atuar por meu intermédio é que possuo um determinado conhecimento. Mas, em
diferentes sentidos, alguns outros escritores empreenderam, parece, a exposição em
benefício do mundo — e, segundo creio, de conformidade com um vasto plano, do
qual este volume é uma parte — das mesmas verdades que, sob outros aspectos,
tenho a missão de revelar. É provável que a grande efervescência existente, hoje em
dia, nas especulações literárias a respeito de problemas que ultrapassam os limites
da ciência física, tenham provocado tal conduta por parte dos grandes guardiães da
verdade esotérica, em que meu livro é, por certo, mais uma manifestação. Já o ardor
agora demonstrado nas "Pesquisas Psíquicas" por homens ilustres e cultos à testa
da Sociedade que se dedica, em Londres, a tal propósito, segundo minhas
convicções íntimas — conhecendo, como conheço, algo relativo ao modo como as
aspirações espirituais do mundo estão sendo secretamente influenciadas por
aqueles cujos trabalhos ocorrem nesse departamento da Natureza — é fruto
evidente de esforços paralelos àqueles com os quais estou mais diretamente
preocupado.
Agora me resta negar, com relação ao estudo que se segue, qualquer
pretensão minha quanto à perfeição de linguagem. Uma familiaridade maior com o
vasto e complicado esquema da cosmogonia revelada sugerirá, sem dúvida,
aperfeiçoamentos na fraseologia empregada de minha exposição. Há dois anos,
nem eu nem outro europeu conhecíamos o alfabeto da ciência aqui exposta pela
primeira vez, sob uma forma científica — ou, pelo menos, tentada nesta direção —,
a ciência das Causas Espirituais e de seus Efeitos, da Consciência Suprafísica, da
Evolução Cósmica. Embora tais idéias comecem a se revelar ao mundo, sob um
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disfarce mais ou menos embaraçoso de simbolismo místico, não se tentara até há
dois anos, por nenhum instrutor esotérico, expor a doutrina em sua clara pureza
abstrata. À medida em que progredia a minha própria instrução neste sentido,
inventei frases e sugeri palavras como equivalentes às idéias que se apresentavam
à minha mente. Não tenciono ficar convencido de que em todas as oportunidades
tenha inventado as melhores frases possíveis, nem que haja encontrado as palavras
mais nítidas e expressivas. Por exemplo, no início da obra, precisamos atribuir
nomes aos elementos ou atributos de que se compõe o ser humano completo.
"Elemento" seria um termo inadequado para se usar, devido à confusão que se
originaria de sua utilização com outros sentidos. Também sujeita a objeções foi a
palavra "princípio". Para um ouvido educado nas sutilezas das expressões
metafísicas, esse termo soará de um modo pouco satisfatório, em algumas de suas
presentes aplicações. É bem possível que, com o passar do tempo, a nomenclatura
ocidental da doutrina esotérica se desenvolva muito mais a partir do que eu construí
provisoriamente. A nomenclatura oriental é bem mais apurada. Mas o sânscrito
metafísico parece embaraçar penosamente o tradutor — embora a culpa, segundo
meus amigos indianos, não seja do sânscrito, mas da linguagem em que pretendem
expressar a idéia sânscrita na atualidade. Com a ajuda do grego, que nos é familiar,
às vezes recebe-se melhor a nova doutrina — ou, antes, a primitiva doutrina, tal
como ela foi revelada recentemente — do que no Oriente se presumiu fosse
possível.
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Ao Leitor
Todos os que lerem hoje este livro devem lembrar-se de que ele foi publicado
pela primeira vez em 1883, e constitui o mais primitivo esboço da doutrina esotérica
já revelada ao público em geral, em linguagem simples. Desde que ele foi escrito, o
estudo da teosofia e a posterior ajuda obtida dos Mestres originais ampliaram muito
o nosso conhecimento, e de muitas maneiras os pontos de vista que somos capazes
de expressar a respeito da evolução humana e da vida suprafísica são muito mais
ricos de detalhes que naquele esboço primitivo, que é considerado agora como
incompleto, até certo ponto enganoso. Por exemplo, neste livro todos os
conhecimentos da vida no Plano Astral (ou Kâma-Ioka) estão inteiramente
desatualizados. Meu trabalho seguinte, O crescimento da alma, elucida o assunto de
alguma forma. Um livro ulterior, No próximo mundo, aborda também outros aspectos
das condições variadas em que a Terra está dividida, com a prevalência dos
subplanos do vasto invólucro suprafísico. Do mesmo modo, todos os relatos neste
texto sobre o "Devachan" supervalorizam a importância desse estado — na verdade,
apenas um dos aspectos da vida no plano do Manas — e não propriamente um
objetivo a ser visado por toda a humanidade. Resumindo, a teosofia, considerada
uma ciência espiritual, avançou e está progredindo tão magnificamente que os seus
livros mais antigos são interessantes principalmente como registros de suas origens
— um prognóstico incompleto da riqueza de conhecimentos, acumulada mais tarde
em nossas mãos. A primeira coleção dos Anais da Loja de Londres, publicada
durante os anos de 1884-1902, revelou grande parte do progresso obtido; a nova
coleção (em circulação), de 1913-1916, já incorporou os resultados desse discreto
trabalho posterior.
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A Ética da Teosofia é demasiado clara e simples para necessitar de revisão
constante. Em seu aspecto intelectual, a Teosofia é uma ciência viva repleta de
possibilidades futuras infinitas. Assim como o químico moderno deve remontar a
épocas anteriores com interesse, não desprovido de humor, para a especulação
transata sobre o "flogisto" e o "ar sem flogístico", bem assim os teosofistas precisam,
qualquer que seja seu estado, espero, ter uma espécie de tolerância pêlos muitos
equívocos contidos em O budismo esotérico, lembrando que, apesar deles, o livro
teve a honra de inaugurar o grande movimento teosófico no plano físico do mundo
ocidental.
A.P.SINNETT
1918
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1. INSTRUTORES ESOTÉRICOS
As informações contidas nas páginas a seguir não são uma coleção de
inferências deduzidas de estudos. Aos leitores, apresento conhecimentos obtidos
mais por generosidade que por esforços. Disso não decorre que seu valor seja
menor; ao contrário, aventuro-me a declarar que será incalculavelmente maior pela
facilidade com que os obtive, do que quaisquer resultados proporcionados pêlos
métodos ordinários de pesquisas, mesmo se eu tivesse possuído, em seu grau mais
elevado, o que não pretendo possuir de modo algum — a Ciência Oriental.
Todos os que se preocupam com a literatura indiana, e mais ainda, qualquer
pessoa que na índia tenha tratado de assuntos filosóficos com nativos cultos,
estarão cientes da convicção geral no Oriente de que há homens que sabem mais
sobre filosofia, na acepção mais elevada da palavra — a ciência, o verdadeiro
conhecimento das coisas espirituais —, do que se acha registrado em qualquer livro.
Na Europa, a noção de segredo aplicada à ciência repugna tanto ao instinto
dominante que a primeira tendência dos pensadores europeus é negar a existência
daquilo com que antipatizam. Mas as circunstâncias me deram a certeza cabal,
durante minha estada na índia, de que a convicção que acabo de mencionar está
perfeitamente bem fundamentada. Afinal, tive o privilégio de receber uma massa
considerável de instrução sobre a até hoje ciência secreta, a respeito da qual os
filósofos orientais meditaram em silêncio até agora. Essa instrução foi unicamente
comunicada a estudantes preparados para penetrar nas regiões do segredo, e
permanecendo seus instrutores muito tranqüilos com relação à dúvida em que têm
ficado os demais investigadores, acerca da existência ou não de algo de importância
a aprender deles.
20
Compartilhando em princípio essa grande antipatia pela antiga regra de
conduta oriental, no que diz respeito ao conhecimento, cheguei, no entanto, a
perceber que a antiga ciência oriental era efetivamente uma verdade Importante. E
escusável considerar as uvas como verdes quando estão totalmente fora de alcance,
mas seria loucura persistir nessa opinião se um amigo de estatura elevada pudesse
apanhar um cacho e as achasse doces.
Por razões que aparecerão no decurso desta obra, a massa considerável de
ensinamentos até hoje secretos, que ela contém, me foi comunicada não só fora das
condições normais, mas com a finalidade explícita de que, de minha parte, eu as
comunicasse sem reservas ao mundo.
Sem a luz da ciência oriental, até agora secreta, é impossível que apenas
pelo estudo de sua literatura publicada — em língua inglesa ou em sânscrito — até
mesmo os estudantes da melhor qualificação científica possam compreender as
doutrinas internas e o significado verdadeiro de qualquer religião oriental. Esta
assertiva não envolve repreensão alguma aos escritores eruditos e laboriosos de
grande gênio, que têm estudado as religiões orientais em geral, e o Budismo de
modo especial, em seus aspectos exteriores. O Budismo é sobretudo uma religião
que tem gozado de uma existência dual desde o início de sua introdução no mundo.
O significado real interno de suas doutrinas foi mantido apartado dos estudantes
não-inicia-dos, enquanto seus ensinamentos externos têm sido simplesmente
apresentados à multidão, como um código de lições morais e com uma literatura
simbólica e velada, que indicava a existência de conhecimentos anteriores.
Esta ciência secreta, na verdade, é muito anterior à passagem de Gautama
Buda pela vida terrena. A filosofia bramânica, em épocas anteriores a Buda,
compreendia a mesma doutrina que na atualidade pode ser chamada de Budismo
21
Esotérico. Com efeito, os seus contornos haviam-se apagado e as suas formas
científicas haviam sido parcialmente confundidas; mas a massa geral de
conhecimentos já estava em poder de uns poucos eleitos antes que Buda viesse a
participar dos mesmos. Buda, entretanto, empreendeu a tarefa de revisar e restaurar
a ciência esotérica do círculo interno de iniciados, bem como a moralidade do mundo
externo. As circunstâncias em que esta tarefa foi feita foram muito mal-entendidas;
uma verdadeira explicação não seria inteligível sem as elucidações, que deveriam
ser obtidas por um exame prévio da própria ciência esotérica.
Desde o tempo de Buda, até hoje, a ciência esotérica de que nos ocupamos
tem sido zelosamente guardada como uma preciosa herança, privativa tão-só dos
membros regularmente iniciados das associações misteriosamente organizadas.
Estes, no que diz respeito ao Budismo, são os Arhats a que se refere a literatura
budista. São os iniciados que trilham a "quarta senda da santidade", de que se fala
nos escritos budistas. Mr. Rhys Davids, referindo-se à multiplicidade de textos
originais e às autoridades sânscritas, diz: "Podem-se escrever páginas e páginas
com os louvores impregnados de um sentimento temeroso e de êxtase, de que são
pródigos os escritos budistas a este estado da mente, o fruto da quarta senda, o
estado de um Arhat, de um homem perfeito segundo a fé budista." E depois de fazer
uma série de citações oriundas de autoridades sânscritas, expressa: "Para aquele
que chegou ao fim da senda e passou além da tristeza; que se libertou por si mesmo
de tudo; que se desprendeu de todos os grilhões, não existe mais nem a paixão,
nem o desgosto... Para ele não há mais nascimentos... acha-se no gozo do Nirvana.
Seu antigo karma está esgotado, não foi produzido nenhum novo karma; seu
coração está livre de anseios por uma vida futura e, não gerando novos desejos,
eles, os sábios, se extinguiram tal o lume de uma vela." Estes e outros parágrafos
22
semelhantes conduzem, de qualquer modo, os leitores europeus a uma idéia
completamente falsa no que concerne ao tipo de pessoa que um Arhat é
efetivamente, à vida que leva enquanto está na Terra e à que espera no futuro. Mas
a elucidação destes pontos pode ser adiada no momento. Primeiramente se podem
expor outros parágrafos procedentes de tratados esotéricos, que demonstram o que
é que geralmente se supõe ser um Arhat.
Mr. Rhys Davids, falando de Jhana e Samadhi (a crença de que era possível,
por meio de intensa auto-absorção, atingir faculdades e poderes sobrenaturais) diz
ainda: "Tanto quanto é do meu conhecimento, não se registra nenhum caso de
alguém, seja um membro da ordem, ou um asceta brâmane, que tenha adquirido
estes poderes. Um Buda sempre os possui; se os Arhats, como tais, realizam os
milagres especiais em questão, e se dentre os mendicantes somente os Arhats ou
unicamente os Asekhas podem realizá-los, é coisa que não está clara na
atualidade." As fontes de informação que foram exploradas até agora sobre o
assunto esclarecem muito pouco. Mas limito-me a mostrar que a literatura budista é
abundante em alusões relativas à grandeza e aos poderes dos Arhats. Quanto a um
conhecimento mais íntimo a respeito deles, circunstâncias especiais nos devem
apresentar explicações cabíveis.
Mr. Arthur Lillie, em Buda e o budismo primitivo, nos relata: "Seis faculdades
sobrenaturais se requerem do asceta antes que ele possa pretender o grau de
Arhat. A elas se alude constantemente nos Sutras como as seis faculdades
sobrenaturais, em geral sem nenhuma outra especificação... O homem possui um
corpo constituído dos quatro elementos... neste corpo transitório está acorrentada a
sua inteligência, e, achando-se assim confuso, o asceta dirige a sua mente à criação
do Manas. Ele imagina a si mesmo, em pensamento, com outro corpo criado a partir
23
desse corpo material — um corpo com uma forma, com membros e órgãos. Com
relação ao corpo material, este corpo é o que a espada é para a bainha, ou como
uma serpente saindo de um cesto em que estivesse confinada. Então o asceta,
purificado e aperfeiçoado, começa a pôr em prática faculdades sobrenaturais.
Encontra-se apto a passar através de obstáculos materiais, como paredes,
muralhas, etc.; é capaz de lançar sua fantástica aparição em muitos lugares ao
mesmo tempo... pode abandonar este mundo e até alcançar o céu do próprio
Brahma... Adquire o poder de ouvir os sons do mundo invisível de forma tão nítida
quanto os do mundo fenomenal — ainda mais nitidamente na realidade. Também
pelo poder dos Manas, é capaz de ler os pensamentos mais secretos dos outros e
de dar conta de seus caracteres." E assim sucessivamente com os demais
exemplos. Mr. Lillie não adivinhou com exatidão a natureza da verdade existente
atrás desta versão popular dos fatos; porém, a rigor, não é necessário citar mais,
para demonstrar que os poderes dos Arhats e sua penetração nas coisas espirituais
são respeitados pelo inundo budista do modo mais profundo, por mais que os
próprios Arhats se tenham mostrado singularmente pouco dispostos a facilitar o
mundo com autobiografias ou relatos científicos dos "seis poderes sobrenaturais".
Algumas proposições da tradução recente feita por Mr. Hoey, da obra Buda:
sua vida, sua doutrina, sua ordem, do Dr. Oldenberg, podem-se inserir neste local,
após o que seguiremos adiante. Nela lemos: "A proverbial filosofia budista atribui,
em inúmeras passagens, a posse do Nirvana ao santo que ainda pisa a Terra: 'O
discípulo que se livrou da sensualidade e do desejo, rico em sabedoria, conseguiu
aqui na Terra livrar-se da morte; atingiu o repouso, o Nirvana, o estado eterno.
Aquele que escapou dos difíceis labirintos do Samsara, que cruzou e chegou à
costa, absorvido em si mesmo, sem tropeços e sem dúvidas, que se livrou por si
24
mesmo das coisas terrenas e alcançou o Nirvana, a esse eu chamo de um
verdadeiro brâmane.' Se o santo quer pôr fim ao seu estado de existência, pode
fazê-lo, mas muito continua nele, até que a Natureza tenha atingido sua meta; a
respeito disso, cabem aquelas palavras postas na boca do mais eminente dos
discípulos de Buda: 'Não desejo a morte; não desejo a vida; espero que chegue
minha hora, como um obreiro que aguarda o seu salário'."
A multiplicação de citações semelhantes equivaleria a repetir, em formas
variadas, os conceitos exotéricos sobre o Arhats. Como todos os fatos ou
pensamentos do Budismo, o Arhat tem dois aspectos: um sob o qual ele se
apresenta ao mundo em geral, e o outro no qual vive, move-se e existe. No que se
refere à apreciação popular, ele é um santo aguardando um galardão espiritual do
gênero que o vulgo pode entender — um produtor de maravilhas graças a agentes
sobrenaturais. Na verdade, ele é o guardião, por longo tempo provado, da filosofia
mais profunda e secreta da religião fundamental que Buda renovou e restaurou; um
investigador da ciência natural, situado no próprio cume do conhecimento humano,
não só no que diz respeito aos mistérios do espírito, mas também em tudo o que se
relaciona com a constituição material do mundo.
Arhat é uma designação budista. Na índia, onde os atributos da ordem de
Arhat não estão necessariamente associados com as profissões do Budismo, a
designação mais familiar é Mahâtmâ. A Índia está saturada de narrativas sobre os
Mahâtmâs. Os mais antigos Mahâtmâs são, geralmente, chamados Rishis. Mas os
termos são permutáveis, e ouvi aplicar o título de Rishis a homens que estão vivos
hoje. Todos os atributos dos Arhats, que se descrevem nos escritos budistas, são
mencionados com não menos reverência na literatura indiana que os atributos
Mahâtmâs; e este volume poderia facilmente encher-se com traduções de livros do
25
país, referindo fatos milagrosos verificados por aqueles a quem a história e a
tradição conhecem por tal nome.
Com efeito, os Arhats e os Mahâtmâs são os mesmos homens. Naquela
altura de exaltação espiritual, o conhecimento supremo da doutrina esotérica
harmoniza todas as distinções sectárias originais. Seja qual for o nome que se dê a
esses illuminati1, eles são os adeptos da ciência oculta, algumas vezes, na índia de
hoje, chamados Irmãos e depositários da ciência espiritual que lhes foi legada por
seus predecessores.
Seria em vão pesquisar a literatura antiga e moderna, em busca de qualquer
explicação sistemática de sua doutrina ou ciência. Boa parte dela está
obscuramente exposta nos escritos ocultos; mas muito poucos têm utilidade para os
leitores que empreendem a tarefa sem um prévio conhecimento adquirido
independentemente dos livros. Pelo fato de eu ter recebido instrução direta de um
entre eles, posso agora tentar um esboço dos ensinamentos dos Mahâtmâs, do
mesmo modo como adquiri o que sei relativo à organização a que pertence a maior
parte deles, bem como os maiores, da atualidade.
Em todo o mundo há ocultistas de diversos graus de eminência e, igualmente,
há fraternidades ocultas que têm muito em comum com a fraternidade dirigente
estabelecida no Tibete. Mas todas as minhas investigações sobre o assunto me
convenceram de que a Fraternidade Tibetana é incomparavelmente a mais elevada
dessas associações, e como tal é considerada por todas as demais — dignas, por
sua vez, de serem encaradas como "iluminadas", no sentido oculto da palavra. Na
verdade, existem na índia muitos místicos isolados, que receberam uma auto-
educação integral sem vinculação com as associações ocultas. Muitos destes dizem
1 No original em italiano. Vale dizer: os Iluminados. (N. T.)
26
que atingem mais altos pináculos da iluminação espiritual do que os Irmãos do
Tibete, ou do que qualquer outra pessoa na Terra. Porém, o exame dessas
pretensões, em todos os casos com que me deparei, creio que conduziria qualquer
leigo imparcial, por pouco qualificado que estivesse em seu desenvolvimento
pessoal para julgar sobre iluminação oculta, à conclusão de que são completamente
infundadas. Por exemplo, conheço um natural da índia, homem de educação
européia, que goza de alto prestígio no Governo, de boa posição social, de caráter
elevado e que é respeitado de modo invulgar pêlos europeus que com ele se
relacionam na vida oficial. Essa pessoa concede aos Irmãos do Tibete apenas um
segundo lugar no mundo da iluminação espiritual. Considera o primeiro lugar
ocupado por uma pessoa que já não está neste mundo — seu próprio mestre oculto
na vida —, que ele convictamente afirma ter sido uma encarnação do Ser Supremo.
Seus próprios (do meu amigo) sentidos internos foram despertados por esse Mestre,
de forma que as visões do estado extático, em que pode imergir silenciosamente à
vontade, são para ele a única região espiritual digna de interesse. Convencido de
que o Ser Supremo foi seu instrutor pessoal desde o início, e que continua ainda
sendo no estado subjetivo, ele é naturalmente inacessível a sugestões de que suas
impressões podem ser deturpadas em vista de seu desenvolvimento psicológico mal
dirigido. Por outro lado, os devotos de alta erudição, que eventualmente se podem
encontrar na índia, que erigem sua concepção de Natureza, do Universo e de Deus
sobre uma base completamente metafísica, e que desenvolveram seus sistemas
pela força pura do pensamento transcendental, tomarão algum reconhecido sistema
de filosofia como fundamento e irão amplificá-lo a um ponto que apenas um
metafísico oriental poderia sonhar. Conseguem discípulos que depositam neles uma
fé tácita e fundam a sua pequena escola, que floresce durante certo tempo dentro de
27
seus próprios limites. Porém, uma filosofia especulativa dessa espécie é antes uma
ocupação para a mente do que um conhecimento. Esses "Mestres", comparados aos
Adeptos organizados da mais alta fraternidade, são como botes a remo comparados
com os transatlânticos — meios úteis de locomoção em seu próprio lago ou rio, mas
nunca uma embarcação em que se possa confiar para uma grande viagem marítima
ao redor do mundo.
Descendo a um nível ainda mais baixo na escala, a índia está saturada de
ioguins e faquires, em todos os graus de autodesenvolvimento, desde o dos mais
sujos selvagens, muito pouco superiores aos ciganos ledores de sorte que acorrem
às nossas corridas de cavalo, até o de homens em cuja reclusão um estrangeiro
dificilmente penetraria, cujas anormais faculdades e poderes bastam ser vistos ou
experimentados para quebrar a incredulidade dos mais ardorosos representantes do
moderno ceticismo ocidental. Os pesquisadores superficiais confundem com
facilidade tais pessoas com os Grandes Adeptos, dos quais ouviram falar
vagamente.
Entretanto, no que diz respeito aos verdadeiros Adeptos, não me aventuro a
dizer nada sobre o que é a organização tibetana, quanto às suas mais altas
autoridades dirigentes. Esses próprios Mahâtmâs — sobre os quais os leitores que
pacientemente me seguirem até o fim poderão formar uma idéia mais ou menos
adequada — estão subordinados, em seus diversos graus, ao chefe de todos.
Tratemos, antes de tudo, das primeiras condições da instrução oculta, o que pode
ser entendido com mais facilidade.
O grau de elevação que constitui um homem — chamado no mundo exterior
Mahâtmâ ou "Irmão" — só é alcançado após prolongada e penosa provação e
ansiosas provas de uma severidade realmente terrível. Há pessoas que passaram
28
vinte, trinta ou mais anos de irrepreensível e árdua devoção, dedicadas à missão
que empreenderam na vida, mas apesar disso, ainda se acham nos primeiros graus
de seu chelado, contemplando as alturas do adeptado, que estão muito acima de
suas possibilidades. E em qualquer idade que um garoto ou um homem se dedique
à carreira do ocultismo, dedica-se, entenda-se bem, sem reservas de nenhum
gênero e por toda sua vida. A missão que leva a cabo é o desenvolvimento em si
mesmo de muitas faculdades e atributos, de cuja existência nem se suspeita devido
ao fato de serem completamente latentes na massa da humanidade, sendo negada
a possibilidade de seu desenvolvimento. Estas faculdades e atributos devem ser
desenvolvidos pelo próprio cheia, com muito pouca ajuda, se houver alguma, além
da orientação e direção de seu mestre. Diz um aforismo oculto: "O Adepto se torna
um adepto: ele não é convertido em um." Pode-se ilustrar isto com o que acontece
num exercício físico corriqueiro. Todo homem com o uso normal de seus membros é
capaz de nadar. Mas mergulhem aqueles que, segundo provérbio popular, não
podem nadar em águas profundas, e eles se afogarão. O simples procedimento de
mover os membros não é um mistério. Porém, a menos que o nadador, ao movê-los,
acredite que tais movimentos produzirão o resultado almejado, este não será obtido.
Nesse caso, ocupamo-nos com forças meramente mecânicas, mas o mesmo
princípio se aplica às forças mais sutis. A mera "confiança" conduz o neófito oculto
muito mais longe do que o vulgo geralmente imagina. Quantos leitores europeus
permaneceriam totalmente incrédulos se se relatassem a ele alguns resultados que
os cheias ocultistas, dos graus mais incipientes de sua instrução, têm de obter por
pura força da confiança e, apesar disso, ouvem amiúde na igreja as familiares
afirmações bíblicas de que o poder reside na fé, e permitem que as palavras passem
como o vento, sem deixar qualquer impressão.
29
O grande fim e propósito do Adeptado é realizar o desenvolvimento espiritual,
cuja natureza está velada e disfarçada nas frases comuns da linguagem exotérica.
Dizer que o Adepto procura unir sua alma com Deus, para poder, por esse meio,
entrar no Nirvana, é uma assertiva destituída de significação para o leitor comum, e
quanto mais examiná-la, baseado em livros e métodos elementares, tanto menos
plausível lhe será a compreensão da natureza do processo observado, ou do estado
desejado. Em primeiro lugar, é preciso conhecer o conceito esotérico de Natureza e
a origem e os destinos do Homem, o que se diferencia por completo dos conceitos
teológicos, antes que se torne inteligível uma explicação da meta que o Adepto
persegue. Enquanto isso, entretanto, é desejável, logo de início, abrir os olhos do
leitor para o falso conceito, que provavelmente possa ter formado, sobre os objetivos
do Adeptado.
O desenvolvimento dessas faculdades espirituais, cujo cultivo se relaciona
com os mais elevados objetivos da vida oculta, proporciona, à medida que progride,
um conhecimento casual, relativo às leis físicas ainda não compreendidas da
Natureza em geral. Esse conhecimento, e a arte prática de manipular certas forças
ocultas da Natureza, como conseqüência, confere a um Adepto, e até aos discípulos
de um Adepto, num estágio incipiente de sua instrução, poderes extraordinários,
cuja aplicação nos assuntos da vida diária gera, em algumas ocasiões, resultados
que parecem completamente milagrosos. Do aspecto habitual, a aquisição de um
poder de aparência milagrosa é uma conquista tão estupenda que as pessoas, às
vezes, se sentem inclinadas a imaginar que o desígnio do Adepto, ao procurar os
conhecimentos que obtém, não foi outro que ele próprio investir-se desses poderes
cobiçados. Isso seria tão racional como dizer de qualquer grande patriota da história
30
militar que o seu propósito, ao ser soldado, foi o de portar um vistoso uniforme e
aguçar a imaginação das amas-secas.
O método oriental para o cultivo do saber sempre diferiu diametralmente do
seguido no Ocidente, durante o desenvolvimento da ciência moderna. Enquanto a
Europa pesquisou a Natureza da forma a mais pública possível, sendo discutido
cada passo com a mais ampla liberdade e circulando de imediato cada recente fato
adquirido para o benefício de todos, a ciência asiática foi estudada em segredo e
suas conquistas zelosamente guardadas. Não é necessário que eu tente no
momento a crítica ou a defesa desses métodos. Mas, de qualquer modo, esses
métodos foram afrouxados até certo ponto em meu próprio caso, e como já afirmei,
tenho o pleno consentimento de meus instrutores para seguir minhas inclinações
como europeu, comunicando o que aprendi a todos os que desejarem recebê-lo.
Posteriormente se verá como a transgressão das regras elementares do estudo
ocultista, incorporada às concessões agora feitas, cai naturalmente no lugar
apropriado do esquema completo da filosofia oculta. O acesso a essa filosofia esteve
sempre, de certo modo, aberto a todos. Através do mundo, por vários meios, foi
vagamente difundida a idéia de que certos processos de estudo, que alguns homens
realmente seguiram, aqui e acolá, podiam conduzir à aquisição de um gênero de
conhecimento mais elevado do que o que é geralmente ensinado à humanidade nos
livros ou por meio de pregadores públicos religiosos. O Oriente, como já foi
assinalado, esteve sempre mais que vagamente impressionado por essa crença,
porém mesmo no Ocidente a massa inteira de literatura simbólica, referente à
astrologia, alquimia e ao misticismo em geral, fermentou na sociedade européia,
levando algumas poucas inteligências, singularmente receptivas e qualificadas, à
convicção de que detrás de toda essa falta de sentido, superficialmente
31
incompreensível, grandes verdades jazem ocultas. A essas pessoas, esse
excêntrico estudo revelou algumas vezes passagens ocultas que conduziam aos
maiores reinos imagináveis da iluminação. Porém, até agora, em todos esses casos,
de acordo com a lei dessas escolas, tão logo o neófito forçava passagem na região
do mistério, era-lhe imposto o segredo mais inviolável a tudo o que se relacionasse
com seu ingresso nessa região e com os seus progressos ulteriores. Na Ásia, do
mesmo modo, o cheia, ou discípulo de ocultismo, tão logo se converte em um cheia,
deixa de ser testemunha da realidade da ciência oculta. Fiquei espantado ao ver,
assim que comecei a tratar deste assunto, quão numerosos são os cheias. Mas é
impossível imaginar algum ato humano mais improvável do que a revelação não
autorizada, por parte de qualquer cheia, aos profanos, de sua qualificação como tal.
E assim é como a grande escola esotérica de filosofia conserva com sucesso o seu
segredo.
Num livro anterior, O mundo oculto, apresentei um completo e fiel relato das
circunstâncias sob as quais estive em contato com homens de dons elevados e
profundamente instruídos, de quem obtive as informações contidas neste volume.
Não preciso repetir a história. Agora tratarei do assunto sob novo ângulo. A
existência de Adeptos ocultistas e a importância de suas aquisições são
estabelecidas por intermédio de duas diferentes Unhas de argumento: em primeiro
lugar, considerando-se a evidência externa — o depoimento de testemunhas
qualificadas, a manifestação de pessoas relacionadas com Adeptos de faculdades
anormais que proporcionem algo mais que mera suposição da existência de
conhecimentos de anormal amplitude; em segundo lugar, pela apresentação de uma
parte considerável desses conhecimentos, suficiente para dar a segurança intrínseca
32
de seu próprio valor. Meu primeiro livro seguia o primeiro destes métodos. Agora,
enfrento um desafio maior, utilizando o segundo.
COMENTÁRIOS
Quanto mais avançamos no estudo do ocultismo, tanto mais exaltadas se
tomam, sob muitos aspectos, as nossas concepções sobre os Mahâtmâs. A
compreensão global da maneira como estas pessoas chegam, ao final de longo
tempo, a diferenciar-se da espécie humana não é algo que se obtém apenas com a
ajuda do esforço intelectual. Há aspectos na natureza do Adepto que se relacionam
com o extraordinário desenvolvimento dos princípios superiores do homem, que não
podem ser compreendidos pela aplicação dos inferiores. Mas enquanto os conceitos
incompletos, formados a princípio, por pouco não alcançam o nível verdadeiro dos
fatos, surge uma curiosa complicação do problema nesse caminho. A primeira idéia
que fazemos de um Adepto que conquistou o poder de penetrar os tremendos
segredos da natureza espiritual é formulada de acordo com os nossos conceitos de
um homem de ciência muito talentoso, em nosso próprio plano. Estamos aptos a
pensar que, uma vez Adepto, ele será sempre um Adepto — um ser humano muito
digno, que necessariamente deve usar, em todas as circunstâncias de sua vida, as
qualidades que lhe são pertinentes como um Mahâtmâ. Desse modo — como já
indicamos — não conseguiremos, certamente, por mais que nos esforcemos, fazer
justiça em nossos pensamentos aos seus atributos ás Mahâtmâ. Podemos com
bastante facilidade incorrer no extremo oposto ao pensarmos nele em seu aspecto
humano comum e, destarte, ficaremos perplexos, à medida que começarmos a nos
familiarizar com as características do mundo da ciência oculta. Precisamente porque
33
os mais elevados atributos do adeptado se relacionam com os princípios da natureza
humana, que transcendem inteiramente os limites da existência física, é que o
Adepto ou Mahâtmâ apenas pode ser um Adepto, na mais alta acepção do termo,
enquanto está, como diz a expressão, "fora do corpo" ou, de qualquer modo, num
estado anormal alcançado por sua própria vontade. Quando não tem por que entrar
em tal estado, nem sair completamente fora das limitações de sua prisão carnal,
parece-se muito mais com um homem comum, do que a experiência dos discípulos
sobre algum de seus aspectos poderia fazê-los supor.
Uma apreciação correta desse estado de coisas explica a contradição
aparente, com base na posição do discípulo de ocultismo diante de seus mestres
comparada com algumas das declarações que o próprio mestre faz freqüentemente.
Por exemplo, os Mahâtmâs asseveram que não são infalíveis, que eles são homens
como os demais, talvez com uma compreensão mais ampla da Natureza que o
comum da humanidade, mas, apesar de tudo, capazes de enganar-se tanto na
direção dos assuntos práticos com que podem estar relacionados, como na
apreciação dos atributos de outros homens, ou na apreciação da capacidade dos
candidatos para o desenvolvimento oculto. Mas como conciliarmos afirmações dessa
natureza com o princípio fundamental, existente no fundo de toda pesquisa do
ocultismo, que induz o neófito a confiar absolutamente e sem nenhuma reserva nos
ensinamentos e na orientação do mestre? A solução da dificuldade está no estado
de coisas, ao qual nos referimos anteriormente. Embora o Adepto possa ser um
homem capaz de enganar-se algumas vezes de modo surpreendente, quanto aos
assuntos mundanos, do mesmo modo que entre nós alguns dos maiores gênios
estão propensos a cometer erros em sua vida comum, que talvez não cometeria
jamais o vulgo de outro lado, assim que um Mahâtmâ se ocupa com os mais
34
elevados mistérios da ciência espiritual, ele o faz devido ao exercício de seus
atributos de Mahâtmâ, e, no que tange a estes, dificilmente é considerado capaz de
enganar-se.
Esta consideração permite-nos sentir que a confiança que merecem os
ensinamentos derivados dessa fonte, em que se inspira o presente volume, está
completamente fora do alcance dos pequenos incidentes que no progresso de nossa
experiência pareçam pedir a retificação dessa confiança entusiástica na sabedoria
suprema dos Adeptos, que geralmente evoca as primeiras abordagens ao estudo do
ocultismo.
Isso não quer dizer que esse entusiasmo ou reverência diminua por parte de
algum cheia ocultista, à proporção que cresça sua compreensão do mundo em que
penetra. O homem, que em um de seus aspectos é um Mahâtmâ, antes é conduzido
dentro dos limites do afetuoso respeito humano, do que privado de seus direitos à
reverência, pela consideração de que em sua vida comum não está acima do nível
comum dos sentimentos humanos, como algumas de suas nirvânicas experiências
nos levariam a crer.
Se temos sempre presente na mente que um Adepto só é verdadeiramente
um Adepto quando está exercendo as suas funções e que no exercício destas pode
elevar-se à relação espiritual com tudo aquilo que é, ao menos dentro dos limites de
nosso sistema solar, o que na prática significa para nós a onisciência, livrar-nos-
emos então de muitos de nossos erros gerados pelas dificuldades do assunto.
Pode-se relatar aqui algo atinente à intrincada natureza do Adepto, o que
seria difícil compreender sem fazer referência a alguns dos últimos capítulos deste
livro. Mas, como isto tem um significado tão importante para tudo quanto se refira à
compreensão do que é o Adeptado, será conveniente tratar dele de uma vez. A
35
natureza dúplice do Mahâtmâ é tão completa que algo de sua influência ou
sabedoria, nos planos mais elevados da Natureza, pode atingir os que estão em
singulares relações psíquicas com ele, sem que o Mahâtmâ-homem sequer perceba
no momento em que esse apelo lhe foi dirigido. Por essa via, estamos livres para
especular sobre a possibilidade de que a relação entre o Mahâtmâ espiritual e o
Mahâtmâ-homem algumas vezes pertença antes à Natureza do que às vezes se
menciona nos escritos esotéricos como um obscurecimento (overshadowing), em
vez de uma encarnação no amplo sentido da palavra.
Além disso, como outra complicação independente do assunto, devemos
apreciar o fato de que cada Mahâtmâ não é meramente um ego humano num estado
muito exaltado, mas pertence, por assim dizer, a algum departamento específico da
grande organização da Natureza. Cada Adepto deve pertencer a um ou a outro dos
sete grandes tipos do Adeptado. Mas embora possamos, quase com certeza, inferir
que existam correspondências entre esses vários tipos e os sete princípios do
homem, eu evitaria tentar a elucidação completa desta hipótese. Será suficiente
aplicar a idéia ao que conhecemos vagamente sobre a organização ocultista em
suas mais altas regiões. Há algum tempo, afirmou-se que nos escritos esotéricos
existem cinco grandes Chohans ou Mahâtmâs superiores, que presidem sobre toda
a fraternidade dos Adeptos. Quando foi escrito o capítulo precedente deste livro, eu
tinha a impressão de que um chefe supremo, situado num nível diferente, exercia
autoridade sobre esses cinco Chohans. Agora, parece-me que este personagem
deve antes ser considerado como um sexto Chohan, cabeça de um sexto tipo de
Mahâtmâ. Esta conjectura conduz, de uma vez, a outra inferência: deve existir um
sétimo Chohan para completar as correlações que assim discernimos. Mas como o
sétimo princípio na Natureza ou no homem é um conceito de ordem mais
36
inacessível, que escapa ao poder de qualquer inteligência e que seria descrito em
nebulosas frases ininteligíveis sobre metafísica, podemos portanto estar seguros de
que o sétimo Chohan está fora de toda compreensão dos intelectos não versados na
matéria. Mas ele, fora de dúvida, desempenha um papel naquilo que pode ser
chamado a mais elevada organização da Natureza espiritual, sendo que tal
personagem é, às vezes, visível para alguns dos outros Mahâtmâs. Mas a
especulação que lhe diz respeito é valiosa, principalmente para ratificar a idéia
segundo a qual os Mahâtmâs podem ser compreendidos em seu verdadeiro
aspecto, como fenômenos necessários da Natureza, sem os quais a evolução da
humanidade dificilmente seria imaginada como avançando, e não como homens
excepcionais que atingiram um estado de grande exaltação espiritual.
37
2. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM
Um exame da Cosmogonia, tal como a compreende a ciência oculta, deve
preceder toda tentativa de explicação dos meios pêlos quais se chegou a obter o
conhecimento dessa mesma Cosmogonia. Os métodos de pesquisa esotérica são o
resultado de fatos naturais, que a ciência exotérica desconhece totalmente. Estes
fatos naturais relacionam-se ao desenvolvimento precoce de faculdades nos
Adeptos ocultos, que a humanidade em geral não desenvolveu ainda. Estas
faculdades, por sua vez, capacitam seus possuidores à exploração dos mistérios da
Natureza e à comprovação das doutrinas esotéricas, na manifestação vindoura de
seu sublime desígnio. O estudante prático de ocultismo pode desenvolver
primeiramente suas faculdades e aplicá-las depois à observação da Natureza. Mas,
para os leitores ocidentais, que só procuram a compreensão intelectual, deve
preceder a consideração dos sentidos internos utilizados pela pesquisa oculta, antes
de expor a teoria da Natureza. Por outro lado, o exame da Cosmogonia, tal como é
compreendida pela ciência oculta, só pode ser sistematizado cientificamente em
detrimento da inteligibilidade para os leitores europeus. Antes de mais nada,
devemos tentar entender o estado do Universo anterior ao início da evolução. Isso
não foi negligenciado de modo algum pêlos estudantes esotéricos, e, mais adiante,
no curso deste esboço, serão feitas algumas sugestões relativas à opinião que o
ocultismo sustenta sobre os processos primitivos, através dos quais a matéria
cósmica passa em seu percurso evolutivo. Mas uma ordenada exposição dos
processos mais primitivos da Natureza incluiria indicações à constituição espiritual
do homem, que não seria entendida sem alguma explicação preliminar.
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A ciência esotérica reconhece sete princípios distintos na constituição do
homem. A classificação difere de um modo tão absoluto de tudo aquilo com que os
leitores europeus estão familiarizados que, naturalmente, me questionarão sobre as
bases em que o ocultismo se apóia para chegar a essa conclusão. Porém, devido às
peculiaridades inerentes ao assunto, que mais adiante serio compreendidas, devo
pedir para esta ciência oriental que dou a conhecer, certa atenção, por assim dizer,
de tipo oriental. Os sistemas oriental e europeu de transmitir conhecimento diferem
completamente em seus métodos. O método ocidental instiga e provoca, a cada
momento, o instinto da controvérsia do discípulo. Ele é animado a debater e a opor-
se à evidência. Proíbe-se-lhe aceitar qualquer afirmação científica tão-somente por
sua autoridade. Pari passu, à medida que adquire conhecimentos, deve aprender o
modo como eles são adquiridos e faz-lhe sentir que nenhum fato é digno de ser
conhecido, a menos que se conheça ao mesmo tempo a maneira de se demonstrá-
lo como tal. O método oriental dirige seus discípulos de uma forma bem diferente.
Está atento à necessidade de demonstrar seus ensinamentos como o Ocidente, mas
fornece provas de um gênero bem diferente. Dá poder ao estudante de pesquisar
por si mesmo a Natureza e de comprovar seus ensinamentos naquelas regiões em
que a filosofia ocidental só pode penetrar por intermédio da especulação e do
argumento. Jamais se dá ao trabalho de questionar sobre nada. Afirma: "O fato é
assim e assim; eis a chave dos conhecimentos; agora vai e observa por ti mesmo."
Assim ocorre que o ensinamento per se não é nada mais que ensinamento pela
autoridade. O ensinamento e a demonstração não vão de mãos dadas. Seguem-se
um ao outro na devida ordem. Outra conseqüência deste método é que a filosofia
oriental emprega o método que no Ocidente foi afastado, por boas razões, como
incompatível com nossa própria atitude de desenvolvimento intelectual: o sistema de
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raciocinar do geral ao particular. Os objetivos que a ciência européia costuma ter em
mente não seriam resolvidos por esse plano, porém penso que qualquer pessoa que
se adiante na presente questão sentirá que esse sistema, de partir dos detalhes
para chegar às conclusões gerais, não se aplica ao assunto que ora discutimos. Não
se pode compreender pormenores neste ramo de conhecimentos, até que se
adquira um discernimento geral do esquema completo das coisas. Até o fato de
comunicar esta compreensão apenas por meio da linguagem é uma tarefa enorme e
nada fácil. Deter-se a cada momento da exposição, a fim de recolher toda evidência
capaz de provar cada afirmativa de per se, seria praticamente impossível. Tal
método acabaria com a paciência do leitor e o impediria de deduzir, como o faria de
um estudo sinóptico, esse conceito definido sobre o que a doutrina esotérica quer
ensinar e que me toca evocar.
Esta reflexão pode sugerir, de passagem, uma nova luz que guarda uma
íntima vinculação com o assunto presente dos sistemas de raciocínio platônico e
aristotélico. O sistema de Platão, descrito grosseiramente como raciocinando do
universal ao particular, é condenado pêlos hábitos modernos em prol do segundo e
exatamente sistema inverso. Mas Platão se restringia à tentativa de defender o seu
sistema. Todas as razões nos levam a crer que sua familiaridade com a ciência
esotérica é o que movia seu método e que as habituais restrições que sobre ele
pesavam, como ocultista iniciado, proibiam-no de dizer tudo o que poderia tê-lo
justificado. Ninguém que estude a ciência oculta, contida neste volume, e que logo
se direcione para Platão, ou para qualquer resumo inteligente de seu sistema,
deixará de encontrar correlações colhidas em cada passagem.
Os mais elevados princípios da série que forma o homem não estão
desenvolvidos na humanidade que conhecemos, mas um homem completo ou
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perfeito poderia ser determinado nos elementos seguintes. Para facilitar a aplicação
destas explicações aos usuais escritos exotéricos budistas, são dados também os
nomes sânscritos desses princípios, assim como os termos adequados em nossa
linguagem2.
1 O Corpo: Rûpa
2 Vitalidade: Prana ou Jîva
3 Corpo Astral: Linga-sharîra
4 Alma Animal: Kâma-rüpa
5 Alma Humana: Manas
6 Alma Espiritual: Buddhi
7 Espírito: Âtma
Quando conceitos tão transcendentais, como alguns dos incluídos nesta
análise, são expostos de forma tabular, incorre-se, ao que parece, em certa
degradação contra a qual devemos estar sempre prevenidos, tratando de
compreender com clareza o que se pretende significar. De fato, seria impossível
mesmo para o mais hábil professor de ciência oculta exibir cada um desses
princípios, isolada e distintamente dos outros, como se procede com os elementos
físicos de um corpo composto, ao separá-los por meio da análise e conservá-los
independentes uns dos outros. Os elementos de um corpo físico estão todos no
mesmo plano de materialidade, mas os elementos do homem estão em planos muito
diferentes. Os gases mais sutis, capazes de entrar na composição química do corpo
humano, acham-se ainda, ao menos proporcionalmente, quase no nível mais 2 A nomenclatura aqui adotada difere ligeiramente da que apareceu na Theosophist, quando alguns fragmentos dos presentes ensinamentos foram expostos pela primeira vez. Depois se verá que os nomes, atualmente preferidos, incluem um conceito mais completo de todo o sistema e evitam algumas dificuldades a que nos nomes primitivos davam origem. Não se deve estranhar que as primeiras exposições da ciência esotérica fossem imperfeitas, pois eram uma conseqüência natural das dificuldades com que os expositores ingleses lidavam. Mas não há que confessar, nem deplorar erro algum substancial. As conotações dos nomes atuais são mais precisas do que as escolhidas de início; porém, as explicações dadas originariamente, quanto a seu alcance, estavam em completa harmonia com as que se desenvolvem na atualidade.
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material de todos os elementos. O segundo princípio, por sua associação com a
matéria grosseira, transforma-a, do que de costume chamamos matéria inorgânica
(o que com mais propriedade seria chamá-la inerte), em matéria viva, sendo algo
bem diverso da matéria mais inferior que conhecemos. Constitui, portanto, o
segundo princípio algo que possamos chamar verdadeiramente de matéria? A
questão nos conduz, assim, ao princípio desta indagação, ao centro da sutil
discussão metafísica sobre se a força e a matéria são diferentes ou idênticas. Basta,
no momento, assentar que a ciência oculta as considera idênticas e que não
observa nenhum princípio da Natureza como totalmente imaterial. Desse modo,
embora nenhum conceito do Universo, do destino do homem ou da Natureza em
geral seja mais espiritual do que os da ciência oculta, esta ciência está
completamente livre do erro lógico de atribuir resultados materiais às causas
imateriais. A doutrina esotérica é, portanto, na realidade, o elo que falta entre o
materialismo e a espiritualidade.
A chave do mistério que isso envolve encontra-se no fato, diretamente
reconhecível pêlos ocultistas versados, de que a matéria existe sob outros estados
além dos que podem ser reconhecidos pêlos cinco sentidos.
O segundo princípio do Homem, a Vitalidade, consiste, portanto, na matéria
em seu aspecto como força. Sua afinidade com o estado mais grosseiro da matéria
é tão grande que não pode ser separada de qualquer partícula ou massa da mesma,
salvo por instantânea translação para alguma outra massa ou partícula. Quando o
corpo do homem morre, por abandono de seus princípios superiores que o haviam
convertido numa realidade viva, o segundo, ou seja, o princípio da vida, não
constituindo mais uma unidade por si mesma, é ainda inerente, contudo, às
partículas do corpo enquanto este se decompõe, unindo-se a outros organismos aos
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quais dá origem o mesmo processo de decomposição. Enterre-se o corpo na terra e
seu Jîva se unirá por si à vegetação que brota na superfície, ou às formas animais
inferiores que se desenvolvem de sua substância. Queime-se o corpo, e o
indestrutível Jîva voa não menos instantaneamente ao mesmo planeta donde foi
originalmente tomado, entrando em alguma nova combinação determinada por suas
afinidades.
O terceiro princípio, o Corpo Astral ou Linga-sharîra, é um duplo etéreo do
corpo físico, seu desenho original. Ele é quem guia o Jîva em seu trabalho sobre as
partículas físicas e é a origem para que este construa a forma que aquelas
assumem. Vitalizado pêlos princípios mais elevados, sua unidade é conservada
apenas pela união de todo o grupo. Na ocasião da morte, desencarna-se por um
breve período, e sob condições anormais é transitoriamente visível para algumas
pessoas. Sob tais condições, é tomado naturalmente pelo espectro da pessoa
morta. As aparições espectrais podem, às vezes, ter outras causas, mas o terceiro
princípio, quando isso se apresenta como um fenômeno visível, é mera agregação
de moléculas num estado particular, destituído de toda espécie de vida ou
consciência. Já não é um Ser, como não o é qualquer nuvem suspensa que no
espaço casualmente tome a semelhança de algum animal. Em termos gerais, o
Linga-sharîra jamais abandona o corpo, exceto à morte, nem mesmo neste caso
migra muito longe dele. Quando é visto, o que só pode ocorrer raramente, será
unicamente percebido perto do lugar onde o corpo físico ainda permanece. Em
alguns casos muito peculiares de mediunidade espírita, pode, durante um breve
tempo, sair do corpo físico e ser visível perto deste, mas o médium, nesse caso,
permanece todo o tempo em perigo iminente de vida. Perturbem-se
inconscientemente as condições nas quais o Linga-sharîra se libertou e sua volta
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pode ser impedida. Então, o segundo princípio logo deixaria de animar o corpo físico
como uma unidade e se seguiria a morte.
Durante os dois últimos anos, enquanto indícios e fragmentos de ciência
oculta se difundiram pelo mundo, a expressão "Corpo Astral" vem sendo aplicada a
certa semelhança da forma humana plenamente habitada por seus mais elevados
princípios, podendo projetar-se a qualquer distância do corpo físico, lançada
conscientemente e com intenção precisa por um Adepto vivo, ou sem
intencionalidade, por meio da aplicação acidental de certas forças mentais a seus
princípios desprendidos por alguma pessoa no momento da morte. Para uso comum,
não há inconveniente prático no uso da expressão "Corpo Astral" para a aparência
assim projetada. De fato, qualquer expressão mais estritamente rigorosa, como se
vê, seria embaraçosa e devemos empregar a expressão em ambos os significados.
Não é preciso criar-se nenhuma confusão. Porém, estritamente falando, o Linga-
sharîra ou terceiro princípio é o corpo astral, e não pode ser lançado para fora como
veículo dos princípios superiores.
Os três princípios inferiores, como se vê, pertencem à Terra. Perecíveis por
natureza, como entidade isolada, embora sejam indestrutíveis com relação às suas
moléculas e em absoluto dissociados do homem em sua morte.
O quarto princípio é o primeiro dos que pertencem à natureza superior do
homem. A denominação sânscrita Kâma-rûpa é com freqüência traduzida por "Corpo
de Desejo", o que parece antes uma expressão confusa e pouco exata. Talvez
"Veículo da Vontade" seria uma tradução mais aproximada, se relacionando melhor
ao significado do que às palavras. Porém, o nome adotado anteriormente, "Alma
Animal" é o que sugere uma idéia mais exata.
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Na Theosophist de outubro de 1881, quando se divulgaram as primeiras
indicações sobre a constituição setenária do homem, o quinto princípio era chamado
"alma animal", para distingui-lo do sexto, "alma espiritual". Embora essa
nomenclatura fosse suficiente para fixar a distinção exigida, degradava-se o quinto
princípio, que é essencialmente o princípio humano. Apesar de a humanidade ser
animal em sua natureza, se ela for comparada com o espírito, em todos os outros
aspectos acha-se acima da criação propriamente animal. Introduzindo um novo
nome para o quinto princípio, fazemos retroceder a denominação "alma animal" a
seu lugar devido. Esta classificação não se opõe, entretanto, à apreciação do modo
como o quarto princípio constitui o centro da vontade ou do desejo a que o nome
sânscrito se refere. O Kâma-rûpa é a alma animal, o princípio mais desenvolvido da
criação bruta, suscetível de evoluir e converter-se em algo mais elevado, por sua
união com o crescente quinto princípio no homem. Mas, de todo modo, a alma
animal, da qual nenhum homem prescinde, é o centro de todos os desejos animais e
uma potente força no corpo humano, atuando, por assim dizer, tanto para cima como
para baixo, e capaz de influenciar o quinto princípio, para fins práticos, bem como
ser influenciada por ele, para o seu domínio e aperfeiçoamento. O quinto princípio, a
"alma humana" ou Manas (como é descrito em sânscrito por um de seus aspectos),
é a sede da razão e da memória. Uma parte deste princípio, animada pelo quarto, é
o que em realidade se projeta a lugares distantes por um Adepto, quando faz sua
aparição no que se chama comumente seu corpo astral.
O quinto princípio, ou "alma humana", não está ainda plenamente
desenvolvido na maior parte da humanidade. Este fato, sobre o desenvolvimento
imperfeito dos princípios superiores, é muito importante. Não podemos conceber
com exatidão o lugar atual do homem na Natureza, se cometemos o erro de encará-
45
lo como um ser já completamente aperfeiçoado. E esse erro seria fatal para qualquer
previsão razoável relativa ao futuro que o aguarda — fatal também para qualquer
apreciação do verdadeiro caráter do futuro, que a doutrina esotérica nos explica e
que efetivamente o espera.
Uma vez que o quinto princípio não está plenamente desenvolvido, fica
subentendido que o sexto princípio ainda está em estado embrionário. Essa idéia foi
indicada de variadas maneiras em recentes previsões da grande doutrina. Algumas
vezes, foi dito que não possuíamos, a rigor, nenhum sexto princípio, porém que
simplesmente temos o seu germe. Também foi dito que o sexto princípio não está
em nós, mas adeja sobre nós. É algo para onde se devem dirigir as mais altas
aspirações de nossa natureza. Mas também foi dito: Todas as coisas, não apenas o
homem, cada animal, planta e mineral, tem os seus sete princípios, e o mais elevado
princípio de todos — o sétimo — vitaliza aquele fio contínuo de vida que passa
através de toda a evolução, unindo em sucessão definida as quase inumeráveis
encarnações daquela vida que forma uma série completa. Devemos assimilar todos
esses diferentes conceitos e uni-los uns com os outros, ou extrair a sua essência,
para aprender a doutrina do sexto princípio. Seguindo a ordem de idéias que agora
mesmo nos sugere a aplicação do termo "alma animal" ao quarto princípio, e "alma
humana" ao quinto, pode o sexto ser denominado a "alma espiritual" do homem, e o
sétimo, por conseguinte, o próprio espírito.
Sob outro aspecto da idéia, o sexto princípio pode ser chamado o veículo do
sétimo, e o quarto, o veículo do quinto. Contudo, outra forma de focalizar o problema
nos ensina a considerar cada um dos princípios superiores, a contar do quarto para
cima, como um veículo do que na Filosofia Budista se chama de Vida Una ou
Espírito. Segundo este modo de abordar o assunto, a Vida Una é aquilo que se
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aperfeiçoa, ao habitar os diferentes veículos. No animal, a Vida Una está
concentrada no Kâma-rûpa. No homem, começa do mesmo modo a penetrar o
quinto princípio. No homem aperfeiçoado penetra o sexto, e quando penetra o
sétimo princípio o homem deixa de ser homem, atingindo uma condição de
existência completamente superior.
Este último modo de situar a questão é especialmente valioso, por prevenir-
nos contra a noção de que os quatro princípios superiores são como um feixe de
varas, atadas juntas, mas possuindo cada uma a sua individualidade, no caso de se
desatarem. Nem a "alma animal" sozinha nem a "alma espiritual" sozinha têm
qualquer individualidade. Por outro lado, o quinto princípio não poderia separar-se
dos outros, em tal grau que conservasse sua individualidade, ao passo que os
outros dois princípios ficassem inconscientes. Foi dito que mesmo os princípios mais
sutis são materiais e moleculares em sua constituição, embora compostos por uma
ordem de matéria muito mais elevada do que podem captar os sentidos físicos.
Portanto, são dissociáveis, e o mesmo sexto princípio pode ser imaginado como
divorciando-se de seu vizinho inferior. Neste estado de separação, porém, e no grau
atual de desenvolvimento da humanidade, poderia em semelhante circunstância
simplesmente reencarnar-se e desenvolver um novo quinto princípio, por contato
com um organismo humano. Neste caso, o quinto princípio se apoiaria no quarto,
sendo proporcionalmente degradado. Apesar de tudo, este quinto princípio, que não
pode permanecer só, é o que constitui a personalidade do homem e a sua essência,
em união com o sexto, a sua contínua individualidade através das vidas sucessivas.
As circunstâncias e as atrações, sob cuja influência os princípios se dividem,
e o modo como a consciência do homem atua sobre eles, serão objeto de discussão
mais adiante. Entrementes, compreenderemos melhor o aspecto geral da questão
47
ocupando-nos de início dos processos de evolução por meio dos quais se
desenvolvem os princípios do homem.
COMENTÁRIOS
Alguma objeção foi levantada ao método de como a Doutrina Esotérica é
apresentada ao leitor, neste livro, com o fundamento de que é materialista. Duvido
eu que, por qualquer outro procedimento, as idéias de que trato pudessem ser
postas ao alcance da inteligência, sendo fácil, uma vez entendidas, traduzi-las nos
termos próprios de seu idealismo. Os princípios superiores poderão ser
considerados melhor como outros tantos estados diferentes do Ego, quando os
atributos destes estados forem considerados separadamente como princípios
submetidos à evolução. Mas vale frisar algo sobre o aspecto da constituição humana
que apresenta a consciência da entidade, emigrando sucessivamente através dos
distintos graus de desenvolvimento que os diferentes princípios significam.
Quanto à evolução mais elevada, da qual temos de ocupar-nos agora — a do
Mahâtmâ perfeito —, declarou-se algumas vezes, nos ensinamentos ocultos, que a
consciência do Ego adquiria o poder de viver integralmente no sexto princípio. Seria,
porém, uma maneira errônea, além de crassa, de considerar o assunto, supor que o
Mahâtmâ tenha descartado por completo, como inúteis, os invólucros do quarto e do
quinto princípios, nos quais sua consciência pode haver morado durante os
anteriores estados de sua evolução. A entidade que era antes o quarto ou quinto
princípio, chegou agora a ser diferente em seus atributos e a ficar divorciada por
completo de certas tendências ou disposições, e é, portanto, um sexto princípio. A
mudança pode ser descrita, em termos mais gerais, como uma emancipação da
natureza do Adepto da servidão de seu eu inferior aos desejos da vida terrena
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comum — e mesmo das limitações dos afetos. Porque o Ego, que está
completamente consciente em seu sexto princípio, realizou sua unidade com os
verdadeiros Egos de toda humanidade, no plano superior, e não pode mais ser
atraído pêlos laços de simpatia mais para uns do que para outros. Atingiu aquele
amor pela humanidade como um todo, que transcende o amor de Mâyâ ou ilusão,
que constitui a criatura humana e é a causa do sentimento de separação do ser
limitado nos planos inferiores da evolução. Não é que tenha perdido seus quarto e
quinto princípios — mas estes alcançaram o Mahatmado. Do mesmo modo como a
alma animal do reino inferior, ao alcançar a humanidade, floresce no quinto estado.
Aquela consideração nos ajuda a entender com maior exatidão a passagem dos
seres humanos comuns através de longas séries de encarnações no plano humano.
Tendo penetrado diretamente naquele plano de existência, a consciência do homem
primitivo vai gradualmente adquirindo os atributos do quinto princípio. Mas o Ego, a
princípio, permanece , um centro de atividade mental trabalhando principalmente
com impulsos e desejos pertencentes ao quarto estágio da evolução. Lampejos da
razão humana superior iluminam-no com intermitência no início, mas, por graus, o
homem mais intelectual atinge a plena posse daquela. Os impulsos da razão
humana afirmam-se cada vez mais vigorosamente. A mente fortalecida converte-se
em força predominante na vida. A consciência é transferida ao quinto princípio,
oscilando, entretanto, durante muito tempo, entre as tendências da natureza inferior
e as da superior, ou seja: durante vários períodos evolutivos e várias centenas de
vidas — e assim purificando e exaltando o Ego. Durante esse tempo, o Ego constitui
assim uma unidade, tomado deste ponto de vista, enquanto o sexto princípio é
apenas uma potencialidade de desenvolvimento posterior. No tocante ao sétimo
princípio, este é o verdadeiro Incognoscível, a causa suprema reguladora de todas
49
as coisas, o mesmo em todos os homens, o mesmo tanto para a humanidade., como
para o reino animal, o mesmo para todos os planos de existência: físico, astral,
devachânico ou nirvânico. Nenhum homem adquiriu um sétimo princípio, na
concepção superior do assunto: todos nós somos encobertos, do mesmo
incompreensível modo, pelo sétimo princípio do cosmos.
Como se harmoniza esta forma de encarar o assunto com a asserção feita no
capítulo anterior de que, em certo sentido, os princípios são dissociáveis e que até
pode imaginar-se o sexto como se divorciando de seu próximo e inferior vizinho e
desenvolvendo, por reencamação, um novo quinto princípio por meio do contato
com um organismo humano? Não existe qualquer incompatibilidade no espírito de
ambas as opiniões. O sétimo princípio é uno e indivisível em toda a Natureza; mas,
por intermédio dele, existe uma misteriosa persistência de certos impulsos de vida,
os quais constituem assim fios em que sucessivas existências podem estar
engastadas. Tal impulso de vida não expira, nem mesmo no caso hipoteticamente
extraordinário em que um Ego, por ele projetado e desenvolvido, até certo ponto, se
desprenda dele totalmente e como um todo completo. Não irei expressar
precisamente o que ocorre em caso semelhante, mas as subseqüentes encarnações
do espírito ao longo daquela linha de impulso se devem, é claro, à seqüência
original. E, destarte, dado o modo materialista de abordar a idéia, pode-se dizer,
aproximando-nos da precisão tanto quanto nos permita a linguagem, que o sexto
princípio da entidade caída separa-se do quinto original e se reencarna por sua
própria conta.
Mas não é necessário que nos ocupemos demasiadamente desses processos
anormais. A evolução normal é o problema que temos de resolver primeiro. A
consideração dos sete princípios como tais é, a meu ver, o método mais instrutivo
50
para abordar o problema. E convém considerar sempre que o Ego é uma unidade
que progride através de várias esferas ou estados de existência, sofrendo
mudanças, crescimentos e purificações durante o curso de sua evolução — ou seja,
uma consciência que reside neste, naquele ou em outro dos atributos potenciais de
uma entidade humana.
51
3. A CADEIA PLANETÁRIA
A ciência esotérica, apesar de ser o sistema mais espiritual que se possa
imaginar, nos apresenta, ao atuar em toda a Natureza, o sistema de evolução mais
completo que a inteligência humana possa conceber. A teoria darwiniana da
evolução é simplesmente o descobrimento independente de uma parte —
infelizmente só de uma pequena parte — de uma vasta verdade natural. Porém, os
ocultistas sabem explicar a evolução sem degradar os mais elevados princípios do
homem. A doutrina esotérica não tem nenhuma obrigação de manter a sua ciência e
religião em compartimentos estanques. Sua teoria da física e sua teoria da
espiritualidade não são irreconciliáveis; estão intimamente vinculadas e dependem
uma da outra. E o primeiro grande fato que a ciência oculta nos exibe, com relação à
origem do homem neste globo, vem em auxílio da imaginação para alguns sérios
problemas da noção científica familiar de evolução. A evolução do homem não
consiste num processo que apenas acontece neste planeta. É um resultado para o
que contribuem muitos mundos em condições diferentes de desenvolvimento
material e espiritual. Se esta asserção fosse exposta apenas como uma conjectura,
é certo que forçosamente se recomendaria por si mesma às inteligências racionais.
Pois existe uma irracionalidade manifesta na noção banal de que a existência do
homem está dividida num começo material, que dura sessenta ou setenta anos, e
num resto espiritual de eterna duração. O irracional converte-se em absurdo quando
se pretende que os atos dos sessenta ou setenta anos — as confusas e frívolas
ações da ignorante vida humana — sejam consentidos pela perfeita justiça de uma
sapientíssima Providência, para definir as condições daquela vida póstuma de
duração infinita. Não é menos disparatado imaginar que, excetuada a questão de
52
justiça, a vida do além deva estar isenta da lei da mudança, do progresso e do
aperfeiçoamento, que todas as analogias da Natureza indicam como funcionando
provavelmente em todas as variadas existências do Universo. Mas abandone-se de
uma vez por todas a idéia de uma vida do além uniforme, invariável e não
progressiva — admita-se por um instante o conceito de mudança e progresso
naquela vida — e conceba-se a idéia de uma variedade dificilmente compatível com
qualquer outra hipótese senão a do progresso através de mundos sucessivos. Como
afirmamos antes, não é isto, de modo algum, uma hipótese para a ciência oculta,
mas um fato determinado e comprovado (por ocultistas) fora de qualquer dúvida ou
contradição.
A vida e os processos evolucionários deste planeta — numa palavra, tudo o
que faz dele algo mais que uma massa inerte de matéria caótica — estão
encadeados com a vida e os processos evolucionários de vários outros planetas.
Mas não vá supor-se a inexistência de finalidade no que se refere ao esquema desta
união planetária a que pertencemos. A imaginação humana, uma vez posta em
liberdade, às vezes arremessa-se bem longe. Aceite-se plenamente como provável
ou verdadeira esta noção de que a Terra constitui meramente um elo na grande
cadeia de mundos, e poderia originar a idéia de que a totalidade dos céus estrelados
é a herança da família humana. Tal idéia implicaria um erro grave. Um só globo não
oferece lugar à Natureza para os processos mediante os quais o gênero humano foi
evocado do caos. Estes processos exigem apenas um número limitado e definido de
globos. Separados como estão no tocante à grosseira matéria física de que são
formados, os globos se acham estreita e intimamente unidos por meio de sutis
correntes e forças, cuja existência não requer muito esforço racional para ser
admitida, desde o momento em que a existência de alguma conexão — de força ou
53
meios etéreos — que une todos os corpos celestes visíveis, prova-se pelo mero fato
de que são visíveis. Por intermédio dessas correntes sutis é como os elementos de
vida passam de um mundo a outro.
Entretanto, o fato é, ao mesmo tempo, suscetível de má interpretação
decorrente de opiniões preconcebidas. Alguns leitores imaginarão que queremos
afirmar que, após a morte, a alma será arrastada pelas correntes daquele mundo
com o qual as suas afinidades se relacionam. O processo real é mais metódico. O
sistema de mundos é um circuito em torno do qual todas as entidades espirituais
individuais devem passar igualmente, e esta passagem constitui a Evolução do
Homem. Deve-se entender, portanto, que essa evolução é um processo ainda em
atividade e que de modo algum ele está completo. Os escritos darwinianos
ensinaram o mundo moderno a encarar o macaco como um antecessor, mas a
simples vaidade da especulação ocidental raras vezes permitiu que os
evolucionistas europeus dessem uma rápida olhada noutra direção, reconhecendo a
probabilidade de que para os nossos remotos descendentes podemos ser o que
aquele tão mal-recebido progenitor é para nós. Apesar disso, os dois fatos citados
apenas apóiam-se um no outro. A evolução superior será consumada por nosso
progresso através dos mundos sucessivos do sistema, e em formas mais elevadas
voltaremos a esta Terra de vez em quando. Mas as linhas de pensamento, por
intermédio das quais contemplamos essa perspectiva futura, são de uma extensão
quase inconcebível.
Poder-se-á supor, facilmente, que os mundos que compõem a cadeia à qual
pertence esta Terra não estão todos preparados para uma existência material
exatamente ou mesmo aproximadamente semelhante à nossa Não teria sentido
numa cadeia organizada de mundos, que todos fossem parecidos e que todos
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pudessem ser amalgamados num só. Na verdade, os mundos com os quais estamos
relacionados diferem uns dos outros, não só em suas condições externas, mas
também naquela característica suprema da proporção em que o espírito e a matéria
combinam-se em sua constituição. Nosso próprio mundo geralmente apresenta-se-
nos em condições de equilíbrio entre o espírito e a matéria. Não se deve presumir
que ocupe um lugar alto na escala de perfeição. Ao contrário, permanece num nível
muito inferior nessa escala. Os mundos mais elevados na escala são aqueles em
que o espírito amplamente predomina. Existe um outro mundo, por assim dizer,
atado à cadeia em vez de formar uma parte dela, em que a matéria se manifesta até
mesmo mais decisivamente que na Terra; mas disso podemos falar mais adiante.
Que os mundos superiores, que o homem possa habitar em sua evolução
progressiva, tomem-se gradualmente mais e mais espirituais em sua formação —
por estar neles a vida mais e mais nitidamente separada das grosseiras
necessidades materiais — parecerá à primeira vista bastante razoável. Mas também
à primeira vista se pode imaginar que todos os que inversamente forem
denominados mundos inferiores, mas que a rigor denominam-se mundos
precedentes, devem ser menos espirituais, mais materiais do que esta Terra. O fato
é bem o oposto, e assim deve ser, visto tratar-se de uma cadeia de mundos sem fim,
isto é, uma cadeia em torno da qual percorre o processo evolucionário. Se este
processo somente tivesse uma jornada ao longo de um caminho que jamais
retornasse sobre si mesmo, poderíamos considerá-lo, deste ponto de vista, como
atuando da matéria quase absoluta até o quase absoluto espírito; mas a Natureza
atua sempre em curvas completas e viaja sempre por caminhos que retornam sobre
si mesmos. Os anteriores bem como os posteriores mundos desenvolvidos — pois a
própria cadeia foi crescendo por graus —, tanto os mais atrasados como os mais
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adiantados são os mais imateriais, os mais etéreos de toda a série; e isto, estando
bem de acordo com o modo próprio de ser das coisas, pode ser comprovado,
refletindo-se que aquele mundo, estando numa situação mais avançada de todos,
não é nenhuma região de finalidade, mas o primeiro patamar para atingir o que está
mais atrás de todos, da mesma forma como o mês de dezembro nos conduz
novamente ao de janeiro. Não se trata de que a mônada individual caia, como por
uma catástrofe, do ápice de desenvolvimento ao estado do qual lentamente
ascendeu há milhões de anos. Desde esse mundo, por motivos que logo
apresentaremos, que deve ser considerado como o mais alto no arco ascendente do
círculo até aquele que deve ser considerado como o primeiro no arco descendente
— ou seja, o mais baixo na ordem do desenvolvimento —, não existe descida
alguma, mas sempre ascensão e progresso. Pois a mônada ou entidade espiritual,
que percorreu seu caminho ao redor de todo o ciclo da evolução, tomando-a em
qualquer das muitas etapas de desenvolvimento em que as existências são
agrupadas, começa seu próximo ciclo no grau superior que segue, e deste modo
está ainda realizando progresso à medida que passa do mundo Z outra vez ao
mundo A. Muitas vezes percorre o círculo deste modo em torno do sistema, mas sua
passagem ao redor dele não se deve julgar que seja tal qual uma revolução circular
numa órbita. Na escala da perfeição espiritual, está constantemente ascendendo.
Então, se comparamos o sistema de mundos a um sistema de torres situadas numa
planície — cada uma delas de muitos andares e simbolizando a escala de perfeição
—, vemos que a mônada espiritual representa um progresso em espiral em redor da
série, passando por cada uma das torres, cada vez que em sua volta chega a cada
uma delas e a um nível mais elevado que antes.
56
Por falta de compreensão desta idéia, a especulação relativa à evolução física
é amiúde sustada por obstáculos intransponíveis. Estão-se buscando os elos
perdidos num mundo em que jamais serão encontrados, porque, tendo apenas um
objetivo temporal, eles desapareceram. O homem, diz o darwiniano, foi certa vez um
macaco. Muito certo. Mas o macaco conhecido pelo darwiniano jamais se converterá
num homem — isto é, z. forma não mudará de geração em geração até que a cauda
desapareça e os pés se convertam em mãos, e assim por diante. A ciência comum
confessa que, embora as mudanças de forma sejam percebidas no progresso dentro
dos limites das espécies, as mudanças, de espécie para espécie, podem somente
ser inferidas; para explicá-las, pressupõem-se grandes intervalos de tempo e a
extinção das formas intermediárias. Ocorreu, sem dúvida, uma extinção das formas
intermediárias ou primitivas de todas as espécies (na acepção mais ampla da
palavra) — isto é, das correspondentes aos reinos mineral, vegetal, animal, humano,
etc. — mas a ciência comum meramente conjectura que tal fato ocorra, sem
compreender as condições que o tomaram inevitável e que proibiam a renovada
geração das formas intermediárias.
É o caráter espiralado do progresso realizado pelos impulsos vitais que
desenvolvem os vários reinos da Natureza o responsável pelos claros que se
observam agora nas formas animadas que povoam a Terra. A rosca de um parafuso,
que na realidade é um plano inclinado uniforme, se parece com uma sucessão de
degraus se for examinada apenas ao longo de uma linha paralela ao seu eixo. As
mônadas espirituais que percorrem em volta do sistema ao nível animal passam a
outros mundos, enquanto exerceram aqui sua volta de encarnação animal. Quando
de novo retornam, já estio prontas para uma encarnação humana e então não é
necessário o desenvolvimento ascendente das formas animais em formas humanas
57
— estas já estão esperando por seus moradores espirituais. Mas se voltarmos
bastante para trás, chegaremos a um período em que não existiam na Terra formas
humanas já desenvolvidas. Quando as mônadas espirituais, percorrendo o nível
humano mais baixo ou primitivo, começavam a circular desse modo, seu impulso
para a frente, num mundo que não continha senão formas animais, provocou o
melhoramento das mais elevadas dessas formas na forma exigida — o elo perdido
de que tanto se fala.
Focalizando essa questão sob determinado aspecto, pode-se objetar que esta
explicação é idêntica ao pressuposto evolucionismo darwiniano, com relação ao
desenvolvimento e extinção dos elos perdidos. Afinal de contas, um materialista
pode argumentar que "não nos interessa expressar uma opinião sobre a origem da
tendência nas espécies a desenvolver formas mais elevadas. Dizemos que elas
desenvolvem estas formas mais elevadas por meio de elos intermediários que se
extinguem, e vós dizeis exatamente o mesmo". Mas existe entre ambas as idéias
uma diferença para quem possa compreender distinções sutis. Ao processo natural
de evolução relacionado à influência de circunstâncias locais e à seleção sexual,
não se deve atribuir a produção de formas intermediárias, e este é o motivo pelo
qual se toma inevitável que as formas intermediárias sejam de natureza transitória e
se extingam. Do contrário, veríamos o mundo repleto de elos perdidos de todas as
espécies, aproximando-se ávida animal do gênero humano, por graus claramente
visíveis e misturando-se as formas humanas com as dos animais em indistinguível
confusão. O impulso à nova evolução de formas superiores é dado, efetivamente,
como já indicamos, por ondas de mônadas espirituais que chegam por ciclos num
estado apropriado para poder habitar nas novas formas. Estes impulsos de vida
superiores rompem a crisálida da forma mais antiga no planeta que invadem,
58
surgindo uma eflorescência de algo mais elevado. As formas que nada mais fizeram
do que se repetir por milhares de anos recomeçam o seu crescimento. Com rapidez
relativa, se elevam através das formas intermediárias às formas superiores, e, então,
como estas, por sua vez, multiplicam-se com o vigor e a rapidez de todos os novos
crescimentos, proporcionam habitações de carne para as entidades espirituais que
vão atingindo aquele estado ou plano de existência, enquanto que para as formas
intermediárias já não existem mais moradores que as exijam. Assim,
inevitavelmente, elas se extinguem.
Desse modo consuma-se a evolução, no que se refere a seu impulso
essencial, por meio de um progresso em espiral através dos mundos. Na exposição
desta idéia, antecipamos em parte o enunciado de outro fato relevante, como auxílio
para corrigir opiniões sobre o sistema do mundo a que pertencemos. Trata-se do
fato de que a maré de vida — a onda de existência, o impulso espiritual, chame-se
como quiser — passa de planeta a planeta por vagas ou golfadas, e não como uma
corrente contínua. No intuito de ilustrar no momento essa idéia, o processo é
comparável à operação de encher uma série de orifícios ou de tubos fincados no
chão, como são vistos algumas vezes na boca de nascentes pouco férteis, os quais
são unidos uns aos outros por meio de pequenos canais superficiais. À medida que
brota a corrente do manancial é, no início, inteiramente recolhida pelo primeiro
orifício, ou tubo A, e apenas quando este está completamente cheio, a corrente
contínua de água que brota da fonte, ao extravasar, passa a encher o tubo B. Este,
ficando cheio, transborda pelo canal em direção ao tubo C. E assim sucessivamente.
Pois bem, embora uma analogia tão tosca como esta certamente não nos leve muito
longe, esclarece, no entanto, a evolução da vida numa cadeia de mundos como a
que pertencemos. E esclarece até mesmo a evolução dos próprios mundos.
59
Porquanto, o processo que ocorre não implica a preexistência de uma cadeia de
globos que a Natureza se encarrega de encher com vida, mas sim num processo em
que a evolução de cada um dos globos é o resultado de evoluções prévias e a
conseqüência de certos impulsos provenientes de seu predecessor na
superabundância de seu desenvolvimento. Agora vamos estudar a característica do
processo a ser descrito, mas para isso devemos imaginar que recuamos no tempo, a
um período anterior no desenvolvimento de nosso sistema, muito anterior ao que
trata nosso assunto na atualidade, ou seja: a evolução do homem. É evidente que
tão logo comecemos a falar de princípios de mundos, nos ocupemos de fenômenos
que têm muito pouco a ver com a vida, tal como a entendemos, e, portanto, pode-se
supor que eles nada têm a ver com os impulsos da vida. Mas voltemos por etapas.
Atrás do resultado humano do impulso de vida existe o resultado das meras formas
animais, como qualquer um compreende. Atrás desta, permanecem as formas
meramente vegetais — pois algumas delas antecederam indubitavelmente a
aparição da primitiva vida animal no planeta. Além disso, antes das organizações
vegetais, existiam as minerais — visto que até um mineral é produto da Natureza,
evolução de algo existente atrás dela, como deve ser toda a manifestação
imaginável da Natureza — até que, na imensa série das manifestações, a
inteligência chega, retrocedendo, ao Imanifesto princípio de todas as coisas. Não
nos ocupamos agora da metafísica pura dessa espécie. Basta-nos demonstrar que é
tão razoável para nós — se de alguma forma queremos falar desses assuntos —
conceber um impulso de vida gerando formas minerais, como considerar que, mercê
de impulso idêntico, uma raça de macacos eleva-se a uma raça de homens
rudimentares. A ciência oculta remonta muito mais atrás, em sua inexaurível análise
da evolução, do que ao período em que os minerais começaram a aparecer. No
60
processo de desenvolver mundos do seio ígneo das nebulosas, a Natureza começa
com algo mais primitivo que os minerais — começa com as forças elementares que
são subjacentes aos fenômenos da Natureza, tais como os sentidos do homem os
percebe. Mas pode-se prescindir, no momento, desta parte do assunto. Tomemos o
processo no período em que o primeiro mundo da série — vamos denominá-lo globo
A — é somente uma massa informe de formas minerais. Pois bem, recorde-se que o
globo A foi descrito como muito mais etéreo, mais dominado pelo espírito, mais livre
de matéria do que o globo em que habitamos na atualidade. Assim, devemos fazer
grande concessão quanto a esse estado de coisas, quando pedimos ao leitor que o
imagine, no seu princípio, como mera massa informe de formas minerais. As formas
minerais podem ser minerais no sentido de não pertencerem as formas superiores
do organismo vegetal e podem ser, ainda, muito imateriais, quanto ao que
consideramos como matérias, muito etéreas, constituídas por uma fina ou sutil
qualidade da matéria em que o outro pólo ou característica da Natureza, o espírito,
amplamente predomina. Os minerais, que tentamos descrever, são, por assim dizer,
os espectros dos minerais. Não são os perfeitos, belos e duros cristais apresentados
pêlos gabinetes mineralógicos deste mundo.
Nestas espirais inferiores da evolução, de que agora nos ocupamos, do
mesmo modo que nas superiores, existe o progresso de um mundo a outro, e este é
o grande ponto a que visamos. Discorrendo para baixo, por assim dizer, existe o
progresso em acabamento, materialidade e consistência, depois, novamente o
progresso também para cima na espiritualidade, combinado com a perfeição que a
matéria ou a materialidade atingiu na descida. Ver-se-á que o processo de evolução
relacionado com o homem, em seus estados superiores, prossegue exatamente pelo
mesmo procedimento. Na verdade, há de se verificar que, em todos esses estudos,
61
um processo da Natureza tipifica o outro, que o grande é a repetição do pequeno em
maior escala.
Torna-se evidente, pelo que antes afirmamos, e a fim de que sejam
explicados os progressos dos organismos do globo A, que o reino mineral não
desenvolverá o reino vegetal no globo A até que receba um impulso de fora, do
mesmo modo que a Terra não pôde desenvolver o Homem do macaco até que
recebeu o impulso de fora. Mas não seria agora conveniente retroceder à
consideração dos impulsos que funcionam no globo A, no início da construção do
sistema.
Remontamo-nos bem atrás, a fim de poder avançar com mais facilidade,
desde um remotíssimo período mais longínquo do que aquele do qual agora
retrocedemos. Recuar mais modificaria por completo o caráter desta exposição.
Devemos deter-nos em alguma parte. Por enquanto, o melhor será admitir como
certos os impulsos de vida atrás do globo A. Detendo-nos neste ponto, vamos
examinar, de modo bem sucinto, o enorme período existente entre a época mineral
do globo A e a época do homem, voltando assim ao problema principal que temos
diante de nós. O que já foi dito facilita a abordagem da evolução interposta. O pleno
desenvolvimento da época mineral do globo A prepara terreno para o
desenvolvimento vegetal. Tão logo este se inicia, o impulso da vida mineral inunda o
globo B. Quando o desenvolvimento vegetal no globo A é completo e inicia-se o
desenvolvimento animal, então o impulso de vida vegetal inunda o globo B e o
impulso mineral passa ao globo C. Finalmente chega o impulso da vida humana ao
globo A.
Nesta altura, é preciso precaver-nos contra um erro em que podemos
incorrer. Tal como foi descrito aproximadamente, o processo comunica a idéia de
62
que, quando o impulso humano começou no globo A, o impulso mineral está
começando no globo D, e que além dele existia o caos. Isso está longe da verdade,
por duas razões. Em primeiro lugar, como já se disse, existem processos de
evolução que antecedem a evolução mineral, e assim ocorre que uma onda de
evolução, na verdade várias ondas de evolução, precedem à onda mineral em seus
progressos em volta das esferas. Além disso, existe um fato, que devemos expor,
por ter essa influência no curso dos acontecimentos, e que, uma vez entendido, nos
revela que o impulso de vida passou várias vezes completamente ao redor de toda a
cadeia de mundos, antes de principiar o impulso humano no globo A. Este fato é o
seguinte: cada um dos reinos da evolução, o vegetal, o animal e assim por diante,
está dividido em várias camadas dispostas em espiral. As mônadas espirituais — ou
seja, os átomos individuais daquele imenso impulso de vida, de que tanto se falou —
que não completam plenamente a sua existência mineral no globo A, completam-na
depois no globo B, e assim por diante. Elas passam várias vezes ao redor do círculo
completo como minerais. Depois, várias vezes como vegetais e várias vezes como
animais. De propósito nos abstemos, por enquanto, de entrar em números, porque
convém apresentar primeiramente o esboço do esquema em termos gerais. Mas,
cifras relativas a esses processos já foram divulgadas ao mundo pêlos Adeptos do
ocultismo. Por enquanto, para nós, o esboço deverá ser suficiente.
Temos agora o homem rudimentar, iniciando a sua existência no globo A,
naquele mundo em que todas as coisas são como que espectros correspondentes
às coisas deste mundo. Ele começa a sua longa descida na matéria. O impulso de
vida de cada "Ronda " transborda, formando-se as raças de homens em graus
diferentes de perfeição em todos os planetas, cada um por sua vez. Mas as Rondas
são mais complicadas em seu modo de ser do que esta explicação poderia mostrar,
63
se nos detivéssemos aqui. O processo para cada mônada espiritual não é
meramente uma passagem de planeta a planeta. Dentro dos limites de cada planeta,
cada vez que chega a ele, ocorre um complicado processo de evolução. Encarna-se
muitas vezes nas raças sucessivas de homens antes de ir para a frente e, mesmo,
está sujeita a muitas encarnações em cada uma das grandes raças. Ao se avançar
mais, há de se ver que este fato lança um facho de luz sobre o estado atual do
gênero humano, tal como o conhecemos, explicando as imensas diferenças de
inteligência, de moralidade e mesmo de bem-estar, em seu sentido mais elevado,
tudo o que aparece em geral tão dolorosamente misterioso.
O que tem um começo definido, em geral, também tem um fim. Assim como
mostramos que o processo evolucionário, antes descrito, começa quando certos
impulsos atuam pela primeira vez, da mesma forma infere-se que tendem para um
fim, para um objeto final. Assim é, embora esta meta esteja ainda longínqua. O
homem, tal como o conhecemos nesta Terra, está apenas a meio caminho do
processo evolucionário a que deve seu desenvolvimento atual. Ele será muito maior,
antes que o destino de nosso sistema se tenha cumprido, do que o é agora, assim
como na atualidade ele é muito maior do que o chamado elo perdido. Esse
aperfeiçoamento ocorrerá nesta Terra mesmo, enquanto nos outros mundos da série
ascendente existem ainda outros ápices de perfeição para serem escalados.
Imaginar a espécie de vida que terá o homem, por último, antes de atingir o zênite
do grande ciclo, está completamente fora do alcance de faculdades não
acostumadas ao discernimento dos mistérios ocultos. Mas já há bastante o que fazer
com os pormenores do esboço que agora apresentamos ao leitor, antes de
tentarmos prever as vidas para as quais a evolução se dirige nos imensos abismos
do futuro.
64
COMENTÁRIOS
Há uma expressão no capítulo anterior que não se coaduna com algumas
noções mais completas que pude adquirir sobre o assunto, depois de haver escrito
este livro. Afirma-se que "as mônadas espirituais — os átomos individuais daquele
imenso impulso de vida, sobre o qual tanto se tem falado —, que não completam
inteiramente sua existência mineral no globo A, completam-na depois no globo B, e
assim por diante. Elas passam várias vezes ao redor de todo o círculo como
minerais; depois, várias outras vezes em torno do mesmo, como vegetais, etc."
Agora compreendo que me foi permitido empregar esta forma de expressão no
primeiro caso, porque o principal propósito era elucidar o modo como a entidade
humana se desenvolvia gradualmente, devido aos processos da Natureza, agindo a
princípio nos reinos inferiores. Mas, na verdade, uma vez que se chega a um grau
de investigação mais amplo, torna-se claro que o vasto processo (cujo coroamento é
a evolução da humanidade e de tudo o que conduz a ela, isto é, a descida do
espírito na matéria) não produz uma diferenciação de individualidades até um
período muito posterior ao que se observa no parágrafo antes citado. Nos mundos
minerais em que as formas superiores da planta e da vida animal não foram
estabelecidas ainda, não existe nada que se pareça a uma mônada individual e
espiritual, a menos que seja, na verdade, por meio de alguma unidade inconcebível
— inconcebível, mas sujeita a ser tratada como outra teoria qualquer nos impulsos
de vida destinados a originar as cadeias ulteriores de existência de uma organização
elevada. Assim como, em nota anterior, pressupusemos a unidade desse impulso de
vida, no caso de um Ego humano pervertido, lançado como entidade completa fora
da corrente da evolução em que havia entrado, podemos igualmente supor a mesma
unidade como existente nos primeiros albores da cadeia planetária. Mas isto não
65
passa de uma hipótese que nos dá certa garantia, reservando-nos o direito de
indagar depois alguns mistérios, dos quais não necessitamos tratar no momento.
Para apreciar de modo geral o assunto, é melhor considerar a primeira infusão do
espírito na matéria, como provocadora de uma manifestação homogênea. As formas
específicas do reino mineral, os cristais e as rochas diferenciados são bolhas
daquela massa fervente, assumindo parcialmente formas individualizadas por certo
tempo e confundindo-se outra vez com a substância geral do crescente cosmos, não
se tratando ainda de verdadeiras individualidades. Nem sequer no reino vegetal
começa a individualidade. O reino vegetal estabelece a matéria orgânica em
manifestação física e prepara o caminho para a evolução superior do reino animal.
Neste, pela primeira vez, mas unicamente em suas regiões superiores, é evocada a
verdadeira individualidade. Portanto, até que contemplemos na imaginação a
passagem do grande impulso de vida ao redor da cadeia planetária, no nível da
encarnação animal, até aí não seria estritamente justificável falar das mônadas
espirituais que se movem em volta do círculo, como uma pluralidade a que o
pronome "elas" pudesse ser aplicado com propriedade.
É evidente que os Adeptos, autores da doutrina exposta neste volume, não
revelaram o tema da cadeia planetária com a intenção de encorajar nenhum estudo
íntimo da evolução na mesma grande escala em que aqui aparece exposta. Em tudo
o que se refere à humanidade, o período em que a Terra estará ocupada por nossa
raça é mais do que suficiente para absorver nossa energia especulativa. A
magnitude do processo evolucionário, que se verifica durante esse período, é mais
do que suficiente para pôr à prova as faculdades da imaginação comum. No entanto,
é sumamente vantajoso para os estudantes da doutrina oculta, para que
compreendam de uma vez a pluralidade de mundos em nosso sistema — suas
66
íntimas relações entre si e a interdependência mútua — antes de concentrar a
atenção na evolução deste único planeta. Pois em muitos aspectos a evolução de
um único planeta segue uma rotina análoga à rotina que afeta toda a série de
planetas a que pertence. Os antigos escritos sobre a ciência oculta, de linguagem
obscura, referem-se algumas vezes aos estados sucessivos do mundo como se
indicassem mundos sucessivos, e vice-versa, causando confusões para o leitor que,
conforme a tendência a que se incline, adere a determinadas interpretações de
linguagem nebulosa. A obscuridade desaparece, porém, quando compreendemos
que, nos fatos atuais da Natureza, temos de reconhecer ambos os procedimentos de
mudança. Enquanto habitado pela humanidade, cada planeta passa por uma
metamorfose de caráter altamente importante e transcendente, cujo efeito em cada
um dos casos pode ser encarado quase como equivalente à reconstituição do
mundo. Mas não é menos certo que, se a série completa dessas mudanças for
tratada como uma unidade, esta pertencerá, como tal, a uma série de mudanças
mais elevada. Os vários mundos da cadeia são realidades objetivas e não símbolos
de mudança em um mundo único e variável. Outras observações sobre este ponto
principal estarão com mais propriedade no lugar que lhes corresponde no final de
um dos próximos capítulos.
67
4. OS PERÍODOS DO MUNDO
Num primeiro relance pela doutrina oculta, observa-se uma ilustração notável
das uniformidades da Natureza, quanto ao desenvolvimento do homem na Terra. O
contorno do plano é tal qual o contorno do plano mais compreensível de toda a
cadeia de mundos. Os pormenores internos deste mundo, por suas unidades de
construção, equivalem aos pormenores internos do organismo maior, de que este
mundo é apenas uma unidade. Isto significa que o desenvolvimento da humanidade
nesta Terra se efetua por meio de ondas sucessivas de desenvolvimento, que
correspondem aos sucessivos mundos da grande cadeia planetária. A grande maré
da vida humana — segundo o que já foi descrito — percorre em volta do círculo
inteiro de mundos em ondas sucessivas. Achamos conveniente denominar Rondas
os primeiros crescimentos da humanidade. Não devemos esquecer que as unidades
individuais constitutivas de cada Ronda por turno são sempre as mesmas, no que se
refere a seus princípios superiores. Assim, as individualidades na Terra durante a
Ronda número um voltam outra vez a ela, depois de completarem suas jornadas ao
redor de toda a série de mundos, constituindo a Ronda número dois, e assim
sucessivamente. Mas o ponto a que se deve dar atenção especial é que a unidade
individual, chegando a um dado planeta da série, no decorrer de qualquer das
Rondas, não entra em contacto simplesmente com o planeta, passando ao próximo.
Pois, antes de passar a outro planeta, tem de viver por toda uma série de raças
neste planeta. Este fato sugere o esboço da construção que logo há de se
desenvolver na mente do leitor, exibindo aquela semelhança de contorno por parte
de um mundo, ao ser comparado com a série inteira, para a que já se chamou a
atenção. Assim como o esquema completo da Natureza a que pertencemos se
68
desenvolve por meio de uma série de Rondas que passam através de todos os
mundos, assim também o desenvolvimento da humanidade, em cada um dos
mundos, resulta de uma série de raças desenvolvidas por turno, dentro dos limites
de cada mundo.
Já é tempo de esclarecer de que modo funciona esta lei, ocupando-nos dos
números que efetivamente representam um papel na evolução de nossa doutrina.
Seria apressado iniciar por eles nossa explicação, mas uma vez bem entendida a
idéia de um sistema de mundos em cadeia e a idéia da evolução da vida em cada
um desses mundos, por meio de uma série de renascimentos, o exame posterior das
leis em funcionamento será, em grande parte, facilitado pela referência ao número
de mundos e raças necessários para realizar toda a finalidade do sistema. Mas se
deve ter presente que a duração inteira do sistema é certamente limitada no tempo,
como o é a vida de um homem. Provavelmente não limitada a determinado número
de anos, fixado irrevogavelmente desde o início, mas tudo o que tem um princípio se
encaminha para um fim. A vida do homem, prescindindo de todos os acidentes, é um
período findável e a vida do sistema mundial conduz a uma consumação final. Os
vastos períodos de tempo, com relação à vida de um sistema mundial, em geral
ofuscam a imaginação; mas apesar de tudo são mensuráveis e divisíveis em
subperíodos de vários tipos e estes têm um número definido.
Por um instinto profético, Shakespeare tomou o número 7 como o que
convinha à sua fantástica classificação das idades do homem, o que constitui uma
questão sobre a qual não precisamos nos preocupar. O certo, porém, é que não
poderia haver feito uma escolha mais feliz. A evolução das raças humanas pode ser
delineada em períodos de sete em sete, e o número preciso de mundos objetivos
que constituem o nosso sistema, e dos quais a Terra é um deles, é também de sete.
69
Tenha-se em mente que os sábios oculistas conhecem isso como um fato, assim
como os físicos admitem como um fato que o espectro consta de sete cores e a
escala musical de sete tons. Existem sete reinos na Natureza, e não três como a
ciência moderna os classificou incorretamente. O homem pertence a um reino
nitidamente separado do dos animais, incluindo seres de grau mais alto de
organização que aquele com que a humanidade nos familiarizou até agora. Abaixo
do reino mineral existem outros três, sobre os quais a ciência ocidental nada
conhece; mas esta parte do assunto pode, no momento, ser deixada de lado, pois
apenas a mencionamos para demonstrar a operação regular da lei setenária da
Natureza.
O homem — voltando ao reino que mais nos interessa — evolui numa série
de Rondas (progressões em volta da série de mundos) e sete delas têm de se
efetuar antes que os destinos de nosso sistema se cumpram. A Ronda em que nos
encontramos na atualidade é a quarta. Existem considerações do mais alto interesse
relacionadas com conhecimentos exatos sobre estes pontos, porque cada Ronda
está especificamente destinada ao predomínio de um dos sete princípios do homem,
e na ordem regular de sua gradação ascendente.
Uma unidade individual, que chega a um planeta pela primeira vez no curso
de uma Ronda, tem de evoluir pelas sete raças daquele planeta antes de passar ao
próximo, e cada uma destas raças habita a Terra durante longo tempo. Nossas
antiquadas especulações a respeito do tempo e da eternidade, sugeridas pelos
vagos sistemas religiosos do Ocidente, nos levaram a adotar uma curiosa atitude de
pensamento, com relação aos problemas relativos à duração desses períodos.
Falamos da eternidade de modo volúvel e, dirigindo-nos ao outro extremo da escala,
não nos impressionam os milhares de anos, mas assim que os anos são numerados
70
com exatidão em grupos correspondentes a conceitos determinados, os ilógicos
teólogos ocidentais tendem a reputar como disparates essas numerações. Pois bem,
nós que vivemos atualmente nesta Terra — ou seja, o grosso da humanidade, pois
há casos excepcionais que abordaremos mais tarde — estamos na quinta raça de
nossa presente quarta Ronda. Entretanto, a evolução dessa quinta raça começou há
milhões de anos. Animar-se-ia o leitor, considerando o fato de que a cosmogonia
atual não reconhece a sua atuação na eternidade, a ocupar-se com as estimativas
que se referem a milhões de anos, dispondo-se até mesmo a contá-los como se
fossem números dignos de consideração?
Cada uma das sete raças que compõem uma Ronda — ou seja, que evoluem
sucessivamente na Terra durante sua ocupação pela grande vaga da humanidade
que passa em torno da cadeia planetária — está sujeita a subdivisões. Não fosse
assim, as existências ativas de cada unidade humana seriam na verdade poucas e
distantes entre si. Nos limites de cada raça há sete sub-raças, e nos limites de cada
subdivisão há outras sete raças ramais. Por todas estas raças, em termos
aproximados, cada unidade humana deve passar durante a sua permanência na
Terra, cada vez que chega a ela numa Ronda de progresso através do sistema
planetário. Pensando bem, essa necessidade não deveria abalar a mente tanto
quanto uma hipótese que estipulasse um número menor de encarnações. Pois, por
muitas que sejam as vidas pelas quais cada unidade individual deva passar na Terra
em cada Ronda, sejam em maior ou menor número, não pode passar adiante
enquanto não chegar o tempo em que a onda circulante avançar para outras
regiões. Mesmo pelo cálculo já exposto, ver-se-á que o tempo gasto por cada
unidade individual na vida física representa uma pequena fração do tempo total
decorrido entre sua chegada à Terra e sua partida para o planeta próximo. A maior
71
parte do tempo — tal como contamos sua duração — portanto, obviamente
transcorre nas condições subjetivas de existência que pertencem ao "Mundos dos
Efeitos", ou à Terra espiritual ligada à Terra física, onde se passa a nossa existência
objetiva.
A natureza da existência na Terra espiritual deve ser considerada pari passu
com a natureza da vida passada na Terra física, se relacionando com a enumeração
anterior de encarnações da raça. Não devemos esquecer jamais que, entre cada
existência física, a unidade individual passa por um período de existência no
correspondente mundo espiritual. E como as condições dessa existência são
definidas pelo uso que se fez das oportunidades de que se dispunha na existência
física precedente, com freqüência se indica a Terra espiritual nos escritos ocultos
como o mundo dos efeitos, e a própria Terra como o correspondente mundo de
causas.
O que naturalmente passa ao mundo dos efeitos, após uma encarnação no
mundo das causas, é a unidade individual ou a mônada espiritual; mas a
personalidade que acaba de dissolver-se a acompanha na proporção que
corresponde aos méritos dessa personalidade — ou seja, de acordo com o uso que
esta tenha feito de suas oportunidades na vida. O período que tem de passar no
mundo dos efeitos — muito mais longo em cada caso do que a vida que lhe abriu
caminho para a existência naquele — corresponde ao "além-mundo", ou seja, o céu
da teologia comum. Os estreitos horizontes dos conceitos religiosos vulgares
compreendem somente uma vida espiritual e suas conseqüências na vida futura. A
teologia supõe que a entidade em questão tem seu princípio nesta vida física e que
a vida espiritual seguinte jamais cessará. Esse par de existências, revelado pêlos
elementos da ciência oculta que agora estamos expondo, constitui apenas uma
72
parte da experiência da entidade durante a sua conexão com uma raça ramal, uma
das sete pertencentes a uma raça subdivisionária, por sua vez, uma das sete que
compõem uma raça principal, esta, uma das sete ocupantes da Terra através de -
uma das sete ondas circulantes de seres humanos, as quais devem, cada uma de
per si, habitá-la, antes que sejam concluídas as suas missões na Natureza — essa
microscópica molécula da estrutura total é o que a teologia comum trata como se
fosse mais que o todo, pois supõe que isso abrange a eternidade.
Neste ponto devemos prevenir o leitor contra uma conclusão a que poderiam
induzi-lo as explicações anteriores — embora exatas para os períodos que abarcam,
não abrangem, entretanto, a totalidade do esquema. Ele não obterá o número exato
de vidas que uma entidade individual tem de passar na Terra durante sua
permanência ali numa Ronda, se simplesmente eleva o número sete à sua terceira
potência. Se em cada uma das raças ramais ocorresse unicamente uma existência,
o número total seria, obviamente, 343; porém, cada vida desce à objetividade duas
vezes, pelo menos, no mesmo ramo — em outras palavras: cada mônada encarna
duas vezes em cada raça ramal. Por outro lado, existe uma curiosa lei cíclica que
atua para aumentar o número total de encarnações além de 686. Cada uma das
sub-raças possui em seu ápice certa vitalidade extra, que a leva a fazer com que
brote uma raça ramal adicional naquele ponto de seu progresso, pelo que
desenvolve um ramo novo no fim da sub-raça, por assim dizer, em seus derradeiros
momentos. Através de todas essas raças passa a onda inteira da vida humana. O
resultado é que o número normal de encarnações, para cada mônada, é de quase
800. Este número varia dentro de limites relativamente estreitos, mas as
significações desse fato serão consideradas mais adiante.
73
A lei metódica que conduz a todas e a cada uma das entidades humanas,
através do vasto processo evolucionário assim esboçado, não é compatível, de
forma alguma, com a possibilidade de cair em destinos anômalos ou na derradeira
aniquilação que ameaça as entidades pessoais de gente que cultivou afinidades
muito ignóbeis. A distribuição dos sete princípios à morte demonstra isto de modo
bastante claro, mas, considerada à luz destas explicações posteriores sobre a
evolução, podemos, com mais facilidade, compreender a situação. A entidade
permanente é a que vive através da série inteira de vidas, não só das raças,
pertencentes à atual onda circulante na Terra, mas também através de todas as
outras ondas circulantes e em todos os outros mundos. Expressando em termos
gerais, no tempo oportuno, embora num futuro inconcebivelmente distante, se for
medido em anos, ela poderá recuperar a recordação de todas essas vidas, que lhe
parecerão dias do passado. Mas a escória astral, expelida a cada entrada no mundo
dos efeitos, tem existência própria mais ou menos independente, separada por
completo da entidade espiritual da qual recentemente se desligou.
A história natural dessa escória astral é um problema de grande interesse e
importância, mas o prosseguimento metódico de todo assunto exige de nós, à
primeira vista, que se compreenda o destino do Ego espiritual mais durável e
elevado, e antes ainda de empreendermos esta investigação, cabe analisarmos
melhor o desenvolvimento das raças objetivas.
Ainda que se interesse por assuntos que geralmente são considerados como
pertinentes à religião, a ciência esotérica não seria um sistema tão completo e
fidedigno, tal como é, se não conseguisse harmonizar com suas doutrinas todos os
fatos da vida terrena. Muito pouco capaz teria sido ela de pesquisar e certificar-se do
modo como a raça humana se desenvolveu através de evos de tempo e de séries de
74
planetas, se não estivesse estado em condições de comprovar também, sempre que
a indagação menor está contida na maior, o modo como a onda de humanidade, de
que tratamos agora, se desenvolveu nesta Terra. As faculdades, em suma, que
permitem aos Adeptos lerem os mistérios dos outros mundos e dos outros estados
de existência, não são, de forma alguma, inferiores à tarefa de sondar o passado da
corrente de vida deste globo. Disto decorre que, enquanto a rápida lembrança de
uns poucos milhares de anos é tudo o que abrange nossa chamada história
universal, a história da Terra, que constitui uma divisão da ciência esotérica,
compreende os eventos da quarta raça, que precedeu a nossa, e todos os da
terceira raça, que precedeu àquela. Na verdade, pode-se remontar ainda mais, mas
nem a segunda nem a primeira raça desenvolveram nada que se possa denominar
civilização, e, portanto, há menos que dizer delas do que sobre as que as
sucederam. A terceira e a quarta é que desenvolveram, por estranho que pareça a
alguns de nossos leitores, a noção de civilização na Terra, há vários milhões de
anos.
Onde estão os seus vestígios? — perguntarão. Como pode uma civilização,
com que a Europa dotou presentemente a humanidade, desaparecer tão
completamente a ponto de chegar a ser ignorada a sua anterior existência por
alguns habitantes futuros da Terra? Como podemos, pois, conceber a idéia de que
alguma civilização semelhante tenha desaparecido, sem nos deixar quaisquer
registros?
A resposta está na rotina regular da vida planetária, que marcha pari passu
com a vida de seus habitantes. Os períodos das grandes raças raízes são divididos
uns de outros por grandes convulsões da Natureza e por grandes modificações
geológicas. A Europa não existia como continente nos tempos de florescimento da
75
quarta raça. O continente em que a quarta raça viveu não existia quando floresceu a
terceira, e nenhum dos continentes que foram os grandes vórtices das civilizações
daquelas raças existe na atualidade. Sete grandes cataclismos continentais
sobrevêm durante a ocupação da Terra pela onda da vida humana, num período de
Ronda. Cada raça é eliminada, desse modo, no tempo predeterminado, ficando
alguns remanescentes em outras partes do mundo, que não pertencem à região
própria de sua raça; mas esses, de forma invariável nesses casos, mostram uma
tendência a degenerar e a reincidir na barbárie com maior ou menor rapidez.
A região própria da quarta raça, predecessora direta da nossa, era aquele
continente do qual alguma reminiscência foi conservada, até mesmo na literatura
exotérica — a desaparecida Atlântida. Mas a grande ilha, de cuja destruição fala
Platão, foi efetivamente o último remanescente daquele continente. Foi dito que: "No
período Eocênico, na sua primeira parte, o grande ciclo dos homens da quarta raça,
os atlantes, já havia atingido o seu ponto mais elevado, e o grande continente, o pai
de quase todos os continentes atuais, apresentava os primeiros sintomas de
depressão — processo que durou até há 11.446 anos, quando a sua última ilha, que
pode ser propriamente chamada Poseidonis, tradução de seu nome indígena,
submergiu com um estrondo.
"A Lemúria" (um continente mais antigo que se estendia para o Sul, através
do que é hoje o Oceano Índico, mas ligado com a Atlântida, pois então a África não
existia) "não deve ser mais confundida com a Atlântida, do que a Europa com a
América. Ambos os continentes afundaram e foram cobertos pelas águas, com as
suas elevadas civilizações e deuses. Porém, entre ambas as catástrofes, decorreu
um período de cerca de 700.000 anos, havendo florescido a Lemúria e acabado seu
curso de vida, exatamente naquele decurso de tempo anterior ao período inicial da
76
época Eocênica, visto que a sua raça era a terceira. Contemplai as relíquias daquela
que foi antigamente uma grande nação, em alguns dos aborígines de cabeça chata
de vossa Austrália."
Certo escritor cometeu um equívoco ao escrever recentemente sobre a
Atlântida, povoando a índia e o Egito com colônias daquele continente. Sobre isso
trataremos em breve.
"Por que os vossos geólogos não levarão em conta" — pergunta meu
venerado Mahâtmâ instrutor — "que, sob os continentes explorados e sondados por
eles, em cujas entranhas encontraram a época Eocênica, forçando-a a entregar seus
segredos, permanecem profundamente submergidos nos insondáveis, ou antes, nos
insondados leitos do oceano, outros e mais antigos continentes cujas camadas não
foram jamais exploradas geologicamente, e que podem algum dia demolir
inteiramente as suas atuais teorias? Por que não admitir que os nossos atuais
continentes já permaneceram várias vezes submersos, como a Lemúria e a
Atlântida, e que tiveram os seus tempos de reaparecer de novo e de sustentar novos
grupos de humanidade e de civilização; e que no primeiro grande sublevantamento
geológico e próximo cataclismo, na série dos cataclismos periódicos ocorrentes
desde o princípio até o fim de cada Ronda, nossos já autopsiados continentes
submergirão, aflorando novamente à superfície as Lemúrias e as Atlântidas?"
"Certamente, a quarta raça teve os seus períodos de mais alta civilização." (A
carta que estou agora citando foi escrita em resposta a uma série de perguntas que
eu formulei.) "As civilizações grega, romana e mesmo a egípcia nada são em
comparação com as civilizações que começaram com a terceira raça. As da
segunda raça não eram selvagens, mas não podiam ser denominadas civilizadas."
77
"Os gregos e romanos eram pequenas sub-raças e os egípcios uma parte de
nosso próprio tronco caucásio. Considerai estes últimos e a índia: tendo atingido a
civilização mais elevada e, o que é mais, a ciência, decaíram. O Egito, como sub-
raça diferenciada, desapareceu por completo (seus coptas são apenas um
remanescente híbrido). A índia, como um dos primeiros e mais poderosos brotos da
raça mãe e composta de certo número de sub-raças, permanece ainda hoje lutando
para conquistar de novo, " algum dia, o seu lugar na história. A história só possui uns
poucos desgarrados e nebulosos vislumbres do Egito de há 12.000 anos, época em
que, tendo alcançado o ápice de seu ciclo milhares de anos antes, começou a sua
decadência."
"Os caldeus haviam chegado ao apogeu de sua fama oculta antes do que
chamais a Idade do Bronze. Nós sustentamos que existiram civilizações muito
maiores que as vossas, que se erigiram e decaíram — contudo, que garantia podeis
mostrar ao mundo de que afirmamos a verdade? Não basta dizer, como o fazem
alguns de vossos modernos escritores, que existiu uma civilização extinta antes que
Roma e Atenas fossem fundadas. Asseveramos que existiu uma série de
civilizações, tanto antes como depois do período glacial, que ocuparam diversos
pontos do globo, alcançaram o cume da glória e morreram. Todo vestígio e
lembranças das civilizações assíria e fenícia tinham sido perdidos, até que há
poucos anos começaram a ser feitas descobertas. E agora elas abrem uma nova
página na história, embora não uma das mais primitivas da história da humanidade.
Entretanto, a que épocas tão afastadas remontam essas civilizações em
comparação com as mais antigas conhecidas, ainda àquelas, a história se mostra
relutante em aceitar. A arqueologia tem demonstrado suficientemente que a
memória do homem remonta no passado a idades mais recuadas que as que a
78
história tem desejado admitir e os anais sagrados de nações, antigamente
poderosas, conservados por seus herdeiros, são ainda mais dignos de crédito.
Falamos de civilizações do período pré-glacial, e a pretensão parece absurda, não
só à inteligência comum e profana, mas até à opinião do geólogo de alta erudição. O
que dizer, então, de nossa afirmativa de que os chineses — refiro-me aos do interior,
aos verdadeiros chineses, não à mistura híbrida entre a quarta e a quinta raças,
que na atualidade ocupa o trono3 — cujos aborígines pertencem em sua não
mesclada nacionalidade integralmente ao último e mais elevado ramo da quarta
raça, chegaram a seu mais alto grau de civilização quando a quinta raça apenas
aparecia na Ásia? Quando foi isto? Fazei a conta. O grupo de ilhas descoberto por
Nordenskiold, com Vega, foi encontrado coberto de fósseis de cavalos, ovelhas,
bois, etc., entre gigantescas ossadas de elefantes, mamutes, rinocerontes e de
outros monstros pertencentes a períodos em que o homem, segundo vossa ciência,
ainda não havia feito a sua aparição na Terra. A que se deve o achado de cavalos e
carneiros na companhia dos enormes antediluvianos?"
"A região agora desaparecida no inverno eterno, inabitada pelo homem — o
mais débil dos animais — logo se comprovará que não só teve um clima tropical,
coisa que vossa ciência sabe e não refuta, mas também que igualmente foi a sede
de uma das mais antigas civilizações da quarta raça, cujos mais importantes
vestígios encontramos agora no chinês degenerado, cujos restos mais ínfimos estão
misturados, sem esperança de serem diferenciados (pelos cientistas profanos) dos
restos da terceira raça. Disse-vos antes que o mais elevado povo (espiritualmente)
existente hoje na Terra pertence à primeira sub-raça da quinta raça raiz e é
constituído por arianos asiáticos; e que a raça mais elevada (no intelecto físico) é a
3 Refere-se à Dinastia dos Ch'ing (1644-1912), quando o trono chinês foi ocupado pelos mandchus. (N. T.)
79
última sub-raça da quinta — ou seja: vós mesmos, os conquistadores brancos. A
maior parte da humanidade pertence à sétima sub-raça da quarta raça raiz — as
mencionadas anteriormente: os chineses, seus ramos e brotos (malaios, mongóis,
tibetanos, javaneses, etc.) — com restos de outras sub-raças da quarta e da sétima
sub-raça da terceira raça. Todas essas decaídas e degradadas formas da
humanidade são a descendência por Unha direta de nações altamente civilizadas,
das quais nem nomes nem reminiscências sobreviveram, exceto em Evros como
Populvuh, o livro sagrado dos guatemaltecos e alguns outros desconhecidos à
ciência."
Eu me perguntara se havia meio de explicar o que parece ser o impulso
curioso do progresso humano nos últimos dois mil anos, se comparado com o
estado de relativa estagnação do povo da quarta raça desde o início do progresso
moderno. Essa pergunta foi a que despertou as explicações antes citadas e também
as seguintes observações relativas ao recente "impulso do progresso humano".
"É o final de um ciclo muito importante. Cada Ronda, cada raça, assim como
cada sub-raça, tem os seus grandes e os seus pequenos ciclos em cada um dos
planetas pêlos quais a humanidade passa. Nossa humanidade da quarta Ronda tem
o seu grande ciclo, o mesmo acontecendo com as suas raças e sub-raças. O
'curioso ímpeto' deve-se ao duplo efeito do primeiro — o princípio de seu curso
descendente — e do último (o pequeno ciclo de vossa sub-raça) arremessando-se
para seu ápice. Lembrai-vos de que pertenceis à quinta raça; entretanto, sois tão-só
uma sub-raça ocidental. Apesar de vossos esforços, o que chamais de civilização
está restrito unicamente à última e a seus descendentes na América. Ao irradiar em
torno de si, pode parecer que a sua luz enganosa lance os seus raios a maior
80
distância do que em verdade o faz. Não existe ímpeto algum na China, e do Japão
fazeis apenas uma caricatura."
"Um estudante de ocultismo não deve falar do estado estagnado do povo da
quarta raça, visto que a história quase nada sabe sobre esse estado, 'até o início do
progresso moderno' de outras nações, a não ser as ocidentais. O que sabeis da
América, por exemplo, antes da invasão daquela região pêlos espanhóis? Menos de
dois séculos antes da chegada de Cortês, ocorreu ali um grande ímpeto para o
progresso entre as sub-raças do Peru e do México, como ocorre na atualidade na
Europa e nos Estados Unidos. Sua sub-raça terminou com o aniquilamento quase
completo, por causas produzidas por si mesma. Podemos falar tão-só do estado
'estagnado' em que, de acordo com a lei de desenvolvimento, crescimento e
maturidade caem cada raça e sub-raça durante os períodos de transição. Deste
último estado é o que vossa história universal tem conhecimento enquanto
permanece soberbamente ignorante do estado em que até mesmo a índia se achava
há uns dez séculos. Vossas sub-raças agora se, precipitam para o ápice de seus
ciclos respectivos, e vossa história não remonta além dos períodos de decadência
de outras poucas sub-raças, pertencentes em sua maior parte à anterior quarta
raça."
Eu também me perguntara a que época pertencera a Atlântida e se o
cataclismo pelo qual foi destruída sobreveio num ponto determinado do progresso
da evolução, correspondente ao desenvolvimento das raças e ao obscurecimento
dos planetas. A resposta foi:
"Na era Miocênica. Tudo ocorre em seu tempo e lugar devidos, na evolução
das Rondas. De outra forma seria impossível, para o melhor dos videntes, calcular a
hora exata e o ano em que tais cataclismos, grandes e pequenos, têm de ocorrer.
81
Tudo o que um Adepto poderia fazer seria prognosticar o tempo aproximado,
enquanto o que efetivamente sucede é que os acontecimentos que resultam em
grandes mudanças geológicas podem ser prognosticados com certeza tão
matemática, como os eclipses e outras revoluções no espaço. A submersão da
Atlântida (o grupo de continentes e ilhas) começou durante a era Miocênica — do
mesmo modo como alguns de vossos continentes, observa-se agora, estão
afundando gradualmente — tendo seu ponto culminante com o desaparecimento
final do continente maior, evento coincidente com a elevação dos Alpes, terminando
com o desaparecimento das belas ilhas mencionadas por Platão. Os sacerdotes
egípcios de Saís contaram a Sólon que a Atlântida (ou seja, a única grande ilha
restante) perecera há 9.000 anos. Este não era um dado imaginário, visto que eles
haviam conservado os seus anais com grande zelo por milênios. Mas nesse caso,
como disse, eles se referiam a Poseidonis, não querendo revelar nem mesmo ao
grande legislador grego a sua cronologia mais secreta. Como não existem quaisquer
razões geológicas para duvidar disso, senão antes há massa de evidências em prol
da tradição, a ciência aceitou, por fim, a existência do grande continente e
arquipélago, e assim deu fundamento de verdade ao que se pensava ser mais uma
'fábula'."
"A proximidade de cada novo obscurecimento é sempre marcada por
cataclismos de fogo ou de água. E cada raça raiz é cortada, por assim dizer, ou por
fogo, ou por água. Assim, tendo chegado ao ápice de seu desenvolvimento e glória
da quarta raça, os atlantes foram destruídos pela água. Encontrareis agora somente
os seus degenerados restos cujas sub--raças, entretanto, tiveram cada uma seus
dias gloriosos e a sua relativa grandeza. O que eles são agora, vós o sereis algum
dia, pois a lei dos ciclos é una e imutável. Quando a vossa raça, a quinta, tiver
82
chegado ao zênite de sua intelectualidade física e desenvolvido a sua mais alta
civilização (lembrai da diferença que estabelecemos entre a civilização material e a
espiritual), incapaz de elevar-se mais em seu próprio ciclo, seu progresso para o mal
absoluto será detido (como o de seus antecessores, os lemurianos e os atlantes, os
homens das terceira e quarta raças foram-no em seu progresso) por uma dessas
mudanças cataclísmicas, sua grande civilização será destruída e todas as sub-raças
da raça irão declinando em seus respectivos ciclos, após um breve período de glória
e conhecimento. Contemplai os restos dos atlantes, os antigos gregos e romanos (os
modernos pertencem à quinta raça). Contemplai quão grandes, quão rápidos e
passageiros foram os seus dias de fama e de glória. No entanto, eram apenas sub-
raças dos sete brotos da raça raiz4. A nenhuma raça-mãe, como tampouco a suas
sub-raças e brotos, lhe é permitido, por uma lei soberana, infringir as prerrogativas
da raça ou sub-raça que a seguirá. E menos ainda é permitido usurpar os
conhecimentos e poderes em reserva para sua sucessora."
O "progresso para o mal absoluto", detido pêlos cataclismos de cada raça por
seu turno, começa com a aquisição, por meio da pesquisa intelectual comum e do
avanço científico, daqueles poderes sobre a Natureza, que atualmente se
desenvolvem no Adeptado, pelo prematuro desenvolvimento de faculdades mais
elevadas do que as que comumente empregamos. Falei rapidamente desses
poderes, em capítulo anterior, quando tentava descrever os nossos instrutores
esotéricos. Descrevê-los minuciosamente conduzir-me-ia a uma longa digressão
sobre os fenômenos ocultos. Basta dizer que são de tal natureza que
necessariamente seriam perigosos à sociedade em geral e provocariam toda
espécie de crimes, que depois desafiariam completamente toda a averiguação, se
4 Ramos das sub-raças, segundo a nomenclatura que adotei previamente
83
fossem apropriados por pessoas capazes de considerá-los de qualquer outra forma,
em vez de como uma verdade profundamente sagrada. Ora, alguns desses poderes
são simplesmente a aplicação prática de forças obscuras da Natureza, suscetíveis
de descoberta durante o curso do progresso científico comum. Tais progressos
haviam sido realizados pelos atlantes. Os profanos de ciência daquela raça haviam
aprendido os segredos da desintegração e da reintegração da matéria cuja
possibilidade só hoje é admitida por alguns espíritas devido aos fenômenos que têm
presenciado, e o domínio sobre os elementais, mediante o qual aquele e outros
fenômenos mais portentosos podem se produzir. Esses poderes, em mãos de
pessoas desejosas de usá-los apenas para fins egoístas e inescrupulosos, não só
seriam causa de desgraças sociais, mas também induziriam essas pessoas a usá-
los visando àquela malévola exaltação espiritual, o que traria um resultado mais
terrível do que os sofrimentos e as provações deste mundo. Conseqüentemente
ocorre que, quando a inteligência física, não acompanhada de uma moralidade
elevada, se lança à região própria do progresso espiritual, a lei natural provê a sua
violenta repressão. A contingência será melhor entendida quando nos ocuparmos
dos destinos gerais para os quais tende a humanidade.
Desse modo, afirma-se plenamente o princípio pelo qual as várias raças de
homens, à medida que se desenvolvem, são coletivamente governadas pela lei
cíclica, por mais que exercitem o livre-arbítrio que irretorquivelmente possuem. Para
a gente que jamais considerou os assuntos humanos a não ser sob o aspecto do
brevíssimo período que a história conhece, o curso dos acontecimentos não
apresentará, talvez, como regra geral, qualquer caráter cíclico, porém muito mais um
progresso ininterrupto, acelerado algumas vezes por grandes homens e
circunstâncias venturosas, outras vezes retardado pela guerra, pela intolerância ou
84
por intervalos de esterilidade intelectual, mas avançando continuamente para diante
em seu longo percurso, quer com uma, quer com outra velocidade. Como a opinião
esotérica sobre o assunto, fortalecida por um amplo raio de observação em que
opera a ciência oculta, possui tendência inteiramente oposta, parece-nos que vale
concluir estas explicações com um trecho de um autor eminente, bem alheio ao
mundo oculto, que entretanto se pronuncia decididamente a favor da teoria dos
ciclos, como resultante da íntima observação dos simples registros históricos. Em
sua História do desenvolvimento intelectual da Europa, o Dr. J.W. Draper escreve o
que segue:
"Somos, como freqüentemente dizemos, filhos das circunstâncias. Há nesta
expressão uma filosofia mais elevada do que parece à primeira vista... Do ponto de
vista mais exato, devemos, pois, considerar o curso desses acontecimentos
reconhecendo o princípio de que os assuntos dos homens avançam de modo
determinado, dilatando-se ou desenvolvendo-se. Daqui vemos que as coisas sobre
as quais falamos como se fossem matéria de escolha, eram, na verdade, impostas a
seus aparentes autores pela necessidade dos tempos. Porém, realmente, devem ser
consideradas como apresentação de uma certa fase de vida que as nações, em seu
curso, assumem logo ou mais tarde. No plano individual, sabemos que a moderação
sóbria na ação, a postura grave de conduta, pertence ao período de maturidade na
vida, que é uma modificação da licenciosa obstinação da juventude e que pode ser
provocada ou introduzida por muitos incidentes causais; seja, talvez, por desolações
domésticas, seja por perda da fortuna, ou ainda por falta de saúde. Não cometemos
o erro de atribuir a mudança de caráter a essas experiências; mas nunca nos
podemos enganar a ponto de supor que essa mudança teria deixado de existir se
esses incidentes não ocorressem. De permeio a todas essas vicissitudes circula um
85
irresistível destino... Existem analogias entre a vida de uma nação e a de um
indivíduo, o qual, embora de certo modo seja o autor de sua própria sorte, para a
felicidade ou para desgraça, onde quer que ele vá, ao sabor de suas inclinações,
quer faça ou se abstenha disto ou daquilo, segundo prefira, está contudo agrilhoado
a um destino inexorável - um destino que involuntariamente o trouxe ao mundo, no
que diz respeito à sua vontade, que o compele para diante através de um curso
definido cujos graus são absolutamente invariáveis, a saber: infância, meninice,
juventude, maturidade, velhice, com as suas ações e paixões características; e que
o faz desaparecer de cena no tempo devido, na maior parte dos casos contra a sua
vontade. O mesmo acontece com as nações. O voluntário é unicamente a aparência
exterior, cobrindo, embora dificilmente ocultando o que está predeterminado. Sobre
os acontecimentos da vida podemos ter certo controle, mas nenhum, seja qual for,
sobre a lei de seus progressos. Existe uma geometria que aplica às nações uma
equação de sua curva de avanço. A essa nenhum mortal pode tocar."
5. O DEVACHAN
Não seria possível considerar os estados em que os princípios humanos
revertem por ocasião da morte, sem indicar primeiramente a estrutura geral do plano
completo desenvolvido durante o curso da evolução do homem. Esta parte de minha
tarefa, contudo, já foi concluída. Passemos então a refletir sobre os destinos naturais
de cada Ego humano no intervalo decorrente entre o término de uma vida objetiva e
o começo de outra. Nos princípios desta última, o karma da vida objetiva anterior
determina o estado de vida em que o indivíduo nascerá. Esta doutrina do karma é
um dos traços mais interessantes da filosofia budista. Com relação a ela, em tempo
86
algum houve segredo, ainda que por falta de compreensão adequada dos elementos
de caráter estritamente esotérico ela possa ter sido algumas vezes mal-
compreendida.
Karma é uma expressão genérica aplicada ao complexo grupo de afinidades
para o bem e para o mal, geradas por um ser humano durante a sua vida e cujo
caráter é inerente a seu quinto princípio, através de todo o intervalo que decorre
entre a sua morte numa vida objetiva e o seu nascimento na próxima. Como já foi
exposto, a doutrina parece estabelecer a noção de uma autoridade espiritual
superior que resume as ações da vida do homem ao seu término, considerando suas
boas e más ações e pronunciando a sua sentença, segundo o aspecto completo do
caso. Mas compreensão de como os princípios humanos se dividem, na morte,
fornecerá uma chave à interlecção do modo como o karma atua, e também à grande
questão do imediato estado espiritual do homem apôs a morte, à qual convém
dedicar-nos desde já.
Na morte, os três princípios inferiores — o corpo, a sua vitalidade meramente
física e a sua correspondente parte astral — são finalmente abandonados pelo que
constitui efetivamente o próprio Homem. E os quatro princípios superiores evadem-
se para o mundo imediatamente acima do nosso, ou seja, acima, no que se refere à
espiritualidade — não que se situe em cima, mas nele e fora dele, no que diz
respeito à localização real — que é o plano astral, ou Kâma-loka, conforme uma
expressão sânscrita muito familiar. Nele ocorre uma divisão entre as duas díadas
que incluem os quatro princípios superiores. As explicações já dadas anteriormente,
com relação ao estado imperfeito de desenvolvimento em que se acham os
princípios superiores do homem, evidenciarão que este modo de considerar o
processo, como se fosse uma separação mecânica dos princípios, é um modo
87
primário de tratar o assunto. O leitor deve modificar as idéias em sua mente, à luz do
que já foi dito. Ele pode ser descrito de outra forma, tomando-o como uma prova da
extensão atingida pelo quinto princípio. Encarado à luz da primeira idéia, devemos,
entretanto, conceber, por um lado, o sexto e o sétimo princípios, atraindo o quinto, a
alma humana, numa direção, enquanto o quarto, por outro lado, o atrai para a Terra.
Ora, o quinto princípio é uma entidade muito complexa, dissociável em elementos
superiores e inferiores. Na luta que se trava entre esses princípios, recentemente
seus associados, suas porções espirituais superiores, mais puras e mais elevadas,
aderem ao sexto, enquanto os seus instintos, os seus impulsos e as suas
reminiscências aderem ao quarto. Assim, o quinto princípio, em certa medida, divide-
se em dois. O resto inferior, associado ao quarto, flutua pela atmosfera da Terra,
enquanto os melhores elementos, aqueles, entenda-se bem, que realmente
constituem o Ego da última personalidade terrena, a sua individualidade, a sua
consciência, seguem o sexto e o sétimo a um estado espiritual cuja natureza vamos
examinar.
Rejeitando o nome popular usado para este estado espiritual por envolver
idéias sumamente errôneas, permita-se-nos conservar a designação oriental
daquela região ou estado, ao qual os princípios superiores dos seres humanos
passam por ocasião da morte. Sendo isso bem conveniente, pois, se o Devachan da
filosofia budista corresponde em alguns dos seus aspectos à moderna idéia
européia do céu, difere desta em outros aspectos que são sem dúvida mais
importantes.
Em primeiro lugar, o que sobrevive no Devachan não é simplesmente a
mônada individual, que sobrevive através de todas as mudanças do esquema
evolucionário completo e passa de um corpo a outro, de planeta a planeta e assim
88
por diante — na verdade, aquilo que sobrevive, embora com algumas restrições que
revelaremos em seguida, é ainda a mesma personalidade autoconsciente do homem
na parte que corresponde aos seus sentimentos mais elevados, às suas aspirações,
a seus afetos e até mesmo às suas preferências durante a sua vida na Terra. Talvez
fosse melhor dizer que o que sobrevive é a essência da última personalidade
autoconsciente.
Entrementes será útil ao leitor saber o que o Coronel H. S. Olcott menciona
em seu Catecismo budista (14º milheiro) sobre a diferença intrínseca entre
"individualidade" e "personalidade". Uma vez que escreveu, não só com a aprovação
do Sumo-Sacerdote de Sripada e Galle, Sumangala, mas também sob a instrução
direta do seu Guru Adepto, suas palavras são importantes para o estudante de
ocultismo. Eis o que ele diz em seu apêndice:
"Depois de haver refletido, substituí 'personalidade' por 'individualidade',
assim como constava na primeira edição. As sucessivas aparições em uma ou
muitas terras ou 'descida à geração' da parte tanhaica5 e coerente (Skandhas) de
determinado ser são uma sucessão de personalidades. Em cada nascimento, a
personalidade difere da do nascimento anterior e da do próximo nascimento. Karma,
o deus ex machina, disfarça-se (ou, devemos dizer, reflete-se?) agora na
personalidade de um sábio, outra vez na de um artesão e assim sucessivamente, ao
longo da série de nascimentos. Mas embora as personalidades continuamente
mudem, o único fio de vida no qual se engastam aquelas sucessivamente, como as
contas de um rosário, não sofre interrupções."
"Permanece sempre sendo aquela mesma linha ou fio particular, e jamais
nenhuma outra. Portanto, é individual, uma ondulação vital individual que se iniciou
5 De Tanhâ, ou seja: Desejo insaciável. (W. T.)
89
no Nirvana, ou seja, a região subjetiva da Natureza (assim como a ondulação
luminosa ou calorífica através do éter se iniciou em sua fonte dinâmica); transcorre
através da região objetiva da Natureza, sob o impulso do karma e da direção criativa
de Tanhâ, tendendo, através de muitas mudanças cíclicas, a voltar de novo ao
Nirvana. Mr. Rhys Davids chama o que passa de personalidade à personalidade ao
longo da cadeia individual, de 'caráter' ou 'modo de ser'. Desde que o 'caráter' não é
uma abstração puramente metafísica, mas a soma das qualidades mentais e
tendências morais de alguém, não ajudaria isso a resolver o que Mr. Rhys Davids
denomina 'o desesperado expediente do mistério', se considerarmos a ondulação da
vida como individualidade e a cada uma de suas séries de manifestações natais
como uma personalidade separada?"
"A negação da 'alma' por Buda (veja-se Sanyutto Nikaya, o Sutta-pitaka)6
assinala a crença dominante e enganosa numa personalidade independente e
transmissível; uma entidade que passasse inalterada de nascimento a nascimento,
ou passasse a lugar ou estado em que, como entidade perfeita, gozasse ou sofresse
eternamente. O que ele evidencia é que a consciência de 'eu sou eu' é, quanto à
permanência, logicamente impossível, uma vez que seus elementos constitutivos
mudam de forma constante e que o 'eu' de um nascimento diferencia-se do 'eu' de
cada um dos outros nascimentos. Mas tudo quanto encontrei no Budismo concorda
com a teoria de uma evolução gradual do homem perfeito — isto é, um Buda através
de inúmeras experiências natais. Na consciência de uma pessoa, que ao término de
uma dada cadeia de existências chega ao estado de Buda, conseguindo atingir o
quarto grau de Dhyana ou místico desenvolvimento, de qualquer um de seus
nascimentos anteriores ao último, as cenas de todos os nascimentos da série são 6 Segundo o cânone páli, há o Trípitaka, que compreende três partes: o Vinaiapitaka, coleção de regras monásticas, o Suttapitaka, coleção de Sutiãs ou sermões atribuídos a Buda, e o Abidamapitaka, coleção de comentários filosóficos. (M T.)
90
perceptíveis. No Yatakattahavannana, tio bem traduzido por Mr. Rhys Davids,
apresenta-se continuamente uma expressão que, a meu ver, antes confirma essa
mesma ideia, a saber: 'Então o bem-aventurado tomou manifesto um fato oculto pela
mudança de nascimento' ou 'aquilo que tinha sido escondido por, etc.' O primitivo
Budismo, portanto, defende claramente a permanência de registros no Akâsa e a
capacidade potencial do homem para os ler, quando em sua evolução atingiu o grau
da verdadeira iluminação individual."
Os sentimentos e gostos puramente sensuais da personalidade passada
desagregam-se no Devachan, mas daí não decorre que nada se preserve naquele
estado, a não ser sentimentos e pensamentos que se refiram diretamente à religião
ou à filosofia espiritual. Ao contrário, todas as fases superiores, mesmo as da
emoção sensual, encontram sua adequada esfera de desenvolvimento no
Devachan. Para sugerir uma série completa de idéias através de um só exemplo,
diremos que uma alma no Devachan, caso seja a alma de um homem apaixonado
pela música, permanecerá extasiada, sem interrupção, pelas sensações que a
música produz. A pessoa cuja mais elevada felicidade na Terra ficou concentrada no
exercício das afeições, não escapará nem um pouco, no Devachan, àqueles a quem
ele ou ela amou. Entretanto, ao mesmo tempo se pode perguntar: e se alguns
desses não estão num estado apropriado para o Devachan, o que ocorre? A
resposta é: pouco importa. Porque para a pessoa que os amou eles estarão ali. Não
é preciso dizer muito mais para fornecer a chave da questão. O Devachan é um
estado subjetivo. Parecerá tão real quanto nos parecem as mesas e cadeiras que
estão em volta de nós. Tenha-se presente que, acima de tudo, para a profunda
filosofia do ocultismo, as mesas, as cadeiras e todas as paisagens objetivas do
mundo nada têm de reais e são meras ilusões transitórias dos sentidos. Tão reais
91
como as realidades deste mundo para nós, e até mais, serão as realidades do
Devachan para aqueles que atingem tal estado.
Disto se deduz que o isolamento subjetivo do Devachan, tal como talvez se
conceba à primeira vista, não é, de modo algum, um isolamento real, no sentido em
que se entende a palavra no plano físico da existência, mas é a companhia de todas
aquelas coisas pelas quais uma alma verdadeira anseia, sejam pessoas, coisas ou
sabedoria. Um paciente exame do lugar que o Devachan ocupa na Natureza
demonstrará que este isolamento subjetivo de cada unidade humana constitui o
único estado que torna possível o conceito de uma feliz existência espiritual, para a
humanidade em geral, após a morte. O Devachan é um estado tão puro e tão
absolutamente feliz para todos os que o alcançam quanto o Avitchi é o seu contrário.
Não existe desigualdade ou injustiça no sistema. O Devachan não é o mesmo para o
bom, como para o indiferente, mas não é uma vida de responsabilidade e, portanto,
não existe nele logicamente lugar algum para o sofrimento; do mesmo modo que no
Avitchi não há lugar para o gozo ou arrependimento. Ê uma vida de efeitos, não de
causas. Uma vida em que nos é pago o que ganhamos, sem que tenhamos de
trabalhar para isso. Portanto, é impossível, durante essa vida, ter conhecimento do
que se passa sobre a Terra, porque tal conhecimento não possibilitaria a verdadeira
felicidade no estado de pós-morte. Um céu convertido em torre de vigia, de onde os
seus ocupantes observassem as misérias da Terra, seria, na verdade, um lugar de
agudos sofrimentos mentais para seus habitantes, dotados dos sentimentos mais
simpáticos, altruístas e caritativos. Se em nossa imaginação investimo-lhes com um
grau de simpatia tão limitado que, além das pessoas de sua afeição que tivessem
ficado, não lhes importasse o espetáculo do sofrimento alheio, ainda assim teriam de
passar por um período de espera muito desafortunado, antes que os sobreviventes
92
alcançassem o fim de uma existência, com freqüência longa e árdua. Esta hipótese
se agravaria ainda mais, fazendo com que os céus fossem muito penosos para os
ocupantes mais generosos e compassivos, que continuariam desse modo se
afligindo na presença da atormentada raça humana, mesmo depois que seus
aparentados pessoais estivessem livres pelo transcurso do tempo. A única forma de
fugir a este dilema está na suposição de que os céus não estão ainda abertos para o
seu caso, por assim dizer, e que todos os mortais, desde Adão até hoje, jazem num
sono estático semelhante à morte, esperando pela Ressurreição ao fim do mundo.
Também esta hipótese tem seus empecilhos, mas na atualidade tratamos da
harmonia científica do Budismo Esotérico, e não das teorias de outras doutrinas.
Os leitores, contudo, admitindo que a observação da vida terrena, feita dos
céus, tomaria impossível a felicidade neles, podem duvidar mesmo que a verdadeira
felicidade seja possível naquele estado, ao qual objetam o monótono isolamento
descrito anteriormente. Mas a objeção teria procedência meramente do ponto de
vista de uma imaginação que não foge do que a circunda no presente. Comecemos
com o que se relaciona à monotonia. Ninguém se lastimará de ter experimentado
monotonia durante o minuto, momento, meia hora ou seja o tempo que for, em que
gozou a maior felicidade que teve durante sua vida. A maior parte das pessoas teve,
de algum modo, momentos felizes, capazes de servir ao objetivo desta comparação.
Seja-nos permitido imaginar um minuto ou momento, assaz curto, para dar motivo à
menor suspeita de monotonia, e imaginar o prolongamento imenso de suas
sensações, sem quaisquer fatos externos que marcassem o decurso do tempo.
Nesse estado de coisas, não há lugar para o conceito de enfastiamento. A
inalterável e imutável sensação de intensa felicidade segue seu curso, não para
sempre, visto que as causas que a produziram não são infinitas em si mesmas, mas,
93
sim, durante períodos muito longos de tempo, até que o impulso ativo se tenha
esgotado por si mesmo.
Nem tampouco se deve supor que para as almas no Devachan não exista,
por assim dizer, mudança nenhuma de ocupação, e que qualquer momento único de
sensação terrena é escolhido para uma perpetuação exclusiva. Eis aqui o que
escreve um instrutor da mais elevada autoridade a respeito deste assunto:
"Existem dois campos de manifestações casuais — o objetivo e o subjetivo.
As energias mais grosseiras, ou seja, as que operam no estado mais denso da
matéria, manifestam-se objetivamente em cada próxima vida física, constituindo o
seu aparecimento, a nova personalidade de cada nascimento que se conduz dentro
do grande ciclo da individualidade em evolução. Apenas as atividades morais e
espirituais são as que encontram a sua esfera de efeitos no Devachan. E não
existindo limites nem para o pensamento, nem para a imaginação, como se pode
questionar, sequer por um momento, que no estado do Devachan exista algo
semelhante à monotonia? Poucos são os homens cujas vidas tenham sido tão
inteiramente destituídas de sentimentos, amor, ou de uma predileção mais ou menos
intensa por determinados pensamentos que sejam inaptos para atingir um período
regular de experiência devachânica, após sua vida terrena. Assim, por exemplo,
enquanto os vícios, as atrações físicas e sensuais de um grande filósofo, porém mau
amigo e homem egoísta, podem acabar no nascimento de uma nova inteligência
ainda maior, mas, ao mesmo tempo, no de um homem dos mais miseráveis, que
recolhe os efeitos kármicos de todas as causas produzidas pelo 'antigo' ser e que
resulta inevitável devido às inclinações dominantes daquele ser no nascimento
precedente, o período intermediário entre seus dois nascimentos físicos não pode
ser, dadas as excelentemente bem-ajustadas leis da Natureza, senão um hiatus de
94
inconsciência. Não pode existir um vazio tão sombrio como o que a teologia
protestante cristã bondosamente promete, ou antes implica para as 'almas que já
foram embora', as quais, entre a morte e a 'ressurreição' devem flutuar no espaço,
em catalepsia mental, aguardando o 'Dia do Juízo'.
Sendo as causas produzidas por energia espiritual e mental muito maiores e
mais importantes do que as criadas pêlos impulsos físicos, seus efeitos têm de ser,
por graça ou por desgraça, proporcionalmente grandes. Não oferecendo as vidas,
nesta ou em outras terras, campo adequado para tais efeitos, e tendo cada lavrador
direito a sua própria colheita, têm de ampliar suas funções, quer no Devachan, quer
no Avitchi7. Bacon, por exemplo, a quem um poeta chamou: 'O mais brilhante, o
mais sábio, o mais mesquinho dos homens', pode reaparecer em sua próxima
encarnação como um ávido avaro, de extraordinárias faculdades intelectuais. Mas,
por mais fortes que estas últimas qualidades sejam, não encontrarão campo próprio
em que aquela linha particular de pensamento (que foi o objetivo da vida prévia do
fundador da filosofia moderna) possa alcançar tudo que lhe é devido. Seria apenas o
astuto advogado, o corrompido Procurador-Geral, o amigo ingrato e o desonesto
Ministro da Justiça, que poderia encontrar, conduzido por seu karma, um novo
terreno apropriado no corpo do prestamista e reaparecer como um novo Shylock8.
Mas aonde iria Bacon, o pensador incomparável, para quem a pesquisa filosófica
sobre os mais profundos problemas da Natureza foi o seu 'primeiro, último e único
amor', aonde iria este 'gigante intelectual de sua raça', uma vez despojado de sua
natureza mais inferior? Têm de desvanecer-se e desaparecer todos os efeitos
daquela magnífica inteligência? Por certo que não. Assim é que suas qualidades
morais e espirituais têm de achar também um campo, em que suas energias possam
7 Os estados inferiores do Devachan se interpenetram com os do Avitchi 8 Personagem literária de Shakespeare, que representa um avarento, na comédia O Mercador de Veneza.
95
expandir-se. O Devachan é este campo. Daqui se infere que todos os grandes
planos de reformas morais, de pesquisas intelectuais acerca dos princípios abstratos
da Natureza — todas as divinas e espirituais abstrações que encheram a parte mais
brilhante de sua vida devem frutificar-se no Devachan. É a abstraía entidade
conhecida no nascimento precedente como Francis Bacon, e que pode ser
conhecida em sua reencarnação seguinte como um desprezado usurário — criação
do próprio Bacon, seu Frankenstein, o filho de seu karma — ocupar-se-á, enquanto
neste mundo interno, também sua obra própria, em gozar dos efeitos das grandes
causas benéficas e espirituais, semeadas em vida. Viveria uma existência pura e
espiritualmente consciente — um sonho de vívida realidade — até que, estando seu
karma satisfeito naquela direção e atingindo a ondulação de força a borda de sua
área subcíclica, o ser deve atuar em sua seguinte esfera de causa, seja neste
mesmo mundo ou em outro, segundo o grau de seu progresso... Portanto, há uma
'mudança de ocupação', uma mudança contínua no Devachan. Porque aquela vida-
sonho é apenas o gozo, a época da colheita daquelas sementes-germes psíquicas
caídas da árvore da existência física em nossos momentos de sonhos e de
esperança — vislumbres imaginários de bem-aventurança e de felicidade, sufocados
num terreno social ingrato, florescendo na enrubescida aurora do Devachan, e
amadurecendo sob seu frutificante céu. Se o homem tivesse tido um único momento
de experiência ideal, nem mesmo então poderia ocorrer, como erroneamente se
supôs, o prolongamento indefinido daquele 'único momento'. Aquela nota única,
arrancada da lira da vida, constituiria a tônica do estado subjetivo do ser e produziria
inúmeros e harmônicos tons e semitons de fantasmagoria psíquica. Ali, todas as
esperanças, aspirações e sonhos não-realizados se tomam efetivos completamente
e os sonhos da existência objetiva convertem-se nas realidades da existência
96
subjetiva. E ali, atrás da cortina de Mâyâ, suas enganadoras e vaporosas aparências
são percebidas pelo Iniciado, que aprendeu o grande segredo de como penetrar tão
profundamente nos Arcanos do Ser..."
Assim como a existência física possui a sua intensidade cumulativa da
infância à virilidade diminuindo sua energia desta à velhice e à morte, do mesmo
modo o sonho de vida no Devachan transcorre de modo análogo. Ocorre o primeiro
período de vida psíquica, segue depois o aparecimento da virilidade, a perda gradual
da força, passando a uma letargia consciente, à semi-inconsciência, ao
esquecimento e não morte — mas ao nascimento! — nascimento em outra
personalidade e a ressunção da atividade que diariamente origina novas séries de
causas, que devem encontrar seus efeitos em outra vida devachânica.
"Não é, pois, realidade; é meramente um sonho" — instarão os opositores; "a
alma assim embebida em ilusória sensação de gozo, sem realidade nenhuma
naquele tempo, é enganada pela Natureza e deve sofrer um terrível choque quando
despertar de seu erro". Mas, dada a natureza das coisas, jamais desperta ou pode
despertar. O despertar do Devachan é seu próximo nascimento à vida objetiva e o
gole do Leteu9 já foi tomado. No que diz respeito ao isolamento de cada alma, nem
tampouco existe ali consciência alguma de isolamento, seja o que for; nem é
possível ali separar-se de seus associados escolhidos. Estes associados não são da
natureza de companheiros que podem desejar ir-se embora, de amigos que podem
separar-se, do amigo que os ama, mesmo que este não queira separar-se deles. O
amor, a força criadora, colocou a sua imagem viva diante da alma pessoal que
anseia por sua presença e aquela imagem jamais fugirá.
Neste aspecto da questão, de novo me valho das palavras de meu instrutor:
9 * Leteu: relativo ao Letes, o rio do Olvido, à entrada do Hades, ou os Infernos, segundo a mitologia grega. (N. T.)
97
"Os que fazem objeções dessa espécie simplesmente pressupõem uma
incongruência, pois outra coisa não é aplicar ao Devachan um tipo de relações que
unicamente podem subsistir entre as entidades da existência física! Duas almas
irmãs, ambas desencarnadas, expressarão cada uma suas próprias sensações
devachânicas, fazendo participar a outra de sua felicidade subjetiva. Naturalmente
será isso tão real para elas como se ambas estivessem ainda nesta Terra. Contudo,
cada uma está dissociada da outra, no que se refere à associação pessoal ou
corpórea. Enquanto esta última é a única de sua espécie que é reconhecida por
nossa experiência terrena como relação efetiva, para o habitante do Devachan não
só seria algo de ilusório, mas não teria para ele existência alguma em nenhum
sentido, nem sequer como uma ilusão. Um corpo físico e mesmo um Mâyâvi-rûpa
permaneceriam para os seus sentidos espirituais tão invisíveis como o é ele mesmo
para os sentidos físicos daqueles que mais o amaram na Terra. Assim é que,
embora um dos participantes' estivesse vivo e inteiramente inconsciente desse
relacionamento durante seu estado de vigília, entretanto, todo trato com ele seria,
para o habitante do Devachan, uma realidade absoluta. E que outra associação
efetiva pode existir ali, senão a meramente idealista, como já foi descrita, entre duas
entidades subjetivas, que nem sequer são tão materiais como aquele etéreo corpo--
fantasma, o Mâyâvi-rûpal Fazer objeção a isso, baseando-se em que alguém é
assim 'enganado pela Natureza' e chamá-lo 'uma enganosa sensação de gozo que
não tem realidade alguma', é mostrar-se por completo incapaz de compreender os
estados de vida e do ser fora de nossa existência material. Pois, como se pode fazer
a mesma distinção no Devachan — ou seja, fora dos estados da vida terrena —
entre o que chamamos uma realidade e uma contrafação fictícia ou artificial da
mesma, neste nosso mundo? O mesmo princípio não pode ser aplicado a dois
98
estados diferentes. É concebível que o que chamamos uma realidade, em nosso
estado físico encarnado, possa existir, sob as mesmas condições,'como uma
realidade para uma entidade desencarnada? Na Terra, o homem é dual - no sentido
de ser um ente composto de matéria e de espírito —, donde a distinção natural feita
por sua mente, o analisador de suas sensações físicas e percepções espirituais,
entre uma realidade e uma ficção. Ainda assim, mesmo nesta vida, os dois grupos
de faculdades equilibram-se constantemente, e cada grupo, quando prevalece,
considera como ficção ou ilusão o que o outro acredita ser o mais real. Mas no
Devachan, o nosso Ego deixa de ser dualista, no sentido acima, e se converte em
entidade mental e espiritual. Aquilo que durante a vida era uma ficção, um sonho e
que só existia na região da 'fantasia', converte-se, sob as novas condições de
existência, na única realidade possível. Assim, pressupormos a possibilidade de
qualquer outra realidade para um habitante do Devachan é sustentar um absurdo,
uma falácia monstruosa, uma idéia antifilosófica no máximo grau. O real é aquilo que
é efetivado ou que é exercido de facto: 'A realidade de uma coisa é demonstrada por
sua efetividade'. E como no estado devachânico não têm existência possível o
imaginário e o artificial, a conseqüência lógica é que tudo o que nele existe é efetivo
e real. Além disso, quer porque o sexto princípio encubra os cinco inferiores durante
a vida da personalidade, quer porque se ache inteiramente separado dos princípios
mais grosseiros devido à dissolução do corpo, de todo modo, o sexto princípio — ou
seja, a nossa 'Alma Espiritual' — carece de substância, é sempre Arûpa, e tampouco
permanece confinado em um único lugar, com um limitado horizonte de percepções
em volta de si. Portanto, quer ele esteja dentro ou fora de seu corpo mortal, sempre
é distinto dele e está livre de suas limitações. E se nós chamamos as suas
experiências devachânicas 'um engano da Natureza', então não devemos permitir-
99
nos jamais chamar de 'realidade' a nenhum dos sentimentos puramente abstratos
que pertencem por completo à nossa alma superior e que ela reflete e assimila —
como, por exemplo, um conceito ideal do belo, a profunda filantropia, o amor, etc.,
bem como qualquer outra sensação puramente espiritual que, durante a vida de
prazer ou dor imensos, enche o nosso ser interno."
Devemos lembrar que, pela mesma natureza do sistema descrito, existem
infinitas variedades de bem-estar no Devachan, correspondentes às infinitas
variedades de mérito no gênero humano. Se "o outro mundo" fosse efetivamente o
céu objetivo que a teologia comum predica, haveria ali injustiça e arbitrariedade sem
fim além de ineficiência no seu funcionamento. Para começar, os indivíduos teriam
de ser admitidos ou excluídos e as diferenças de favorecimento, manifestadas aos
diferentes hóspedes na mansão da graça por excelência, não seriam suficientes
para compensar as diferenças de mérito nesta vida. Mas o céu verdadeiro de nossa
Terra concilia-se por si, com infalível exatidão, às necessidades e aos méritos de
todos os que chegam. O céu de cada pessoa, que alcança o céu que realmente
existe, ajusta-se exatamente à sua capacidade para dele gozar, não só quanto à
duração do estado bem-aventurado, que é determinado pelas causas produzidas
durante a vida objetiva, mas também quanto à intensidade e amplitude das emoções
constitutivas desse estado de bem-aventurança. É a criação de suas próprias
aspirações e faculdades. Seria impossível para os não-iniciados compreender algo
além disso. Mas esta indicação de seu caráter basta para mostrar quão
perfeitamente se adapta ao lugar que lhe está destinado no esquema da evolução.
Retomo as minhas citações: "O Devachan é, naturalmente, um estado, não
uma localização, o mesmo ocorrendo com o Avitchi, sua antítese (o qual rogo não
confundir com o inferno). A Filosofia Esotérica Budista tem três lokas (denominadas
100
assim) principais, a saber: 1º) Kâma-loka; 2º) Rãpa-loka; e 3º) Arûpa-laka; ou seja,
em sua tradução e significado literais: 1º) o mundo de desejos ou paixões, de anelos
terrenos insatisfeitos - a mansão dos " ‘Cascões’ e das Vítimas, dos Elementais e
dos Suicidas; 2º) o mundo das formas, ou seja, de sombras mais espirituais,
possuindo forma e objetividade, mas nenhuma substância; e 3º) o mundo informe,
ou antes o mundo de nenhuma forma, o incorpóreo, desde o momento em que seus
habitantes não têm para nós, mortais, nem corpo, nem forma, nem cor, no sentido
que atribuímos a estas palavras. Estas são as três esferas da espiritualidade
ascendente, em que os vários grupos de entidades subjetivas e semi-subjetivas
encontram as suas atrações. Todas, exceto os suicidas e as vítimas de mortes
violentas e prematuras, vão, conforme as suas atrações e poderes, para o estado ao
Devachan ou ao Avitchi, estados estes que compõem as inúmeras subdivisões dos
lokas Rapa e Arûpa — vale dizer, esses estados não só variam em grau ou em
aspecto para a entidade, quanto a sua forma, cor, etc., mas também existe uma
escala infinita de semelhantes estados, em sua progressiva espiritualidade e
intensidade de sentimento, dos mais ínfimos no Rapa, até os mais elevados e
exaltados, no Arûpa-loka. O estudante deve considerar que personalidade é
sinônimo de limitação e que quanto mais egoísta, quanto mais estreitas sejam as
idéias da pessoa, tanto mais intimamente esta aderirá às esferas inferiores de
existência, tanto mais tempo se demorará no plano das egoístas relações sociais."
Sendo o Devachan um estado de gozo meramente subjetivo, cuja duração e
intensidade são determinadas pelo mérito e espiritualidade da passada vida terrena,
não pode apresentar-se nele ocasião alguma para a retribuição das más ações. Mas
não é que a Natureza se satisfaça em perdoar os pecados, de modo livre e fácil, ou
condenar de uma só vez os pecadores, tal como um senhor preguiçoso, mais
101
indolente do que bondoso faz para governar com justiça a sua casa. O karma do
mal, seja grande ou pequeno, atua com bastante certeza, no tempo devido, como o
karma do bem. Mas o lugar de sua ação não é o Devachan, e sim um novo
renascimento ou Avitchi — estado que se atinge somente em casos excepcionais e
por excepcionais naturezas. Noutras palavras, enquanto o pecador vulgar colherá os
frutos de suas ações nocivas numa reencamação seguinte, o criminoso excepcional,
o aristocrata do pecado, terá como perspectiva o Avitchi, ou seja, o estado de
infortúnio espiritual subjetivo, que é o inverso do Devachan.
"Avitchi é um estado da maior maldade ideal espiritual, algo semelhante ao
estado de Lúcifer, tio magnificamente descrito por Milton. Portanto, não são muitos
os que chegam a ele, como o perceberá o leitor sério. E se se fizer a objeção de
que, desde que há o Devachan para quase todos — os bons, os maus e os
indiferentes —, frustram-se os fins de harmonia e de equilíbrio, e a lei da retribuição,
de justiça imparcial e implacável dificilmente se aplica e satisfaz com tal escassez
relativa, para não dizer ausência de sua antítese, então a resposta demonstrará que
não ocorre assim. 'O Mal é o negro filho da Terra (matéria) e o Bem — a bela filha
dos Céus' (ou Espírito), diz o filósofo chinês. Donde, a Terra é o lugar de castigo
para a maior parte de nossos pecados — seu lugar de nascimento e de efetivação.
Na Terra existe mais mal aparente e relativo do que verdadeiro, e não é dado às hoi-
polloi10 alcançarem todos os dias a fatal grandeza e eminência de um 'Satã’."
Em geral, o renascimento na existência objetiva é o acontecimento que
pacientemente aguarda o karma do mal, quando, então, de modo irresistível se
afirma. Isto não quer dizer que o karma do bem se esgota no Devachan deixando
que a infeliz mônada desenvolva uma nova consciência, sem outro material que as
10 Termo que significa as massas, a turba. (N. T.)
102
más ações de sua última personalidade. O renascimento será qualificado tanto por
mérito como por demérito da vida prévia, porém a existência devachânica é um sono
róseo, uma noite pacífica, com sonhos mais vívidos que o dia, e imperecedoura por
muitos séculos.
Ver-se-á que o estado devachânico é apenas um dos estados de existência,
que constitui todo o complemento espiritual de nossa vida terrena. Os observadores
de fenômenos espíritas não teriam ficado perplexos, como lhes aconteceu, se não
existisse outro estado além do Devachan. Pois uma vez estando um espírito no
Devachan, há muito poucas ocasiões de comunicação entre um espírito, por
completo absorto então em suas próprias sensações e praticamente esquecido da
Terra que abandonou, e de seus amigos ainda vivos. Estes amigos, quer tenham
partido antes, quer permaneçam na Terra, se os laços de afeto eram bastante fortes,
permanecerão com o espírito feliz e, para todos os efeitos, tão felizes, bem-
aventura-dos e inocentes como o próprio sonhador desencarnado. É possível,
entretanto, para as pessoas, ainda viventes, ter visões ao Devachan, embora tais
visões sejam raras e somente percebidas por uma das partes, pois as entidades no
Devachan, capazes de ser vistas por um clarividente terrestre, estão por completo
inconscientes dessa observação. O espírito do clarividente sobe ao estado do
Devachan durante tão raras visões e está sujeito, assim, às vívidas ilusões daquela
existência. Acha-se sob a impressão de que os espíritos com os quais trava relações
devachânicas de simpatia vieram visitar a Terra e a ele próprio, enquanto que o que
realmente ocorreu é a operação inversa: o espírito do clarividente foi elevado até
aqueles, ao Devachan. Assim, muitas das comunicações espirituais subjetivas — a
maior parte delas, sempre que os sensitivos são inteligências puras — são reais,
apesar de ser da maior dificuldade para o médium não-iniciado fixar em sua mente,
103
numa imagem verdadeira e exata, o que vê e ouve. Da mesma forma, alguns dos
fenômenos chamados psicográficos (embora mais raros) são também reais. O
espírito do sensitivo, sendo possuído, por assim dizer, pela aura do espírito no
Devachan, converte-se durante alguns minutos naquela personalidade morta e
escreve, com sua última caligrafia, em seu estilo e com seus pensamentos, tal como
eram durante sua vida. Os dois espíritos fundem-se em um só, e a predominância de
um sobre o outro durante tal fenômeno determina a predominância da personalidade
nas características exibidas. Assim é que, acidentalmente, observa-se que o que é
chamado rapport11 é, no final de tudo, uma identidade de vibração molecular entre a
porção astral do médium encarnado e a porção astral da personalidade
desencarnada.
Como já foi assinalado, e como o senso comum deve tê-lo demonstrado,
existe no Devachan grande variedade de estados e cada personalidade se encontra
ali no lugar apropriado. Dali, portanto, emerge ao mundo das causas, ou seja, esta
Terra ou outra, conforme seja o caso, quando chega o tempo de seu renascimento.
Unido à sobrevivência das afinidades, abrangidas na definição de karma, afinidades
para o bem e para o mal, geradas na vida anterior, ver-se-á que este processo
acarreta uma explicação do problema que foi sempre encarado como ininteligível: as
desigualdades da vida. As condições sob as quais entramos na nova vida são
conseqüências do uso que tivermos feito de nossas últimas circunstâncias. Aquelas
que, sejam quais forem, não impedem o desenvolvimento do novo karma, visto que
este será gerado pelo uso que façamos delas, desta vez. Nem tampouco cabe supor
que todos os fatos correntes da vida, alegres ou tristes, sejam o fruto do antigo
karma. Muitos são conseqüências imediatas de atos da vida à qual pertencem — por
11 Em francês no original. Ou seja: relação íntima, conformidade, harmonia.
104
assim dizer, transações à vista com a Natureza, dos quais é rigorosamente
necessário fazer-se todos os registros desta nos livros. Mas as grandes
desigualdades da vida, quanto ao modo de os diferentes seres humanos entrarem
nela, são uma conseqüência manifesta do antigo karma, cujas variedades infinitas
conservaram sempre uma constante provisão de situações para todas as múltiplas
variedades da condição humana.
Não se deve supor que o verdadeiro Ego deslize instantaneamente, depois da
morte, da vida da Terra e suas complicações para o estado devachânico. Quando a
divisão ou purificação do quinto princípio ocorre no Kâma-loka, pelas contrapostas
atrações do quarto e do quinto princípios, o verdadeiro Ego passa para um período
de gestação inconsciente. Já afirmei como a vida devachânica é um processo de
crescimento, maturidade e decadência. Porém, suas analogias com a Terra
certamente são ainda mais estreitas. Existe um estado espiritual pré-natal, à entrada
da vida espiritual, do mesmo modo que existe um estado semelhante e igualmente
inconsciente, ao ingressar na vida objetiva. Este período, em diferentes casos, varia
a sua duração — de poucos momentos a imensos períodos de anos. Quando um
homem morre, sua alma ou quinto princípio se torna inconsciente e perde toda
lembrança das coisas, quer internas, quer externas. Seja que sua permanência em
Kâma-loka dure uns poucos momentos, horas, dias, semanas, meses ou anos, seja
que morra de morte natural ou violenta, quer esta ocorra na juventude ou na velhice,
e seja que o Ego tenha sido bom, mau ou indiferente, sua consciência o abandona
rapidamente como a chama de um pavio, quando é soprada. Quando a vida se retira
da última partícula da matéria do cérebro, suas faculdades perceptivas ficam extintas
e seus poderes espirituais de conhecimento e de volição ficam durante algum tempo
tão apagados como os outros. Seu Mâyãvi-rûpa pode ser lançado na objetividade,
105
como no caso de aparições depois da morte. Mas, a menos que seja projetado por
um desejo consciente ou intenso de ver ou de aparecer a alguém, lançando-se
através do cérebro moribundo, a aparição será simplesmente automática. A
revitalização da consciência em Kâma-loka é, pelo que já se disse, um fenômeno
que depende da característica dos princípios, passando inconscientemente, no
momento, fora do corpo moribundo. Pode chegar a ser regularmente completa, sob
circunstâncias de nenhuma forma desejáveis, ou pode ser obliterada por uma rápida
passagem ao estado de gestação conducente ao Devachan. Este estado de
gestação demora muito, em proporção à força espiritual do Ego, e o Devachan
ocupa o restante do período entre a morte e o próximo renascimento físico.
Naturalmente, o período completo é de duração muito variável, conforme difiram as
pessoas. Diz-se que o período entre os renascimentos é quase impossível de ser
menor que mil e quinhentos anos, enquanto que a permanência no Devachan, que é
a recompensa de um karma muito rico, diz-se que algumas vezes se estende por
enormes períodos.
COMENTÁRIOS
Quanto às observações a fazer sobre a doutrina compreendida no capítulo
anterior, será mais conveniente transferi-las para o final do próximo e apresentá-las
com as pertinentes aos estados de Kâma-loka.
106
6. KÂMA-LOKA
O que antes foi exposto do destino dos princípios humanos superiores depois
da morte facilita o caminho para compreender as circunstâncias em que a escória
desses princípios se encontra, depois que o verdadeiro Ego passou bem pelo estado
devachânico, ou por aquele período inconsciente de sua preparação e que
corresponde à gestação física. A esfera em que semelhante escória permanece
durante certo tempo é conhecida, na ciência oculta, por Kâma-loka, a região do
desejo, não a região em que o desejo se desenvolve num grau anormal de
intensidade, comparativamente ao desejo tal como o associamos na vida terrena,
mas a esfera em que essa sensação do desejo, que é uma parte da vida terrena,
pode sobreviver.
Pelo que foi dito sobre o Devachan, é claro que grande parte das
reminiscências que se acumulam em redor do Ego humano durante a vida são
incompatíveis, por sua natureza, com a pura existência subjetiva por que passa o
Ego verdadeiro, perdurável e espiritual. Nem por isso se extinguem ou se aniquilam
pertencentes aos princípios sutis (embora não nos mais sutis) que abandonam o
corpo por ocasião da morte. Do mesmo modo como a dissolução separa do corpo o
que comumente se chama alma, assim também provoca uma separação posterior
entre os elementos constitutivos dessa alma. Aquela parte do quinto princípio, ou
alma humana, que por sua natureza é assimilável ao sexto princípio — alma
espiritual —, ou gravita em direção a ele, ou passa, juntamente com o germe desta
alma divina, à região superior ou estado devachânico, em que se separa, quase
completamente, das atrações da Terra, ou por completo, de tudo quanto se
relaciona a seu próprio curso espiritual, por mais que ainda mantenha certas
afinidades com as aspirações espirituais que emanam da Terra ou que possa
algumas vezes atraí-las para si. Já a alma animal ou o quarto princípio (o elemento
da vontade e do desejo, no que se associa à existência objetiva) não exerce
nenhuma atração para o superior, e não passa além da Terra mais do que o fazem
as partículas do corpo entregues à sepultura. Todavia, este quarto princípio não
pode ser confinado no sepulcro. Em sua natureza ou afinidades não é espiritual,
mas tampouco é físico, sendo apenas físico em suas afinidades. Assim, permanece
dentro da atração local e física efetivas da Terra — ou seja, na atmosfera desta - ou
em Kâma-loka, uma vez que não são os gases atmosféricos os que se relacionam
nesta passagem do problema que examinamos.
Ainda com relação ao quarto princípio, uma grande parte dele (no que toca à
maioria da humanidade, infelizmente, embora uma parte muito variável em
proporção relativa) sem dúvida ali permanece. Existindo, ali, muitos atributos do
comum e complexo ser humano, muitos sentimentos ardentes, desejos e atos,
torrentes de reminiscências, os quais, ainda que não estejam relacionados com uma
vida tão ardente, talvez como os que se relacionem com as aspirações mais
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elevadas, pertencem, contudo, essencialmente, à vida física e demoram a morrer.
Ficam atrás, associados ao quarto princípio, que é todo de natureza perecível, e
dispersam-se, desvanecem-se ou são absorvidos pêlos princípios universais
respectivos a que pertencem, da mesma forma que o corpo é absorvido pela Terra,
no decorrer do tempo, rápida ou lentamente, em proporção à tenacidade de sua
substância. Mas onde, entrementes, permanece a consciência do indivíduo que
morreu ou se dissolveu? Com certeza no Devachan Mas à mente não treinada na
ciência oculta apresenta-se para isto certa dificuldade, pois uma aparência de
consciência permanece inerente à parte astral — isto é, o quarto princípio com uma
parte do quinto — que fica atrás no Kâma-loka. Levanta-se a objeção de que a
consciência individual não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo. Mas,
acima de tudo, isto pode acontecer até certo ponto, como logo se perceberá, sendo
um erro falar de consciência, tal como a entendemos na vida, unida à crosta ou
escória astral. Pode despertar nessa crosta certa manifestação espúria de
consciência, desprovida de qualquer conexão com a consciência real, que entretanto
cresce em força e em vitalidade na esfera espiritual. Não tem o cascão o poder de
adquirir e assimilar novas idéias e de iniciar cursos de ação com base nessas novas
idéias. Porém, existe no cascão uma sobrevivência dos impulsos volitivos que lhe
foram comunicados durante a sua vida. O quarto princípio é o instrumento da
volição, embora não da volição mesma, e os impulsos que lhe foram comunicados
durante a vida pêlos princípios superiores podem seguir seu curso e produzir
resultados quase indiscerníveis, para os observadores pouco atentos, daqueles que
ocorreriam se os quatro princípios mais elevados estivessem de fato todos unidos,
tal qual em vida.
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O quarto princípio é, durante a vida, o veículo daquela consciência
essencialmente mortal, que não se harmoniza com um estado de existência
permanente; mas a consciência, mesmo dos princípios inferiores durante a vida, é
uma coisa muito diferente da consciência vaporosa, volátil e incerta, que continua
inerente neles, quando aquilo que na realidade é a vida, que os cobre, ou seja, sua
vitalização pela infusão do espírito, extinguiu-se em tudo o que a eles se refere. Não
pode a linguagem tornar inteligível de uma só vez todos os aspectos de uma idéia
que apresente muitos aspectos, como tampouco pode um desenho revelar todos os
lados de um objeto sólido. À primeira vista, os desenhos diferentes de um mesmo
objeto, tomados de diversos pontos de vista, podem parecer tão dessemelhantes
que não sejam reconhecidos como o mesmo. Entretanto, quando a inteligência
chegar a percebê-los em conjunto, verá que as suas diversidades formam um todo
harmônico. Assim acontece a estes sutis atributos dos princípios invisíveis do
homem. Nenhum tratado pode fazer mais do que discutir seus diferentes aspectos
de modo separado. Os diversos pontos de vista expostos devem fundir-se na mente
do leitor antes que a concepção completa corresponda às realidades da Natureza.
O quarto princípio é, na vida, a sede da vontade e do desejo, mas não é a
própria vontade. Deve estar ativamente unido ao espírito obscurecedor, ou a "Vida
Una", para ser assim o agente daquela muito elevada função da vida — a vontade
em sua potência sublime. Como já foi dito, os nomes sânscritos dos princípios
superiores envolvem a conotação da idéia de que são veículos da Vida Una. Não
que a Vida Una seja um princípio molecular dissociável: é a união de todos, a
influência do espírito; mas, na verdade, a idéia é demasiado sutil para a linguagem,
e talvez para a própria inteligência. De qualquer maneira, a sua manifestação no
caso atual é bastante evidente. Qualquer que tenha sido a vontade do quarto
110
princípio quando vivente, este não é capaz, quando morto, de vontade ativa. Mas
então, sob certas condições anormais, pode parcialmente recuperar a vida durante
certo tempo, ate fato é o que explica muitos, embora nem todos, os fenômenos da
mediunidade espírita. O "elemental" (como tem sido geralmente chamado o cascão
astral em escritos ocultos anteriores) é suscetível — deve-se lembrar — de ser
galvanizado durante certo tempo pela corrente mediúnica, passando a um estado de
consciência e vida. Disso se pode formar uma idéia pelo primeiro estado em que se
encontra uma pessoa, que levada a um recinto estranho, em estado de
inconsciência durante uma enfermidade, acorda fraca, com sua inteligência confusa,
fitando ao redor de si com um sentimento de desnorteamento, recebendo
impressões, ouvindo palavras que lhe são dirigidas e respondendo vagamente. Este
estado de inconsciência não está associado a noções do passado ou do futuro. É
uma consciência automática como a derivada do médium. Deve-se considerar que
um médium é uma pessoa cujos princípios estão frouxamente unidos e são
suscetíveis de ser apropriados por outros seres, ou por princípios flutuantes que
sintam atração por algum deles ou por alguma parte deles. Pois bem, o que
acontece no caso de um cascão ser desentranhado nas proximidades de uma
pessoa assim constituída? Suponhamos que a pessoa que abandonou o cascão
tenha morrido com algum poderoso desejo insatisfeito, não necessariamente de
natureza pecaminosa, mas totalmente relacionado com a vida terrena, um desejo,
por exemplo, de comunicar algum fato a uma pessoa ainda viva. Sem dúvida, o
cascão não vaga pelo Kâma-loka com um propósito firme, inteligente e consciente
de comunicar aquele fato, porém, entre outros, o impulso volitivo de fazê-lo foi
infundido no quarto princípio e enquanto as moléculas desse princípio
permanecerem associadas (o que pode acontecer por muitos anos), apenas
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necessitam ser parcialmente galvanizadas de novo à vida, para se converterem em
ativas na direção do impulso original. Esse cascão entra em contato com um
médium (na realidade não tão diferente da pessoa que morreu a fim de que se tome
possível um rapport dificílimo), e algo do quinto princípio desse médium se associa
com o quarto princípio desgarrado e coloca em ação o impulso original. Do médium
é então emprestada tanta consciência e tanta inteligência quanto for necessário para
manter o quarto princípio usando os meios de comunicação que estiverem à mão —
uma lousa e um lápis, ou uma mesa para dar batidas — e, nesse caso, a mensagem
dada, por assim dizer, pode ser aquela que a pessoa morta originalmente ordenara
que o seu quarto princípio revelasse, ordem que o cascão até agora não tivera
oportunidade de cumprir. Pode-se objetar que a produção de escritos numa lousa
fechada, ou de golpes numa mesa, sem que se usem os nós dos dedos ou um
bastão, é por si mesma um fato maravilhoso da Natureza, que demonstra, por parte
da inteligência comunicadora, o conhecimento de poderes da Natureza sobre os
quais nada sabemos em nossa vida física. Mas o cascão está no mundo astral, no
reino desses poderes, e a manifestação de tais fenômenos é seu modo natural de
conduzir-se. Não tem mais consciência da produção de um resultado maravilhoso,
pelo uso de novos poderes adquiridos numa esfera mais elevada de existência, do
que a que possuímos das forças, por meio das quais na vida o impulso volitivo é
comunicável aos nervos e aos músculos. Ainda se pode objetar que a "inteligência
que comunica" numa sessão espírita executa constantemente fatos notáveis,
apenas por interesse próprio, para exibir o poder que possui sobre as forças
naturais. O leitor há de lembrar-se de que a ciência oculta, contudo, está muito longe
de afirmar que todos os fenômenos do espiritismo são atribuíveis a uma só classe de
agentes. Até aqui, neste estudo, bem pouco foi dito sobre os dementais, esses seres
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semi-inteligentes da luz astral, que pertencem a um reino da Natureza inteiramente
diferente do nosso. Nem é possível, na atualidade, estender-nos sobre seus
atributos, pela simples e óbvia razão de que o conhecimento relativo aos elementais,
os conhecimentos minuciosos sobre esse assunto, com relação ao modo como
agem, são retidos de forma escrupulosa e secreta pêlos Adeptos do ocultismo.
Possuir tal conhecimento equivale à posse do poder, e todo motivo do grande
segredo de que a ciência oculta está encoberta volta-se para o perigo existente de
conferir poderes a pessoas que não deram, antes de tudo, submetendo-se à
instrução dos iniciados, garantias morais de serem dignas deles. Por intermédio do
domínio dos elementais é que alguns dos maiores feitos físicos do adeptado são
realizados, assim como os mais importantes fenômenos físicos da sessão espírita
são produzidos por atos espontâneos dos elementais que assim atuam. O mesmo
ocorre com quase todos os ioguins e faquires da índia das classes mais inferiores,
que possuem o poder de produzir fenomenais resultados. Por alguns meios, talvez
graças a fragmento herdado do ensinamento oculto, encontraram-se de posse de
uma partícula de ciência oculta. Para produzir o fenômeno, não é preciso entender a
ação das forças que eles utilizam, assim como um criado indiano de uma companhia
telegráfica, a quem se ensinou a misturar os ingredientes do líquido empregado na
bateria galvânica, não precisa entender a teoria da eletricidade. Pode executar a
única operação que lhe ensinaram, o mesmo acontecendo como ioguim inferior, que
aprendeu a influenciar certos elementais e pode fazer certas maravilhas.
Voltemos a tratar dos cascões ex-humanos no Kâma-loka. A respeito, pode-
se objetar que a sua conduta durante as sessões espíritas não fica bem explicada
pela teoria de que tinham alguma mensagem do seu último dono a comunicar. E
valendo-se da mediunidade presente para transmiti-la. À parte os fenômenos que
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classificamos como extravagâncias de elementais, encontramos algumas vezes uma
continuidade de inteligência, por parte do dementai ou cascão, que indica muito mais
que a mera sobrevivência de impulsos procedentes da vida anterior. Isto é muito
exato. Mas, com porções do quinto princípio do médium, que lhe tenham sido
transmitidas, o quarto princípio volta a ser um instrumento nas mãos de um mestre.
Com um médium em estado de transe, de forma que as energias de seu quinto
princípio possam ser transmitidas em grande parte ao cascão errante, redunda que a
consciência desperta nesse cascão, naquele dado momento. Porém, qual é, nisto
tudo, a conseqüente natureza dessa consciência? Nada mais, na verdade, do que
uma luz refletida. A memória é uma coisa, as faculdades perceptivas são outra
inteiramente distinta. Um louco pode lembrar claramente algumas porções de sua
vida passada. Apesar disso, é incapaz de perceber qualquer coisa em seu aspecto
verdadeiro, pois a mais elevada parte de seu Afanas e Buddhi, o quinto e o sexto
princípios, estão paralisados nele ou o abandonaram. Se um animal — um cão, por
exemplo — pudesse se explicar por si mesmo, provaria que sua memória, com
relação à sua personalidade canina, é tão grande quanto a de seu dono. Entretanto,
a sua memória e o seu instinto não podem ser chamados de faculdades perceptivas.
Uma vez que um cascão está na aura do médium, ele pode perceber,
suficientemente claro, o que lhe permitem os princípios transmitidos pelo médium e
pêlos órgãos em simpatia magnética com ele. Mas isto não o conduzirá além do
grau das faculdades perceptivas do médium, ou de alguns outros presentes à
sessão. Daí as respostas, freqüentemente racionais e algumas vezes muito
inteligentes, que pode dar, e daí, também, seu invariável e completo esquecimento
de todas as coisas desconhecidas àquele médium ou círculo, ou que não se
encontram nas reminiscências inferiores de sua personalidade passada, galvanizada
114
de novo pelas influências sob as quais está colocada. O cascão de um homem, em
alto grau inteligente e instruído, mas destituído de espiritualidade, que tenha morrido
de morte natural, durará mais tempo do que o pertencente a temperamentos mais
fracos, e (com a ajuda da sombra de sua própria memória) pode pronunciar, por
intermédio de médiuns, orações não desprezíveis. Mas jamais se notará que estas
se relacionem com algo que não sejam os assuntos que o tenham interessado
seriamente durante sua vida, nem uma palavra virá dele que indique um avanço
efetivo de conhecimentos.
Vê-se com facilidade que um cascão astral, atraído para uma corrente
mediúnica e entrando em relacionamento com o quinto princípio do médium, não
assegura de modo algum que ele esteja animado por uma consciência (mesmo
sendo pouco o que valham tais consciências) idêntica à da personalidade morta, de
cujos princípios superiores foi desprendida, pois, com a mesma faculdade, pode
refletir alguma personalidade inteiramente diferente, capaz de ser sugestionada pela
mente do médium. Esta personalidade pode talvez permanecer e responder por
algum tempo. Se alguma nova corrente de pensamento, lançada pelas mentes das
pessoas presentes, encontrar eco nas efêmeras impressões do dementai, seu
sentimento de identidade começará a vacilar por um curto tempo, entre duas ou três
conjecturas, acabando por desaparecer por completo. O cascão volta assim a seu
sono na luz astral, sendo, em poucos instantes, inconscientemente arrastado ao
outro extremo da Terra.
Além do elemental comum — o cascão da espécie recém-descrita — o Kâma-
loka é também a morada de outra classe de entidades astrais, que devemos lembrar
se desejarmos compreender as diversas condições em que as criaturas humanas
passam desta vida para outras. Até agora examinamos o curso normal dos
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acontecimentos, quando a pessoa morre de modo natural. Mas uma morte anormal
levará a conseqüências anormais. Assim, no caso de pessoas que se suicidaram, os
resultados decorrentes diferirão por completo dos que provêm de morte natural. Se
se meditar a respeito desses casos, constatar-se-á que, de fato, num mundo
governado por regras e tribunais, por afinidades que produzem seus efeitos
regulares desse modo deliberado que a Natureza favorece, o caso de uma pessoa
que morre de morte súbita, quando todos os seus princípios estão firmemente
unidos e aptos a manter-se assim durante vinte, quarenta ou sessenta anos, ou, o
que seja, o resto natural de sua vida, deve certamente diferir em algo do de uma
pessoa que se acha pelo processo natural em decadência, quando a máquina vital
pára, facilmente dissociável em seus vários princípios, cada um dos quais estando
pronto para seguir seu próprio destino. Á Natureza, sempre fecunda em analogias,
apresenta-nos em seguida o exemplo em dois frutos: um maduro e outro verde. Do
interior do primeiro, seu caroço sairá tão limpo e facilmente quanto a mão de uma
luva, ao passo que do fruto verde somente o caroço é extraído com dificuldade,
ficando a polpa semi-aderida à sua superfície. Pois bem, no caso de uma morte
súbita, acidental ou por suicídio, o caroço tem de ser arrancado do fruto verde. Não
é a questão da culpa moral que pesa aqui sobre o ato do suicídio. É bem provável
que, na maior parte dos casos, a culpa moral lhe seja inerente, mas essa é uma
questão do karma que seguirá a pessoa a que se refere, até seu próximo
renascimento, como qualquer outro karma, e não tem nada a ver com a dificuldade
imediata, que essa pessoa possa encontrar em chegar à morte completa. Esta
dificuldade é evidentemente a mesma, quer uma pessoa se suicide, quer seja morta
no heróico cumprimento de seu dever, quer ainda seja vítima de um acidente, por
completo independente de sua vontade.
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Como regra geral, quando uma pessoa morre, a longa conta do karma se
fecha naturalmente — isto é, a complicada série de afinidades, que se estabeleceu
durante a vida, no primeiro princípio durável, o quinto, já não é suscetível de
aumentar. O saldo das contas, por assim dizer, não é exigido a não ser no próximo
nascimento objetivo, ou, em outras palavras, as afinidades que no Devachan
permanecem em estado latente, devido à ausência de sua esfera de ação própria,
voltam a valer tão logo entrem de novo em contato com a existência física. Mas o
quinto princípio, no qual essas afinidades se desenvolvem, não se desvincula, no
caso da pessoa que morre prematuramente, do princípio terreno, isto é, do quarto
princípio. Portanto, o dementai que assim se encontra no Kâma-loka, em sua
violenta expulsão do corpo, não é um mero cascão, mas a própria pessoa, que vivia,
sem que lhe falte mais nada que o corpo. No verdadeiro sentido da palavra, não está
absolutamente morto.
Certos dementais dessa espécie podem comunicar-se de modo efetivo, nas
sessões espíritas, às suas próprias custas. Pois, infelizmente, devido à inteireza de
sua constituição astral, eles podem continuar gerando karma, ao mitigar sua sede
pela vida na insalubre fonte da mediunidade. Se em vida eles pertenceram a um tipo
muito material e sensual, os prazeres que buscarão serão de tal gênero, mesmo a
ponto de conceber-se que seu deleite, no estado desencarnado, será mais danoso
para seu karma do que o que foram os seus prazeres durante a vida. Nesses casos,
facilis est descensos. Extirpados à vida terrena, em plena exacerbação de paixões
que os ligam a cenas familiares, são seduzidos pela oportunidade oferecida pêlos
médiuns, para satisfazê-las por procuração. Convertem-se nos íncubos e súcubos
de que falam os escritos medievais, demônios sedentos e glutões, levando as suas
vítimas ao crime. Um breve ensaio sobre este assunto, escrito por mim, apareceu na
117
Theosophist seguido de uma nota, em cuja autenticidade tenho minhas razões para
confiar. Dele reproduzo aqui alguns parágrafos, cujo teor é o seguinte:
"A variedade de estados depois da morte é muito maior, se possível, do que a
diversidade de vidas humanas nesta Terra. As vítimas de acidentes não se
convertem, no geral, em andarilhos terrestres, mas somente os que caem na
corrente de atração, os que morrem cheios de alguma grosseira paixão terrena, os
egoístas, que nunca pensaram no bem-estar dos outros. Surpreendidos pela morte
na realização, verdadeira ou imaginária, de alguma subjugadora paixão de suas
vidas que não lograram satisfazer, ou mesmo tendo-a realizado, ansiando por mais,
essas personalidades não podem passar nunca mais além da atração terrena para
esperar a hora da liberação em feliz ignorância e pleno esquecimento. Entre os
suicidas, aplica-se o que antes expusemos sobre os que levam ao crime as suas
vítimas, como também àqueles que se suicidaram em conseqüência de um crime,
para escapar à penalidade da lei humana, ou devido ao seu próprio remorso. A lei
natural não pode ser impunemente violada. A inexorável relação causal entre a ação
e o resultado somente atua em sua plenitude, no mundo dos efeitos — o Kâma-loka
— e cada caso encontra ali um castigo apropriado, de mil diferentes modos, cuja
descrição superficial exigiria muitos volumes."
Aqueles que "esperam pela hora da liberação em feliz ignorância e em pleno
esquecimento" naturalmente são aquelas vítimas de acidentes que, na Terra,
provocaram relações puras e elevadas e que, depois da morte, estão além do
alcance das tentações que as correntes mediúnicas representam, da mesma forma
como eram inacessíveis durante a vida, aos impulsos naturais para o crime.
Encontram-se fortuitamente no Kâma-loka entidades de outra espécie, das
quais haveremos ainda de tratar. Temos seguido os princípios superiores de
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pessoas recém-falecidas, observando a separação do resíduo as trai, da porção
espiritual durável, a qual é santa ou satânica em sua natureza e, portanto,
apropriada para o Devachan ou para o Avitchi. Analisamos a natureza do cascão
elemental arremessado, e que conserva, durante certo tempo, uma enganosa
semelhança com uma entidade real. Temos prestado atenção, também, aos casos
excepcionais de seres com seus quatro princípios, no Kâma-loka, vítimas de
acidentes ou de suicídios. Mas, o que acontece a uma personalidade sem nenhum
átomo de espiritualidade, nem vestígio algum de afinidade espiritual em seu quinto
princípio, nem para o bem, nem para o mal? Nesse caso, é claro que nada existe
que o sexto princípio possa assimilar. Ou, em outras palavras, essa personalidade
perdeu seu sexto princípio, quando chegou o tempo de sua morte. O Kâma-loka não
é mais uma esfera de existência para essa personalidade do que o mundo subjetivo.
O Kâma-loka pode ser permanentemente habitado por seres astrais, por elementais,
mas unicamente pode servir de antecâmara a outros estados relativos aos seres
humanos. No caso imaginado, a personalidade sobrevivente é logo levada pela
corrente de seus futuros destinos e estes nada têm a ver com a atmosfera da Terra,
nem com o Devachan, mas sim com a "oitava esfera", mencionada somente de
forma casual em escritos ocultos mais antigos. Até o momento deve ter sido
ininteligível aos leitores comuns a denominação "oitava esfera"; mas, depois de
explicada pela primeira vez a constituição setenária do nosso sistema planetário, o
significado ficará bastante claro. As esferas pertencentes ao processo cíclico da
evolução são em número de sete, mas existe uma oitava em conexão com a nossa
Terra, nosso ser terreno. Como se há de recordar, esse é o ponto de reversão na
cadeia cíclica, e esta oitava esfera está situada fora do circuito, sendo uma espécie
119
de cul-de-sac, por ser uma região da qual pode em verdade dizer-se que nenhum
viajante regressa.
Pode-se conjecturar facilmente que a única esfera relacionada com a nossa
cadeia planetária, que ocupa um lugar inferior ao da nossa, nessa escala, que tem o
espírito no seu extremo superior e a matéria no âmago, não deve ser menos visível
à vista e aos instrumentos ópticos do que a nossa própria Terra. E, como as funções
que esta esfera tem de desempenhar em nosso sistema planetário estão
imediatamente associadas com esta Terra, não há, na atualidade, muito mistério
quanto ao enigma da "oitava esfera", nem quanto ao ponto do céu onde se pode
encontrá-la. Entretanto, as condições de existência nela são assuntos sobre os
quais os Adeptos são muito reservados em suas comunicações a discípulos não
iniciados, e com relação a estas informações nada tenho, por agora, a externar.
Contudo, existe sobre isso uma afirmação definida, a saber, que a
degradação total de uma personalidade, capaz de arrastá-la depois da morte para o
raio de atração da "oitava esfera", é uma ocorrência bem rara. Na imensa maioria
das vidas existe algo que os princípios superiores podem atrair para si, algo que
pode redimir de uma destruição total a página de uma existência que acaba de
passar. Tenha-se aqui também presente que as reminiscências da vida terrena no
Devachan, vívidas como são, apenas se referem àqueles episódios que podem
produzir o gênero de felicidade elevada que existe no Devachan, ao passo que a
vida, cuja essência espiritual é assim extraída no presente, pode chegar a ser
lembrada no futuro, em todos os seus pormenores. A recordação completa, porém,
só a consegue um indivíduo no limiar de um estado espiritual bem ulterior, no
progresso dos vastos ciclos da evolução. Cada uma das longas séries de vidas
pelas quais se tenha passado será, então, como páginas num livro cujo dono o
120
folheia à vontade, embora muitas dessas páginas a ele parecerão, provavelmente,
uma leitura fastidiosa, à qual não recorrerá amiúde. Esse reavivamento eventual de
reminiscências relativas às personalidades por longo tempo esquecidas é o que
efetivamente representa a doutrina da Ressurreição. Porém, não dispomos de tempo
agora para deter-nos a desenredar os enigmas desse simbolismo relacionado com
os ensinamentos que no momento são comunicados ao leitor, sendo essas,
contudo, uma empresa digna de levar-se a cabo mais adiante. Por enquanto,
voltando ao relato de como os fatos se apresentam, pode-se dizer que, entre todas
as páginas do livro, quando afinal a "ressurreição" ocorre, não haverá páginas
inteiramente perversas. Porque, na verdade, se alguma individualidade espiritual,
durante a sua passagem por este mundo, esteve alguma vez unida a personalidades
tão deploráveis e desesperadamente degradadas, que passaram por completo
dentro da esfera de atração do vórtice inferior, essa individualidade espiritual não
terá retido, nesse caso, em suas próprias afinidades, nenhum vestígio ou mancha de
sua degradação. São páginas que terão sido arrancadas do livro sem deixar
qualquer traço. Como ao fim da luta, depois de cruzar o Kâma-loka, a individualidade
espiritual terá passado ao estado inconsciente de gestação, de onde, tocando de
leve o estado devachânico, voltará direta-mente (embora não de imediato quanto ao
tempo) a nascer à vida de atividade objetiva, e toda a consciência de si mesmo
relacionada com aquela existência terá passado ao mundo inferior para ali
eventualmente "perecer eternamente", uma expressão da qual, como tantas outras,
a teologia moderna mostrou ser guardiã infiel, convertendo em puras tolices os fatos
psicocientíficos.
121
COMENTÁRIOS
Não há parte do presente volume que tenha tanta necessidade urgente de
ampliação com os dois últimos capítulos.
O plano de existência chamado Kâma-loka, assim como a região ou estado
mais elevado, o Devachan, do qual o Kâma-loka é a antecâmara, foram deixados
inicialmente, por nossos mestres, de forma intencional, numa obscuridade parcial, a
fim de que o esquema completo da evolução fosse melhor compreendido. O estado
espiritual que segue imediatamente a nossa vida física atual é uma seção da
Natureza, cujo estudo pode ser de uma sedução malsã para quem compreende que,
mesmo durante a vida, é possível colocar-se em contato com ele e proceder
algumas experiências sobre as suas condições. Podemos já, até certo ponto,
reconhecer os fenômenos desse estado de existência a que passa a criatura
humana por ocasião da morte do corpo. As experiências do espiritismo nos
forneceram, em grande profusão, fatos relativos a isso. Esses fatos são, em
verdade, extremamente sugestivos de teorias e inferências que parecem atingir os
últimos limites da especulação. Só a rígida disciplina mental do estudo esotérico, em
seu aspecto mais amplo, pode impedir que qualquer inteligência dedicada à
consideração desses fatos chegue a conclusões que esse mesmo estudo demonstra
serem necessariamente errôneas. Por esta razão, os pesquisadores teosóficos nada
têm a lastimar no que se refere a seus próprios progressos na ciência espiritual, nas
circunstâncias que os induziram a isso até agora, por haverem, antes, se descuidado
com referência aos problemas relacionados com o estado de existência que segue
ao nosso. É impossível exagerar as vantagens espirituais que se obtêm pelo estudo
do vasto desígnio da Natureza, através daqueles extensos reinos do futuro, que
unicamente a perfeita clarividência dos Adeptos pode penetrar, antes de ocupar-se
122
de minúcias referentes àquele limiar espiritual, parcialmente acessível a uma visão
menos poderosa que sem esforço toma essa região num primeiro estudo, como o
todo da expansão do futuro.
Atualmente, contudo, podemos descrever os primeiros processos pêlos quais
passa a alma depois da morte, de um modo mais completo e exato do que estão
definidos no capítulo anterior. A natureza da luta que ocorre no Kâma-loka, entre as
díadas superior e inferior, pode agora, segundo creio, ser melhor compreendida do
que no início. Aquela luta parece ser um processo muito prolongado e heterogêneo,
que constitui — não como algum de nós poderia ter conjecturado a princípio, uma
automática ou inconsciente ação de afinidades ou forças dispostas a determinar o
futuro da mônada espiritual após a morte — todavia uma fase da existência que
pode durar, e provavelmente dura na maior parte dos casos, um número
considerável de anos. Durante esta fase de existência, é bem possível às entidades
humanas, que têm abandonado a Terra, manifestar-se a pessoas ainda vivas, por
meio da chamada mediunidade espírita, de um modo que em parte pode explicar,
senão vindicar, as impressões que os espíritas derivam dessas comunicações.
Mas não devemos deduzir, com demasiada pressa, que a alma humana que
passa pela luta ou pela evolução do Kâma-loka é, sob todos os aspectos, o que à
primeira vista sugere a situação assim apresentada. Em primeiro lugar, devemos ter
cautela ao materializar demasiado grosseiramente o nosso conceito da luta,
concebendo-a como uma separação mecânica de princípios. Existe uma separação
mecânica, envolvida no abandono dos princípios inferiores, quando a consciência do
Ego se apóia solidamente nos superiores. Assim, à morte, o corpo é abandonado
mecanicamente pela alma, que (em união, talvez, com os princípios intermediários),
ao deixar a morada de que já não necessita, pode ser vista por alguns clarividentes
123
de ordem elevada. Processo muito semelhante pode, afinal, ocorrer no próprio
Kâma-loka, com respeito à matéria dos princípios astrais. Mas deixando de lado, por
um instante, esta consideração, cabe evitar a suposição de que a luta no Kâma-loka
é, por si mesma, esta última divisão de princípios, ou a segunda morte no plano
astral.
A luta em Kâma-loka é de fato a vida da entidade naquela fase de existência.
Conforme se expôs com rigor no capítulo precedente, a evolução ocorrente, naquela
fase de existência, não se relaciona com a opção responsável entre o bem e o mal
que acontece durante a vida física. O Kâma-loka é uma parte do grande mundo dos
efeitos — não uma região em que se originem causas (exceto sob circunstâncias
peculiares). A entidade em Kâma-loka, portanto, não é verdadeiramente dona de
seus próprios atos. É, antes, um joguete de suas próprias afinidades já
estabelecidas. Porém, estas afinidades, durante todo esse tempo, se afirmam ou se
esgotam, por graus, e a entidade em Kâma-loka, por todo o tempo, possui uma
existência de consciência vívida de uma espécie ou outra. Pois bem, um momento
de reflexão mostrará que essas afinidades, que estão acumulando força e se
afirmando, se referem às aspirações espirituais experimentadas na última vida,
enquanto as que se estão esgotando se referem aos gostos, às emoções e às
tendências materiais. Vale lembrar que a entidade em Kâma-loka encaminha-se
para o Devachan, ou, em outras palavras, está progredindo em direção ao estado
devachânico, e que o processo de desenvolvimento ocorre por ação e reação, por
fluxo e refluxo, como quase todos os processos da Natureza — por uma espécie de
oscilação entre a luta das atrações da matéria e as do espírito. Destarte, o Ego
avança, por assim dizer, em direção ao céu, ou retrocede para a Terra, durante a
sua existência em Kâma-loka, e precisamente essa tendência a oscilar entre os dois
124
pólos de pensamento ou estado é o que o faz recuar, às vezes, para a esfera da
vida que acaba de deixar.
Suas ardentes simpatias por aquela vida não se dissipam de uma vez.
Quanto à suas simpatias para com os aspectos superiores da vida, deve-se
recordar, nem sequer entram no processo de dissipação. Por exemplo, no que nos
referimos aqui como afinidade terrena, não devemos abranger os sentimentos, que
são um exercício exclusivo de natureza devachânica. Já quanto às afeições, sejam
elas terrenas ou espirituais, a sua contemplação, com as circunstâncias e ambientes
da vida terrena, amiúde influi no retrocesso da entidade em Kâma-loka para a vida
terrena, o que mencionamos antes.
À comunicação, estabelecida pela prática do espiritismo entre tais entidades
em Kâma-loka e os amigos que foram deixados na Terra, deve ocorrer naqueles
períodos de existência da alma em que as lembranças da Terra prendem a sua
atenção. E sobre isso há duas considerações muito importantes, decorrentes da
reflexão anterior.
1º) Quando se chama a atenção da alma para a Terra, ela é afastada do
progresso espiritual em que está empenhada, pois faz com que oscile em direção
oposta. Pode-se lembrar completamente bem as aspirações espirituais da vida na
Terra e, em conversação, referir-se a elas, mas suas novas experiências parecem
impossíveis de ser traduzidas em palavras próprias à inteligência física comum, além
do que não estão no domínio das faculdades que operam na alma, enquanto se
ocupa a alma com as antigas lembranças da Terra. Pode-se exemplificar a situação,
ainda que grosseiramente, com o caso de um emigrante pobre que podemos
imaginar prosperando em seu novo país, ilustrando-se ali, ocupando-se de seus
negócios públicos e descobertas, realizando atos de filantropia e assim por diante.
125
Pode manter intercâmbio com os seus familiares através de cartas, mas achará
difícil mantê-los a par de tudo o que chega a povoar seus pensamentos. O exemplo
só pode ser aplicado inteiramente a nosso propósito, se consideramos o emigrante
como submetido à lei psicológica cujo véu encobre o seu entendimento, quando se
senta para escrever a seus antigos amigos, se restabelecendo nele, durante aquele
tempo, a sua primitiva condição mental. Com o decorrer do tempo, ele vai sendo
cada vez menos capaz de escrever sobre seus antigos temas, porque estes não só
estariam num nível inferior àqueles a cuja consideração se elevaram suas
verdadeiras faculdades mentais, como também se teriam, em grande parte, apagado
de sua memória. Suas cartas seriam uma fonte de surpresa para os seus
destinatários, que diriam, com certeza, que os seus escritos deixavam muito a
desejar e que ele se tomara muito obtuso e estúpido, em comparação ao que era
antes de ir para o exterior.
2º) Recorde-se que a bem-conhecida lei fisiológica segundo a qual as
faculdades se reavivam pelo uso e se atrofiam pelo desuso, aplica-se
tanto no plano astral como no físico. A alma que no Kâma-loka adquire o
hábito de centrar sua atenção nas lembranças da vida que deixou, reforçará e
afirmará aquelas tendências que estão em guerra com seus impulsos mais elevados.
Quanto mais amiúde ela for atraída pelo afeto dos amigos ainda viventes, para
aproveitar as oportunidades que lhe proporciona a mediunidade, a fim de manifestar
a sua existência no plano físico, tanto mais veementes serão os impulsos que o
farão recuar para a vida física e tanto mais grave a demora em seu progresso
espiritual. Esta consideração parece implicar o mais forte motivo que leva os
representantes dos ensinamentos teosóficos a desfavorecerem e desaprovarem
todo gênero de tentativas para pôr-se em comunicação com as almas dos mortos,
126
por via dos médiuns. Quanto mais genuínas forem essas comunicações, tanto mais
danosas serão para os moradores do Kâma-loka, no que lhes diz respeito. No
presente estágio de nossos conhecimentos, é difícil determinar com segurança até
que ponto são assim lesadas no Kâma-loka. Podemos, também, ser tentados a crer
que, em alguns casos, a grande satisfação usufruída pelas pessoas viventes, que
receberam a comunicação, compensa o dano provocado na alma do morto.
Entretanto, esta satisfação será mais ou menos profunda conforme o amigo ainda
vivo compreenda as circunstâncias sob as quais ocorre a comunicação. Num
começo, é certo, logo após a morte, as recordações ainda vívidas e completas da
vida terrena possibilitam que a entidade no Kâma-loka se manifeste de modo muito
semelhante à de sua personalidade terrestre, mas desde o instante da morte
começa a transformação rumo à sua evolução. Ao se manifestar no plano físico, não
revelará nenhuma nova fermentação de pensamento em sua inteligência. Nessa
manifestação, não se mostrará nem mais sábia, nem mais elevada, na escala da
Natureza, que o que era ao morrer; ao contrário, tornar-se-á cada vez menos
inteligente e, na aparência, menos instruída do que antes, à medida que passa o
tempo. Nunca fará justiça, em suas comunicações com os amigos que deixou para
trás. Seu malogro neste ponto há de se lhe tomar cada vez mais penoso,
gradualmente.
Contudo, há outra consideração que lança luz muito duvidosa sobre a
sensatez ou a conveniência de satisfazer o desejo de comunicação com os amigos
falecidos. Podemos dizer que não importa que o interesse do amigo que deixou a
Terra desapareça gradualmente, pois, enquanto fique algo dele ou dela que se nos
manifeste, mesmo este pouco nos causará grande encanto. Também se pode
argumentar que, ainda quando a pessoa querida se atrase um pouco em sua
127
passagem para o Céu, ao conversar conosco, fará este sacrifício de bom-grado
pêlos seres que ama. O aspecto que aqui não se leva em conta é que no plano
astral, ou no físico, é muito fácil contrair um mau costume. Quando a alma no Kâma-
loka tiver saciado sua sede nos mananciais pela comunicação terrestre da
mediunidade sentir-se-á fortemente impulsionada a fazê-lo novamente de vez em
quando. Por causa disso podemos produzir outros resultados além do de distrair a
atenção da alma de seus próprios assuntos, sustentando relações espirituais com
ela. Podemos causar-lhe um dano grave e quase permanente. Não afirmo que isso
ocorra sempre, mas de um ponto de vista de severa ética sobre o tema, deve-se
reconheceres perigos que envolvem semelhante conduta. Entretanto, é claro que se
apresentam casos em que o desejo de comunicar-se provenha principalmente da
outra parte: isto é, quando a alma que se foi embora está dominada pelo desejo não
satisfeito — que pode dirigir-se ao cumprimento de um dever descuidado na Terra —
cuja atenção, por parte dos amigos ainda vivos, gere um efeito bem ao contrário do
que implica o mero estímulo da entidade no Kâma-loka em retomar seus antigos
interesses na Terra. Nesses casos, os amigos viventes, pondo-se em comunicação
com a alma, podem ser indiretamente o meio de facilitar o caminho de seu progresso
espiritual. Neste ponto, contudo, devemos estar prevenidos contra o aspecto ilusório
das aparências. Um desejo manifestado por um morador do Kâma-loka pode nem
sempre ser a expressão da idéia que então ocupa sua mente. Pode ser o eco de um
antigo, talvez muito antigo, desejo que então encontra, pela primeira vez, um canal
para se exteriorizar. Desse modo, ainda que fosse plausível considerar como
importante um desejo inteligível que se expressa a nós do Kâma-loka, por uma
pessoa que tenha morrido há pouco, seria prudente encarar com grande
desconfiança tal desejo, proveniente da sombra de uma pessoa morta há muito
128
tempo e cuja conduta geral, enquanto sombra, não demonstra que retém nenhuma
consciência vívida de sua antiga personalidade.
O reconhecimento de todos esses fatos e possibilidades do Kâma-loka
proporcionará, julgo eu, aos teosofístas, uma explicação mais satisfatória de muitas
experiências relacionadas com o espiritismo, que deixa na obscuridade a exposição
inicial da doutrina esotérica, no que se refere a este assunto.
Compreender-se-á logo que à medida que a alma se liberta, no Kâma-loka,
das afinidades que retardam seu desenvolvimento devachânico, o que retoma à
Terra se debilita cada vez mais, sendo inevitável que exista sempre no Kâma-loka
um grande número de entidades quase em estado de passar ao Devachan, razão
pela qual aparecem ao observador terrestre num estado de decrepitude avançada.
Estas terão caído, quanto à atividade de seus princípios inferiores astrais, no estado
das entidades vagas e ininteligíveis que, seguindo o exemplo de escritores ocultistas
mais antigos, chamei cascão no texto deste capítulo. Esta denominação, contudo,
não é muito feliz. Teria sido preferível ter seguido outro precedente e tê-las chamado
"sombras", mas, de um ou de outro modo, seu estado é o mesmo. Toda a
consciência vívida inerente, quando abandona a Terra, nos princípios
adequadamente relacionados com as atividades da vida física, é transferida aos
princípios superiores que não se manifestam por meio dos médiuns. Sua memória
da vida terrestre quase se extingue. Nesses casos, seus princípios inferiores podem
somente ser despertados por influência de uma forte corrente mediúnica para a qual
são atraídos, e então se convertem em pouco mais que meros espelhos astrais, nos
quais se refletem os pensamentos do médium ou dos assistentes das sessões. Se
pudermos imaginar as cores de uma tela pintada, penetrando por graus na matéria
da tela, fazendo aparecer por fim o outro lado da mesma com o seu primitivo brilho,
129
participaremos com isso de um processo em que não destruímos a pintura, mas
convertemos a galeria, na qual isso ocorre, num lúgubre salão com escuras costas
de quadros sem sentido algum. Isto se parece muito com o que são as entidades no
Kâma-loka, quando afinal se livram da matéria em que atuava a sua primeira
consciência astral, para passar ao absolutamente puro estado devachânico.
Mas o exposto não é tudo o que ensina a encarar com desconfiança as
manifestações provenientes do Kâma-loka. O que hoje conhecemos do assunto
permite-nos compreender que, quando chega o tempo desta segunda morte no
plano astral, que liberta completamente o Ego do Kâma-loka para fazê-lo passar ao
estado devachânico, permanece no Kâma-loka algo que corresponde ao cadáver
deixado na Terra, quando a alma levanta seu primeiro vôo fora do mundo físico.
Com efeito, no Kâma-loka permanece um cadáver astral, e por certo é correio
atribuir o qualificativo cascão a essa escória. O cascão, neste estado, desintegra-se
no Kâma-loka, dentro em muito breve, do mesmo modo que o cadáver que se
abandona ao processo de dissolução natural decairá logo, misturando seus
elementos com os depósitos gerais de matéria na ordem a que pertencem. Mas até
que essa dissolução ocorra, o cascão abandonado pelo Ego verdadeiro pode,
mesmo nesse estado, ser tomado algumas vezes, nas sessões espíritas, pela
entidade vivente. Durante certo tempo permanece como um espelho astral, no qual
os médiuns podem ver refletidos seus próprios pensamentos e recebê-los, na crença
plena de que provêm de uma origem externa. Estes fenômenos, no verdadeiro
sentido da palavra, são cadáveres astrais galvanizados ainda que, até o momento
da desintegração, possa existir entre eles e o verdadeiro espírito devachânico certa
relação sutil, do mesmo modo que subsiste tal comunicação entre a entidade no
Kâma-loka e o cadáver deixado na Terra. Esta última relação citada mantém-se por
130
meio da matéria sutilmente difundida do terceiro princípio original, ou Linga-sharîra.
O estudo deste ramo do assunto nos levaria, creio eu, a uma melhor compreensão
do que a que hoje possuímos a respeito das circunstâncias em que às vezes se
realizam as materializações nas sessões espíritas. Sem entrarmos agora nesta
digressão, basta reconhecer que a analogia ajuda a demonstrar como, entre a
entidade devachânica e o abandonado cascão, no Kâma-loka, pode subsistir
durante algum tempo uma relação semelhante, que atua, enquanto dura, como um
gancho do espírito ou mesmo talvez como seu refulgente crepúsculo no cascão. Por
certo, é extremamente penoso para qualquer amigo vivente da pessoa morta ver ou
tomar conhecimento, seja por clarividência ou por qualquer outro modo, de
semelhante cascão, enquanto o imagina como sendo a verdadeira entidade.
O ponto de vista comparativamente nítido, que agora temos com relação ao
Kâma-loka, pode nos ajudar a utilizar as expressões aplicadas a seus fenômenos
com mais rigor do que até o momento fizemos. Creio que se adorarmos a nova
expressão "alma astral" para as entidades que acabaram de deixar a vida terrena,
mas que por outras razões conservam ainda grande parte dos atributos intelectuais
que possuíam na Terra, descobriremos, pois, que também outros termos já
empregados serão adequados em sua aplicação. Contudo, devemos desfazer-nos
do termo (inconveniente) "elemental", que tão facilmente pode nos trazer confusões,
além de ser mesmo muito impróprio aos seres que descrevemos. Faço a indicação
de que a alma astral, quando entra (encarado de nosso ponto de vista) na
decrepitude intelectual, seja chamada, neste estado de debilitação gradual, sombra
e que o termo cascão seja reservado para os verdadeiros cascões ou cadáveres
astrais abandonados definitivamente pelo espírito devachânico.
131
Ao estudar a lei do desenvolvimento espiritual no Kâma-loka, é natural que
pesquisemos quanto tempo decorre antes que se complete a passagem da
consciência dos princípios inferiores aos superiores da alma astral Como de
costume, assim que se cuida de números relacionados aos processos superiores da
Natureza, a resposta é sempre bem elástica. Os mestres esotéricos do Oriente
proclamam que, no que se refere à média da humanidade — o que se pode
denominar, no seu sentido espiritual, a grande classe média da humanidade —, é
extraordinário que uma entidade no Kâma-loka esteja em condições de manifestar-
se como tal por mais de vinte e cinco ou trinta anos. Mas em ambos extremos dessa
média, os números podem aumentar consideravelmente. Uma criatura humana
muito ignóbil e estupidificada pode permanecer no Kâma-loka por muito mais tempo,
por falta de princípios superiores bastante desenvolvidos para elevar a sua
consciência, como também, num outro extremo da escala, certa alma muito
intelectual e mentalmente ativa pode permanecer longuíssimos períodos no Kâma-
loka (na falta de afinidades espirituais de análoga força), em virtude da grande
persistência das forças e causas geradas no plano superior dos efeitos, ainda que a
sua atividade mental possa estar separada da espiritualidade, excetuando-se aqui
os casos em que a alma esteja exclusivamente associada à ambição mundana.
Além disso, se os períodos no Kâma-loka podem prolongar-se desse modo além da
média por variadas causas, podem também reduzir-se a uma infinitesimal brevidade,
quando uma pessoa muito avançada em espiritualidade morre após uma vida longa
que preencheu legitimamente o seu desígnio.
Há outra possibilidade importante relacionada com as manifestações que nos
chegam pelos canais normais de comunicação com o Kâma-loka, que convém
observar aqui, por mais que, devido à sua natureza, essa possibilidade não ocorra
132
com freqüência. Nenhum estudante novato de teosofia pode esperar saber muito até
agora sobre os estados de existência dos Adeptos que renunciam ao uso do corpo
físico na Terra. As possibilidades superiores que se abrem perante eles parecem-me
por completo fora do alcance de toda avaliação intelectual. Nenhum homem é
suficientemente hábil, apenas devido à mera capacidade de um cérebro vivente,
para compreender o Nirvana. Porém, segundo parece, em alguns casos os Adeptos
decidem optar por uma via que está entre a reencamação e a passagem ao Nirvana,
pelas regiões superiores do Devachan; ou seja, podem esperar, nos estados Arûpa
do Devachan, pelo lento avanço da humanidade para o estado superior que assim
atingiram. Ora, o Adepto que deste modo se converte num espírito devachânico do
tipo mais elevado não será impedido de manifestar sua influência na Terra, pela
situação do seu estado devachânico — como aconteceria com um espírito
devachânico comum ao passar por aquele estado em seu caminho para a
reencamação. Esta não seria, por certo, uma influência que se fizesse sentir por
intermédio de qualquer sinal físico para auditórios heterogêneos, não sendo, porém,
impossível que um médium do mais elevado tipo — que mais propriamente deveria
ser chamado vidente — possa assim ser influenciado. É possível que o espírito de
um Adepto desse tipo, de tempos em tempos, inspire algum dos grandes homens da
história do mundo, quer consciente, quer inconscientemente, conforme o caso.
A desintegração dos cascões no Kâma-loka inevitavelmente sugere a
qualquer um que procure compreender o seu processo, que devem existir na
Natureza alguns depósitos gerais de matéria adequada a esta esfera de existência,
correspondente à Terra física e a seus elementos circundantes, em que os nossos
corpos se dissolvem após a morte. Os grandes mistérios a que esta consideração
vai de encontro exigem uma pesquisa mais exaustiva do que a que até agora
133
empreendemos, mas desde logo é conveniente expor uma idéia relacionada com
eles: o estado do Kâma-loka tem suas correlatas ordens de matéria em
manifestação. Não tentarei entrar aqui na metafísica do problema que mesmo
poderia levar-nos a prescindir da noção de que a matéria astral necessita ser menos
real e tangível do que a que conhecem nossos sentidos físicos. Basta, por enquanto,
explicar que a proximidade do Kâma-loka com a Terra, tão evidenciada pelas
experiências espíritas, explica-se pelo ensinamento oriental que provém deste fato: o
Kâma-loka está na Terra e pertence a ela, tanto como a nossa, alma astral está no
homem vivo e pertence a ele. A região do Kâma-loka, de fato esse grande reino no
estado adequado que constitui o Kâma-loka, perceptível aos sentidos das entidades
astrais, bem como aos de muitos clarividentes, é o quarto princípio da Terra, da
mesma maneira que o Kâma-rûpa é o quarto princípio do homem. Pois a Terra tem
seus sete princípios como as criaturas humanas que nela habitam. Assim, o estado
devachânico corresponde ao quinto princípio da Terra e o Nirvana, ao sexto.
134
7. A ONDA DA MARÉ HUMANA
Já dei uma explicação geral do modo como a grande onda humana
evolucionária passa, dando voltas em torno dos sete mundos que compõem a
cadeia planetária da qual a Terra é parte. Agora se podem acrescentar novos
pormenores, objetivando expandir esta idéia geral para que se atinja uma completa
compreensão do processo com que se relaciona. E nenhum capítulo adicional da
grande história irá influenciar mais, no sentido de tornar seu caráter inteligível, do
que a explicação de certos fenômenos relacionados ao progresso dos mundos, os
quais podem propriamente ser denominados obscurecimentos.
Os estudantes de filosofia oculta, que assumem esta tarefa com suas mentes
abundantemente providas de outras idéias, tendem a interpretar erroneamente as
primeiras afirmações que foram feitas. Não se pode dizer tudo de uma vez, e as
primeiras explicações gerais sugerem conceitos com relação aos pormenores, muito
provavelmente errôneos, mesmo em se tratando de pensadores de mente mais ativa
135
e inteligente. Esses leitores não se satisfazem com um esboço vago, mesmo por um
momento. A imaginação completa a tela, e se a obra permanece sem retoques por
um tempo qualquer, seu autor logo se surpreenderá ao verificar que os últimos
relatos são incompatíveis com o que ele chegou a considerar como sendo o que
nitidamente se ensinou no início. Ora, neste estudo, o esforço do escritor é no
sentido de expor o assunto de tal forma que evite, na medida do possível, um
prematuro crescimento de erva daninha na mente. Mas este mesmo esforço requer,
às vezes, que se avance celeremente, deixando alguns detalhes, e mesmo detalhes
muito importantes, para serem captados numa segunda viagem pelo antigo caminho.
Assim, portanto, o leitor será bastante amável para retornar à explicação que
fornecemos no Capítulo 3, relativo ao progresso evolucionário através de toda a
cadeia planetária.
Algo foi dito então sobre o modo como o impulso de vida passava de planeta
em planeta sob a forma de "ondas ou jorros, e não por meio de um fluxo contínuo".
Agora, o curso da evolução em seus primeiros estados é tão contínuo que a
preparação de vários planetas para a onda final da humanidade pode estar
ocorrendo simultaneamente. Com efeito, a preparação de todos os diversos planetas
pode ocorrer simultaneamente, em certo momento do processo, mas o ponto
importante a reter é que a onda principal da evolução — a onda crescente que se
move na dianteira - não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. O
processo ocorre de maneira capaz de ser descrita, mas o leitor o compreenderia
melhor se desenhasse um diagrama, quer num papel, quer em sua própria
imaginação, que consistisse de sete círculos (representando os mundos) ordenados
em forma de anel. Denominando-os A, B, C , etc., se observará, com base no que já
se afirmou, que o círculo (ou globo) D representa a nossa Terra. Pois bem, lembre-
136
se de que os reinos da Natureza, conhecidos dos ocultistas, são em número de sete,
dos quais três são relativos às forças astrais e elementais, precedendo os reinos
materiais, mais grosseiros na ordem de seu desenvolvimento. O reino número 1
evoluciona no globo A e passa ao globo B, no momento em que o reino número 2
começa a evolucionar no globo A. Dando continuidade a este sistema até o fim, com
certeza há de se ver que, quando o reino número 1 está evolucionando no globo G,
o reino número 7, ou seja, o reino humano, está se desenvolvendo no globo A. E
agora vejamos: o que acontece assim que o reino 7 passa ao globo B? Não há um
oitavo reino que funcione no globo A. Os grandes processos da evolução culminam
na onda final da humanidade, que, ao seguir seu curso, deixa atrás de si a Natureza
numa letargia transitória. Quando a onda de vida continua no globo B, o globo A, de
fato, entra durante algum tempo num estado de obscurecimento. Este estado não é
de decadência, nem de dissolução, nem de nada que propriamente se chame de
morte. A própria decadência, embora seu aspecto possa induzir em erro, representa
um estado de atividade em determinada direção. Esta consideração fornece uma
chave para o significado de uma porção de coisas que de outra maneira seriam
desprovidas de sentido, nessa parte da mitologia hindu relacionada com as deidades
que regem a destruição. O obscurecimento de um mundo é a cabal suspensão de
sua atividade. Isto não significa que, desde o momento que a última mônada
humana abandona um dado mundo, esse mundo se paralisa por alguma convulsão
ou submerge no estado de transe encantado de palácio adormecido. A vida vegetal
e a anima continuam como antes, durante certo tempo, porém o seu caráter
retrocede em lugar de avançar. A grande onda de vida o abandonou. Os reinos
vegetal e animal voltam gradualmente ao estado em que se achavam quando pela
primeira vez os alcançou a grande onda de vida. São precisos enormes períodos de
137
tempo para esse lento processo, mediante o qual o mundo obscurecido se entrega
ao sono, pois, como se há de ver, o obscurecimento, em cada caso, dura seis
vezes12 mais tempo que o período de ocupação de cada mundo pela onda humana.
Vale dizer: o processo que ocorre, segundo já foi descrito, com relação à passagem
da onda de vida, do globo A ao globo B, repete-se ao longo de toda a cadeia.
Quando a onda passa a C, B fica em obscurecimento, do mesmo modo que A.
Então D recebe a onda de vida, e A, B, C ficam em obscurecimento. Quando a onda
chega a G, todos os seis mundos precedentes encontram-se em obscurecimento.
Enquanto isso, a onda de vida prossegue com certa progressão regular, cujo caráter
simétrico satisfaz muito as inclinações científicas. O leitor, a partir disto, está
preparado para compreender a idéia de como a humanidade se desenvolve através
das sete grandes raças, durante cada período de Ronda num planeta — ou seja,
durante a ocupação desse planeta pela onda de vida. A quarta raça é obviamente a
raça do meio da série. Assim que se passa deste ponto médio e começa a evolução
da quinta raça em qualquer planeta, começa, no seguinte, a preparação da
humanidade. Por exemplo, a evolução da quinta raça em E está na mesma
proporção que a evolução, ou antes que a revivescência do reino mineral em D, e
assim sucessivamente. Quer dizer, a evolução da sexta raça em D coincide com a
revivescência do reino vegetal em E; a sétima raça em D, com a revivescência do
reino animal em E e logo, quando os últimos montículos da sétima raça em D
tenham passado ao estado subjetivo ou mundo dos efeitos, o período humano em E
começa, e a primeira raça inicia ali seu desenvolvimento. Entrementes, o período
crepuscular no mundo, que precede a D, converteu-se na noite do obscurecimento
do mesmo modo progressivo, e esse toma-se definitivo ali, quando o período
12 Ou pode-se dizer cinco vezes, tendo-se em conta o meio período da manhã que precede e o meio período da tarde, que segue o dia da atividade integral.
138
humano em D passa seu ponto médio. Mas assim como o coração do homem bate e
continua a respiração, não importa quão profundo seja o seu sono, assim também
continua o processo de ação vital no mundo em repouso, mesmo nos momentos de
sono mais profundo. Este processo conserva para a próxima volta da onda humana
os resultados da evolução, que precederam a sua primeira chegada. O despertar de
um planeta, dessa forma, é um processo mais longo que o de sumir-se no repouso,
pois precisa atingir um grau maior de perfeição para a volta da onda humana, que
aquele em que se encontrava quando a última onda deixou as suas costas. Mas a
cada novo começo, a Natureza é infundida por um vigor próprio — a frescura de
uma manhã — e o último período de obscurecimento, que é um tempo de
preparação e de esperança, por assim dizer, reveste a própria evolução com uma
nova energia. Quando a grande onda de vida volta, tudo está pronto para a sua
recepção.
Na primeira exposição que fizemos deste assunto indiquei, mais ou menos,
que os diversos mundos, que constituem a nossa cadeia planetária, não eram da
mesma matéria. Pondo o conceito de espírito no pólo norte do círculo, e o de matéria
no pólo sul, os mundos do arco descendente variam em materialidade e
espiritualidade, o mesmo ocorrendo com os do arco ascendente. Esta variação deve
agora ser considerada com mais atenção, se o leitor deseja compreender todo o
processo da evolução de uma forma mais integral do que até aqui.
Além da Terra, que se acha no ponto material mais baixo de todos, somente
há dois mundos de nossa cadeia que são visíveis aos olhos físicos: um atrás e o
outro diante dela. Estes dois mundos são, na verdade, Marte e Mercúrio — Marte
está antes do nosso e Mercúrio depois —, Marte, num estado de obscurecimento
139
completo na atualidade, no que diz respeito à onda de vida humana, e Mercúrio, que
acaba justamente de preparar-se para seu próximo período humano13.
Os dois planetas que estão atrás de Marte e os dois que seguem a Mercúrio
não são constituídos por uma ordem de matéria capaz de ser percebida pelo
telescópio. Dos sete planetas, quatro são, pois, de natureza etérea, os quais as
pessoas que só concebem a matéria em sua forma terrena tenderão a chamar de
imaterial. Mas efetivamente nada têm de imateriais. Eles simplesmente pertencem a
estados de matéria mais sutis que os da Terra. Essa sutileza não anula de modo
algum a uniformidade do desígnio da Natureza com relação aos métodos e graus de
sua evolução. Dentro da escala de sutil "invisibilidade", as Rondas e as raças
sucessivas da humanidade passam por seus graus de maior e menor materialidade,
do mesmo modo que nesta Terra; mas todo aquele que queira compreendê-los deve
primeiro compreender esta Terra e esclarecer por analogia os seus delicados
fenômenos. Voltemos, portanto, à consideração da grande onda de vida, em seus
aspectos, neste planeta.
13 É importante observar aqui, em benefício das pessoas que pretendam objetai, do ângulo da física, que Mercúrio se encontra muito próximo do Sol, e conseqüentemente demasiado quente para poder ser uma habitação apropriada para o Homem, que, num relatório oficial do Departamento de Astronomia dos Estados Unidos sobre as recentes "Observações do Monte Whitney", pode tomar-se declarações capazes de sustar a crítica à ciência oculta neste ponto. Os resultados das observações de Monte Whitney sobre a absorção seletiva dos raios solares demonstram, segundo o relatório oficial, que é de supor as condições de uma atmosfera que tornasse Mercúrio habitável, num extremo da escala, e Saturno no outro. Não temos de tratar de Saturno agora. Nem se fosse necessário explicar, pelos princípios ocultos, a habitabilidade de Mercúrio, não teríamos de abordar cálculos a respeito da absorção seletiva. O fato é que a ciência corrente considera o Sol, ao mesmo tempo demasiado e demasiado pouco, como o depósito da força do Sistema Solar — demasiado, na medida em que o calor dos planetas se relacionam com outra influência completamente distinta do Sol, influência esta que não será por completo entendida até que se saiba mais que até o presente sobre as correlações entre o calor e o magnetismo e da poeira meteórica magnética que permeia os espaços interplanetários. Entretanto, basta - para refutar qualquer teoria que pudesse opor-se às explicações que agora são dadas, do ponto de vista dos fiéis devotos da ciência do último ano — que seja assinalado que tais objeções estariam antiquadas. A ciência moderna é muito progressiva - sendo este um de seus maiores méritos — porém, não é um costume meritório nos cientistas modernos crer, em cada etapa de seu progresso, que todos os conceitos incompatíveis com esta etapa devam ser necessariamente absurdos.
140
Assim como a cadeia de mundos, tomada como unidade, tem seus pólos
norte e sul, ou seus pólos espiritual e material, descendo da espiritualidade à
materialidade e subindo outra vez à primeira, assim também as rondas da
humanidade constituem uma série semelhante, como que simbolizando a cadeia
planetária. Com efeito, na evolução do homem, tanto em cada plano isolado como
no conjunto há um arco descendente e outro ascendente: o espírito, por assim dizer,
envolvendo-se na matéria e a matéria desenvolvendo-se no espírito. O ponto inferior
ou mais material no ciclo converte-se, deste modo, no ápice invertido da inteligência
física, que é a manifestação mascarada da inteligência espiritual. Cada Ronda da
humanidade evoluída no arco descendente (ou mesmo cada raça de cada Ronda,
se descemos a espelhos menores do cosmos) tem de ser mais fisicamente
intelectual que a sua predecessora, e cada uma no arco ascendente deve ser
investida de uma forma mais refinada de mentalidade misturada com uma maior
intuição espiritual. Na primeira Ronda, portanto, encontramos o homem como um ser
relativamente etéreo (mesmo comparado na Terra com o estado que alcançou aqui
agora), não intelectual, mas sim superespiritual. Do mesmo modo, o animal e o
vegetal que o circunda, habita um corpo imenso, mas de organização não
consistente. Na segunda Ronda é ainda gigantesco e etéreo, porém mais
consistente e mais condensado: um homem mais físico, porém menos inteligente
que espiritual. Na terceira Ronda, desenvolveu um corpo perfeitamente concreto e
compacto, primeiramente sua forma é mais a de um macaco gigante do que a de um
homem verdadeiro, porém com inteligência mais e mais pronunciada. Na primeira
metade da terceira Ronda, a sua estatura gigantesca decresce, o seu corpo melhora
em contextura e ele começa a ser um homem racional. Na quarta Ronda, o intelecto,
então plenamente desenvolvido, adquire um enorme progresso. As primeiras raças
141
com que se principia a Ronda adquirem a linguagem humana, tal como a
entendemos. O mundo prolifera dos resultados da atividade intelectual e da
decadência espiritual. Na metade da quarta Ronda aqui, se transpõe o ponto polar
de todo o período dos sete mundos. Desse ponto em diante, o Ego espiritual inicia a
sua verdadeira luta com o corpo e a mente, para manifestar os seus poderes
transcendentais. Na quinta Ronda, a luta prossegue, mas as faculdades
transcendentais estarão completa-mente desenvolvidas, embora a luta entre estas e
as tendências físicas seja mais feroz que nunca, porque a inteligência da quinta
Ronda, bem como sua espiritualidade, é mais avançada do que a da quarta. Na
sexta Ronda, a humanidade atinge um grau de perfeição tanto do corpo como da
alma, da inteligência como da espiritualidade, sendo difícil de imaginá-lo a partir dos
mortais comuns de nossa época. As combinações excelsas de sabedoria, bondade
e iluminação transcendental, que o mundo tenha visto ou pensado, representarão o
tipo comum da espécie humana. Essas faculdades que agora, na rara eflorescência
de uma geração, permitem a algumas pessoas extraordinariamente dotadas explorar
os mistérios da Natureza e adquirir o conhecimento do qual se oferecem agora
algumas migalhas (por meio destes escritos e de outros meios) ao mundo em geral,
serão então apanágio comum a todos. Quanto ao que seja a sétima Ronda, os
mestres ocultos mais comunicativos mantêm um silêncio solene. A humanidade da
sétima Ronda será bastante semelhante a Deus para que a humanidade da quarta
possa pressupor seus atributos.
Durante a ocupação de qualquer planeta pela onda de vida humana, cada
mônada individual se encarna muitas vezes. Se a mônada apenas passasse uma
existência em cada uma das raças ramais, pelas quais deve passar pelo menos uma
vez, o número total que se atingira numa Ronda seria 343, ou seja, a terceira
142
potência de 7. Mas, na verdade, cada mônada se encarna duas vezes em cada raça
ramal, assim como também faz necessariamente mais algumas encarnações extras.
Por motivos que não são fáceis de adivinhar pêlos leigos, os portadores do
conhecimento oculto são particularmente pouco comunicativos quanto a dados
numéricos sobre a cosmogonia, por mais que para o não iniciado seja
incompreensível tal reserva. Na atualidade, por exemplo, não podemos externar qual
é a duração verdadeira, em anos, do período de uma Ronda. Não obstante,
obtivemos uma concessão — que só poderiam apreciar inteiramente os que foram,
de há muito, estudantes de ocultismo pelo método antigo — relativa aos números
que imediatamente nos dizem respeito. Essa concessão, em todo caso, é valiosa
porque nos ajuda a elucidar um fato interessante relacionado com a evolução, em
cujo limiar chegamos agora. Este fato é que, na Terra, por exemplo, estando
habitada atualmente pela humanidade da quarta Ronda, ou seja, pela onda da vida
humana em sua quarta viagem ao redor do círculo dos mundos, podem existir entre
nós algumas poucas pessoas, poucas em relação ao número total, que,
propriamente falando, pertencem à quinta Ronda. Pois bem, no sentido do termo ora
empregado, não há que supor que, por algum procedimento milagroso, alguma
unidade individual tenha viajado ao redor da cadeia dos mundos uma vez mais do
que seus parceiros. Dadas as explicações que foram apresentadas de como
progride a onda da humanidade, compreender-sê-á que isso seria impossível. A
humanidade ainda não fez a sua quarta visita, nem mesmo ao planeta que segue ao
nosso. Mas as mônadas individuais podem passar às suas companheiras o seu
desenvolvimento intelectual, e assim converter-se exatamente no que o geral da
espécie humana será quando a quinta Ronda se tiver desenvolvido integralmente.
Isto pode ocorrer de dois modos. Um homem nascido como um indivíduo comum da
143
quarta Ronda pode converter-se, por meio do processo da instrução oculta, num
homem com todos os atributos de um homem da quinta Ronda, e assim tornar-se o
que denominamos um homem da quinta Ronda artificial. Mas independentemente de
todos os esforços que faça o homem em sua presente encarnação, ele pode
também nascer como o da quinta Ronda, no meio da Humanidade da quarta, devido
ao número total de suas encarnações prévias.
Se x representa o número normal de encarnações que uma mônada, no
decurso da Natureza, tem de passar durante um período de Ronda num planeta, e y
a margem de encarnações extras, que no mesmo período pode chegar a atravessar
por um forte desejo de vida física, então é evidente que: 24 1/2 (x + y) pode exceder
28 x. Vale dizer: uma mônada pode em 3 1/2 Rondas realizar tantas encarnações
quanto uma mônada comum em quatro Rondas completas. Em menos de 3 1/2
Rondas esse resultado não seria obtido, de modo que apenas agora, depois de
haver ultrapassado o ponto médio da evolução deste planeta médio, é que os da
quinta Ronda começam a aparecer.
Não é possível na natureza das coisas que uma mônada possa se avantajar a
suas companheiras em mais de uma Ronda Ainda assim, Buda era um homem da
sexta Ronda, mas este fato relaciona-se com um grande mistério fora dos limites do
presente cálculo. Basta dizer por ora que a evolução de um Buda se relaciona com
algo mais do que simples encarnações dentro dos limites de uma cadeia planetária.
Desde que estes cálculos compreendam grande número de vidas, nas
sucessivas encarnações de uma mônada individual, é importante neste ponto, para
evitar interpretações errôneas, indicar que os períodos de tempo que abrangem
essas encarnações são tão grandes que, apesar do seu número, separam-nas
vastos intervalos. Conforme afirmado anteriormente, não podemos agora fornecer a
144
duração verdadeira dos períodos de Rondas. Nem mesmo se podem citar números
indicadores da duração desses períodos, porque variam muito dentro de extensos
limites. Mas apresentaremos um fato simples que foi claramente manifestado por
uma autoridade oculta superior. A presente raça da humanidade, isto é, a presente
quinta raça da quarta Ronda, começou a evoluir há um milhão de anos. E esta ainda
não acabou. Mas, supondo que um milhão de anos constitua a vida completa de
uma raça14, como haveria de subdividi-lo para cada mônada individual? Em uma
raça deve haver mais do que 100 encarnações, sendo difícil que atinjam 120 para
uma mônada individual. Mas aceitemos que já tenha havido 120 encarnações para
as mônadas na raça atual. E suponhamos que a média da vida de cada encarnação
tenha sido um século, mas mesmo assim só teríamos 12.000 anos empregados na
existência física, enquanto para a esfera subjetiva são 988.000 anos, resultando
uma média de mais de 800 anos entre cada encarnação. Com certeza, estes
períodos intermediários são de duração muito variável, mas dificilmente seriam
menores que 1.500 anos — não considerando, naturalmente, o caso dos Adeptos,
que se acham inteiramente fora da ação da lei comum — e 1.500 anos, se não
representa um período impossível pela brevidade, seria de toda forma um intervalo
muito curto entre dois nascimentos.
Entretanto, esses cálculos devem ser qualificados por duas considerações.
Os casos de crianças que morrem na infância são bem diferentes dos das pessoas
que atingem a maturidade completa, e isto por razões evidentes, que serão
compreendidas pelas explicações que já foram dadas. Uma criança que morre antes
14 A vida completa de uma raça é certamente muito mais longa que isso. Mas quando manipulamos números desse tipo, penetramos num terreno bastante delicado, porque os períodos exatos são segredos profundos, por razões que os estudantes não-inicia-dos (“chelas laicos", como dizem agora os Adeptos, ao cunhar uma designação nova para um estado de coisas novo) só imperfeitamente podem presumir. Cálculos como os mostrados acima podem merecer confiança tomados literalmente no que abrangem, mas não devem ser considerados irrefletidamente como base para outros.
145
que tenha vivido o suficiente para começar a ser responsável por seus atos, não
gerou karma novo algum. A mônada espiritual abandona o corpo da criança, no
mesmo estado em que o ocupou após sua morte no Devachan. Não teve ocasião de
tocar seu novo instrumento, o qual se quebrou antes de estar afinado. Portanto,
pode ocorrer imediatamente uma reencamação da mônada, na mesma linha que a
anterior. Mas a mônada que se reencarna assim não pode ser identificada
espiritualmente, de modo algum, com a criança que morreu. O mesmo ocorre com
uma mônada que ocupe o corpo de um idiota de nascimento. O instrumento não
pode ser afinado, de forma que não pode tocar com ele, nem tampouco com o corpo
da criança nos primeiros anos da infância. Mas esses dois casos são exceções
claras que em nada modificam a regra geral, que foi exposta antes, para todas as
pessoas que chegam à maturidade e que empregam suas vidas terrenas para o bem
ou para o mal.
COMENTÁRIOS
Notícias posteriores e o estudo — ou seja, a comparação dos diferentes
ramos da doutrina e o acréscimo de outras declarações como aquelas do capítulo
anterior — demonstram a dificuldade de se aplicar números, de modo notadamente
definido, às Doutrinas Esotéricas. Pode-se confiar em cifras, quando representam
médias gerais, mas induzem a grandes erros quando se trata de aplicá-las em casos
especiais. Os períodos devachânicos variam, para diferentes pessoas dentro de
limites tão amplos, que qualquer regra que se baseie neste ponto deve provocar
muitas críticas. Primeiramente, a média antes mencionada foi, sem dúvida, calculada
para adultos. Entre a criança pequena, que não tem período devachânico, e o adulto
146
que completa um período médio, devemos ter presentes as pessoas que morrem na
juventude, que acumularam karma e que, portanto, têm de passar pelas etapas
habituais do desenvolvimento espiritual, mas para os quais a vida curta que tiveram
não produziu causas que exijam muito tempo para esgotar seus efeitos. Essas
pessoas voltariam a reencarnar-se depois de uma breve estada correspondente no
mundo dos efeitos. Por outro lado, há casos de encarnações artificiais, que se
realizam pela intervenção direta dos Mahâtmâs, quando um cheia, que, ainda sem
ter adquirido o domínio de fazê-lo por si mesmo, é atraído à encarnação quase
imediatamente após sua morte física precedente, sem que tenha sido necessário
flutuar na corrente das causas naturais. Nesses casos, pode-se dizer que os direitos
adquiridos por essas pessoas, com relação aos Mahâtmâs, são causas naturais de
certo gênero. E a intervenção dos Mahâtmâs, que se acham isentos de agir por
capricho em tais assuntos, é fruto do esforço de suas vidas precedentes e, portanto,
de seus karmas. Mas, de todas as formas, esses casos são outras tantas exceções,
no andamento da regra geral.
Obviamente, é impossível que, quando pela primeira vez são apresentados a
inteligências profanas os fatos complicados de uma ciência completamente
desconhecida, se possam expor com todas as suas devidas qualificações,
compensações e desenvolvimentos anormais visíveis desde o início. Devemos
contentar-nos em tratar primeiro das regras gerais, para passarmos depois às
exceções, e isto ocorre muito particularmente no estudo do ocultismo, cujos métodos
tradicionais de ensino, geralmente seguidos, têm por objetivo gravar na memória
cada idéia nova, provocando uma perplexidade que é logo atenuada. Com respeito a
outro assunto de que se tratou nas páginas anteriores, parece-nos agora que não se
considerou exceção importante na Natureza. A descrição que fiz da evolução da
147
onda humana é completamente coerente como foi apresentada, mas desde a
publicação da edição original deste livro criticou-se, na índia, a comparação entre
minha versão do assunto e certas passagens de outros escritos, emanados, ao que
se sabe, de um Mahâtmâ. Foi notada uma discrepância entre as duas
manifestações, visto que a outra versão admitia a possibilidade de que uma mônada
possa efetivamente ter dado uma volta a mais ao redor dos sete planetas do que
seus companheiros, entre os quais se encontra ultimamente na Terra. Minha
explicação sobre os obscurecimentos parece inviabilizar essa contingência. A chave
desse mistério se encontra fora do domínio de fatos a respeito dos quais os Adeptos
de bom-grado falam livremente. O leitor deve entender, assim, que a explicação que
vou dar é fruto de minhas especulações e comparações das diferentes partes da
doutrina — não sendo recebida nenhuma informação autêntica do autor de meu
ensinamento geral.
Os obscurecimentos são bastante completos ao nos demonstrarem todos os
fenômenos descritos com relação a cada um dos planetas que afetam em sua
totalidade. Mas os fenômenos excepcionais, para o que devemos estar sempre
prevenidos, apresentam-se sempre, mesmo neste assunto. A grande massa da
humanidade é conduzida de um planeta a outro por meio do grande impulso cíclico,
quando chega o tempo dessa transição, mas o planeta que abandona não fica
absolutamente destituído de humanidade, assim como tampouco todas as regiões
de sua superfície se tomam impróprias como morada para os seres humanos,
devido às mudanças físicas e climáticas que nelas ocorrem. Mesmo durante o
obscurecimento, permanece no planeta uma pequena colônia humana, e as
mônadas constitutivas dessas colônias, seguindo diferentes leis de evolução e fora
do alcance dessas atrações que governam o vórtice principal da humanidade no
148
planeta ocupado pela grande onda, passam adiante de mundo em mundo, no que
poderia denominar-se a Ronda interna da evolução, muito mais à frente que a raça
em geral. Quais podem ser as circunstâncias que arremessam, ocasionalmente,
uma alma, ainda no meio do grande vórtice humano, para fora da atração do planeta
ocupado pela onda, dentro da atração da Ronda Interna? Tal é a questão que no
presente só podemos conjecturar de modo muito incerto.
Vale a pena chamar a atenção do leitor para a solução que acabo de
apresentar acerca das Rondas Internas, sobre o modo como este fato da Natureza,
cuja existência, suponho, se harmonizaria com as tão difundidas doutrinas a respeito
do Dilúvio. Essas partes do planeta que permanecem habitáveis durante um
obscurecimento seriam equivalentes à Arca de Noé dos relatos bíblicos, em seu
sentido simbólico mais amplo. Certamente, a narrativa do Dilúvio tem também
significados simbólicos menores, mas não parece improvável que os Cabalistas
tenham associado a ela um significado mais lato que agora indicamos. No tempo
devido, quando o planeta obscurecido volta a estar em condições de receber apenas
a onda humana, os colonos da Arca estarão prontos para reiniciar o processo de
povoá-lo de novo.
149
8. O PROGRESSO DA HUMANIDADE
Como terá visto o leitor, o curso da Natureza impele todas as entidades
humanas pela senda do progresso indefinido em direção a planos superiores de
existência. Mas terá visto, igualmente, que a Natureza, dotando estas entidades com
faculdades sempre crescentes, e ao ampliar constante-mente o escopo de sua
atividade, fornece-lhes ao mesmo tempo oportunidades cada vez maiores para
escolher entre o bem e o mal. Nas primeiras Rondas da humanidade, este privilégio
de seleção não está inteiramente desenvolvido, em vista do que a responsabilidade
dos atos é relativamente incompleta. As primeiras Rondas da humanidade, na
verdade, não investem o Ego de nenhuma responsabilidade espiritual, no sentido
lato da palavra, do que agora estamos nos aproximando. Os períodos devachânicos,
que se seguem a cada existência objetiva, dispõem plenamente dos méritos e
deméritos dessa existência, e a personalidade mais deplorável que o Ego pode
150
desenvolver, durante a primeira metade de sua evolução, não se computa em
relação à totalidade do empreendimento, ao passo que a personalidade
propriamente culpável paga a sua pena relativamente curta, não voltando a
perturbar a Natureza. Mas a segunda parte do grande período evolucionário ocorre
sob princípios bem diversos. As fases de existência, que então se apresentam, não
podem ser admitidas pelo Ego sem méritos positivos próprios, adequados aos novos
desenvolvimentos em perspectiva; não basta que a entidade, já completamente
responsável e altamente dotada, em que o homem se converte no grande ponto de
retomo de sua carreira, flutue preguiçosamente na corrente do progresso. Ela deve
começar a nadar, se deseja prosseguir seu caminho para a frente.
A complexidade do assunto, excluindo a hipótese de ocupar-nos de todas
suas faces simultaneamente, fez com que nosso exame da Natureza tenha apenas
considerado as sete rondas do desenvolvimento humano, que constituem todo o
processo planetário que nos concerne, como uma série contínua, através da qual
tem de passar a humanidade em geral. Mas deve-se lembrar que foi dito que a
humanidade na sexta Ronda estará tão altamente desenvolvida que os atributos e
faculdades sublimes do mais alto Adeptado serão apanágio comum de todos. Já na
sétima Ronda, a raça quase terá saído do humano para converter-se no divino. Pois
bem, todo ser humano, neste grau da evolução, estará identificado por uma ligação
ininterrupta com todas as personalidades que foram engajadas no ciclo da vida,
desde o início do grande processo evolucionário. Pode-se conceber que o caráter
dessas personalidades seja irrelevante no final de contas, e que dois seres
semelhantes a deuses podem encontrar-se juntos na sétima Ronda, sendo um
desenvolvido através de uma longa série de irrepreensíveis e úteis existências e o
outro por meio de outra não menos longa série de vidas perversas e degradadas?
151
Isto certamente não pode acontecer, e devemos questionar agora: como se mantêm
compatíveis as congruências da Natureza com a indicada evolução da humanidade
para a forma mais elevada de existência que coroa o edifício?
Assim como a infância é irresponsável por seus atos, as primeiras raças da
humanidade são irresponsáveis pêlos seus. Mas chega o período de
desenvolvimento completo, em que o integral desenvolvimento das faculdades que
possibilitam ao homem individual escolher entre o bem e o mal, na vida singular que
ocupa no momento, permitem também ao Ego perdurável fazer a sua escolha final.
Este período — esse enorme período, pois a Natureza não se apressa em colher
suas criaturas numa armadilha em tal assunto — apenas principiou, sendo preciso
que transcorra uma Ronda completa ao redor dos sete mundos antes que ele
termine. Até que se tenha passado o ponto médio do quinto período nesta Terra, a
grande questão — a de ser ou não ser no futuro — não se determina de modo
irrevogável. Começamos agora a tomar posse das faculdades que tornam o homem
um ser completamente responsável e ainda temos de empregar essas faculdades,
durante a maturidade de nossa Egoidade, de modo que determine as imensas
conseqüências do futuro.
Durante a primeira metade da quinta Ronda é que acontece principalmente a
luta. Até então, o curso corrente da vida pode ser uma boa ou má preparação para a
luta, mas não se pode descrever honestamente que seja a própria luta. E agora
temos de examinar a natureza da luta, que até agora consideramos como a escolha
entre o bem e o mal. Isso não é, de forma alguma, inexato, mas sim, uma definição
incompleta.
O fenômeno que vamos analisar agora é o sempre freqüente e ameaçador
conflito entre o intelecto e a espiritualidade. Os conceitos comuns que estas palavras
152
denotam devem, em verdade, ser ampliados até certo ponto, para que se
compreenda o conceito do ocultismo. Ora, o hábito de pensar europeu presta-se a
representar na mente uma imagem ignóbil da espiritualidade, antes como um
atributo do caráter que da própria mente — uma pálida benevolência nascida do
apego ao cerimonial religioso e das aspirações devotas, quaisquer que sejam as
noções excêntricas de Céu e de Divindade em que a pessoa de "mentalidade
espiritual" tenha sido educada. A espiritualidade, no sentido oculto, tem pouco ou
nada a ver com o sentimento devoto. Relaciona-se com a capacidade da mente em
assimilar o conhecimento na fonte original do próprio conhecimento — do
conhecimento absoluto — em vez de fazê-lo por meio dos tortuosos e trabalhosos
processos do raciocínio.
O desenvolvimento do intelecto puro, a faculdade do raciocínio, foi por muito
tempo uma atividade das nações européias, e nesse setor elas obtiveram do
progresso humano tão magníficos triunfos, que nato haverá nada, na filosofia oculta,
que seja menos aceitável para os mesmos europeus, enquanto estas idéias não
forem bem apreendidas, do que o primeiro aspecto da teoria oculta sobre o intelecto
e a espiritualidade. Porém, isso não provém tanto da indevida tendência da ciência
oculta a desprezar o intelecto, como da indevida tendência da especulação ocidental
moderna em desvalorizar a espiritualidade. Falando de modo geral, a Filosofia
Ocidental não teve nenhuma ocasião de apreciar a espiritualidade. Não conhece o
alcance das faculdades internas do homem. Ela somente tateou às cegas na direção
da crença de que existem essas faculdades internas. O próprio Kant, o grande
expositor moderno desta idéia, quando muito sustenta que existe a faculdade da
intuição — se soubéssemos ao menos como operar com ela.
153
O processo de operar com ela é a ciência oculta em seu aspecto mais
elevado, é o cultivo da espiritualidade. O cultivo de um mero poder sobre as forças
da Natureza, a investigação de alguns de seus segredos mais sutis no que diz
respeito aos princípios internos, dominando os resultados físicos, é a ciência oculta
em seu aspecto inferior e, nesta região inferior de sua atividade, a mera ciência
física pode, ou mesmo deve, penetrar gradualmente. Mas a aquisição por meio do
simples intelecto — a ciência física in excelsis — de privilégios que são patrimônio
da espiritualidade, é um dos perigos dessa luta que decide o destino definitivo do
Ego humano. Pois há uma coisa que o processo intelectual não ajuda a humanidade
a compreender: a natureza e a excelência suprema da existência espiritual. Ao
contrário, o intelecto origina-se de causas físicas — a perfeição do cérebro físico —
e tende unicamente aos resultados físicos, à perfeição do bem-estar material. Se
bem que como concessão a "irmãos fracos" e à "religião", a qual olha com benévolo
desdém, o intelecto moderno não condena a espiritualidade, considerando com
certeza a vida humana física como o único assunto sério de que se ocupam os
homens circunspectos, ou mesmo os filantropos austeros. Mas, evidentemente, se a
existência espiritual, ou seja, a consciência vívida subjetiva, dura períodos maiores,
na proporção de 80 para 1, no mínimo, conforme vimos ao tratar do estado
devachânico, então a existência subjetiva do homem é mais importante do que a
existência física. O intelecto, assim, incorre em erro, quando dirige todos os seus
esforços à melhoria da existência física.
Essas considerações demonstram que a escolha entre o bem e o mal — feita
pelo Ego humano, no decurso da grande luta entre, o intelecto e a espiritualidade —
não é uma mera escolha entre idéias que tão claramente se diferenciam, como a
iniqüidade e a virtude. Não é uma questão tão primária como essa — que o homem
154
seja mau ou bom — que realmente deve ser a decisiva, no ponto de retomo crítico
final; se terá, por isso, de continuar vivendo e se desenvolvendo em planos
superiores de existência, ou deixar de viver totalmente. A verdade do assunto é (se
não for uma imprudência, em nosso estágio de progresso, descobrir a superfície de
um novo mistério) que a questão de ser ou não ser não se determina por um homem
completamente mau ou bom. Pode-se ver com toda clareza que deve haver uma
espiritualidade má, assim como uma espiritualidade boa. De modo que a grande
questão da continuidade da existência baseia-se, total e necessariamente, na
questão da espiritualidade comparada com o físico. O ponto não é tanto de "se um
homem deve viver, se é bastante bom para se lhe permitir continuar vivendo", como
de se pode o homem viver por mais tempo nos planos superiores da existência, para
os quais a humanidade deve finalmente evoluir. Está ele apto para viver pelo
desenvolvimento da parte perdurável de sua natureza? Se não está, chegou ao fim
de sua tarefa.
Não é preciso apressar-se em concluir que a filosofia oculta considera o vício
e a virtude sem importância, no tocante aos destinos espirituais humanos, porque
não se encontra na Natureza que estas características determinem o progresso final
da evolução. Não há sistema que seja tão impiedosamente inflexível em sua
moralidade, como o sistema que a filosofia oculta pesquisa e explica. Mas o que é o
vício e a virtude determinam por si mesmos é o sofrimento ou a felicidade, não o
problema final da continuidade da existência, mais além desse período imensamente
afastado, quando, no progresso da evolução, o homem tiver principiado ser algo
mais do que homem, e não possa prosseguir na senda do progresso com o auxílio
de atributos humanos relativamente inferiores. Além disso, é verdade que não se
pode imaginar que a virtude deixe, em qualquer grau determinado, de produzir, em
155
seu devido tempo, os elevados atributos requeridos, mas não seríamos
cientificamente exatos se a tomássemos como a causa do progresso nas etapas
finais da elevação, embora ela possa provocar o desenvolvimento daquilo que é a
causa do progresso.
Esta consideração — de que as últimas etapas do progresso são
determinadas pela espiritualidade, não levando em conta seu matiz moral — contém
o grande significado da doutrina oculta de que, "para ser imortal no bem, é preciso
identificar-se com Deus; para ser imortal no mal, com Satã. Estes são os dois pólos
do mundo das almas; entre estes dois pólos vegeta e morre, sem lembrança alguma,
a parte inútil da humanidade15". O enigma, como todas as fórmulas ocultas, tem uma
aplicação menor (adequada quer ao microcosmos quer ao macrocosmos), e em sua
significação menor refere-se ao Devachan ou ao Avitchi, e ao destino do não-ser das
personalidades descoloridas. Mas, em seu significado principal reporta-se à
classificação final da humanidade na metade da grande quinta Ronda, a aniquilação
dos Egos completamente destituídos de espiritualidade e a continuação dos outros,
por serem imortais no bem ou imortais no mal. Justamente o mesmo significado
aplica-se à passagem do Apocalipse (III 15,16): "Sê frio ou quente; porque, por seres
morno, e nem frio, nem quente, eu te vomitarei de minha boca."
Portanto, a espiritualidade não é a aspiração devota. É o gênero de intelecto
mais elevado, o que conhece as funções da Natureza por meio da assimilação direta
da mente a seus princípios superiores. A objeção que a inteligência física apresenta
a essa opinião é a de que a mente nada pode conhecer, a não ser por meio da
observação dos fenômenos e do raciocínio a respeito deles. Isto é o erro, ela pode
fazê-lo e a existência da ciência oculta é a mais elevada prova disso. E há por toda
15 ÉliphasLévi.
156
parte ao redor de nós sugestões que apontam na direção dessa prova, se tivermos a
paciência de analisar seus verdadeiros significados. Sendo infundado dizer, diante
dos fenômenos da clarividência — por imperfeitos e grosseiros que tenham sido os
que se impuseram à atenção do mundo —, que não existem outras vias de acesso à
consciência, a não ser a dos cinco sentidos. Com certeza, no mundo comum, a
faculdade clarividente é extremamente rara, mas indica a existência, no homem, de
uma faculdade potencial, cuja natureza, conforme se infere de suas mais
insignificantes manifestações, é sem dúvida capaz, em seu desenvolvimento mais
elevado, de conduzir à assimilação direta do conhecimento, independentemente da
observação.
Uma das maiores dificuldades que bloqueiam a presente tentativa de traduzir
a doutrina esotérica em linguagem corrente se deve, principalmente, ao fato de que
a percepção espiritual, à parte de todo processo ordinário de aquisição do
conhecimento, constitui uma grandiosa e importante possibilidade da natureza
humana. Tal é o médoto utilizado pelos Adeptos para instruir seus discípulos no
curso regular da educação oculta. Eles despertam o sentido adormecido do
discípulo, e por seu intermédio imbuem em sua mente o conhecimento de que
determinada doutrina é a verdade real. Todo o esquema da evolução, descrito nos
capítulos anteriores, infiltra-se na mente regular do cheia, pelo fato de que se lhe faz
ver o processo que acontece mediante a visão clarividente. Em sua instrução não se
usam as palavras, pois os Adeptos, para os quais os fatos e procedimentos da
Natureza são familiares como os dedos da mão para nós, acham muito difícil
explicar num ensaio, que não podem ilustrar de modo que produza imagens mentais
em nosso adormecido sexto sentido, a anatomia complexa do sistema planetário.
157
Com certeza, não é de se esperar que a humanidade em geral se encontre já
consciente da posse do sexto sentido, visto que o tempo de sua atividade ainda não
chegou. Já se declarou que cada Ronda por sua vez se destina a aperfeiçoar no
homem o princípio correspondente em sua ordem numérica e a sua preparação para
assimilar a que se segue. As Rondas iniciais referem-se ao homem que foi descrito
como se assemelhando a uma sombra destituída de coesão e de inteligência. O
primeiro princípio de todos, o corpo, foi desenvolvido, mas simplesmente se
adaptava à vitalidade e não se parecia a nada ao que agora nós podemos
representar. A quarta Ronda, na qual hoje estamos envolvidos, é a Ronda em que
se desenvolve totalmente o quarto princípio, a Vontade, o Desejo, com o qual se
empenha por integrar-se ao quinto princípio, a razão, a inteligência. Na quinta
Ronda, a razão inteiramente desenvolvida, a inteligência ou a alma, em que mora
então o Ego, deve integrar-se ao sexto princípio, a espiritualidade, ou renunciar
totalmente à existência.
Todos os leitores da literatura budista estão familiarizados com as freqüentes
referências ali feitas sobre a união da alma do Arhat com Deus. Em outras palavras,
isto exprime o desenvolvimento prematuro de seu sexto princípio, Ele força seu
caminho através de todos os obstáculos que impedem essa operação, no caso de
um homem da quarta Ronda, para atingir essa etapa da evolução que está
reservada para o resto da humanidade — ou melhor, daquela parte da humanidade
que chega a esse estado no curso ordinário da Natureza —, na última parte da
quinta Ronda. Para isso, há de se observar que ele tem de atravessar todo o grande
período do perigo, ou seja, a metade da quinta Ronda. Esta é a estupenda proeza
do Adepto, com relação a seus próprios interesses pessoais: alcançou a outra
margem afastada desse mar no qual grande parte da humanidade perecerá. Ali
158
espera pela chegada de seus companheiros com uma satisfação que as pessoas
nem sequer podem entender, a menos que possuam alguns vislumbres de
espiritualidade, de sexto sentido. Apresso-me a dizer, para evitar uma interpretação
errônea, que esta espera não é no corpo físico, pois tendo adquirido finalmente o
privilégio de abandoná-lo à vontade, permanece num estado espiritual que seria
insensato tentar descrevê-lo, pois até os estados devachânicos da humanidade
comum se acham fora do alcance da imaginação não educada na ciência espiritual.
Mas, voltando ao curso normal da humanidade e ao desenvolvimento das
entidades, na sexta Ronda, de homens e mulheres, que não se tornam Adeptos
numa etapa prematura de sua carreira, há de se observar que este é o curso
ordinário da Natureza, num sentido da expressão, como também é este o curso
ordinário da Natureza, para cada grão de trigo desenvolvido que cai no solo
apropriado e se converte numa espiga. Assim como são muitos os grãos que não
chegam a esse ponto, muitos são os Egos humanos que não passam pelas provas
da quinta Ronda. O esforço final da Natureza, ao desenvolver o homem, é
evolucioná-lo num ser imensamente superior, para ser um agente consciente e, por
fim, no que ordinariamente se entende por princípio criador da própria Natureza. O
primeiro empreendimento que se leva a cabo é desenvolver a livre vontade. O
segundo é perpetuar esta vontade induzindo-a a que se una com o objetivo final da
Natureza, isto é, com o bem. No curso dessa operação, é inevitável que grande
parte da vontade livre desenvolvida se volte para o mal, e, depois de produzir um
sofrimento temporário, seja dispersa e aniquilada. Mais do que isso: o objetivo final
apenas se concretiza por um gasto enorme de material. Assim como isto ocorre nos
estágios inferiores da evolução, onde de cada mil sementes que um vegetal produz,
unicamente uma chega a frutificar-se numa planta, do mesmo modo também os
159
germes divinos da Vontade são semeados no peito de cada homem, com a mesma
abundância que as sementes arrastadas pelo vento. Deverá ser impugnada a justiça
da Natureza pelo fato de que muitos desses germes perecem? Tal idéia só pode
brotar numa mente que não compreende o espaço existente na Natureza para o
desenvolvimento de cada germe que escolhe estender-se como preferir, seja numa
ordem grande ou pequena. Se a alguém parece horrível que uma "alma imortal"
deve perecer, sob quaisquer circunstâncias, essa impressão só advém do pernicioso
costume de considerar tudo o que não é vida microscópica como eternidade. Nas
esferas subjetivas há espaço, assim como tempo, no manvantara da cadeia
planetária, mesmo antes que nos aproximemos do período Dhyan Chohânico ou
Divino, para além do que o cérebro comum tem concebido até agora como
imortalidade. Cada ação boa e cada impulso elevado que tenha realizado ou sentido
qualquer ser humano deve reverberar, através de evos de existência espiritual,
sendo a entidade interessada capaz ou não de florescer no sublime e estupendo
desenvolvimento da sétima Ronda. A especulação exotérica acredita que apenas
das causas que se geram numa de nossas breves vidas na Terra resultam efeitos
eternos! Espera-se que nessa milésima parte de nossa vida objetiva na Terra,
durante a permanência nela da onda de vida evolucionária, perceba a Natureza
causa suficiente para decidir toda a nossa carreira futura. Na verdade, a Natureza
dará um retomo muito grande para um gasto comparativamente muito pequeno da
força de vontade humana na direção certa que, por mais estranha que possa
parecer essa expectativa recém-afirmada, por mais estranha que ela possa ser
quando aplicada às vidas comuns, uma breve existência algumas vezes pode bastar
para antecipar o crescimento de milhares de anos. O Adepto pode, em apenas uma
160
encarnação16, conseguir tanto adiantamento que o seu crescimento posterior é
certo, é meramente uma questão de tempo. Porém, nesse caso, a semente-germe,
que produz um Adepto em nossa vida, deve ter sido muito perfeita, e as condições
de seu desenvolvimento muito favoráveis, além do esforço do próprio homem vivido
constantemente e muito mais concentrado, mais intenso, mais ardoroso, do que é
possível realizar um profano não-iniciado. Já nos casos comuns, a vida que está
dividida entre o gozo material e a aspiração espiritual, por mais sincera e
harmoniosa que seja esta última, só pode produzir o correspondente duplo resultado
de uma recompensa espiritual no Devachan e um novo nascimento na Terra.
Observe-se que o modo como o Adepto se liberta da necessidade desse novo
nascimento é perfeitamente científico e simples, por mais que pareça um mistério
teológico quando se explica nos escritos exotéricos com relação a karma, Skandna,
Tríshnâ e Tanhâ, e assim sucessivamente. A próxima vida terrena é conseqüência
das afinidades geradas pelo quinto princípio, ou seja, a alma humana permanente
(assim como as experiências devachânicas são o desenvolvimento dos
pensamentos e aspirações de um caráter elevado) desenvolvida pela pessoa
durante a vida. Vale dizer: as afinidades que se engendram nos casos comuns são
parte materiais e parte espirituais. Assim, fazem a alma apresentar, em sua entrada
no mundo dos efeitos, uma dupla série de atrações que lhe são inerentes, sendo
uma série produtora das conseqüências subjetivas de sua vida devachânica e a
outra que se desperta no final dessa vida, fazendo essa alma voltar à reencarnação.
Mas se a pessoa durante sua vida objetiva não desenvolve absolutamente nenhuma
afinidade com a existência material, na ocasião de sua morte a alma se encontra
com todas suas atrações tendendo na direção da espiritualidade, sem nada que a
16 Na prática, minha impressão é a de que isso se consegue raramente numa vida na Terra mas, antes, em duas ou três encarnações artificiais
161
impulsione a voltar à vida objetiva, e então ele não retorna. Eleva-se a um estado de
espiritualidade correspondente à intensidade das atrações ou afinidades nessa
direção e se corta o outro fio de ligação.
Ora, a presente explicação não abrange todo o assunto, porque o próprio
Adepto, por mais elevado que seja, volta à encarnação eventualmente, após o resto
da humanidade ter cruzado o grande período divisório na metade da quinta Ronda.
Até que se atinja a exaltação da Espiritualidade Planetária, a mais elevada alma
humana precisa manter ainda uma certa afinidade com a Terra, embora não com a
vida terrena de prazeres físicos e de paixões que atravessamos no momento.
Todavia, o ponto importante que devemos compreender sobre as conseqüências
espirituais da vida mundana é de tal ordem, em tão grande maioria de casos, que os
poucos que fogem à regra não precisam ser mencionados; o senso de justiça, no
que se refere ao destino dos homens bons, é amplamente satisfeito, passo a passo,
pelo curso da Natureza, à medida que o tempo passa. O espírito de vida está
sempre pronto a receber, a reparar as forças e a restaurar a alma depois de lutas,
feitos e sofrimentos da encarnação. E mais do que isto, com ressalvas sobre a
questão da eternidade, a Natureza proporciona, nos períodos intercíclicos no final de
cada Ronda, a toda humanidade, exceto esses desgraçados fracassos que
persistentemente permaneceram agarrados à senda do caminho do mal, grandes
intervalos de felicidade espiritual, mais longos e exaltados em seu caráter do que os
períodos devachânicos de cada vida em separado. Com efeito, a Natureza é
inconcebívelmente liberal e paciente com todos e cada um dos candidatos ao exame
final, durante sua longa preparação para o mesmo. Nem tampouco é absolutamente
fatal o fracasso neste exame. Os fracassados ainda podem tentar nova prova, se
162
não forem casos de completa ignomínia, mas têm de aguardar a próxima
oportunidade.
Uma explicação cabal das circunstâncias em que essa espera ocorre nïo se
enquadraria no esquema deste tratado. Mas não é de se supor que os candidatos ao
progresso, convictos da incapacidade para continuar no período crítico da quinta
Ronda, caiam necessariamente na esfera da aniquilação. Para que esta atração se
faça valer, o Ego deve ter desenvolvido uma atração positiva pela matéria e uma
repulsa positiva contra a espiritualidade que seja esmagadora em sua força. Na
ausência dessas afinidades, e na ausência também de outras que fossem
suficientes para fazer passar o Ego por cima do grande golfo, o destino que sai ao
encontro dos meros fracassos da Natureza é, no tocante ao presente manvantara
planetário, o morrer, sem lembranças, segundo o expressa Éliphas Lévi. Viveram
sua vida e tiveram sua parte de Céu, mas não são capazes de subir às enormes
altitudes do progresso espiritual que têm pela frente. Porém, estão habilitadas para
sucessivas encarnações e para a vida nos planos de existência a que estão
acostumados. Assim, esperarão, no estado negativo espiritual a que chegaram, que
esses planos de atividade voltem a existir no próximo manvantara planetário. A
duração de tal espera está, por certo, fora do alcance de qualquer imaginação,
sendo a natureza exata de semelhante estado de existência não menos
incompreensível. Mas se deve levar em conta o sentido geral da senda conducente
a essa estranha região de semi-animação, a fim de que a simetria e a totalidade de
todo o esquema evolucionário possa ser percebido.
Uma vez entendida essa última contingência, está diante do leitor todo o
esquema bastante completo em suas linhas principais. Já vimos a Vida Una, o
Espírito, animando primeiramente a matéria em suas formas inferiores e evocando,
163
lentamente, o desenvolvimento de formas mais elevadas. Individualizado finalmente
no homem, ele abre caminho através de encarnações inferiores e irresponsáveis até
que, penetrando nos princípios superiores e evoluindo uma verdadeira alma
humana, que será, no tempo posterior, senhora de seu próprio destino, ainda que
resguardada, no início, nas condições naturais, para que se preserve de um
naufrágio prematuro, seja estimulada e animada em seu curso. Mas o destino final
que se apresenta a esta alma é não só o desenvolvimento num ser capaz de cuidar
de si, como num ser capaz de cuidar dos outros, de presidir e de dirigir, dentro do
que se poderia denominar limites constitutivos, as operações da Natureza mesma. É
claro que antes que a alma tenha adquirido o direito a esse grau, tem de ter sido
examinada, concedendo a ela domínio completo sobre seus próprios assuntos. Esse
domínio completo implica necessariamente o poder de naufragar. As salvaguardas
que defendem o Ego em sua juventude — sua incapacidade para passar a estados
superiores ou inferiores, aos intermúndios do Devachan e Avitchi — abandonam-no
em sua virilidade. Então, toma-se potente sobre seus próprios destinos, não só
quanto ao desenvolvimento do gozo ou sofrimento transitório, mas quanto às
enormes oportunidades que a existência exibe diante dele em ambas as direções.
Podem-se aproveitar as oportunidades superiores de duas maneiras. Pode
abandonar a luta de dois modos. Pode atingir a sublime espiritualidade para o bem
ou a sublime espiritualidade para o mal. Pode aliar-se ao físico, não para o mal, mas
para a total aniquilação. Ou, por outro lado, se não para o bem, mas para o
resultado negativo que é ter de reiniciar o processo educativo da encarnação.
COMENTÁRIOS
164
Neste capítulo não se descreve completamente o estado a que passam as
mônadas que não atravessam o período médio da quinta Ronda, tão logo a onda da
evolução avança, deixando-as, por assim dizer, encalhadas nas costas do tempo.
Tão-só se indica em poucas palavras que os fracassos de cada manvantara não são
de modo algum aniquilados quando chegam "ao final de sua carreira", mas são
destinados, depois de grandes períodos de espera, a retornar à corrente da
evolução. Muitas são as deduções que se extraem desse estado de coisas. O
período de espera que estes fracassados têm de suportar é, antes de tudo, de uma
duração tão estupenda que frustra a imaginação. A última metade da quinta Ronda,
toda a sexta e a sétima têm de ser levadas a cabo com os graduados bem-
sucedidos na espiritualidade, e as últimas Rondas são de duração imensamente
maior do que as do período médio. Em seguida há o vasto intervalo de repouso
nirvânico, que fecha o manvantara, a incomensurável Noite de Brahmâ, o Pralaya de
toda a cadeia planetária. Somente quando principia o manvantara seguinte é que os
fracassados acordam de seu tremendo transe — tremendo para a imaginação de
seres que estão em plena atividade da vida, por mais que tal transe, destituído de
consciência, não seja mais enfadonho que uma noite sem sonhos, na memória de
um homem profundamente adormecido. Á sina dos fracassados, depois de tudo,
pode ser considerada digna de pena em primeiro lugar, antes pelo que perdem do
que pelo que incorrem. Em segundo lugar, entretanto, é digna de pena em vista das
conseqüências, pois, ao acordar, precisam voltar a passar pelo sofrimento que
envolve a vida física e as suas inumeráveis encarnações, enquanto os seres
aperfeiçoados, que os deixaram para trás, na evolução daquela quinta Ronda,
aquela em que eles fracassaram, atingiram a divina perfeição do estado Dhyan
165
Chohânico, durante o seu transe, e serão os gênios que hão de presidir o
manvantara seguinte, em vez de serem seus indefesos sujeitos.
Contudo, à parte o que se possa encarar como sendo o interesse pessoal
dessas entidades, a existência dos fracassos na Natureza, no início de cada
manvantara, é um fato que contribui, de modo muito significativo, à compreensão do
sistema evolucionário. Por certo, quando a cadeia planetária se desenvolve num
princípio do caos — se é que se pode empregar a expressão "num princípio" em seu
sentido próprio, tendo presente a observação de que "no princípio" é uma simples
façon de parler aplicado a qualquer período da eternidade — não existem os
fracassos. Então a descida do espírito à matéria, através dos reinos elemental,
mineral e outros, prossegue da forma que já foi descrita nos primeiros capítulos
deste livro. Porém, a partir do segundo manvantara de uma cadeia planetária,
durante a atividade do sistema solar, que estabelece muitos desses manvantaras, o
curso dos acontecimentos é um pouco diferente — mais fácil, se posso tornar a usar
uma expressão que é muito mais adequada a uma conversa, do que ao uso do
sentido rigorosamente científico. Além disso anda mais rápido o processo, pois
existem já entidades humanas dispostas a entrar em encarnação, tão logo o mundo,
que também já existe, esteja em estado perfeito para elas. A verdade, pois, parece
ser que, após o primeiro manvantara de uma série — enormemente maior em
duração que seus sucessores — nenhuma entidade recém-saída dos reinos
inferiores pode passar assim do limiar da humanidade. Os últimos fracassados
entram em primeiro lugar na encarnação e depois eventualmente as entidades
animais sobreviventes já diferenciadas: Contudo, comparada com os trechos da
doutrina esotérica que afeta a evolução corrente da nossa própria raça, estas
considerações, relativas a tempos muito primitivos da evolução do mundo, têm um
166
interesse meramente intelectual e ainda não podem ser muito ampliadas com
qualquer contribuição de minha parte.
9. BUDA
O Buda histórico, conhecido dos guardiães da doutrina esotérica, é uma
personagem cujo nascimento não se reveste das estranhas maravilhas com que a
fantasia popular a envolveu. Nem tampouco seu progresso para o Adeptado deixou
as marcas dos eventos a que se reportam as lutas sobrenaturais descritas pela
lenda simbólica. Por outro lado, a encarnação a que se atribui o nome de
nascimento de Buda não é certamente encarada pela ciência oculta como um
acontecimento igual a qualquer outro nascimento, nem tampouco se considera o
desenvolvimento espiritual por que passou Buda, durante sua vida terrena, como
167
mero processo de evolução intelectual, semelhante à história mental de qualquer
outro filósofo. O erro que cometem os escritores europeus, ao se ocuparem de um
problema dessa natureza, é tratar a lenda esotérica como uma tradição de milagres,
a respeito da qual não é necessário acrescentar nada, ou como um puro mito, que
agrega uma decoração fantástica a uma vida notável. A vida de Buda, admite-se,
por mais notável que tenha sido, deve ter sido vivida segundo as teorias sobre a
Natureza, atualmente aceitas desde o século XIX. O exposto nas páginas anteriores
prepara o terreno para a exposição do que ensina a doutrina esotérica sobre Buda.
Segundo se comprova de modo bastante exato pela pesquisa moderna, Buda
nasceu 643 anos antes da era cristã, em Kapila-Vastu, perto de Benares.
As concepções exotéricas, desconhecendo as leis que regem as operações
da Natureza em suas esferas superiores, somente podem interpretar a dignidade
anormal de algum nascimento particular, mediante a suposição de que o corpo físico
da pessoa envolvida foi gerado de um modo milagroso. Donde a noção popular
sobre Buda, de que sua encarnação neste mundo foi devida a uma concepção
imaculada. A ciência oculta não conhece processo algum à produção de uma
criança humana física, senão o determinado pelas leis físicas; mas, sim, conhece-se
muito a respeito dos limites dentro dos quais a Vida Una, ou "mônada espiritual"
progressiva, ou seja, o fio contínuo de uma série de encarnações pode eleger
corpos de crianças definidos como moradas humanas. No caso da humanidade
comum, esta escolha é feita por ação do karma, de forma inconsciente, no que diz
respeito ao Ego espiritual emergente ao Devachan. Mas, nos casos anormais em
que a Vida Una penetrou o sexto sentido — ou seja, quando um homem se
converteu em Adepto, tendo o poder de guiar seu próprio Ego espiritual com plena
consciência do que faz, após ter abandonado o corpo no qual obteve o Adeptado,
168
temporária ou permanentemente — está em seu poder a escolha de sua própria
encarnação seguinte. Mesmo durante a vida sobrepõe-se à atração devachânica.
Converte-se em um dos poderes conscientes que dirigem o sistema planetário a que
pertence, e por grande que seja este mistério da reencarnação escolhida, sua
aplicação não se restringe de modo algum a acontecimentos extraordinários, tais
como o nascimento de Buda. E fenômeno reproduzido amiúde pêlos Adeptos
superiores até hoje. Assim, muito do que conta a mitologia popular oriental é
puramente fictício ou inteiramente simbólico. Mas as reencarnações dos Lamas do
Dalai e Teshu, no Tibete, das quais se riem os viajantes por falta de conhecimento
que lhes permitam distinguir os fatos reais dos imaginários, são um fato sério e
científico. Nesses casos, o Adepto declara antecipadamente quando e onde há de
nascer, e qual será a criança na qual tratará de reencarnar, e muito raramente se
engana. Dizemos muito raramente, porque há alguns acidentes de natureza física
que não se podem absolutamente prevenir, nem é absolutamente certo que, com
toda a previsão que mesmo um Adepto possa utilizar no assunto, a criança por ele
escolhida — em seu estado reencarnado — atinja afortunadamente a maturidade
física. Enquanto isso, o Adepto, no corpo, é relativamente impotente. Fora do corpo
é exatamente o que foi sempre, desde que se converteu em Adepto. Mas, no que diz
respeito ao novo corpo que ele escolheu para moradia, tem de deixá-lo desenvolver-
se conforme o curso ordinário da Natureza, e educá-lo pêlos procedimentos comuns,
iniciando-o por meio do método oculto regular no Adeptado, antes que possa dispor
de um corpo totalmente pronto para o trabalho oculto no plano físico. Todos esses
processos são imensamente simplificados, é verdade, pela força espiritual peculiar
que atua dentro do corpo. Em princípio, porém, a alma do Adepto se sente
constringida e embaraçada no corpo da criança e, como parece natural, muito
169
incomoda e pouco à vontade. A condição seria muito mal-interpretada se o leitor
imaginasse que essas reencarnações são um privilégio que os Adeptos aproveitam
com prazer.
O nascimento de Buda foi um mistério desse gênero e, à luz do que se disse,
será fácil verificar a história popular de sua origem miraculosa e traçar as referências
simbólicas aos fatos em questão, em algumas fábulas mais grotescas ainda.
Nenhuma referência, por exemplo, parece menos promissora como uma alusão a
qualquer coisa que se pareça com um fato científico do que a afirmação de que
Buda entrou nas entranhas de sua mãe como um jovem elefante branco. Mas o
elefante branco é simplesmente o símbolo do Adeptado — algo que se considera
como um belo e raro exemplar de sua espécie. O mesmo acontece com outras
lendas pré-natais que indicam o fato de que o futuro corpo do menino fora escolhido
como morada de um grande espírito já dotado de sabedoria e bondade superlativas.
Indra e Brahmã vieram prestar homenagens ao menino na ocasião do nascimento —
quer dizer: os poderes da Natureza estavam já submetidos ao Espírito que havia
dentro dele. Os trinta e dois signos de Buda, que a lenda descreve por meio de um
simbolismo físico ridículo, são meramente os diversos poderes do Adeptado.
A escolha do corpo conhecido como Siddhartha e depois como Gautama, filho
de Suddhodana, de Kapila-Vastu, como morada humana do iluminado espírito
humano, que se submetera à encarnação para ensinar a humanidade, não foi um
desses raros fracassos antes mencionados. Pelo contrário, foi uma escolha
notavelmente bem-sucedida sob todos os aspectos, e em nada interveio na
consumação do Adeptado pelo Buda em seu novo corpo. A narração popular de
suas lutas ascéticas e tentações, e de sua chegada final ao estado búdico sob a
Árvore-Bo, nada mais é que a versão exotérica de sua iniciação.
170
Dessa época em diante, sua obra teve uma natureza dual, tinha de reformar e
revisar a moral popular e a ciência dos Adeptos — pois o próprio Adeptado está
sujeito a mudanças cíclicas, e necessita de impulsos periódicos. A explicação deste
aspecto do assunto, expresso claramente, não só será importante por si mesma,
como de interesse para todos os estudantes do Budismo Exotérico, visto que
esclarece algumas das complicações que causam tanta confusão da "Doutrina
Setentrional" mais abstrusa.
Um Buda visita a Terra em cada uma das sete raças do grande período
planetário. O Buda de que nos ocupamos foi o quarto da série, e esta é a razão pela
qual consta como o quarto na lista, citada por Mr. Rhys Davids, de Bumouf - a título
de ilustração do modo como a Doutrina Setentrional tem sido, segundo Mr. Davids
supõe, inflada de sutilezas metafísicas e de absurdos acumulados ao redor da
simples moralidade, que se resume no Budismo que se apresenta ao populacho. O
quinto, ou Maitreya Buddha, virá depois do desaparecimento final da quinta raça,
quando a sexta raça já estiver estabelecida na Terra durante algumas centenas de
milhares de anos. O sexto virá no início da sétima raça, e o sétimo, para o final da
mesma raça.
Esta ordem parecerá, à primeira vista, em desacordo com o grande desígnio
geral da evolução humana. Aqui estamos, na metade da quinta raça, entretanto o
quarto Buda é o que foi identificado com esta raça, enquanto o quinto não virá até
que a quinta raça esteja praticamente extinta. Â explanação encontra-se, contudo,
nas grandes linhas da Cosmogonia esotérica. No início de cada grande período
planetário, quando o obscurecimento termina e a onda humana, em seu progresso
ao redor da cadeia de mundos, chega às margens de um globo onde nenhuma
humanidade existiu durante milhares de anos, toma-se necessário um Instrutor
171
desde o início para a nova colheita de humanidade que vai brotar. Recorde-se que a
evolução preliminar dos reinos mineral, vegetal e animal ocorreu na preparação do
novo período da Ronda. Com a primeira infusão da corrente de vida nas espécies
que formam os "elos perdidos", começa a evolucionar a primeira raça da nova série.
Então aparece o Ser, que pode ser considerado o Buda da primeira raça. O Espírito
Planetário, ou Dhyan Chohan, que é — ou, para evitar uma idéia errônea pelo uso
do verbo na pessoa do singular, desafiemos a gramática e digamos que são — Buda
em todos seus (dele ou deles) desenvolvimentos, encarna entre os jovens e
inocentes precursores da nova humanidade, preparados para ser ensinados, e
imprime os primeiros princípios gerais do bem e do mal, e as primeiras verdades da
doutrina esotérica a um número suficiente de mentes receptivas, para assegurar a
reverberação contínua das idéias desse modo introduzidas através de gerações
sucessivas de homens nos milhões de anos vindouros, antes que a primeira raça
tenha concluído seu curso. Desta chegada, no princípio do período de Ronda, de um
Ser Divino sob forma humana, é de onde nasce o conceito inextirpável do Deus
antropomórfico de todas as religiões exotéricas.
O primeiro Buda da série em que Gautama Buda aparece como quarto é,
portanto, a segunda encarnação de Avalokitesvara — nome místico das hostes de
Dhyan Chohans ou Espíritos Planetários pertencentes à nossa cadeia planetária —,
e mesmo quando Gautama é, pois, a quarta encarnação de iluminação, segundo o
cálculo esotérico, constitui na verdade o quinto da verdadeira série. Portanto,
pertence propriamente à nossa quinta raça.
Avalokitesvara, como afirmamos antes, é o nome místico das hostes de
Dhyan Chohans. O significado próprio da palavra é sabedoria manifestada, como
Âdi-Buddha e Amitabha, ambas variantes com o significado de sabedoria abstraía.
172
A doutrina, conforme Mr. Davids, de que "cada Buda mortal terreno tem seu
puro e glorioso correlativo no mundo místico, livre das degradantes condições desta
vida material — ou antes, que o Buda, nas condições materiais, é apenas uma
aparência, o reflexo, a emanação ou tipo de um Dhyani Buddha" — é perfeitamente
exato. O número de Dhyani Buddhas ou Dhyan Chohans, ou espíritos planetários,
espíritos humanos aperfeiçoados de outros mundos, é infinito, mas somente cinco
estão praticamente identificados no ensinamento exotérico, e sete no ensinamento
esotérico. Esta identificação, vale lembrar, é um modo de falar que não deve ser
interpretado demasiado literalmente, pois existe, na vida espiritual sublime em
questão, uma unidade que não deixa lugar ao isolamento da individualidade. Tudo
isto há de se ver que se harmoniza perfeitamente com as revelações relativas à
Natureza, incluídas nos capítulos anteriores, e não deve ser, de forma alguma,
atribuído às imaginações místicas. Os Dhyani Buddhas ou Dhyan Chohans são a
humanidade aperfeiçoada de épocas manvantáricas precedentes, e sua inteligência
coletiva se descreve com o nome de Adi-Buddha. Mr. Rhys Davids engana-se ao
tratá-lo como uma invenção recente dos budistas do Norte. Adi-Buddha significa
sabedoria primordial, sendo mencionado nos livros sânscritos mais antigos. Por
exemplo, na dissertação filosófica sobre o "Mandukya Upanishad", por Gowdapatha,
autor sânscrito contemporâneo do próprio Buda, a expressão é empregada
livremente e exposta sua concordância rigorosa com a presente declaração. Um
amigo meu na índia, pândita brâmane de primeira Unha, como erudito sânscrito,
mostrou-me cópia desse livro, que não foi, segundo ele, traduzido para o inglês, e
me indicou uma frase que se relaciona com a presente questão e que me foi
traduzida do seguinte modo: "Mesmo Prakriti, na verdade, é Adi-Buddha e todos os
Dharmas têm existido por toda a eternidade." Gowdapatha é escritor filósofo acatado
173
por todas as seitas hindus e budistas, e bem-conhecido. Era o guru, ou instrutor
espiritual, do primeiro Sankaracharya, de quem logo terei que tratar mais
extensamente.
O Adeptado, quando encarnou Buda, não era a condensada e compacta
hierarquia em que desde então se converteu sob sua influência. Nunca houve época
alguma no mundo sem Adeptos, mas, às vezes, eles estiveram disseminados por
todo o mundo, ou isolados em reclusões separadas, gravitando ora por um país, ora
por outro. Finalmente, vale recordar, seu conhecimento e poder nem sempre foram
inspirados na sublime e severa moralidade que Buda infundiu em sua última e mais
elevada organização. A reforma do mundo oculto por seu intermédio foi,
efetivamente, o resultado de seu grande sacrifício, da abnegação que o induziu a
recusar o estado afortunado do Nirvana, o que lhe cabia completo direito após sua
vida terrena como Buda, e a empreender a pesada tarefa de renovadas
encarnações, a fim de executar a missão que se havia imposto, conferindo à
humanidade o aumento de benefício correspondente, Buda reencarnou-se, depois
de sua existência como Gautama Buda, na pessoa de um grande Instrutor do qual
se fala pouco nas obras exotéricas do Budismo, mas cuja vida, sem ser conhecida,
tomaria impraticável obter um conceito exato da situação no mundo oriental da
ciência esotérica, a saber: Sankaracharya. A última parte deste nome — acharya —
significa simplesmente mestre. A designação completa, como título, foi perpetuada
até hoje sob curiosas circunstâncias, mas os portadores modernos dela não estão
na Unha direta das encarnações espirituais budistas.
Sankaracharya apareceu na índia — não tendo fixado atenção em seu
nascimento, parece ter ocorrido na costa do Malabar — uns sessenta anos após a
morte de Gautama Buda. O ensinamento esotérico determina que Sankaracharya foi
174
simplesmente Buda em todos aspectos, num novo corpo. Esta opinião não será
acolhida pelas autoridades hindus não-inicia-das, que atribuem uma data posterior
ao aparecimento de Sankaracharya, considerando-o como um santo Instrutor
independente, e mesmo oposto ao Budismo. Entretanto, não deixa de ser por isso o
que acabamos de manifestar, na opinião real dos iniciados na ciência esotérica, quer
se denominem budistas ou hindus. Recebi esta informação que agora exponho, de
um brâmane advaita da Ínida do Sul — não diretamente de meu instrutor tibetano —
e todos os brâmanes iniciados, conforme me afirmou, dirão o mesmo. Algumas das
últimas encarnações de Buda são descritas de outro modo, como coberturas do
espírito de Buda, mas no que se refere à pessoa de Sankaracharya, foi
reencarnação sua na Terra. O objetivo que se propunha era preencher algumas
lacunas e reparar certos erros de seus ensinamentos anteriores; pois no Budismo
Esotérico não se discute que até um Buda pode ser falível em certo momento de sua
carreira.
A situação era a seguinte: Até o tempo de Buda, os brâmanes da índia
haviam reservado zelosamente o conhecimento oculto como propriedade de sua
casta. Às vezes ocorria alguma exceção em favor dos Tshatryas, mas a regra era
exclusiva no mais alto grau. Esta regra, destruída por Buda, admitia igualmente
todas as castas na senda do Adeptado. A mudança pode ter sido perfeitamente
correta em princípio, mas abriu caminho a grande perturbação e, segundo
acreditavam os brâmanes, à degradação do próprio conhecimento oculto — isto é,
sua transferência para mãos indignas, não indignas devido à inferioridade de casta,
mas pelo fato de que a inferioridade moral que supunham introduzia-se na
fraternidade justamente com os irmãos de baixa linhagem. Não afirmavam os
brâmanes, absolutamente, que, porque um homem fosse brâmane, devia ser
175
necessariamente virtuoso e digno de confiança. A questão era: é preciso deixar fora
dos segredos e poderes de iniciação todos aqueles que não são virtuosos e dignos
de confiança. Com este fito, é necessário não só estabelecer todas as provações e
testes imagináveis, como também não admitir candidatos exceto da classe que, no
geral, por causa de suas vantagens hereditárias, é mais provável seja a melhor
sementeira de candidatos apropriados.
A experiência, crêem-no agora todos, que despertam os temores dos
brâmanes e a encarnação seguinte de Buda, foi uma admissão prática disso.
Entretanto, Buda, na pessoa de Sankaracharya, cuidou de atenuar, de antemão, a
luta sectária que viu iminente. A oposição ativa dos brâmanes contra o Budismo
começou no tempo de Asoka. Grandes esforços envidados por Asoka para espalhar
o Budismo provocaram temores por parte dos brâmanes, por sua influência social e
política. Deve-se ter presente que os iniciados não estio completamente livres, em
todos os casos, dos preconceitos de suas próprias individualidades. Possuem alguns
atributos semi-divinos, de tal sorte que, quando os profanos começam a
compreender algo deles, costumam despojá-los em sua imaginação de todas as
fragilidades humanas. A iniciação e o conhecimento oculto, tomados em comum, são
certamente um vínculo de união entre os Adeptos de todas as nacionalidades,
vínculo muito mais forte que qualquer outro. Porém, mais de uma vez verificou-se
que não se podia apagar todas as outras diferenças. Assim, os iniciados brâmanes e
os budistas, da época a que nos referimos, não sustentavam de forma alguma a
mesma opinião em todas as questões, e os brâmanes desaprovavam decididamente
a reforma budista em seus aspectos exotéricos. Chandragupta, o avô de Asoka, foi
um forasteiro e a família, sudras. Isto era suficiente para tomar antipática sua política
budista aos representantes da fé ortodoxa brâmane. A luta tomou uma forma
176
exacerbada, mesmo quando a história nos fornece pouco ou nenhum pormenor. O
partido do Budismo primitivo foi completamente vencido e o costume brâmane,
totalmente restabelecido, no tempo de Vikramaditya, por volta de 80 a.C. Contudo,
Sankaracharya havia viajado por toda a índia, antecipando-se à grande luta, e
estabelecido vários mathams, ou escolas de filosofia, em diversos centros
importantes. Empenhou-se poucos anos nesta tarefa, mas a influência de seus
ensinamentos foi tão grande que sua importância disfarça a mudança introduzida.
Colocou o Hinduísmo Exotérico em harmonia com a "religião da sabedoria"
esotérica. Deixou o povo entretendo-se com suas antigas mitologias, mas com o
apoio de guias filosóficos que eram budistas esotéricos sob todos aspectos, se bem
que reconciliados com tudo que era imperecível no Brahmanismo. A grande falta do
Hinduísmo Exotérico anterior dependia de afeição às vãs cerimônias e de sua
adesão aos conceitos idólatras das divindades do panteão hindu. Sankaracharya
confirmou enfaticamente com seus comentários aos Upanishads e com seus escritos
originais, a necessidade de perseguir o gnyanam a fim de se obter o moksha — vale
dizer: a importância do conhecimento secreto do progresso espiritual e a sua
consumação. Foi o fundador do sistema Vedantino (sendo o verdadeiro significado
do Vedanta o último fim ou a coroa do conhecimento), ainda que as sanções deste
sistema as tenha tirado dos escritos de Vyasa, autor do "Mahabharata", dos
"Puranas" e do "Brahma-sutras". O leitor deve compreender que faço estas
declarações não com base em investigações próprias — pois não sou um sábio
bastante orientalista para tentá-lo —, senão com a autoridade de um brâmane
iniciado que é, além de ocultista, um sábio orientalista de primeira ordem.
A escola Vedântica é hoje quase co-extensiva do Hinduísmo, levando em
consideração, naturalmente, a existência de algumas seitas especiais como os
177
sikhs, os vallabacharyas, ou maharajah, seita de muito má fama, que pode dividir-se
em três grandes divisões: os adwaitees, os adwaitees vishishta e os dawaitees. O
esboço da doutrina adwaitee é que brahmun ou purush, o espírito universal, agem
somente por meio de prakríti, a matéria, em que tudo tem lugar, desta maneira, por
meio da energia inerente da matéria. Brahmun ou Parabrahm é, pois, um princípio
passivo, incompreensível e inconsciente, mas, em essência, vida una ou energia do
universo. Deste modo, a doutrina é idêntica ao materialismo transcendental da
filosofia do Adepto budista esotérico. O nome adwaitee significa não-dual e refere-
se, em parte, à não-dualidade, ou seja, a unidade do espírito universal ou vida una
budista, como distinta da noção de seu funcionamento por meio de encarnações
antropomórficas, e, em parte, à unidade do espírito universal e do humano. Como
conseqüência natural desta doutrina, os adwaitees deduzem a doutrina budista do
kárma, relativamente ao destino futuro do homem, como dependendo por completo
das causas que ele mesmo engendra.
Os adwaitees vishishta alteram essa doutrina com a interpolação de Vishnu
como uma deidade consciente, a emanação primordial de Parabrahm, Vishnu sendo
considerado como um deus pessoal, capaz de intervir no curso dos destinos
humanos. Não encaram o yog, ou a educação espiritual, como a senda própria à
realização espiritual, crendo que isto é possível principalmente por meio de Bhakti ou
devoção. Expressando-o na fraseologia da teologia européia, poder-se-ia dizer que
os adwaitees apenas acreditam na salvação por meio das obras e os adwaitees
vishishta, na salvação pela graça. Os adwaitees distinguem-se pouco dos adwaitees
vishishta, afirmando, simplesmente, com a designação que assumem, com maior
ênfase, a dualidade do espírito humano e do princípio mais elevado do universo e
incluindo muitas observações de cerimônias como parte essencial de Bhakti.
178
É preciso considerar que todas essas diferenças de opinião só têm relação
com as variações exotéricas da ideia fundamental, introduzidas por diferentes
instrutores com impressões variadas sobre a capacidade do povo para assimilar as
idéias transcendentais. Todos os dirigentes do pensamento do Vedanta adoram
Sankaracharya e os mathams que ele fundou com a maior reverência possível, e a
sua crença interior aproxima-se, em todos os sentidos, da doutrina esotérica una.
Com efeito, os iniciados de todas as escolas da índia entrelaçam-se uns com os
outros. Exceto quanto à nomenclatura, todo o sistema da Cosmogonia, segundo
defendem os budistas arhats e conforme está exposto neste livro, é também
defendido pêlos brâmanes iniciados, que o fazem desde antes do nascimento de
Buda. Donde o conseguiram? - perguntará talvez o leitor. Do Espírito Planetário ou
Dhyan Chohan, que visitou primeiramente este planeta, na aurora da raça humana,
na Ronda presente — há mais milhões de anos do que os que se possa mencionar
por suposição, pois que o número exato verdadeiro se guarda secretamente.
Sankaracharya fundou quatro mathams principais: uma, em Sringari, na índia
do Sul, que sempre foi a mais importante; uma, em Jugger-nath, em Orissa; uma em
Dwaraka, em Kathiawar, e uma, em Gungotri, nos declives do Himalaia, ao Norte. O
chefe do templo de Sringari teve sempre a designação de Sankaracharya, como
adição a seu nome individual. Surgiram desses quatro outros centros, e hoje existem
mathams por toda a índia, exercendo a maior influência possível no Hinduísmo.
Afirmei que Buda, em sua terceira encarnação, reconheceu o fato de que, na
segurança excessiva de sua amorosa confiança na perfectibilidade da humanidade,
abriu demasiado as portas do santuário oculto. Sua terceira aparição foi na pessoa
de Tsong-kapa, o grande Adepto reformador tibetano do século XIV. Nesta
179
personalidade tratou exclusivamente dos assuntos da fraternidade de Adeptos, que
naquele tempo se reunia notada-mente no Tibete.
Desde tempos imemoriais houve no Tibete certa religião secreta, hoje
completamente desconhecida e não abordável por quem não seja iniciado,
inacessível para o povo comum do país, assim como para outras gentes, e na qual
se congregaram sempre os Adeptos. Mas, em geral, o país não era, no tempo de
Buda, o que se tomou depois, a morada escolhida da grande fraternidade. Muito
mais do que são na atualidade, os Mahâtmâs, nos primeiros tempos, estavam
espalhados pelo mundo. O progresso da civilização, gerador do magnetismo com
que penosamente deparam, havia, entretanto, na época de que tratamos — o século
XIV — cedido lugar a um movimento generalizado rumo ao Tibete, por parte dos
previamente disseminados ocultistas. O conhecimento e poder ocultos estavam
então disseminados muito más que o que era prudente à segurança da humanidade.
Tsong-kapa assumiu a tarefa de colocá-lo sob o domínio de um sistema rígido de
regras e leis.
Sem restabelecer o sistema na base anterior, pouco razoável, do
exclusivismo de castas, elaborou um código de regras como guia dos Adeptos, cujo
resultado foi depurar a organização oculta de tudo o que não visasse ao
conhecimento oculto, com o espírito da mais sublime devoção aos princípios mais
elevados.
Um artigo da Theosophist de março de 1882, sobre "Reencarnações no
Tibete", de cuja veracidade tenho absoluta certeza, traz notícia de grande
importância acerca da questão que tratamos agora, e das relações entre o Budismo
Esotérico e o Tibete, que nunca serão analisados o bastante acuradamente por
180
qualquer um que queira compreender com rigor o Budismo, em seu verdadeiro
significado.
Lemos no artigo: "O sistema regular das encarnações lamaicas de 'Sangyas'
(ou Buda) começou com Tsong-kapa. Este reformador não é a encarnação de um
dos cinco Dhyanis celestiais ou Budas celestes, como se supõe geralmente, que se
diz foram criados por Sakya-Muni depois de elevar-se ao Nirvana, mas, sim, de
Amita, um dos nomes chineses de Buda. Os anais guardados no Gon-pa (lamasaria)
de Tda-shi Humpo demonstram que Sangyas se encarnou em Tsong-kapa em
conseqüência da grande degradação em que haviam caído as suas doutrinas. Até
então não tinham ocorrido outras encarnações que as dos cinco Budas celestiais e
de seus Bodhisattvas, cada um dos primeiros tendo criado (leia-se, encoberto com
sua sabedoria espiritual) cinco dos últimos... Entre outras reformas, Tsong-kapa
proibiu a necromancia (que é praticada até hoje com os ritos mais repugnantes pelos
Bhons, aborígines do Tibete, com quem os Gorros Vermelhos ou Shammars haviam
sempre se confraternizado, sendo por isso que estes últimos resistiram à sua
autoridade). Este ato foi acompanhado de um rompimento entre as duas seitas.
Separando-se completamente dos Gyalukpas, os Dugpas (Gorros Vermelhos), que
desde o início estavam em grande minoria, se estabeleceram em várias regiões do
Tibete, principalmente em suas fronteiras, sobretudo no Nepal e no Butão. Mas
mesmo mantendo esta espécie de independência, no mosteiro de Sakia-Djong, a
residência tíbetana de seu chefe espiritual(?), Gong-sso Rimbo-chay, os butaneses
foram sempre tributários e vassalos dos Dalai Lamas.
Os Tda-shi Lamas foram sempre mais poderosos e mais considerados do que
os Dalai Lamas. Estes últimos são criação de um Tda-shi Lama, Nabang-lob-sang, a
sexta encarnação de Tsong-kapa, uma encarnação de Amithaba ou Buda."
181
Vários escritores do Budismo levaram em consideração a teoria, que Mr.
Clements Markham formula de forma bastante completa em seu "Relato da Missão
de George Bogle no Tibete", ou seja, enquanto as escrituras originais do Budismo
foram levadas ao Ceilão pelo filho de Asoka, o Budismo que abriu seu caminho no
Tibete, a partir da índia e da China, foi gradualmente sobrecarregado com uma
massa de dogmas e de especulações metafísicas. E o Professor Max Müller
expressa: "O elemento mais importante na reforma budista foi sempre seu código
social e moral, não as suas teorias metafísicas. Este código moral, tomado em si
mesmo, é um dos mais perfeitos que o mundo jamais conheceu; e esta foi a bênção
que a introdução do Budismo trouxe ao Tibete."
"A bênção" — diz o autorizado artigo da Theosophist que venho citando —
"permaneceu e estendeu-se por todo o país, não havendo uma nação mais
bondosa, nem de mente mais pura, nem mais singela, nem mais temerosa do
pecado do que os tíbetanos. Apesar disso, o Lamaísmo popular, se for comparado
com o Budismo verdadeiramente Esotérico ou Arhat, apresenta um contraste tão
grande como a neve pisada ao longo da estrada no vale e a massa pura e
imaculada que resplandece no mais alto da crista de uma altíssima montanha."
O fato é que o Ceilão está saturado de Budismo Exotérico e o Tibete, do
Esotérico. O Ceilão ocupa-se mera ou fundamentalmente da moral do Budismo,
enquanto o Tibete, ou antes, os Adeptos do Tibete, se ocupam da ciência do
Budismo.
Estas explicações apenas constituem um esboço de toda a situação. Não
disponho de argumentos, nem folga literária que exige seu desenvolvimento num
quadro acabado, das relações que realmente subsistem entre os princípios
intrínsecos do Hinduísmo e os do Budismo. E cuido da possibilidade de que muitos
182
sábios e pacientes pesquisadores do assunto tenham tirado, decorrente de
prolongados e eruditos estudos, conclusões que à primeira vista parecem chocar-se
com as explicações que agora apresento. Mas nem por isso deixam as explicações
de provir diretamente de autoridades para as quais o assunto é bastante familiar,
tanto no aspecto erudito como no esotérico. Seu conhecimento íntimo lança luz em
toda a situação, que os livra do perigo de desvirtuar textos e cometer erros com
relação à simbologia obscura. Saber quando nasceu Gautama Buda, o que está
registrado em seus ensinamentos e o que as lendas populares reuniram em volta de
sua biografia, é saber pouco menos que nada sobre o verdadeiro Buda, muito maior
que o instrutor moral histórico ou que o semideus fantástico da tradição. E somente
quando se compreende o vínculo entre Budismo e Brahmanismo, é que a grandeza
da doutrina esotérica se revela em suas verdadeiras proporções.
10. O NIRVANA
Uma assimilação completado ensinamento esotérico, até o ponto a que
chegamos agora, já nos permite abordar o tema que os escritores esotéricos
trataram sobre o Budismo, no geral, como o ponto de partida desta religião.
Por falta de um método melhor para pesquisar o verdadeiro significado do
Nirvana, os eruditos do Budismo esmiuçaram a palavra e examinaram sua raiz e
fragmentos. Isso equivale a tentar certificar-se do tipo de cheiro de uma flor,
dissecando o papel em que esta foi pintada. É difícil para as mentes instruídas, de
acordo com o processo intelectual da pesquisa física — como acontece, seja direta,
183
seja indiretamente, com todas as nossas mentes ocidentais do século XK —,
entender o primeiro estado espiritual desta vida, ou seja, o Devachan. Desses
estados da existência, o entendimento só é capaz de compreender uma parte,
sendo necessária uma faculdade mais elevada para penetrá-los plenamente, sendo
mais impossível ainda forçar seu significado em outra mente por meio de palavras.
Despertando primeiramente esta faculdade superior em seu discípulo, e depois
colocando-o em posição de se observar por si mesmo, tal é o modo como procede
todo instrutor regular nesse assunto.
Ora, no Devachan existem os usuais sete estados, apropriados aos diferentes
graus de iluminação espiritual que os diversos candidatos a tal estado podem obter.
No Devachan, há os lokas Rûpa e Arûpa, isto é, estados que assumem uma
consciência (subjetiva) da forma e estados que transcendem a esta. Contudo, o
estado devachânico mais elevado no Arûpa loka não se compara com o estado
maravilhoso de espiritualidade pura, denominado Nirvana.
No curso ordinário da Natureza durante uma Ronda, quando a mônada
espiritual levou a cabo a enorme viagem do primeiro planeta até o sétimo, e ali
findou então sua existência — ali terminando suas multiformes existências, com
seus períodos respectivos no Devachan, entre cada vida — o Ego passa a um
estado espiritual diferente do devachânico, em que, por períodos de duração
inconcebível, descansa antes de voltar a assumir seu circuito dos mundos. Este
estado pode ser considerado como o Devachan dos estados devachânicos — uma
espécie de «capitulação dos mesmos — um estado que supera os demais, tanto
como o estado deva-chânico de qualquer existência da Terra supera as aspirações
espirituais semidesenvolvidas, ou os afetos impulsivos da vida terrena. Desse
período — o período intercíclico de exaltação extraordinária, se comparado com os
184
mesmos estados subjetivos dos planetas no arco ascendente, que superam tanto os
nossos próprios períodos — diz-se, na ciência esotérica, que é um estado de
Nirvana parcial. Transportando-nos com a imaginação através das incomensuráveis
perspectivas do futuro, suponhamos que nos aproximamos ao período que
compreenderia o intercíclo da sétima Ronda da humanidade, quando os homens se
assemelham a deuses. Tendo sido completada a última, a mais elevada e gloriosa
das vidas objetivas, o ser espiritual perfeito atinge um estado em que lhe acode a
reminiscência de todas as existências que viveu em todo tempo no passado. Pode
deter a sua vista nas curiosas mascaradas das existências subjetivas, como então
lhe parecerão, nos pormenores diminutos de qualquer uma das vidas terrenas pelas
quais ele passou, e pode aprofundá-las, bem como a todas as coisas com que de
alguma forma se tivesse relacionado, pois no atinente a esta cadeia planetária ele
atingiu a onisciência. Este desenvolvimento supremo da individualidade é a grande
recompensa que a Natureza reserva àqueles que prematuramente a alcançam, por
assim dizer, por meio da luta relativamente breve, desesperada e terrível que conduz
ao Adeptado, e àqueles que, por determinada prevalência do bem sobre o mal, no
caráter da série completa de suas encarnações, atravessaram o vale da sombra da
morte na metade da quinta Ronda e abriram seu caminho através da sexta e sétima
Rondas.
Deste estado sublimemente ditoso se diz, na ciência esotérica, que é o limiar
do Nirvana,
Vale a pena continuar a especular sobre o que vem depois? Pode-se dizer
que nenhum estado de consciência individual, embora seja uma fase do sentimento
já identificado em grande parte com a consciência geral desse nível de existência,
iguala-se em elevação espiritual à consciência absoluta, em que todo sentimento de
185
individualidade se funde no Todo. Usamos tais frases como fichas intelectuais, mas
à mente comum — dominada pelo cérebro físico e pela inteligência cerebral —
podem ter alguma significação viva?
Tudo o mais que as palavras podem sugerir é que Nirvana é um estado
sublime de repouso consciente na onisciência. Seria ridículo, depois do que foi dito
antes, tratar das discussões que se travaram, entre os que se dedicam ao estudo do
Budismo Esotérico, em tomo do Nirvana, se ele significa ou não aniquilação. Nossas
palavras falham ao expressar o sentimento com que os graduados na ciência
esotérica consideram a questão. Significa o Nirvana a última pena da lei, a honra
mais alta que se pode conceder ao cidadão mais meritório? Ou é uma colher de pau
o emblema da mais ilustre eminência do saber? Perguntas como estas apenas
simbolizam fracamente o disparate da questão que interroga se o Nirvana é, no
Budismo, o equivalente à aniquilação. E de algum modo, inconcebível para nós, se
diz que o estado de para-Nirvana é imensamente superior ao do Nirvana. Não
pretendo dar nenhum significado à afirmação, mas ela serve para demonstrar a que
reino transcendental de pensamento pertence o tema.
Grande é a confusão com relação ao Nirvana, surgindo isto das declarações
feitas sobre Buda. Diz-se que ele atingiu o Nirvana estando na Terra. Também se diz
que renunciou ao Nirvana, para submeter-se a novas encarnações em prol da
humanidade. Ambas as afirmações são conciliáveis. Como grande Adepto, Buda
atingiu aquilo que é a grande meta do Adeptado na Terra: a passagem de seu
Espírito-Ego ao estado infalível do Nirvana. Não se deve supor que qualquer Adepto
pode tentar facilmente essa passagem. Apenas pequenas alusões à natureza deste
grande mistério chegaram até mim mas, reunindo-as, creio estar certo ao dizer que a
proeza em questão é uma das que apenas alguns dos iniciados elevados estão
186
qualificados a tentar, pois exige uma total interrupção da animação do corpo, por
longos períodos de tempo, comparados com os quais os longos transes catalépticos
conhecidos da ciência comum são insignificantes; além disso, a defesa da forma
física contra a decadência natural, durante esse período, por meio dos recursos da
ciência oculta, é difícil de obter. Além disso, é um processo que envolve um duplo
risco para a continuidade da vida terrena da pessoa que a empreende. Um desses
riscos é a dúvida de que, uma vez alcançado o Nirvana, o Ego queira voltar. O
retorno será um esforço terrível e um sacrifício inevitável, e somente ocorrerá por um
sentimento de abnegação, por parte do viajante espiritual, à ideia do dever em sua
abstração mais pura. O segundo grande risco é que, supondo que o sentido do
dever prevaleça sobre a tentação de ficar - tentação, tenha-se presente, que não é
debilitada por noção alguma de que sobrevenha nenhum gênero de sanção —
mesmo assim, sempre é duvidoso que o viajante possa voltar. Apesar disso tudo,
houve muitos outros Adeptos, além de Buda, que constataram a grande passagem,
e de quem os que lhes rodearam nessas circunstâncias disseram que seu retomo à
prisão da carne ignóbil — embora nobre ex hypothesi, em comparação com a maior
parte dessas moradas — deixou-os paralisados em profunda depressão durante
semanas. Iniciar novamente a fatigante volta à vida física, curvar-se sobre a Terra
depois de ter estado no Nirvana, é um colapso demasiado medonho.
A renúncia de Buda foi de certo modo inexplicável, ainda maior, porque não
só voltou do Nirvana por bem do dever, a fim de terminar a vida terrena em que
havia se empenhado como Gautama Buda, mas quando todas as imposições do
dever tinham sido plenamente satisfeitas e seu direito de passar ao Nirvana, durante
incalculáveis evos, estava adquirido do ponto de vista mais alto de sua missão
terrena, renunciou a essa recompensa, ou, antes, a protelou por tempo indefinido
187
numa série de encarnações em prol da humanidade em geral. Como se tem
aproveitado a humanidade desta renúncia? — poder-se-á questionar. Mas a
pergunta só pode ser realmente sugerida por esse costume profundamente
arraigado, que á maior parte de nós adquiriu, de calcular o proveito por um tipo
físico, e mesmo com relação a este tipo, considerando os aspectos estritos dos
negócios humanos. Por tudo o que foi fundamentado no capítulo anterior sobre o
Progresso da Humanidade, não se deixará de perceber o gênero de proveito que
Buda queria conferir aos homens. O que necessariamente é, para ele, a grande
questão com relação à humanidade é o modo de ajudar o maior número possível de
pessoas a passar o grande período crítico da quinta Ronda.
Para um Adepto, até que chegue esse tempo, tudo é uma preparação à luta
suprema e, portanto, quanto mais deve sê-lo para um Buda. O bem-estar material da
geração existente não é nem sequer como meio grão de pó na balança de
semelhante cálculo. A única coisa importante, no presente, é nutrir as tendências,
que podem lançar o maior número de Egos possível numa senda kármica, onde o
desenvolvimento da espiritualidade em vidas futuras receberá maior impulso.
Certamente, é convicção arraigada dos instrutores esotéricos — os Adeptos
cooperadores de Buda — que o processo mesmo de nutrir essa espiritualidade
reduzirá enormemente a soma de sofrimento humano, mesmo o transitório. E a
felicidade da humanidade, embora seja em uma geração unicamente, não é de
forma alguma um assunto indiferente à ciência esotérica. Assim, a ação esotérica
não deve ser considerada como algo tão nas nuvens que jamais influa no que hoje
vivemos. Entretanto, há épocas para boa ou má colheita, para o trigo e para a
cevada, e assim também para o desejado desenvolvimento da espiritualidade entre
os homens. Na Europa, em todo caso, guiando-nos pela experiência de precedentes
188
grandes raças, em períodos de desenvolvimento correspondentes ao nosso atual,
não é provável que o presente impulso da inteligência na direção do progresso físico
e material traga uma época de boa colheita para o progresso de outro gênero. No
momento, a maior probabilidade de se fazer o bem nos países onde o referido
impulso é mais marcado, acredita-se, consiste na possibilidade de que a importância
da espiritualidade possa chegar a ser percebida pelo intelecto, mesmo antes de ser
sentida, se a atenção desse penetrante, embora pouco simpático tribunal, puder ser
assegurada. Qualquer êxito na direção a que conduzam estas explicações justificará
a opinião daqueles — uma minoria — dentre os guardiães esotéricos da
humanidade, que acreditaram que vale a pena realizá-lo.
Portanto, o Nirvana é a diretriz do Budismo Esotérico, assim como até agora o
foi para os mal-orientados estudos dos sábios ocidentais. O grande objetivo da
estupenda e total evolução da humanidade é cultivar as almas humanas, de modo
que ao final estejam aptas para aquele ainda inconcebível estado. O grande triunfo
da raça presente de espíritos planetários, que atingiu esse estado, será o de atrair
para si tantos Egos quanto possível. Estamos ainda longe da época em que possa
haver o perigo sério de se perder definitivamente toda qualificação para tal
progresso, mas já não é bastante cedo para iniciarmos grande processo de
qualificação, tanto mais que o karma que se propaga através de vidas sucessivas
nessa direção levará consigo sua recompensa. De modo que a consecução
esclarecida de nossos mais elevados interesses, num remoto futuro, coincidirá com
o perseguir nosso bem-estar imediato, no próximo período devachânico e na
seguinte reencarnação.
Acaso se argüira que se o cultivo da espiritualidade é o grande propósito a
que se deve perseguir, pouco importará que os homens o sigam numa ou noutra
189
senda religiosa. Isto é um equívoco ao qual, conforme se explicitou em capítulo
anterior, Buda, sob a personalidade de Sankaracharya, se dedicou especialmente a
combater — isto é, a primitiva crença hindu de que moksha fosse alcançada por
meio de bhatki, sem ter em conta o gnyanam. Vale dizer: a salvação pode ser obtida
por práticas de devoção, sem considerar o conhecimento da verdade eterna. A
espécie de salvação de que agora falamos não é livrar-se de um castigo bajulando
um potentado celestial. Sendo um cometimento positivo e não negativo, a ascensão
a regiões de elevação espiritual tão exaltada que o candidato a elas almeja, o que
descrevemos geralmente como onisciência. Trata-se de um plano em que, dado o
modo como usualmente atua na Natureza, sob qualquer circunstância, pode chegar
o momento em que uma pessoa, em virtude apenas de ter sido boa, se converta de
repente em sábio. A bondade e a sabedoria supremas do homem de sexta Ronda,
que tendo chegado nesse ponto, assimilará gradativamente os atributos da própria
divindade, só se podem desenvolver também por graus. A bondade sozinha,
associada, como muitas vezes está às crenças religiosas mais grotescas, conduz o
homem apenas a períodos devachânicos de êxtases devocionais, não inteligentes,
e, no final, se tais condições se reproduzem em muitas exisências, levá-lo-á a
alguma extinção sem dor da individualidade na grande crise.
O perseguir continuo da verdade espiritual e o desejo dela, e não a ociosa e
bondosa aquiescência aos dogmas, à moda da igreja mais próxima, é o meio de os
homens lançarem suas almas dentro do estado subjetivo, preparadas para assimilar
o conhecimento real da onisciência latente de seu sexto princípio, e reencarnar-se
em tempo oportuno com impulsos na mesma direção. Nada produz tão desastrosos
efeitos no progresso humano, no que respeita ao destino do indivíduo, como a
noção prevalecente de que uma religião, se for seguida com espírito piedoso, é tão
190
boa como outra qualquer, e que se tais e tais doutrinas são talvez absurdas, quando
consideradas a fundo, a maioria das pessoas boas jamais pensará no absurdo,
senão que as observarão numa atitude mental sem mácula. Uma religião não é de
modo algum tio boa como outra, mesmo quando todas sejam geradoras de vidas
igualmente boas. Mas prefiro evitar toda crítica de crenças específicas, deixando que
este livro seja uma simples e inofensiva manifestação das doutrinas internas
verdadeiras da grande religião do mundo que — apresentando efetivamente, em
seus aspectos externos, anais inocentes e sem sangue — produziu realmente vidas
sem mácula através de toda sua existência. De mais a mais, não é por uma
aceitação servil de suas doutrinas que o desenvolvimento da verdadeira
espiritualidade deva ser cultivado. O grande resultado será obtido pela tendência a
buscar a verdade, a comprovar e analisar tudo o que pretenda ser crença. No
Oriente, tal resolução, em sua mais alta expressão, conduz ao chelado, à
persecução da verdade, ao conhecimento pelo desenvolvimento das faculdades
internas, por meio das quais pode o chelado ser obtido com segurança. No
Ocidente, o reino do intelecto, tal como se apresenta atualmente no mapa do
mundo, a verdade infelizmente só pode ser perseguida e caçada com o auxílio de
muitas palavras, muitas polêmicas e disputas. Mas, de qualquer modo, pode ser
caçada e, se não é finalmente capturada, o ato de caçá-la engendra parte dos
caçadores, por instintos que se propagarão e produzirão resultados mais adiante.
191
11. O UNIVERSO
Em toda literatura oriental a respeito da formação do Cosmo há freqüentes
referências aos dias e às noites de Brahmã, às inspirações e expirações do princípio
criador, aos períodos do manvantara17 e aos períodos do pralaya. Tal coisa
perpassa por várias mitologias orientais, mas não trataremos aqui de seu aspecto
simbólico. O processo da Natureza a que se refere constitui, por certo, a sucessão
alternada de atividade e repouso, que se observa a cada passo da grande escalada,
do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. O homem tem um manvantara e
17 A palavra manvantara ou manwantara, transliterada do sânscrito, significa literalmente "período entre dois Afanas" (Manuantara). (N. T.)
192
um pralaya em cada 24 horas, isto é, seus períodos de vigília e de sono; a
vegetação segue a mesma regra de ano em ano, adormecendo e revivendo com as
estações. O mundo igualmente tem seus manvantaras e pralayas, quando a onda da
humanidade se aproxima de suas margens, decorre pela evolução de suas sete
raças e reflui de novo — tal manvantara foi tratado pela maior parte das religiões
exotéricas como o ciclo completo da eternidade.
O manvantara principal de nossa cadeia planetária é o que acaba quando o
último Dhyan Chohan da sétima Ronda da humanidade aperfeiçoada passa ao
Nirvana. Daí que a expressão deve ser considerada como bem elástica. Na verdade,
pode-se dizer que sua elasticidade é infinita, e isto explica a confusão que tem
imperado em todos os tratados acerca das religiões orientais, em seus aspectos
populares. Todas as palavras-raízes, transferidas à literatura popular da doutrina
secreta, têm ao menos um sêxtuplo sentido para o iniciado, enquanto o leitor não-
iniciado, supondo que uma palavra só significa uma coisa, e tratando sempre de
esclarecer seu sentido, pelo confronto de suas diferentes aplicações e sua média,
coloca-se numa embaraçosa perplexidade.
A cadeia planetária que nos diz respeito não é a única que tem o nosso Sol
como centro. Assim como há outros planetas além da Terra em nossa cadeia, do
mesmo modo há outras cadeias, além desta, em nosso sistema solar. Há sete delas
e há um tempo em que todas entram juntas no pralaya. A isto se denomina um
pralaya solar. No intervalo entre dois desses pralayas, o vasto manvantara solar
abrange sete prdayas e manvan-taras de nossa cadeia planetária e das outras. O
pensamento se embaralha, dizem até mesmo os Adeptos, ao especular quantos de
nossos pralayas solares devem ocorrer, antes de chegar a grande noite cósmica na
qual o Universo inteiro, em sua enorme coletividade, obedeça ao que
193
manifestamente é a lei universal de atividade e repouso, e com todas as suas
miríades de sistemas passe ao pralaya. Pois, segundo a ciência esotérica, esse
grandioso resultado tem de ocorrer.
Depois de um pralaya de uma única cadeia planetária, não é preciso um novo
começo da atividade evolucionária absolutamente de novo, havendo uma
reassunção da atividade interrompida. Os reinos vegetal e animal, que ao final do
último manvantara correspondente haviam alcançado unicamente um
desenvolvimento parcial, não são destruídos. Sua vida ou energia vital passa por
uma noite ou período de repouso. Também têm, por assim dizer, um Nirvana
próprio. E por que não haveriam de tê-lo essas entidades fetais e infantis? São
todas, como nós, geradas pelo elemento uno. Assim como nós temos nossos Dhyan
Chohans, do mesmo modo elas têm, em seus diversos reinos, guardiães elementais
e são em massa atendidas como o é a humanidade na sua. O elemento uno não só
preenche e é espaço, como também compenetra cada átomo da matéria cósmica.
Portanto, quando soa a hora do pralaya solar, embora o processo do avanço do
homem em sua sétima e última Ronda seja o mesmo de sempre, cada planeta, em
vez de passar simplesmente o visível ao invisível, cada vez que o abandona, é
aniquilado. Com o princípio do manvantara da sétima Ronda da sétima cadeia
planetária, cada reino, tendo chegado a seu último círculo, resta em cada planeta,
depois da saída do homem, simplesmente o Mâyâ das formas que existiram. A cada
passo que dá nos arcos descendente e ascendente, à medida que se desloca de um
globo a outro, o planeta que fica atrás converte-se num mero cascarrão vazio. Após
sua partida, vem a jornada das entidades de todos os reinos. Esperando passar a
formas elevadas no tempo oportuno, são, todavia, libertadas, e mesmo à época da
nova evolução permanecem no espaço em seu sono letárgico, até que são
194
chamadas de novo à vida no novo manvantara solar. Os antigos elementais
descansam até que são requeridos para ser, por sua vez, os corpos das entidades
minerais, vegetais e animais noutra cadeia de globos mais elevada, em seu caminho
para as entidades humanas, enquanto as entidades em germe das formas inferiores
— e então só sobrarão delas muito poucas — permanecerão suspensas no espaço
como gotas de água repentinamente congeladas. Eles degelarão ao primeiro sopro
de calor do novo manvantara solar e formarão a alma dos novos globos. O lento
desenvolvimento do reino vegetal, até o período a que nos referimos, terá sido
atendido pelo repouso interplanetário mais prolongado do homem. Quando advém o
pralaya solar, a totalidade da humanidade purificada se fundirá no Nirvana e, depois
deste Nirvana intersolar, nascerá em sistemas mais elevados. As cadeias de
mundos serão destruídas e se desvanecerão como sombras da parede quando se
extingue a luz. "Temos toda espécie de indicações —dizem os Adpetos — de que
nesse mesmo momento ocorre um pralaya solar semelhante, ao passo que há dois
menores que terminam em algum lugar."
No início do novo manvantara solar, os elementos até agora subjetivos dos
mundos materiais, espargidos então como poeira cósmica, recebendo impulso dos
novos Dhyan Chohans do novo sistema solar (pois os mais elevados do antigo terão
passado mais acima) formarão ondas primordiais de vida, e dividindo-se em centros
diferenciados de atividade, combinar-se-ão numa escala gradual de sete estados de
evolução. Como os outros mundos do espaço, nossa Terra tem que passar, antes de
atingir seu estado material último, por uma gama de sete estados de densidade.
Nada neste mundo nos fornece agora uma ideia de como seja o último estado de
materialidade. O astrônomo francês Flammarion, no livro La résur-rection et Ia fin
dês mondes, aproximou-se de um conceito dessa materialidade última. Os fatos são,
195
contam-me, com pequenas modificações, muito parecidos aos que ele supõe. Em
decorrência do que ele trata como esfriamento secular, mas que verdadeiramente é
velhice e perda de vitalidade, a solidificação e dissecação da Terra atinge, por fim,
um ponto em que o globo se converte num conglomerado solto. Seu período de
concepção passou. Sua progénie está toda criada. Seu tempo de vida acabou. Daí
que suas massas constitutivas deixam de obedecer às leis de coesão e agregação
que as mantêm unidas. Com isso, convertem-se num cadáver abandonado à obra
de destruição, deixando livre cada molécula que o forma, para separar-se do corpo e
obedecer ao impulso de novas influências. "A atração da Lua", sugere Flammarion,
"empreenderia a obra de demolição, gerando uma maré de partículas terrestres em
lugar de uma maré aquosa." Esta última ideia não deve ser tomada como aprovada
pela ciência oculta, exceto no que serve para exemplificar a perda da coesão
molecular na matéria da Terra.
A física oculta passa completamente à região da metafísica, se tratamos de
conseguir alguma indicação do modo como volta a começar a evolução depois de
um pralaya universal.
A coisa una eterna, imperecedoura no universo, que os pralayas universais
deixam sem destruir, pode ser considerada indiferentemente como espaço, duração,
matéria e movimento. Não como algo que tenha esses quatro atributos, mas como
algo que é estas quatro coisas ao mesmo tempo e para sempre. E a evolução
origina-se na polaridade atômica que gera o movimento. Na Cosmogonia, as forças
positiva e negativa, ou ativa e passiva, correspondem aos princípios masculino e
feminino. O fluxo espiritual penetra no véu da matéria cósmica. O princípio ativo é
atraído pelo passivo, e se nos é permitido aqui socorrer a imaginação, recorrendo à
simbologia oculta, a grande Nag, a serpente, emblema da eternidade, atrai sua
196
cauda à boca, formando assim o círculo da eternidade, ou melhor, círculos na
eternidade. O atributo uno e principal do princípio universal espiritual, como doador
de vida inconsciente, mas sempre ativo, é dilatar--se e espargir-se. O do princípio
material universal, é unir-se e fecundar-se. Inconscientes e inexistentes quando
separados, convertem-se em consciência e vida ao se unirem. A palavra Brahmã
provém da raiz sânscrita brih, dilatar, crescer ou frutificar, sendo na Cosmogonia
esotérica a força expansiva vivificadora da Natureza em sua eterna evolução.
Nenhuma expressão pôde contribuir mais para desencaminhar a mente humana na
especulação fundamental relativa à origem das coisas, do que a palavra "criação".
Fale-se da criação e estaremos continuamente nos chocando contra os fatos. Uma
vez que se tenha entendido que nosso planeta e nós mesmos somos criações, como
o é um iceberg, simplesmente estados de ser por um tempo dado — que sua
presente aparência, geológica ou antropológica, é passageira, sendo apenas um
estado concomitante daquele grau de evolução que se alcançou —, o caminho fica
preparado para melhor pensarmos. Então podemos ver o que significa o princípio ou
elemento uno e único no universo e podemos considerar este elemento como
andrógino. Do mesmo modo, também, a proclamação da Filosofia hindu de que
todas as coisas nada mais são do que Mâyâ — estados transitórios — exceto o
elemento uno que repousa durante os Maha-pralayas, as noites de Brahmã.
Talvez tenhamos nos aprofundado bastante no insondável mistério da grande
Causa Primeira. Não é paradoxo afirmar que, só em virtude de sua ignorância,
julgam os teólogos comuns saber tanto sobre Deus. E não é exagero afirmar que os
maravilhosamente dotados representantes da ciência oculta, cuja natureza mortal se
elevou e purificou tanto que suas percepções, alcançam outros mundos e outros
estados de existência, e que comungam diretamente com seres que se encontram
197
tão acima da humanidade ordinária quanto o homem o está sobre os insetos do
campo, não se ocupam nunca de nenhuma concepção que nem remotamente se
pareça ao Deus das Igrejas e das crenças. Dentro dos limites do sistema solar, o
Adepto mortal sabe, por conhecimento próprio, que todas as coisas se explicam pelo
funcionamento da lei na matéria, em suas diversas formas, e mais a influência
diretora e modificadora das mais altas inteligências associadas com o sistema solar,
os Dhyan Chohans, a humanidade aperfeiçoada do último manvantara precedente.
Os Dhyan Chohans ou Espíritos Planetários, sobre cuja natureza é inútil meditar até
que pelo menos possamos penetrar na natureza de nossa própria existência não
encarnada, comunicam aos mundos que se despertam no final de um pralaya de
uma cadeia planetária, tais impulsos, que a evolução os sente através de todo seu
progresso. Os limites da grande lei da Natureza restringem a sua ação. Eles não
podem dizer que exista o paraíso em todo o espaço, que os homens nasçam
sumamente sábios e bons. Não podem agir senão unicamente por meio do princípio
da evolução, e não podem negar a nenhum homem que se invista com a
potencialidade de desenvolver-se, convertendo-se por si em um Dhyan Chohan, até
o direito de praticar o mal, se o preferir ao bem. Nem tampouco pode impedir que,
uma vez feito, o mal produza sofrimento. A vida objetiva é o solo em que se plantam
os germes da vida e a existência espiritual (vale ter em conta que a expressão é
usada somente como contraste com a existência material grosseira), a flor que
finalmente está em viço. Mas o germe humano é algo mais do que a semente da flor.
Tem liberdade de escolha quanto a desenvolver-se para cima ou para baixo. A
planta não se desenvolveria se não pudesse dispor dessa liberdade. Esta é a
necessidade do mal. Porém, nos limites prescritos pela necessidade lógica, o Dhyan
Choan imprime as suas concepções sobre a onda evolucionária e compreende a
198
origem de tudo que contempla. Ao refletir desse modo sobre a grandeza da
evolução cíclica de que se ocupa a ciência esotérica, parece razoável adiar as
considerações relativas à origem do cosmos. O homem comum nesta vida, com
muitas vidas terrenas, certamente algumas centenas, por passar, e seus mais
importantes períodos entre as encarnações (mais importantes no que se relaciona à
duração e às perspectivas de felicidade ou de dor), também em perspectiva, pode na
verdade ocupar-se sabiamente, antes, de investigações com vistas a resultados
práticos, do que com as especulações nas quais praticamente não tem interesse
nenhum. Do ponto de vista de a especulação religiosa não se fundar em
conhecimento positivo algum fora desta vida, nada pode ser mais importante nem
mais altamente prático do que as conjecturas acerca dos atributos e prováveis
intenções do terrível Jeová pessoal, descrito como um tribunal onipotente, a cuja
presença é levada a alma depois da morte para ser julgada. Mas o conhecimento
científico das coisas espirituais faz do dia do juízo uma longínqua e confusa
perspectiva e ocupa o tempo que falta com toda espécie de atividades. Além disso,
demonstra à humanidade que, seguramente, por milhões e milhões de séculos, não
será chamada perante nenhum juiz, excetuado esse juiz que a tudo integra, o
Sétimo Princípio ou Espírito Universal, que existe em toda parte e que atuando na
matéria provoca a existência do próprio homem e do mundo em que vive, assim
como as situações futuras para as quais ele se encaminha. O Sétimo Princípio,
indefinível, incompreensível para nós no presente estado de esclarecimento é, com
certeza, o único Deus reconhecido pelo conhecimento esotérico, e toda
personificação deste é apenas simbólica.
Entretanto, em verdade, o conhecimento esotérico que, de um lado, dá vida e
realidade ao antigo simbolismo e, de outro, está em conflito com o dogma moderno,
199
nos demonstra quão longe de ser absolutamente fabulosas são até as noções mais
antropomórficas da Deidade, associadas pela tradição esotérica ao princípio do
mundo. O Espírito Planetário, realmente encarnado entre os homens na primeira
Ronda, era o protótipo da Deidade pessoal em todos os desdobramentos
subseguintes da idéia. O erro cometido pelas pessoas ignaras, ao tratar do assunto,
é simplesmente de grau. O Deus pessoal de um insignificante manvantara menor foi
tomado como criador do cosmos, um erro muito natural em gente obrigada a supor,
por não conhecer do destino humano sendo o que se inclui numa encarnação
objetiva, que tudo mais além era um futuro homogêneo espiritual. O Deus desta vida
é para eles o Deus de todas as vidas, mundos e épocas.
Confio que o leitor não me interprete mal, supondo que desejo dizer que a
ciência esotérica considera o Espírito Planetário da primeira Ronda como um deus.
Conforme afirmei, ele ocupa-se da obra da Natureza num espaço incomensurável,
de um passado incomensurável e através de um futuro todo incomensurável. O
enorme raio de tempo e de espaço em que opera nosso sistema solar é explorável
pelos Adeptos mortais da ciência esotérica. Dentro desses limites sabem tudo o que
acontece e como acontece, e sabem que tudo se explica pela vontade construtiva da
hoste coletiva dos Espíritos Planetários, atuando sob a lei da evolução, que penetra
toda a Natureza. Eles se comunicam com esses Espíritos Planetários e aprendem
deles que a lei deste sistema solar é também a lei de outros sistemas solares, em
cujas regiões se podem aprofundar as faculdades perceptivas dos Espíritos
Planetários, assim como as dos próprios Adeptos podem aprofundar a vida de outros
planetas desta cadeia. A lei de atividade e repouso alternados atua universalmente
para o cosmos todo, embora a intervalos inimagináveis, o pralaya sucede o
manvantara, e o manvantara, o pralaya,
200
Perguntará alguém: com que fim atua esta eterna sucessão? É melhor
delimitar a questão a um único sistema e perguntar com que fim a nebulosa original
divide-se em vórtices planetários de evolução, e desenvolve mundos nos quais o
espírito universal, reverberando através da matéria, produz a forma e a vida e esses
estados superiores da matéria, pertinentes ao que chamamos existência subjetiva ou
espiritual. Com certeza, constitui um objetivo suficiente para satisfazer qualquer
mente razoável que seres perfeitos e sublimes, tais como os Espíritos Planetários,
venham dessa forma à existência e vivam uma vida consciente de conhecimento e
felicidade supremos, através de perspectivas de tempo equivalentes a tudo o que
possamos imaginar da eternidade. A esta grandeza inefável tudo quanto vive tem a
oportunidade de atingir. O Espírito que está em toda forma animada e que passou a
estas, de formas que em geral chamamos inanimadas, progredirá lenta mas
seguramente para a frente, até que o funcionamento constante de sua influência na
matéria desenvolve uma alma humana. Não se conclui disto que as plantas e os
animais que nos circundam tenham já desenvolvido algum princípio capaz de tomar
a forma humana no curso do manvantara presente. Mas, mesmo quando o curso de
uma evolução incompleta possa ser suspenso por um período de repouso natural,
nem por isso é infrutífero. Toda mônada espiritual — de per si, um princípio
inconsciente e puro — atua através de formas conscientes em níveis inferiores, até
que estas, reproduzindo sucessivamente formas cada vez mais elevadas, chegam a
produzir aquela em que a consciência análoga à de Deus seja totalmente evocada.
Com certeza, não será por causa da grandeza de qualquer concepção humana
relativa ao objetivo adequado da existência no universo, que tal finalidade parecerá
um objetivo deficiente. Nem mesmo se o destino último do mesmo Espírito
Planetário, após períodos com relação aos quais seu desenvolvimento das formas
201
minerais de mundos primevos (como a infância, na reminiscência do homem), for
submergir sua individualidade gloriosa nessa soma total de toda consciência, que a
metafísica esotérica denomina consciência absoluta, que é a não-consciência. Estas
expressões paradoxais são simplesmente modos que representam idéias que a
mente humana não está apta a compreender, sendo tempo desperdiçado o porfiar
nelas.
As considerações precedentes fornecem a chave do Budismo Esotérico, uma
expressão mais direta da doutrina esotérica universal do que qualquer outra religião
popular. O esforço em sua construção foi fazer com que os homens amem a virtude
por si mesma e por seus bons efeitos em futuras encarnações, sem se sujeitar a
nenhum sistema sacerdotal ou dogma que aterrorize a sua imaginação com a
doutrina de um juiz pessoal esperando para julgar suas vidas por ocasião da morte.
Mr. Lillie, por admirável que tenha sido sua intenção e por muita simpatia que devote
à bela moralidade e aspiração do Budismo, engana-se ao deduzir, do ritual de seu
tem-pio, a noção de um Deus Pessoal. Semelhante concepção não entra na grande
doutrina esotérica da Natureza, da qual este livro deu um esboço incompleto. Como,
sequer, com referência às mais longínquas regiões da imensidade, além de nosso
sistema planetário, tolera o Adepto expoente da doutrina esotérica a adoção de uma
atitude agnóstica. Não lhe basta dizer: "Tão longe, como os sentidos elevados dos
espíritos planetários, cujo conhecimento se estende até aos extremos limites dos
céus estrelados, tão longe quanto sua visão pode estender-se, a Natureza é auto-
suficiente e, quanto ao que possa haver mais além, não temos hipótese alguma." O
que o Adepto diz efetivamente neste ponto é: "O universo é ilimitado e é uma
aberração do pensamento falar de hipótese relativa ao mais além do ilimitado, ao
outro lado dos limites do sem limites."
202
O que antecede a toda manifestação do universo, e estará mais além do
limite da manifestação, se tais limites pudessem algum dia ser encontrados, é o que
jaz no fundo do universo manifestado, dentro de nossa própria condição — a matéria
animada de movimento, seu Parabrahm ou Espírito. Matéria, espaço, movimento e
duração constituem a substância única e eterna do universo. Nenhuma outra coisa
absolutamente eterna existe. Este é o primeiro estado da matéria, incognoscível
pêlos sentidos físicos, os quais somente conhecem a matéria manifestada, outro
estado bem diferente. Mas mesmo quando, em certo sentido da palavra, for
materialista a doutrina secreta, como os leitores das explicações precedentes terão
percebido, há de parecer tanto com o conceito estreito e grosseiro da Natureza, a
que usualmente lhe confere o que se chama por Materialismo, como o Pólo Norte
dista do Pólo Sul. A doutrina desce até o Materialismo, por assim dizer, para vincular
seus métodos à lógica deste sistema, e sobe às regiões mais elevadas do Idealismo,
para abraçar e explicar as aspirações mais exaltadas do Espírito. Jamais se repetirá
demasiado e com máxima perseverança que se radica, na união da Ciência com a
Religião, a ponte por onde os mais perspicazes e prudentes perseguidores do
conhecimento experimental podem dar as mãos ao devoto mais entusiasta, e por
cujo meio também o mais entusiasta devoto pode voltar à Terra, sem deixar de estar
no Céu.
203
12. REVISÃO DA DOUTRINA
Só uma longa familiaridade com a doutrina esotérica pode proporcionar uma
visão completa do modo como ela se harmoniza com os fatos da Natureza, tais
como todos podemos observá-los. Mas algo se pode fazer para indicar as
correlações identificáveis entre todo o corpo de ensinamentos que se expôs e os
fenômenos do mundo que nos circunda.
Iniciando com as duas grandes perplexidades da filosofia comum — o conflito
entre o livre-arbítrio e a predestinação e a origem do mal — há de se reconhecer
certamente que o sistema da Natureza, agora apresentado, nos permite abordar
seus problemas com maior confiança do que jamais o foram até agora. Até hoje, os
204
pensadores mais prudentes foram os menos dispostos a asseverar que, com a ajuda
da metafísica ou da religião, se possa esclarecer o mistério do livre-arbítrio e da
predestinação. A tendência do pensamento foi a de relegar todo enigma à região do
incognoscível. E, parece estranho dizê-lo, isso foi feito voluntariamente por pessoas
que, nem por isso, se desagradaram em aceitar, como algo mais do que uma
hipótese provisória, doutrinas religiosas que assim continuam sem poder reconciliar-
se com algumas de suas mais evidentes conseqüências. A onisciência de um
Criador pessoal, abrangendo tanto o futuro como o passado, não deixa lugar para
que o homem possa exercer uma autoridade independente sobre seu próprio
destino, no que é absolutamente necessário deixá-lo exercer, para que o sistema de
castigo ou recompensa por seus atos na vida possa ser legitimado por outra coisa
que não uma injustiça das mais grotescas. Um grande filósofo inglês, encarando o
problema, declarou, em um famoso ensaio, que, em virtude dessas considerações,
era impossível que Deus fosse todo-bondade e todo-potência. As pessoas eram
livres para investi-lo logicamente com um ou outro desses atributos, mas não com os
dois ao mesmo tempo. O argumento foi tratado com o respeito devido à grande
reputação de seu autor e posto de lado com a discrição devida ao respeito pelas
doutrinas ortodoxas.
Mas a doutrina esotérica nos socorre nessa dificuldade. Em primeiro lugar,
considera insignificantes as dimensões deste mundo, se comparado com o universo.
Este é um fato da Natureza, que a Igreja cristã primitiva temeu com verdadeiro
instinto e combateu com a crueldade do tenor. A verdade foi negada e seus autores
torturados por muitos séculos. Por fim, sobreposta à própria autoridade das
negações papais, a Igreja recorreu ao "desesperado expediente", para citar a frase
de Mr. Rhys Davids, de pretender que isso não interessava.
205
A pretensão teve até agora mais êxito do que podiam esperar seus autores.
Temendo as descobertas da Astronomia, atribuíam ao mundo em geral uma lógica
de menos arrependimentos do que a lógica que por fim se mostraram inclinados a
utilizar. As pessoas prestaram-se, como regra geral, a fazer o que o Budismo
Esotérico não exige de nós, ou seja, guardar sua ciência e sua religião em
compartimentos estanques. Este princípio foi usado por tanto tempo e tão
completamente, até que afinal cessou de ser um argumento contra a credibilidade
de um dogma religioso, para destacar ser ele impossível. Mas quando fazemos uma
relação entre nossos receptáculos, até agora divididos, e pedimos que fiquem no
mesmo nível, não podemos deixar de ver como a insignificância da grandeza da
Terra diminui, em proporção correspondente ao plausível das teorias que nos
exigem pormenores de nossas próprias vidas como parte do depósito geral da
onisciência de um Criador universal. Ao contrário, não parece razoável que os seres
que habitam um dos menores planetas de um dos sóis de menores dimensões, no
oceano do universo, onde os sóis são como gotas de água no mar, fiquem isentos,
de algum modo, do princípio geral do governo pela lei. Mas este princípio não se
coaduna por capricho ao governo, que é uma condição essencial de uma
predestinação, como a que associa com o uso da palavra as discussões
convencionais dos problemas de que se trata. Pois cabe observar que a
predestinação, que está em conflito com o livre-arbítrio, não é a predestinação das
raças, mas a predestinação individual, associada às idéias de graça e cólera divinas.
A predestinação das raças, sob leis análogas àquelas que regem a tendência geral
de qualquer conjunto de acontecimentos independentes, é perfeitamente compatível
com o livre-arbítrio individual, e, desse modo, a doutrina esotérica reconcilia a tão
debatida contradição da Natureza. O homem rege seu próprio destino, nos limites
206
constitucionais, por assim dizer. É perfeitamente livre para usar seus direitos
naturais no que estes alcancem, e praticamente alcançam o infinito no tocante a ele,
a unidade individual. Mas a ação humana média, sob condições dadas e tendo em
conta vasta multiplicidade de unidades, resulta na infalível evolução dos ciclos que
constitui seu destino coletivo.
A predestinação individual pode, é verdade, ser afirmada não como um
dogma religioso relacionado à graça ou à ira divinas, mas, sim, com fundamentos
puramente metafísicos — vale dizer. Pode-se arguir que cada ser humano está, na
infância, fundamentalmente sujeito à mesma influência, por circunstâncias análogas,
que a vida de um adulto é, portanto, apenas o produto ou a impressão de todas as
circunstâncias que influíram nessa vida desde o início, de modo que, se essas
circunstâncias fossem conhecidas, o resultado moral e intelectual o seria também.
Nessa linha de raciocínio, pode-se deduzir que as circunstâncias da vida de cada
homem podem ser teoricamente conhecidas por uma inteligência suficientemente
penetrante. Que as tendências hereditárias, por exemplo, são apenas o produto de
circunstâncias antecedentes que entram num cômputo dado como perturbação,
porém que nem por isso deixam de ser menos calculáveis. Entretanto, essa dedução
não está menos em conflito direto com a consciência da humanidade do que o
dogma religioso da predestinação individual. O sentido do livre-arbítrio é um fator
que não se pode ignorar no processo, e o livre-arbítrio de que temos consciência
não é um mero impulso automático, como o puxão da perna da rã morta. O dogma
comum religioso e o argumento metafísico comum exigem de nós que o
consideremos sob esse aspecto. Mas a doutrina esotérica restitui-lhe a verdadeira
dignidade e nos demonstra a esfera de sua atividade, os limites de sua soberania. É
soberano sobre o curso da vida individual, mas impotente em presença da lei cíclica,
207
descoberta na história humana por um filósofo tão positivo como Draper — por curto
que seja o período em que tenha podido estender suas observações. E nem por isso
deixa essa areia movediça colateral de pensamento, que J. S. Mill distinguiu
paralelamente com as contradições da teologia — a grande questão de se a
especulação deve referir-se à hipótese de toda bondade e toda potência —
encontrar sua explicação no sistema ora exposto. Os grandes seres, a eflorescência
aperfeiçoada de uma humanidade anterior, que, embora longe de constituírem um
Deus supremo, reinam contudo de um modo divino sobre os destinos de nosso
mundo. Não são onipotentes. E, por serem grandes, acham-se restringidos em sua
ação por limites relativamente estreitos. Pareceria como se, quando a cena está, por
assim dizer, pronta de novo para outro drama da vida, pudessem ser introduzidas
algumas melhorias na ação, derivadas de sua própria experiência, no drama em que
eles estiveram interessados, porém que são apenas capazes de, quanto à
montagem principal da peça, repetir o que antes foi representado. Podem fazer em
grande escala o que faz um jardineiro com as dálias, em pequena escala: introduz
consideráveis melhorias na forma e cor, mas suas flores, por tratadas que sejam,
continuarão a ser dálias.
Pode-se perguntar de passagem: Não será significativo, corroborando o que
se aceita da doutrina esotérica, que as analogias naturais a apóiem em cada
momento? Assim como é embaixo, o é acima, escreveram os filósofos ocultos
antigos, sendo o microcosmos um reflexo do macrocosmos. Toda a Natureza
existente sob a esfera de nossa observação física comprova a regra, no que essa
área limitada apresenta como princípios. A estrutura dos animais inferiores reproduz-
se com alterações em animais superiores, e no Homem. As finas fibras da folha se
ramificam como os ramos de uma árvore,e o microscópio segue estas ramificações,
208
repetidas além do alcance do olho nu. As correntes turvas de águas pluviais
depositam "rochas sedimentares" nas poças que formam nos caminhos, do mesmo
modo que os rios o fazem nos lagos, e as imensas águas do mundo, no fundo dos
mares. A obra geológica de um pequeno lago e a de um oceano diferem tão-
somente em sua escala. A doutrina esotérica demonstra que também só diferem em
escala as leis mais sublimes da Natureza, em sua jurisdição sobre o homem e sobre
a família planetária. Assim como as crianças de cada geração são atendidas, na
infância, por seus pais e crescem para, por sua vez, atender a outra geração, do
mesmo modo ocorre na humanidade inteira dos grandes períodos manvantáricos: os
homens de uma geração desenvolvem-se para ser os Dhyan Chohans da próxima, e
nos últimos progressos do tempo cedem lugar a seus descendentes, passando eles
a estados superiores de existência.
A doutrina esotérica responde à questão da existência do mal de forma tão
decisiva como o faz quanto ao livre-arbítrio. Este assunto foi discutido no seu lugar,
no capítulo anterior sobre o Progresso da Humanidade. Mas a doutrina esotérica,
como se verá, enfrenta o grande problema, mais a fundo que por simples enunciado,
de como o livre-arbítrio humano, cujo desígnio da Natureza é elevar ao estado
Dhyan chohânico, deve ser, consoante esta hipótese, livre para desenvolver o
próprio mal, se quiser. Isto quanto ao princípio geral em questão, mas o modo como
atua pode ser percebido neste ensinamento, tão claro quanto o próprio princípio. Ele
atua por meio do karma físico, e não poderia agir de outro modo, exceto por uma
suspensão da lei invariável de que as causas .produzem efeitos. O homem objetivo
nascido no mundo físico é tanto uma criação da entidade que ultimamente o animara
quanto o homem subjetivo que, no ínterim, esteve vivendo na existência
devachânica. O mal que os homens fazem sobrevive a eles, no sentido mais literal
209
que o próprio Shakespeare atribuía a essas palavras. Há de se perguntar: como
pode a culpa moral, numa vida, fazer com que se nasça em outra cego ou aleijado,
em um período diferente da história do mundo, alguns milhões de anos mais tarde,
de pais com os quais não teve na vida anterior nenhum tipo de relação física? Mas a
dificuldade explica-se, segundo o modo de agir das afinidades, mais fácil do que se
poderia imaginar à primeira vista. A criança cega ou inválida, quanto à sua forma
física, pode ter sido a potencialidade, antes que produto de circunstâncias locais.
Porém, não teria vindo à existência, amenos que houvesse uma mônada espiritual
que insistisse pela encarnação, levando consigo o quinto princípio (o que é
permanente num quinto princípio) adaptado justamente por seu karma para habitar
naquele corpo potencial. Dadas essas circunstâncias, a criança imperfeitamente
organizada é concebida e lançada ao mundo para ser uma causa de perturbação,
para si e para os outros — um efeito convertendo-se, por sua vez, em causa — e um
enigma vivente para filósofos que cuidam de explicar a origem do mal.
A mesma explicação é atribuível, com as devidas modificações, a toda uma
vasta série de casos, que pode ser citada para ilustrar o problema do mal no mundo.
Incidentalmente acarreta consigo uma questão relacionada com o funcionamento da
lei kármica, que não pode ser chamada dificuldade, desde o momento em que a
resposta é provavelmente sugerida pelo caráter da própria doutrina, mas nem por
isso menos digna de ser citada. A assimilação seletiva, por parte dos espíritos
carregados de karma, a uma paternidade correspondente a suas necessidades ou
méritos, é a explicação óbvia que reconcilia o renascimento com o atavismo e a
herança. A criança nascida parece que reproduz as peculiaridades dos pais ou
antecessores, bem como sua parecença física, e o fato sugere a noção de que sua
alma é um rebrotar da árvore da família, como sua forma física. É desnecessário
210
alongar-nos aqui sobre as múltiplas dificuldades que rodeariam aquela teoria, se
tivéssemos a extravagância de supor que uma alma assim, lançada como faísca de
uma bigorna, sem nenhum passado espiritual atrás de si, possa ter um futuro diante
dela. A alma, que desse modo seria apenas uma função do corpo, terminaria com a
dissolução daquilo de que se originou. Seja como for, a doutrina esotérica, quanto
aos caracteres transmitidos, oferece uma completa explicação do fenômeno, do
mesmo modo que se refere a outros da vida humana. A família na qual a criança
nasce representa, ao espírito reencarnado, o que um novo planeta o é para toda a
onda humana numa Ronda ao longo da cadeia manvantárica. Foi construído por um
processo de evolução funcionando numa Unha transversal à da aproximação da
humanidade. E está apto para que a humanidade o habite, quando chegar o tempo
devido. O mesmo acontece com o espírito reencarnado: arremessa-se para o mundo
objetivo ao estarem esgotadas as influências que o prendiam ao estado
devachânico. Toca, por assim dizer, a mola da Natureza, provocando o
desenvolvimento de uma criança, que sem tal impulso seria meramente uma
potencialidade, não um desenvolvimento verdadeiro, mas em cuja paternidade
encontra — inconscientemente, por meio da cega operação de suas afinidades - as
condições exatas da nova vida, para a qual ela mesma se preparou na vida pretérita.
Não devemos esquecer a presença de exceções em todas as grandes regras
da Natureza. No presente caso, às vezes ocorre que um simples acidente cause um
dano à criança ao nascer. Assim é que um espírito cujo karma não mereceu de
modo nenhum aquele castigo, pode adquirir uma forma aleijada, e o mesmo aplica-
se em relação com uma grande variedade de acidentes. Mas sobre estes, tudo o
que cabe dizer é que a Natureza não está tolhida por seus acidentes. Ela dispõe de
muito tempo para repará-los. Os sofrimentos não merecidos numa vida são
211
amplamente compensados pelo funcionamento da lei kármica na seguinte, ou pela
seguinte. Há o tempo necessário para que a compensação aconteça, e os Adeptos
declaram, conforme creio, que, na verdade, os sofrimentos não merecidos atuam, no
final das contas, como uma sorte feliz, mais do que de outro modo, provindo isto da
observação puramente científica dos fatos, de uma doutrina, que a religião usou
benevolentemente algumas vezes mais para o consolo dos aflitos.
Já a doutrina esotérica, quando oferece, neste sentido, uma inesperada
solução dos fenômenos da vida que causam maior perplexidade, não o faz às custas
de sacrifício, em qualquer sentido dos atributos que podemos sinceramente esperar
de uma verdadeira ciência religiosa. O que primeiro temos em favor desse sistema é
que não permite nenhuma injustiça, quer no sentido de dano feito sem merecimento,
quer nos benefícios concedidos aos que não os merecem. E a justiça desse
funcionamento deve ser discernida tanto nas grandes coisas como nas pequenas. A
máxima jurídica de minimis non curat lex18 contém um meio de fuga à falibilidade
humana das conseqüências de suas próprias imperfeições. Nem em Química, nem
em Mecânica, existe nada semelhante à indiferença para as coisas pequenas. A
Natureza, em suas operações físicas, reage às pequenas causas com tanta certeza
quanto às grandes e podemos nos sentir instintivamente seguros de que também
ela, em suas ações espirituais, não tem o mau hábito de tratar as ninharias como
coisas sem conseqüência, de ignorar pequenas dívidas em recompensa por pagar
as grandes, tal como um comerciante de duvidosa integridade que se satisfaz a
honrar compromissos que não são suficientemente sérios para que seu cumprimento
seja imposto pela lei. Ora, os atos de menor importância da vida, bons ou maus, são
necessariamente ignorados sob qualquer sistema que formula a questão final em
18 Isto é: o pretor não se ocupa de coisas mínimas. (N.T.)
212
perspectiva, como admissão ou exclusão de uma condição uniforme, ou
aproximadamente uniforme, de bem-aventurança. Nem mesmo quanto ao mérito ou
demérito que unicamente se relacionam como conseqüências espirituais, nenhuma
resposta exata pode dar a Natureza, exceto por meio daquele estado de existência
espiritual infinitamente graduado, descrito pela doutrina esotérica como o estado
devachânico. Mas a complexidade que se apresenta diante de nós é mais séria do
que a que se pode encontrar nos vários estados da existência devachânica. Nenhum
sistema de conseqüências que siga a humanidade, após a vida ora em observação,
pode ser reconhecido como adaptado cientificamente às circunstâncias imprevistas,
a menos que responda ao senso de justiça relativo aos múltiplos atos e costumes da
vida em geral, inclusive àqueles que meramente se referem à existência física e não
estão bastante caracterizados pelo justo ou injusto.
Pois bem, apenas retomando a existência física, é como se pode conceber
que as pessoas consigam, com todo rigor, os resultados das menores causas que
tenham produzido na última vida objetiva. Assim, após um cuidadoso exame do
assunto — bem pouco atraente para os estudantes do Budismo até agora em seu
aspecto exotérico, o que não é de estranhar — se verá que a lei kármica não só se
reconcilia por si mesma com o senso de justiça, mas constitui o único método
imaginável de ação natural que pode testá-lo. Tendo sido compreendida, a
individualidade continua atuando, através de sucessivos renascimentos kármicos, e
tendo presente a correspondente cadeia de existências espirituais intercaladas entre
cada um dos nascimentos, não é de modo algum alterada a simetria requintada de
todo o sistema por aquela característica que, à primeira vista, parece exposta à
crítica — os banhos sucessivos nas águas do esquecimento, pelas quais deve
passar o espírito reencarnado. Pelo contrário, aquele esquecimento é na verdade a
213
única condição em que a vida objetiva pode ser iniciada completamente de novo.
Poucas vidas terrenas são livres de sombras, cuja reminiscência obscureceria uma
renovada fase de vida da personalidade. E se se alega que o esquecimento
completo de cada uma das últimas vidas envolve desperdício de experiência,
esforço e aquisições intelectuais penosa e laboriosamente obtidas, essa objeção
pode unicamente provir do esquecimento da vida devachânica, na qual, longe de
serem dissipados tais esforços e aquisições, eles constituem as sementes das quais
brotará toda a magnífica colheita de resultados espirituais. Da mesma forma, quanto
mais tempo a doutrina esotérica ocupar a inteligência, tanto mais claramente se verá
que cada uma das objeções feitas contra ela depara-se com uma réplica pronta, e
que somente parece objeção do ângulo do conhecimento incompleto.
Ao passarmos das considerações abstratas a outras em parte entrelaçadas
com assuntos práticos, comparemos a doutrina esotérica com os fatos da Natureza
observáveis em vários sentidos, com o fito de comprovarmos diretamente seus
ensinamentos. Uma ciência espiritual que previu felizmente a verdade absoluta deve
ajustar-se aos fatos da Terra, sempre que se depare com eles. Um dogma religioso
em flagrante oposição com o que é uma verdade manifesta, para a Geologia e para
a Astronomia, pode encontrar Igrejas e congregações que se satisfaçam em
sustentá-lo, porém não é digno de séria consideração filosófica. Como concorda,
pois, a doutrina esotérica com a Geologia e a Astronomia?
Não é nenhum exagero afirmar que a doutrina esotérica consiste no único
sistema religioso que se funde facilmente com as verdades físicas, descobertas pela
pesquisa moderna naqueles ramos da ciência. Não só se identifica com elas, no
sentido de tolerar a hipótese nebular e a estratificação das rochas, porém que, por
assim dizer, se atira nos braços desses fatos e em nada pode prescindir deles.
214
Tampouco deixa de considerar os descobrimentos da Biologia moderna, e, como é
um sistema que se recomenda por si mesmo, numa época científica, sequer pode
dispensar as últimas aquisições da Geografia física.
A estratificação da crosta terrestre é certamente um registro claro e visível de
cataclismos inter-raciais. A Física vai perdendo os hábitos de timidez que a insolente
opressão do fanatismo religioso, de quinze séculos, produziu, mas ainda se mostra
um pouco esquiva em suas relações com o dogma, por mera força do costume.
Neste sentido a Geologia se contentou em afirmar que tais e tais continentes, como
suas bacias marítimas testemunham, devem ter submergido e emergido, mais de
uma vez, sob e sobre a superfície do oceano. Não se acostumou ainda à livre
aplicação de seus próprios subsídios à especulação que invade o território religioso.
Mas, com certeza, se fosse exigido que a Geologia interpretasse todos seus fatos na
forma de uma história consistente da Terra, suscitando as hipóteses mais plausíveis
que pudesse forjar para preencher lacunas em seus conhecimentos, ela construiria
uma história da humanidade que não seria diferente, nos traços gerais, do que foi
esboçado no capítulo precedente sobre os Grandes Períodos do Mundo. E, quanto
mais progridam as descobertas geológicas, no-lo dizem os instrutores esotéricos,
tanto mais íntimas serão reconhecidas as correlações entre a doutrina e os vestígios
ósseos do passado. Já vemos peritos do Challenger dando testemunho da
existência da Atlântida, embora o tema pertença a um gênero de problemas
geralmente pouco atraentes para o mundo científico. Assim é que as considerações
em prol do continente perdido não são ainda apreciadas, de modo geral. Geólogos
pensadores se mostram bastante dispostos a reconhecer que, com relação às forças
formadoras da Terra, o período compreendido na série dos vestígios históricos pode
ser um período de inércia relativa e de lenta mudança. E que as metamorfoses
215
devidas a cataclismos podem ter-se agregado, nas primeiras eras, às ocasionadas
por afundamentos, levantamentos e fragmentações graduais. Um passo ou dois
separa isso do reconhecimento, como fato, daquilo que ninguém acharia criticável
como hipótese, ou seja, as grandes submersões ou levantamentos continentais que
ocorrem alternadamente. O mapa completo do mundo toma ocasionalmente formas
novas, nos moldes, como os fragmentos de cores dos quadros de um caleidoscópio
caem formando novas combinações, como também está sujeito a mudanças
sistematicamente intermitentes, que restabelecem as primeiras disposições a
enormes intervalos de tempo.
Seja como for, estando ainda por vir mais descobrimentos, se irá admitir,
talvez, que possuímos uma massa de conhecimentos geológicos suficiente para
reforçar a Cosmogonia da doutrina esotérica. O fato de que a doutrina tenha sido
mantida longe do mundo em geral, por tanto tempo, como precisou desse
conhecimento para achar pavimentado o caminho a sua entrada, dificilmente será
considerado indiscreto por parte de seus guardiães. Se a geração atual concederá
ou não importância suficiente às correlações da doutrina com o que foi descoberto
na Natureza por outros meios, está por se ver.
Essas correlações podem, naturalmente, ser encontradas de modo decisivo
tanto na Biologia quanto na Geologia. A ampla teoria de Darwin a respeito da
descendência do homem do reino animal não é o único fundamento proporcionado,
por essa divisão da ciência, à doutrina esotérica. As observações minuciosas, na
atualidade, constatadas na Embriologia, são especialmente interessantes pela luz
que lançam em mais de uma seção desta doutrina. Assim é que a verdade, hoje
familiar, de que as fases sucessivas do desenvolvimento humano pré-natal
correspondem a progressos da evolução humana, através de diferentes formas da
216
vida animal, representa nada menos que uma revelação em suas conseqüências
analógicas. Não se cinge a fortalecer a hipótese evolucionária, mas ilustra
notavelmente o modo como a Natureza atua na evolução das novas raças de
homens, no princípio dos grandes períodos de Ronda. Quando uma criança tem de
ser desenvolvida de um germe, de constituição tão simples, que é a menos típica do
reino animal — e até menos que do vegetal — que do mineral, a escala familiar da
evolução é percorrida, por assim dizer, rapidamente. Os conceitos de progresso, que
necessitaram séculos incontáveis para ser externados pela primeira vez, na forma
de uma cadeia sem solução de continuidade, estão para sempre firmemente
alojados na memória da Natureza, e podem, portanto, ser rapidamente lembrados,
em poucos meses, por sua ordem. O mesmo ocorre com a evolução da humanidade
em cada um dos planetas, à medida que avança a onda da maré humana. Na
primeira Ronda, o processo é bem lento, e quase não avança. As próprias idéias de
Natureza estão sujeitas à evolução. Mas quando o processo ocorreu uma vez, pode
ser rapidamente repetido. Nas últimas Rondas, o impulso de vida percorre a escala
da evolução com uma facilidade só concebível pela ajuda do esclarecimento
proporcionado pela Embriologia. Esta é a explicação do modo como o caráter de
cada uma das Rondas difere das que lhe antecederam. O trabalho evolucionário
ocorrido uma vez é logo repetido. Então, a Ronda executa sua própria evolução com
uma rapidez bem diferente, assim como a criança que, ao atingir a perfeição do tipo
humano, verifica seu próprio crescimento individual lentamente, na proporção dos
primitivos estados de seu desenvolvimento inicial.
Não se exija de mim nenhuma comparação perfeita do Budismo Exotérico
com os aspectos da Natureza que até agora foram expostos, de modo sucinto, como
verdade, mas bastante compreensível somente para dar ao leitor uma visão geral do
217
sistema em toda sua grandeza. Com o auxílio das informações ora comunicadas, os
estudantes de Budismo estarão mais capazes de aplicar, aos enigmas que a
Natureza pode conter, as chaves de sua significação. Os hiatos existentes nos anais
públicos dos ensinamentos budistas agora são facilmente preenchidos, e com
clareza se verá a razão de sua existência. Na obra de Mr. Rhys Davids, por
exemplo, deparo o seguinte: "O Budismo não tenta resolver o problema da origem
primária de todas as coisas", e, citando o Manual do Budismo, de Hardy, diz:
"Quando Malunka perguntou a Buda se a existência do mundo era ou não eterna,
não recebeu resposta, mas a causa do silêncio era que o Mestre considerava a
pergunta sem proveito." Na verdade, o assunto foi expressamente deixado de lado
porque não podia ser resolvido com um simples sim ou não, sem colocar o
indagador numa pista falsa; pois, para colocá-lo na verdadeira pista, seria
necessária uma exposição completa de toda a doutrina a respeito da evolução da
cadeia planetária, para a qual a comunidade com que Buda se relacionava não
estava ainda intelectualmente madura. Mas, querer inferir de seu silêncio que
tomava a pergunta como sem nenhum proveito, é um equívoco, em que é natural
que se tenha caído, dada a inexistência de conhecimentos colaterais, pois na
verdade nada pode ser mais completo. Nenhum dos sistemas que publicamente
trataram do problema a respeito da origem de todas as coisas fez mais, como até
agora foi visto, do que roçar a superfície daquela especulação, comparativamente às
pesquisas completas da ciência esotérica da qual foi Buda um expositor eminente,
como foi um proeminente instrutor moral para o povo.
As conclusões positivas sobre o que o Budismo ensinou — cuidadosamente
elaboradas — não foram divulgadas com menor cuidado por Mr. Rhys Davids que a
conclusão negativa já citada. Era inevitável que todas essas conclusões fossem
218
imprecisas até hoje. Cito um exemplo, não para diminuir o estudo cuidadoso de que
foi fruto, mas para mostrar como a luz, agora difundida por todo o assunto, penetra
cada fresta, expondo todos os fatos sob nova luz.
"O Budismo considera como última verdade a existência do mundo material e
seres conscientes vivendo nele. Sustenta que todas as coisas estão sujeitas à lei da
causa e efeito e que todas elas estão constante embora imperceptivelmente
mudando. Não há lugar em que esta lei não funcione; portanto, não existe nem céu,
nem inferno, no sentido corrente da palavra. Existem mundos onde vivem anjos, cuja
existência é mais ou menos material conforme a maior ou menor santidade de suas
vidas anteriores; mas os anjos morrem, e os mundos nos quais moram deixam de
existir. Há lugares de tormento onde as más ações, dos homens ou dos anjos,
originam seres desgraçados; mas quando o ativo poder do mal que os gerou se
esgota, se desvanecem. Os mundos por eles habitados não são eternos. Todo o
cosmos — Terra, céus e infernos — tende sempre à renovação ou destruição, está
sempre em processo de mudança, é formado de uma série de revoluções ou ciclos,
cujo princípio e fim são igualmente incognoscíveis e desconhecidos. Nesta lei
universal de composição e de dissolução, os homens e os deuses não constituem
exceção. A unidade de forças que forma um ser sensível, deve mais tarde ou mais
cedo ser dissolvida, e somente por ignorância e ilusão esse ser sonha que é uma
entidade separada e existente por si mesma."
Pois bem, este parágrafo serve de exemplo para demonstrar como as noções
populares da filosofia budista se distanciam de todas as luzes da verdadeira filosofia
esotérica. Certamente, esta filosofia não vê no universo, assim como tampouco na
crença de qualquer ilustre pensador asiático ou europeu, os imutáveis céus e
infernos da lenda monacal. Mas, "os mundos onde os anjos vivem" e assim por
219
diante — os níveis do estado devachânico vividamente reais, embora subjetivos —
estão efetivamente na Natureza. O mesmo sucede com todas as outras concepções
populares budistas que passamos em revista. Porém, em sua forma popular são
caricaturas muito próximas às concepções correspondentes da ciência esotérica.
Assim, a noção de que a individualidade é uma ilusão e que a dissolução final do ser
sensível como essa ilusão é perfeitamente ininteligível, sem necessitar explicações
mais completas a respeito dos múltiplos evos de vida individual em condições de
exaltação espiritual, ainda para nós inconcebíveis, mas sempre progressivas, que
precedem aquela inimaginável e re mota emergência no estado não-individualizado.
Este estado deve estar em alguma parte do futuro, mas é de tal natureza que
nenhum filósofo, o não-iniciado pelo menos, concebeu ainda a respeito dele sequer
o mais fraco vislumbre de suposição. O mesmo que ocorreu quanto ao Nirvana,
ocorreu com a ilusão da individualidade. Os escritores que se ocuparam da doutrina
budista, derivada de fontes exotéricas, ficaram perplexos, do modo mais lamentável,
perante alguns dos remotos elementos da grande doutrina, sob a impressão de que
se tratavam de opiniões budistas relativas a estados que acontecem imediatamente
a esta vida. A declaração, colocada fora de seu contexto no corpo geral da doutrina,
constitui quase um absurdo, não só porque não se pode considerar um insulto ao
entendimento, mas porque será sentida como verdade sublime ao admitir seu devido
lugar na relação com outras verdades. A emergência fina do perfeito Homem-deus
ou Dhyan Chohan, na absoluta consciência do Paranirvana, não tem nada a ver,
permitam-me aduzir, com a "heresia da individualidade", que se relaciona às
personalidades físicas. Sobre esse assunto voltarei a tratar mais adiante.
Mr. Rhys Davids afirma, com bastante razão, com referência ao resumo da
doutrina budista, antes citada: "Tais ensinamentos não são, de modo algum,
220
peculiaridades do Budismo, pois idéias semelhantes estão no fundamento das
filosofias indianas primitivas." (Certamente, pelo fato de que o Budismo, quanto à
doutrina, é a filosofia indiana primitiva.) "De fato, podem-se encontrar tais
ensinamentos em outros sistemas bem distintos em tempo e lugar. O Budismo, ao
se relacionar com a verdade neles contida, podia ter-lhes atribuído uma expressão
mais definitiva, se não se tivesse apropriado também da crença referente à curiosa
doutrina da transmigração, doutrina essa que parece ter originado
independentemente, se não simultaneamente, no vale do Ganges e no vale do Nilo.
A palavra transmigração foi utilizada em diferentes épocas e lugares, para teorias
diferentes, na verdade muito diferentes. E o Budismo, ao adotar a idéia geral do
Bramanismo pós-védico, modificou-a de tal modo que chegou a formar,
efetivamente, uma nova hipótese. Tanto a hipótese nova como a velha referem-se à
vida, em nascimentos passados e futuros, e em nada contribuíram para a renovação
aqui, nesta vida, do mal que supunham explicar."
Este livro terá desfeito as interpretações errôneas sobre as quais se apóiam
essas observações. O Budismo não crê em nada que se assemelhe à passagem
para trás e para a frente nas formas animais e humanas, que é o que muita gente
concebe como sendo o princípio da transmigração. A transmigração do Budismo é a
transmigração da teoria evolucionista de Darwin, cientificamente desenvolvida, ou
antes completamente explorada em ambas as direções. Os escritos budistas contêm
alusões a nascimentos anteriores, nos quais o próprio Buda era, às vezes, animal e,
outras, outra espécie. Mas eles se referem ao curso remoto da evolução pré-humana
da qual sua visão aberta lhes proporcionava uma visão retrospectiva. Jamais se
encontrará, em qualquer escrito budista, nada que defenda a noção de que qualquer
criatura humana, tendo alcançado a humanidade, retroceda ao reino animal. Além
221
disso, enquanto nada, em verdade, seria tão ineficaz como explicação da origem do
mal, como a caricatura da transmigração que esse retrocesso implica. Os
renascimentos dos Egos humanos na existência objetiva, unidos na operação do
karma físico e as funções inevitáveis do livre-arbítrio, nos limites de suas
prerrogativas, explicam a origem do mal, de um modo cabal e decisivo. Tendo por
objeto o esforço da Natureza em uma nova colheita de Dhyan Chohans, cada vez
que se desenvolve um sistema planetário, o desenvolvimento incidental do mal
transitório é uma conseqüência inevitável sob a ação das forças ou processos
mencionados, estados que por sua vez são inevitáveis no gigantesco processo
empreendido.
Ao mesmo tempo, se o leitor quiser tornar agora o livro de Mr. Davids e
examinar o longo parágrafo desse assunto e a respeito das skandhas, há de se
convencer da inútil tentativa de deduzir qualquer teoria racional, a respeito da origem
do mal, dos materiais exotéricos nele empregados. Nem seria possível para esses
subsídios sugerir a verdadeira explicação do trecho do Brahmajala sutra citado logo
após:
"Depois de fazer ver como se originou a crença infundada na eterna
existência de Deus ou de deuses, passa Gautama a discutir a questão da alma e
indica 32 crenças relativas a ela, que considera errôneas. Estas são resumidamente
como segue: 'Em que princípio ou sobre que terreno sustentam estes mendicantes
ou brâmanes a doutrina da existência futura? Ensinam que a alma é material ou
imaterial, ou que é ambas as coisas ou nenhuma delas; que terá um ou muitos
modos de consciência; que suas percepções serão poucas ou ilimitadas; que
permanecerá em um estado de gozo ou de miséria, ou nem em um nem em outro.
Estas são as dezesseis heresias que ensinam uma existência consciente depois da
222
morte. Existem mais oito heresias que ensinam que a alma material ou imaterial, ou
ambas ou nenhuma das duas, finita ou infinita, ambas as coisas ou nenhuma delas,
possui uma existência inconsciente depois da morte. E finalmente outras oito que
ensinam que a alma, em seus oito sistemas correspondentes, existe após a morte
em um estado nem consciente, nem inconsciente. Mendicantes — conclui o sermão
—, aquilo que liga o Mestre à existência (isto é, tanha, sede) foi cortado, mas seu
corpo ainda fica. Enquanto seu corpo permanece, será visto por deuses e homens,
mas depois de acabada a vida, depois da dissolução do corpo, nem deuses, nem
homens o verão.' Seria possível negar, de forma mais cabal e categórica, que existe
a alma — algo, seja o que for, que continua existindo de alguma forma depois da
morte?"
Com efeito, para os estudantes exotéricos, esse trecho parecerá em flagrante
contradição com os ensinamentos do Budismo, que se referem às sucessivas
passagens da mesma individualidade através de várias encarnações, o que em
outra linha de pensamento talvez assuma a existência de uma alma transmissível,
com tanta clareza, como a nega a passagem citada. Sem compreender os sete
princípios do homem, não é possível reconciliar diferentes opiniões sobre os
diversos aspectos desta questão da imortalidade. Mas a chave agora oferecida
deixa a aparente contradição livre de toda dificuldade. No trecho anteriormente
citado, Buda está tratando da personalidade astral, enquanto a imortalidade
reconhecida pela doutrina esotérica é a da individualidade espiritual. À explicação foi
cabalmente dada no capítulo que trata do Devachan e nos parágrafos citados ali do
Catecismo budista, do Coronel Olcott. Desde que alguns fragmentos da grande
revelação, que este volume contém, foram publicados nos dois últimos anos, na
Theosophist, a importante distinção entre personalidade e individualidade, tal como
223
se aplica à questão da imortalidade humana, foi estabelecida de forma inteligível.
Mas ocorrem referências, nos anteriores escritos ocultos, que se podem agora
invocar como prova do fato de que os escritores antigos estavam inteiramente
cientes da própria doutrina. Reportando-nos ao mais recente dos livros ocultos, nos
quais ainda subsiste o véu da obscuridade ocultando a doutrina à observação
superficial, embora em alguns trechos esteja vazado de tal modo que quase fica
transparente, podemos tomar qualquer um, dentre uma dúzia de parágrafos, para
elucidar o ponto que visamos. Aqui está um:
"Os filósofos que explicaram a queda na geração, a seu modo, consideram o
espírito como algo completamente diferente da alma. Admitiam sua presença na
cápsula astral somente quanto às emanações ou raios espirituais do
'resplandecente'. O homem e a alma tinham que conquistar sua imortalidade subindo
para a unidade, com a qual, no caso de sucesso, se uniam afinal e eram absorvidos,
por assim dizer. A individualização do homem após a morte depende do espírito, não
de seu corpo e alma. Se bem que a palavra 'personalidade', no sentido que
geralmente é entendida, é um absurdo, se for aplicada literalmente à nossa essência
imortal. Entretanto, esta essência constitui uma entidade distinta, imortal e eterna de
per si mesmo até no caso de criminosos sem redenção, quando o reluzente fio que
une o espírito à alma, a partir do nascimento de uma criança, é violentamente
rompido e fica a entidade desencarnada abandonada a compartilhar do destino dos
animais inferiores, ou a dissolver-se no éter e a sofrer a aniquilação de sua
individualidade — ainda assim o espírito permanece sem ser distinto19."
Ninguém poderá ler isto ou qualquer outro trecho do capítulo donde foi
extraído, sem perceber, à luz das explicações dadas no presente volume, que a
19 Isis Unveiled, volume I, p. 315
224
doutrina esotérica era completamente familiar ao autor — por mais que tenha sido
eu quem recebeu o privilégio de expô-la pela primeira vez, numa linguagem clara e
inequívoca.
É preciso algum esforço mental para diferenciar personalidade de
individualidade, mas a ânsia pela continuidade da existência pessoal — pois a
reminiscência completa que sempre se tem daquelas circunstâncias transitórias de
nossa presente vida física constituem a personalidade — é claramente nada mais do
que uma passageira fraqueza da carne. Para muita gente não será razoável dizer
que qualquer pessoa vivente hoje, com suas lembranças limitadas pêlos anos de
sua infância, é o mesmo indivíduo que qualquer um de diferente nacionalidade e
época, que viveu há milhares de anos, ou mesmo que reaparecerá, após um lapso
de tempo ou sob condições futuras inteiramente novas. Mas o sentimento do "eu sou
eu" é o mesmo através das três vidas, assim como através de centenas delas;
porque esse sentimento está mais profundamente arraigado do que aquele que
expressa "eu sou John Smith, de tal altura, com tal peso, com tais e tais
propriedades e relações". Será inconcebível que — como noção mental — John
Smith, herdeiro do dom de Tithonus, possa mudar seu nome de tempos em tempos,
vindo a casar-se talvez em cada nova geração perdendo uma propriedade aqui,
adquirindo outra ali, e se interessando, à medida que transcorre o tempo, por uma
variedade de diferentes empresas; e será inconcebível — repito — que tal pessoa
assim se esqueça, em poucos milhares de anos, de todas as circunstâncias
relacionadas à vida presente de John Smith, como se os incidentes dessa vida não
houvessem nunca ocorrido? Sem dúvida, o Ego será o mesmo. E, se isto é
concebível para a imaginação, o que pode haver de inconcebível na continuidade
225
individual de uma vida intermitente, interrompida e retomada a intervalos regulares e
variada com permanências em estados mais puros de existência?
Do mesmo modo como a doutrina esotérica mostra o conflito aparente entre a
identidade das sucessivas individualidades e a "heresia" da individualidade, assim
também coloca o "incompreensível mistério" do karma, que Mr. Rhys Davids trata
tão sumariamente, numa base perfeitamente inteligível e científica. A respeito disso,
diz-se que em vista de que o Budismo "não reconhece a existência de uma alma",
recorre ao desesperado expediente de um mistério, para lançar uma ponte através
do vazio que fica entre uma vida e outra, em algum outro lugar, ou seja, a doutrina
do karma. E condena a ideia como uma "ficção não existente do cérebro". Irritado
como se sente, com o que considera o absurdo da doutrina, entretanto devota
paciência e grande ingenuidade mental ao esforço de desenvolver algo que pareça
uma concepção racional metafísica das confusas expressões relativas ao karma,
nos escritos budistas. Ele diz:
"O karma, tomado do ponto de vista budista, evita o extremo supersticioso,
por um lado, dos que crêem na existência isolada de alguma entidade denominada
alma; e, por outro, o extremo irreligioso dos que não acreditam na justiça moral e na
retribuição. O Budismo pretende considerar a palavra 'alma', no tocante ao fato que
se propõe abranger, sem ter achado o fato, senão só uma das vinte ilusões
diferentes que cegam a vista dos homens. Contudo, o Budismo está convencido de
que se um homem colhe tristeza, desengano, dor, ele próprio e não outro é quem
semeou, em alguma época, os erros, o pecado, e se não nesta vida, em algum
nascimento anterior. Onde, pois, há, neste caso, identidade entre o que semeia e o
que colhe? Naquilo que exclusivamente permanece após a morte de um homem, e
as partes constitutivas do ser sensível dissolvem-se, no resultado de suas ações,
226
palavras e pensamentos, em seu karma bom ou mau (literalmente, seu modo de
agir), que não morre. Familiarizados com a doutrina "Qualquer que seja o que um
homem semeie, isso mesmo ele colherá', portanto, pode caber no sentimento
budista, que seja o que for que um homem colha, ele deve tê-lo semeado. E já
familiarizados com a doutrina a respeito da indestrutibilidade da força, podemos,
também, compreender o dogma budista (por mais que se contraponha a nossas
noções cristas) de que nenhum poder exterior é capaz de destruir o fruto das ações
do homem, que devem produzir pleno efeito, seja no sentido do prazer, seja no da
dor. E a grande peculiaridade do Budismo consiste nisto: o resultado do que o
homem é ou faz não se dissipa, por assim dizer, em muitas correntes separadas,
mas se concentra na formação de um novo ser sensível. Quer dizer novo em seus
aspectos constitutivos e em suas faculdades, mas permanecendo o mesmo em sua
essência, em seu ser, em sua conduta, em seu karma."
Nada pode ser mais engenhoso do que essa tentativa de inventar, com
relação ao Budismo, uma explicação de seu "mistério", apoiando-se na suposição de
que os autores do mistério geraram-no como "expediente desesperado" para cobrir
sua retirada de uma posição insustentável. Na verdade, a doutrina do karma tem
uma história bem mais simples e dispensa essa sutil interpretação. Como muitos
outros fenômenos da Natureza relacionados com o futuro, foi declarada por Buda um
mistério incompreensível, e as questões referentes a ela foram assim postas de
lado. Mas Buda não quis dizer que, porque fosse incompreensível para o vulgo,
também o seria para os iniciados na doutrina esotérica. Era impossível explicar sem
fazer referência à doutrina esotérica, mas uma vez conhecidas as grandes linhas
daquela ciência, o karma, como muitas outras coisas, converte-se num assunto
relativamente simples, um mistério, no sentido em que o é igualmente a afinidade do
227
ácido sulfúrico para com o cobre e a afinidade, ainda maior, que experimenta pelo
ferro. Certamente, a ciência esotérica, para seus "chelas laicos", do mesmo modo
que a Química para seus "chelas laicos", ou seja, os estudantes de seus fenômenos
físicos, deixa na sombra alguns mistérios insondáveis. Não irei explicar por meio de
quais exatas mudanças moleculares as mais elevadas afinidades, constitutivas do
karma, se mantêm nos elementos permanentes do seu quinto princípio. Mas a
ciência corrente não está melhor qualificada para dizer o que é que leva uma
molécula de oxigênio a abandonar a molécula de hidrogênio, com a qual estava
combinada no pingo de água, e porque se une a uma molécula de ferro da viga
sobre a qual cai. Mas a mancha de ferrugem aparece, e afirma-se que foi
encontrada a explicação científica do fato ao serem compreendidas suas afinidades
e ao se recorrer a elas.
O mesmo acontece com o karma: o quinto princípio recolhe as afinidades de
suas boas e más ações durante sua passagem pela vida, com elas vai ao Devachan,
onde as que estão harmoniosas com o ambiente, por assim dizer, daquele estado,
frutificam e florescem em prodigiosa abundância, passando depois, novamente, com
aquelas que não esgotaram sua energia, ao mundo objetivo. E com a mesma
certeza com que a molécula de oxigênio, posta em presença de uma centena de
outras moléculas, se arremessará àquela com a qual tenha maior afinidade, a
mônada espiritual carregada de karma irá àquela encarnação com a qual a unem
suas misteriosas atrações. Não ocorre nesse processo nenhuma criação de um novo
ser sensível, exceto no sentido de que a nova estrutura corpórea desenvolvida
constitui um novo instrumento de sensação. O que nela reside, o que sente alegria
ou tristeza, é o antigo Ego — separado completamente pelo esquecimento de sua
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última série de aventuras na Terra, é verdade, mas tendo alcançado seu fruto — é o
mesmo "eu sou eu" que antes.
Segundo Mr. Rhys Davids: "É estranho tudo isso" - a explicação da Filosofia
Budista que os materiais esotéricos possibilitam dar — que "não pareça repulsivo
por todos esses 2.300 anos e mais, a muitos corações ardentes e desesperados,
que confiaram na magnífica ponte aparente que o Budismo tentou construir sobre o
rio dos mistérios e pesares da vida... Não conseguiram ver que a pedra fundamental,
o laço de união entre uma vida e outra, é meramente uma palavra —esta
maravilhosa hipótese, este aéreo nada, esta causa imaginária fora do alcance da
razão — a individualizada e a individualizante graça do karma".
Com efeito, estranho seria se as bases do Budismo tivessem repousado
sobre fundações tão frágeis. Sua aparente fragilidade é devida simplesmente ao fato
de que sua poderosa estrutura de conhecimentos permaneceu velada até agora.
Agora que foi desvelada a doutrina interna, há de se ver quão pouco depende, em
qualquer aspecto, das vagas sutilezas da metafísica. O fato de que estas se
enfeixaram ao redor do Budismo deve-se a que intérpretes externos de fortuitos
indícios doutrinais não podiam ser inteiramente suprimidos do simples sistema de
moral prescrito para o povo.
No que realmente constitui o Budismo, deparamos uma sublime simplicidade,
como a da própria Natureza, uma lei que se ramifica de forma infinita. Há também, é
verdade, complexidade de pormenor, infinitamente complexas também na própria
Natureza em suas manifestações, por mais invariáveis e uniformes que sejam em
suas finalidades. Mas sempre encontramos a imutável doutrina das causas e seus
efeitos, que por sua vez se convertem em causas, numa interminável progressão